UNIVERSIDADEDESÃOPAULO
FACULDADEDEFILOSOFIA,LETRASECIÊNCIASHUMANAS
DEPARTAMENTODETEORIALITERÁRIAELITERATURACOMPARADA
EdmardeAssisCampeloÁvila
eacavila@gmail.com
Entre cartas e versões:
o “artefazer”deAmar,verbo intransitivo.
SãoPaulo
2011
FACULDADEDEFILOSOFIA,LETRASECIÊNCIASHUMANAS
DEPARTAMENTODETEORIALITERÁRIAELITERATURACOMPARADA
EdmardeAssisCampeloÁvila
Entre
cartas
e
versões:
o“artefazer”deAmar,verbointransitivo
Dissertação apresentada ao Departamento de
Teoria Literária e Literatura Comparada da
Faculdade de Filosofia, Letras eC iências
Humanasda Universidade de SãoPaulo, para a
obtenção do títulode Mestre emTeoria Literária
eLiteraturaComparada.
Orientadora:Profª.Drª.MariaAugustaFonseca
SãoPaulo
AGRADECIMENTOS
À professora Maria Augusta Fonsecade quemrecebi sempreumtratamento cortês e
generoso.Obrigadopelaconfiança(especialmente)epelaorientaçãoatenciosa.
Ao professor Marcos Antônio de Moraes por toda generosidade e atenção desde
minhachegadaaSãoPaulo.
À família Gonçalves, especialmente a Dona Zélia e o Sr. Antônio que tornaram
possível aminha jornada na pós-graduação. Sem ocarinho e o acolhimento deles,
estetrabalhonãoseriarealizado.
Agradeço igualmenteaosmeus novosirmãos do“núcleo Gonçalves”:AntonioMarcos
(grande amigo), Gisele e Bruno (sempre generosos e prestativos); e também aos
“ufopianos”:Pablo,MaurícioeCíntia.
Ao meu pai, Geraldo Campelo, pelo apoio no início dos estudos, especialmente em
2007,umdosanosmaisdifíceisdessajornada.
À minha mãe, com quem dividi a angústia dos tempos difíceis de adaptação. E com
quemchorei,recentemente,amortedoTiago–nosso“meninomaisnovo”.
Aos irmãos:Flávio,FábioeHellen;pelocarinhodesempre.
Aos amigos/irmãosdaUFOP:DaniloBarcelos,Alexandre Mesquita,EdnaldoCandido,
comquemodiálogofoietemsidoconstrutivoeconstante.
Aos amigosefamiliaresdeSeteLagoas–MG;especialmenteÉder,TioJairo,TioLuís
eSerginho.
APaolaNotarieDéboraMartins,grandesamigas.
A minha amiga“uspiana”Jakeline Cunha(também mariodeandradeana)pelo carinho,
atençãoegenerosidade.
AoLuizMattos,doDTLLC/USP,pelagentilezaeinestimávelauxíliotécnico.
AvóRita,pelainspiraçãoconstanteepeloexemplodevida.
A Kelly Corrêa, pelo auxílio na digitalização dos documentos, pela paciência, pela
“M e sin t o... fe liz ? Fe liz . Fe liz n a qu e la
in e x a t id ã o d a fe licida de q u e n ã o se
con for m a , n ã o se con sola , n ã o se
con t e n t a d e m ilh or a s t r a n sit ór ia s, n ã o
cr u z a os br a ços e n e m por som br a
le m br a e sse pior e n t r e os v e r bos,
de sist ir .”
RESUMO
AVILA, Edmar deAssis Campelo. Entre cartas eversões: o “artefazer” de Amar, verbo intransitivo. 2011. 140f. Faculdade de F ilosofia, Letras e Ciências Humanas-UniversidadedeSãoPaulo.SãoPaulo,2011.
O presente trabalho é um estudo das campanhas de escritura do romance
Amar, verbo intransitivo, de Mário deAndrade.Este estudo focaliza atrajetória
das versões doromance atravésda aproximaçãocrítica entreas duas edições
autorizadas pelo autor, aedição princeps (1927) eaedição definitiva (1944).
Além disso, analisa-se oconjunto das missivas em queMário deAndrade
menciona arecepção de Amar, verbo intransitivo pela crítica deseu tempo,
bem como otrabalho de elaboração e reescrita daquele que éseu primeiro
romance. No universo dacorrespondência, contemplam-se as contribuições
aceitas e/oudebatidaspelo autoreporseus inúmeroscorrespondentes, dentre
os quais sedestaca Pio Lourenço Corrêa, intelectual dacidade deAraraquara
e grande estudioso de línguas. Também são analisados os manuscritos de
trabalho envolvidos na elaboração daedição definitiva, através dos quais se
pode observar as diferentes operações escriturais (supressões, rasuras,
deslocamentos, etc.) processadas pelo autor. Através da correspondência de
Mário de Andrade, este trabalho também expõe o debate acerca da tradução
de Amar, verbo intransitivo para o inglês, feita por Margaret Richardson
Hollingsworth epublicadaem1933.
ABSTRACT
AVILA, Edmar de Assis Campelo. Between the letters and versions: the creative process of Amar, verbo intransitivo. 2011. 140f. Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas- Universidadede SãoPaulo. SãoPaulo, 2011.
The present workis astudyabout the Máriode Andrade’s novel “Amar, Verbo
Intransitivo”.Thisnovel hastwo differentversions.Thefirstonecameout witha
first edition in 1927under influence of the Expressionismand Freud's theory of
psychoanalysis. After the publication of this first edition, Mário de Andrade
begins a process of rewriting it, making many modifications to the original
version. Along years (1927-1944), this process considered the opinion of the
many correspondents with whom Mário deAndrade used to debate about its
creativeprocedure, amongthem,PioLourençoCorrêaisanimportantexample.
The secondversion ofAmar,verbointransitivocame outin1944withitssecond
edition which brought many textual differences with reference to the first one
(1927). Thus, these differences are the main subject of this study which
approached thecircumstances ofproduction and the criticalreception of Amar,
verbo intransitivo. Moreover, this study reveals the author’s opinion about the
translation of his novel, made by Margaret Richardson Hollingsworth and
published in 1933. All of these aspects will bes tudied through Mário de
Andrade’scorrespondenceandhismanuscripts.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Amar,VerboIntransitivo:“umamisturaincrível” ... 12
CAPÍTULO1 Amizade Epistolar PioLourençoCorrêa,o“Tio Pio ... 21
ACorrespondênciaMário& Pio... 27
Amar: Verbo “Intransitivo”?... 29
Omarginarea“artedeação”... 29
Umespaçodedescobertas... 34
CAPÍTULO2 Amar, atravésdas cartas Atrajetóriadacriação ... 36
“Entreoutrascoisas”:oinício ... 40
De Fräulein a Amar: título e gênero... 45
CAPÍTULO3
Mário,Pio eAmar
I. “Avozdosolvelhíssimodaverdade”...62
II. Pio,críticoàmargem...67
III. Umbrevecotejodasedições ...70
IV. Umdebatebem-humorado ...72
V. Umaoperaçãosingular...83
CAPÍTULO4 Pio eMário:Osegundoexemplardetrabalhoe odebatesobreatradução I. Anotaçõesnobonecoparaasegundaedição ...97
II. AtraduçãodeAmar,VerboIntransitivoparaoinglês...112
III. MárioePio,ofinaldacaminhada ...122
CONSIDERAÇÕESFINAIS I. Outraspossibilidadesparaa“misturaincrível”...124
II. Carloseatemáticada“formação”...125
III. Fräulein Elza, o vértice do olhar histórico-crítico do polígrafoMário deAndrade?... 130
Lista
de
Ilustrações
FIGURA1–Capada1ªediçãodeAmar,verbointransitivo(1927) ... 64
FIGURA2–Folhaderostodoexemplar-correspondênciacomnotasdePioL.Corrêa... 68
FIGURA3–Página17doexemplar-correspondência,commarcaçõesenotasdePioL.
CorrêaeréplicadeMáriodeAndrade... 74
FIGURA4–Página52doexemplar-correspondência,commarcaçõesenotasdePioL.
CorrêaeréplicadeMáriodeAndrade... 78
FIGURA5–Sustentaçãodeembargoempáginasmilimetradasdo
exemplar-correspondência,commarcaçõesenotasdePioL.Corrêa(itens1a6)... 81
FIGURA6–Sustentaçãodeembargoempáginasmilimetradasdo
exemplar-correspondência,comnotasdePioL.Corrêa(itens7a9)e“reminiscências”... 82
FIGURA7–Página114doexemplar-correspondência(suprimida),commarcaçõesenotas
dePioL.CorrêaeréplicadeMáriodeAndrade... 90
FIGURA8–Página115doexemplar-correspondência,comnotamencionadaemcartade
marçode1927...92
FIGURA9–Página119doexemplar-correspondência,comnotasemarcaçõesdePioL.
CorrêaeréplicaexplicativadeMáriodeAndrade... 95
FIGURA10–Capadosegundoexemplardetrabalho(boneco),comrasuranotítulofeita
FIGURA11–Folhaderostodosegundoexemplardetrabalho(boneco),comrasura,notas
eobservaçõesfeitasporMáriodeAndrade... 99
FIGURA12–Página164doexemplardetrabalho(boneco),comindicaçãodoespaço
destinadoparainserçãodocapítuloinédito... 101
FIGURA13–DatiloscritodeMáriodeAndradecomtrechoinicialdocapítuloinédito... 105
FIGURA14–DatiloscritodeMáriodeAndradecomtrechofinaldefinitivodocapítulo
inéditoerasurasacaneta.(6ªversão)...107
FIGURA15–VersodafolhadededicatóriacomrasurafeitaporMáriodeAndradeno
segundoexemplardetrabalho(boneco)... 109
FIGURA16–Página193dosegundoexemplardetrabalhocomindicaçãoinicialde
supressãofeitaporMáriodeAndrade... 110
FIGURA17–Página212dosegundoexemplardetrabalhocomindicaçãofinalde
supressãofeitaporMáriodeAndrade... 111
FIGURA18–Página17deFräuleincommarcaçãofeitaporM.deAndrade(cominiciaisde
MargaretRichardsonHollingsworth)emtrechocriadopelatradutora(almoço)... p115
FIGURA19–Página18deFräuleincommarcaçãofeitaporM.deAndrade(cominiciaisde
MargaretRichardsonHollingsworth)emtrechocriadopelatradutora(almoço)... 116
FIGURA20–Página19deFräuleincommarcaçãofeitaporM.deAndrade(cominiciaisde
ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo / Estabelecimento do texto: Marlene
INTRODUÇÃO
Amar, Verbo Intransitivo: “uma mistura incrível”
“O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica,
teoria, psicologia e até romance: sou eu. E eu pesquisador.
Pronomes oblíquos começando a frase, “mandeiela” e coisas
assim, não na boca de personagens, mas na minha direta
pena. Fugi do sistema português. Que me importa que o livro
sejafalho?Meu destinonãoéficar.Meudestinoélembrarque
existem mais coisas que as vistas eouvidas por todos. Se
conseguir quese escreva brasileiro sem por isso ser caipira,
mas sistematizando erros diários de conversação, idiotismos
brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri meu
destino. Que me importa ser louvado em 1985? O que eu
quero é viver a minha vida e ser louvado por mim nas noites
antesdedormir.Daí:Fräulein.Confesso-tequesoufeliz.”1
No ensaio “Um idílio nomodernismo brasileiro”2, Telê Porto Ancona LopezfalasobreduasprofessorasdelínguaalemãqueMáriodeAndradeteve. Segundo Lopez, Frau Else Schöler Eggbert e, posteriormente, abela Fräulein Käthe Meiche-Blosen aproximaramoescritordo diálogocomoexpressionismo alemão e, em alguma medida, contribuíram para ainspirada elaboração da história de Fräulein Elza. Essa história ganhou forma deromance/idílio3 e foi publicada em1927,comotítuloAmar,verbointransitivo4.
1
ANDRADE,Máriode.“CartaaManuelBandeira,datadadeSãoPaulo,10deoutubro
de [1924]” In: Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. org. Marcos
Antonio de Moraes. 2ª ed. São Paulo: IEB/Edusp, 2001, p.137; ano da carta
estabelecidopelapesquisadoorganizadordaedição.
2
GomesMendes.RiodeJaneiro:Agir,2008.
3
A classificação “idílio” foi atribuída pelo próprio Mário deAndrade. Telê Porto A.
Lopez discute o conteúdo irônico dessa classificação no ensaio “Uma difícil
conjugação”,publicadocomoprefáciodaediçãode2002de Amar,verbointransitivo.
4
Quanto à estrutura, pode-se dizer que esse romance/idílio possui característicasbastantedistintasdamaioriadosromances“nãoexperimentais”. Contrariando opadrão dogênero romance5, nãohác apítulos nem divisões numeradas outituladas dequalquer ordem. A respeito dessa narrativa atípica, Telê Porto Ancona Lopez, noseu ensaio Uma difícil conjugação, diz tratar-se de um “romance em cenas” acompanhadas demanifestações do narrador frente aosacontecimentos.
“É um texto de ficção construído pelas cenas que fixam
diretamente momentos, ‘flashes’, resgatando o passado, ou
que sãoapresentadaspelo Narrador.Às cenascontrapõem-se
as digressões do Narrador que compete freqüentemente,
dandograndesdemonstraçõesdeconhecimentoteórico,coma
visão que a heroína tem do mundo edoamor. As digressões
são, de fato, sua interpretação. A separação dos episódios, a
mudança de cenário, de espaço, a passagem do tempo, os
cortes desviando a atenção do leitor, são marcados apenas
pelo espacejamentopadronizado que,graficamente, acentuaa
idéiadeseqüênciasoltaedivisãodanarrativaemflagrantes.”6
Esse primeiro “romance” deMário deAndrade conta ahistória da
iniciaçãoamorosado jovemCarlos SousaCostapela governantae“professora
de amor” FräuleinElza.A famíliadeCarlos –os SouzaCosta,“novos ricos”da
burguesia paulistana dos primeiros anos do século XX – é mostrada como
modelo tipicamente brasileiro de uma burguesia “sem modos” – nas pegadas
do queMárioanunciava nasua “Odeaoburguês”, publicadaem19227– ainda
marcadacomagudezpeloscostumesdoregimeescravistaepatriarcal.
5
Sabe-seoquanto édelicadofalar em “padrão” para umgênero tão “aberto”.Sendo
assim, cabe esclarecer que a expressão se refere à estrutura mais comumente
empregada, capítulos identificadose numeradossegundo uma lógicamais oumenos
linear.
6
LOPEZ, Telê Porto Ancona. “Uma Difícil Conjugação”. In: ANDRADE, Mário de.
Amar,VerboIntransitivo–BeloHorizonte-RiodeJaneiro:Itatiaia,2002.p.13
7
ANDRADE, Mário de. “Ode ao burguês”. In: Paulicéiadesvairada. São Paulo:Casa
CANDIDO,Antonio.“TheBrazilianFamily”.In:SMITH,T.Lynn;MARCHANT,
“Carlos não passa de um burguês chatíssimo do século
passado. Ele é tradicional dentro da única cousa a que se
resumeatéagoraaculturabrasileira:educaçãoemodos.
Em parte enorme: má educação e maus modos. Carlos está
entre nós pelo incomparavelmente mais numeroso que inda
tem no Brasil de tradicionalismo ‘cultural’ brasileiro burguês
oitocentista.”8
De acordo comAntonio Candido9,a “famíliapatriarcal brasileira”era
constituída por dois núcleos, um núcleo central e outro periférico; onúcleo
central, legalizado,eracompostodocasal (os‘patrões’) eseusfilhoslegítimos;
já onúcleo periférico envolviaos agregados, negros, incluindoas “concubinas”
e os seus filhos ilegítimos, geralmente fruto das relações sexuais com o
‘senhor’.Nãoobstantetratar-sede umadescrição referenteàfamíliacolonial, o
próprio Candido afirma quecertos moldes resistiram aopassar dos anos e
constituíramumtipo deorganizaçãosocial emqueafamília (comsuas marcas
hierárquicas) possuía um papel de destaque noprocesso desocialização e
integração. Os rastros desses “moldes” esua estruturas perenes podem ser
identificados nos Sousa Costa, ena sua forma de lidar com os empregados
(“núcleoperiférico”),especialmentecomagovernantaalemã.
A propósito disso, há também nor omance uma engenhosa
caracterização desse núcleo opositor ao dae lite, referente à classe
trabalhadora desprivilegiada, ocupante de uma condição vulnerável às
vontades do patronatoe inoperantediante dosabusos cometidos poreste. Em
Amar Verbo Intransitivo, tal núcleo periférico encontra representatividade,
principalmente, napersonagemcentral,agovernantaalemã FräuleinElza.Isso
oferece ao leitor uma das dimensões mais envolventes da narrativa, odiálogo
com arealidade brasileira doinício do século XX, uma perspectiva cara ao
8
Cf.“Apropósito deAmar,Verbo Intransitivo”.Texto publicadoporMário deAndrade
no Diário Nacional. SãoPaulo, 4 dedezembro de1927. (ArquivoMário de Andrade–
IEB–USP).
9
Alexander.Brazil:PortraitofHalfaContinent.NewYork:TheDrydenPress,1951,
Modernismo ques e estende pelas mais diversas produções artísticas da
época, sempre evidenciando tensões e contradições quecercam o “projeto
estético” e“oprojeto ideológico” dosmodernistas brasileiros(conformeas duas
vertentes destacadas por João Luiz Lafetá10), sobretudo no que tange ao
afloramento de“componentesrecalcadasdanossapersonalidade”.
Paradoxalmente, opr imeiro romance ques urgiu do esforço
experimentalista de Mário deAndrade nãofoge àregra deuma literatura que
se formou nas tensões entre a prática datradição eoculto da renovação. O
narrador de Amar Verbo Intransitivo confessa, por exemplo, asua herança
romântica, advinda datradição do idílio de Bernardin deSaint-Pierre11. Há
ainda, paraalém da ironia cáustica,trechos que denotamo diálogo direto com
a tradiçãomachadiana12(como se observapelosexemplos abaixo),aomesmo
tempo em quer eafirmam-se os laços com romantismo francês, mais
especificamente, comoestilo problematizador deStendhalemO Vermelhoe o
Negro.
“Volto a afirmarquemeu livrotem 50 leitores.Comigo51.Não
é muito não. Cinqüenta exemplares distribuí com dedicatórias
gentilíssimas. Ora dentre cinqüenta presenteados, não tem
exagero algum supor que ao menos cinco hão de ler o livro.
Cincoleitores.Tenho,salvoomissão,45inimigos.”13
“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros
para cemleitores, coisa éque admira econsterna. Oque não
admira, nem provavelmente consternará ése este outro livro
não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem
10
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades;
Ed.34,2000,288p.(ColeçãoEspírito Crítico).
11
Informação extraída de LOPEZ, Telê Porto Ancona. “Um idílio no Modernismo
brasileiro”. In: ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Rio deJaneiro: Agir,
2008.Estabelecimentodotexto:MarleneGomesMendes.
12
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Zero
Hora/Klick,1997.
13
ANDRADE, Máriode. Amar, Verbo Intransitivo. 17ª edição, Riode Janeiro: Itatiaia,
CANDIDO,Antonio.“Ressonâncias”.In:OAlbatrozeoChinês.RiodeJaneiro:Ouro
vinte, e quando muito dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se
adotei uma forma livre de um Sterne ou de um Xavier de
Maistre nãos ei se lhe meti algumas rabugens de
pessimismo.”14
Permanecendo nocurso dos múltiplos diálogos (ou “ressonâncias”, conformeAntonio Candido15) queAmar,Verbo Intransitivodeixa patentes,háo fato deque apersonagem Elza torna acessível ao leitor avisão dodilema histórico vivenciado pelo burguês europeu, e contemplado ao longo detoda tradição narrativa romântica: anecessária superação da discrepância entre, naspalavrasde Hegel16,a“poesiadocoração”ea“prosadasrelaçõessociais” (ou comoprefereonarrador: “homem-do-sonho”e“homem-da-vida”).
“Enquanto isso todos os países da terra, abraçados, se
amavam numa promíscua redecomum, não é? Estávamosno
primeiro decênio deste século que deu no vinte. Todos os
abraços perdiam terreno. O homem-da-vida ganhava-o. Por
adaptação? É. Será? Vejo Sarajevo, apenas como bandeira.
Nas pregas dela brisam invisíveis as ambições comercias.
Pum! Taratá! Clarinsgritando, baionetascintilando,desvairado
matar, hecatombes, trincheiras, pestes, cemitérios... Soldados
desconhecidos.Aculpaeradohomem-da-vida,nãoé?...”17
No prisma dodesencontro entre as possibilidades doindivíduo eas
disposições daes trutura social, bem como na conseqüente subserviência
pacífica dohomem burguês às normas do mundo, muitas delas seculares e
socialmente insalubresaosanseiosindividuais,podemresidirconexõesentreo
gênero Bildungsroman18 e Amar, verbo Intransitivo. A primeira conexão
14
ASSIS.op.cit. p.16
15
sobreAzul,2004,p.43-52
16
Cf.MAZZARI, MarcusVinícius.RomancedeFormaçãoemPerspectivaHistórica.São
Paulo:AteliêEditorial,1999.P.70
17
ANDRADE, Máriode. Amar, Verbo Intransitivo. 17ª edição, Riode Janeiro: Itatiaia,
2002.p.61
18
As dificuldades deuma abordagem dessa natureza,que envolva obras brasileiras,
possível éa temática da “formação” (“Bildung”, na conceituação alemã)19,
realizada pelo viés paródico – o que mais uma vez deixa entrever a
multiplicidade demateriaisconstituintesdesseromancemultidimensional.
“...Máriotalveztenhaintuídoaindaoutraperspectivaamais(...)
a de que a dissolução do indivíduo burguês operada nos
dramas expressionistas viesse a calhar com a experiência
brasileira, com a cultura brasileira, tão pouco cosmopolita e
definida...”20
Todavia, no quec oncerne àabo rdagem comparativa entre o
Bildungsroman e obras exteriores ao contexto alemão háinúmeras ressalvas.
Dentre os elementosaseremconsiderados, tendo atradição como referência,
a dimensão temporal queenvolve atrajetória deformação doherói merece
destaque, uma vez que o processoformador demanda bastante tempo, afinal,
o amadurecimento das potencialidades do herói se dá nos “hiatos doerro”,
como resultado do reconhecimento des uas limitações. Em Amar, Verbo
Intransitivo essa trajetória écurta, tanto para Elza quanto para seu “pupilo”
Carlos, oherdeiro dosSousaCosta.
brasileira: prolegômenos para um estudo”. In: Blickwechsel. Akten São Paulo:
EDUSP;MonferrerProduções2005v.2,p.85-92
19
Emseu livroO cânonemínimo – O Bildungsroman na históriada Literatura,Wilma
Patrícia Maas descreve toda uma trajetória do termo “Bildung” através dos séculos,
detalhando significados ereferências. Segundoa autora, os primeiros significados do
termo estão ligados à idéia de “representação da imagem”, reprodução e imitação.
Apenas emmeados do séculoXVIIIotermo“Bildung”adquiriusignificação remetente
à idéia de “formação e desenvolvimento de características pessoais como intelecto,
bons costumes, comportamento, atravésde influênciasexteriores”. Com o passar do
tempo oleque de significação doreferido termo ampliou-se eacabou por constituir
uma conceituação bastante complexa, dadas as “fusões semânticas” que se
sucederam. AindasegundoWilmaMaas,háum sentidoevocadopelo termo“Bildung”
queéessencialparaacompreensãodoromancedeformação:“anoçãodeprocesso”,
entendida como “a sucessão de etapas que compõem o aperfeiçoamento do
indivíduo”.
20
FIGUEIREDO,Priscila.Embuscadoinespecífico:leituradeAmarverbointransitivo
Para além das intersecções com atradição do dinâmico gênero
“romance”, em sua dimensão histórica, Amar, Verbo Intransitivo, conseguiu
amalgamar àvisão genuinamente européia do “indivíduo cosmopolita”, avisão
culturalista (brasileiríssima) deMário deAndrade. Segundo PriscilaFigueiredo,
essa realização se deupor intermédio deFräulein Elza, já queapersonagem
da governanta reúne em si – ainda queparcialmente – a complexidade dos
olhares que oautor direcionava ao ambiente intelectual modernista e ao
contextosocialdesuaépoca:
“A concentração nela de contemplatividade e ação, posto que
seja reportada à especificidade alemã, àps icologia deum
povo, nos permite entrever algo mais: uma interioridade
convulsa,desdobramentológicode contradiçõessociais.Opar
homem-da-vida/homem-do-sonho, se serve ao debate em
torno da identidade alemã, ou seja, se dá parte deuma visão
culturalista do Autor, que orienta bastante seu pensamento
especialmente durante a década de vinte, também parece
apontar para um ponto de vista moderno, que remete à
sociedade industrial capitalista e à diferença entre classes
sociais.”21
Quando se falados componentes maismarcadamente influenciados pela psicanálise, é impossível não falar da reação de Mário de Andrade à recepção de seu livro. Em várias cartas a escritores amigos como Manuel Bandeira eCarlos Drummond de Andrade22, dentre outros, Mário reclama da insensibilidade dacrítica, que só percebia o estrato freudiano (que, aliado ao determinismo dec unho naturalista, pauta oc rescimento doper sonagem Carlos), eas influências machadianas em seu estilo. Segundo Mário de Andrade, boa parte dacrítica simplesmente nãocompreendia as intenções verdadeiras desuas “ousadias lingüísticas”23,além, éclaro, denão perceber a
21
FIGUEIREDO.op.cit.p.20
22
MORAES, Marcos Antonio de, org. Correspondência Mário de Andrade & Manuel
Bandeira. 2ª ed. São Paulo: IEB/Edusp, 2001, p.339-341. Em carta datada de 26 de
abril de1927. Em nota explicativa da mesma carta, oorganizador da edição cita um
trecho de uma carta de Mário a Drummond (de 20 de fevereiro de 1927), também
lamentandoinépciadepartedacríticaparacomAmar,VerboIntransitivo.
23
ANDRADE, Mário de. “Posfácio Inédito” (não datado) In: Amar, verbo intransitivo /
dimensão satírico-fatalista daquela história que, antes detudo, éum suceder de fracassos individuais – basta considerar o “projeto educador” de Felisberto (o patriarca), inútil em suas intenções; ou mesmo os devaneios líricos de Fräulein,emirremediáveldesacordocomarealidadedaprostituição24.
Na esteira dessa multidimensionalidade, concorre uma “história de
criação”. O livro – concebido entre os anos de 1923 e 1926, sob influência do
experimentalismo modernistadeumaépocaquetomou gostopelofragmento e
pelo inacabado, como uma espécie det radução deuma face do mundo
moderno – teve uma segunda edição em 1944, pela Livraria Martins Fontes
Editora, como terceiro volume das Obras Completas de Mário deAndrade. No
espaço devinte eum anos, quecompreende o intervalo entre o início da
composição do idílio (por volta de 1923), passa pela publicação da edição
princeps (1927) e sua consequente recepção, chegando àsegunda edição
(1944), um anoantes da morte doescritor, construiu-se uma história dos
“estados do texto”, ou seja, procedimentos queenvolveram acriação eas
inúmeras modificações operadas pelo autor da narrativa. Esse processo está
registrado em artigos dejornais, correspondências, anotações diversas em
exemplaresefóliosdediferentesnaturezas25.
O presentetrabalhosepropõea analisaressatrajetória,comoolhar
voltado para o conjunto decontribuições aceitas e/ou debatidas por Mário de
Andrade, eque compõem umaespécie de “acordo decoautoria” entreescritor
e críticos. Dentre os diversos e importantes interlocutores, destaca-se afigura
de Pio Lourenço Corrêa, parente eam igo com quem Mário debateu
demoradamente sobre Amar, Verbo Intransitivo (inclusive sobre atradução do
romanceparaoinglês26).
24
Cf.“Apropósitode Amar,VerboIntransitivo”.TextopublicadoporMáriodeAndrade
no Diário Nacional. SãoPaulo, 4 dedezembro de1927. (ArquivoMário de Andrade–
IEB–USP).
25
Valedestacaracontribuiçãodadaaestetrabalhopela “seletadetrechos” decartas
de Mário de Andrade (MORAES, Marcos Antonio de. “Fräulein em processo”. In: O
Amar de Mário de Andrade . Roberto Sagawa (org.) / Assis: FLC publicações, 2010.
P.155-198); resultanteda pesquisa “Correspondência Reunidade Mário de Andrade”.
Emdesenvolvimento,coordenadaporMarcosAntôniodeMoraesnoIEB/USP.
26
Fräulein, tradução de Amar, verbo intransitivo, por Margaret Richardson
De suma importância também para este estudo, éod ossiê
organizado por Aline Nogueira Marques, como parte doprojeto “Estudo do
processo de criaçãode Máriode Andradenos manuscritosde seu arquivo,em
sua correspondência,em sua marginália e em suasleituras” – coordenado por
Telê Porto Ancona Lopez. O dossiê colige, conforme consta dar evista
eletrônica “Mário Scriptor”27, “documentos noarquivo Mário deAndrade: fólios
finais da última versão; posfácio; 2ª versão em exemplar det rabalho,
conjugando rasuras de MA edePio Lourenço Corrêa; 2ª versão em exemplar
de trabalho/boneco para 2ª edição (São Paulo: Casa Editora Antonio Tisi,
1927/Editora Piratininga [1934?]); 1ª versão de c apítulo acrescentado ao
exemplar detrabalho; 2ª versão dotrecho final docapítulo acrescentado ede
exemplar rasurado de Fräulein, tradução de Amar, verbo intransitivo, por
Margaret Richardson Hollingsworth (New York: The Macaulay Company,
1933)”.
27
CANDIDO,Antonio.“Traçosbiográficos”–In:ANDRADE,Máriode.&CORRÊA,Pio
Capítulo 1
Amizade Epistolar
I. Pio LourençoCorrêa, o“TioPio”28
“Um de seus aspectos mais salientes era o extremado corte
conservador: concepção muito elitistada sociedade, senso de
hierarquia, confiança noque chamava a ‘filosofia natural’, ou
seja, ateoria darwinistada vitória do maisapto.Na conduta,o
respeito pelos valores tradicionais eum a honestidade
intransigente que podia chegar ao sacrifício de seus
interesses.”29
Natural de A raraquara, Pio Lourenço Corrêa (*12/5/1875
†11/6/1957), filho único de um segundo casamento docomendador Joaquim
Lourenço Corrêa, foi um dos mais importantes interlocutores deMário de
Andrade em sua numerosa correspondência. O nome que recebera, foi uma
homenagem aoirmão Pio Corrêa daRocha, morto em batalha naGuerra do
Paraguai em 186630. De família numerosa e influente, numa época em que
28
“TioPio”éaformaíntimacomqueMário(eseusfamiliares)serefereaoamigoPio
LourençoCorrea.
29
Lourenço.Pio&Mário–Diálogodavidainteira-Acorrespondênciaentreofazendeiro
Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945 – estabelecimento do texto e
notas Denise Guaranha – Rio de Janeiro: Ouro sobre azul; São Paulo: SESC SP,
2009.p.11
30
Antonio Candido explica que, após a morte do pai, Pio Lourenço Corrêa ficou sob
tutela de um dos seus irmãos (oriundos do primeiro casamento de seu pai), elogo
depois da morte da mãe, seguiu ele para a companhia do padrinho (e também
parente) Joaquim de Almeida Leite de Moraes, este, avô materno de Mário de
CANDIDO,Antonio.“MariodeAndradeeovelhoPio”.In:OAlbatrozeoChinês.Rio
casamentos intrafamiliares eram comuns, casou-se em São Paulo, em 1898,
com sua sobrinha Zulmira de Moraes Rocha31, dois anos mais nova. O casal
seguiria para uma chácara naregião de Araraquara, afim dese preservar da
epidemia defebre amarela que, àquela época, assolava várias cidades do
estado. Nessa chácara, da Chácara daSapucaia32, ocasal passou a maior
parte davida, e por ali se abrigava, detempos em tempos,oparente eamigo
Mário de Andrade. O escritor era dezoito anos mais moço quePio Lourenço
Corrêa, efilho de um grande amigo, Carlos Augusto de Andrade, com quem
Pio conviveraemSãoPaulo,sobmesmoteto,nacasadopadrinhoJoaquimde
Almeida Leite de Moraes, de 1888 até o ano de 1895. Conforme explica
AntonioCandido:
“A ligação deMário deAndrade com Araraquara foi sempre
grande, devido ao passado da família de sua mãe. Seu avô
materno, Joaquim de Almeida Leite Moraes, advogou na
cidadee participoudesua vidapolítica sobo chefeliberaletio
afim comendador Joaquim Lourenço Corrêa, com cujo filho
Candido Lourenço casou a sua filha mais velha Isabel. Uma
filha deste casal,Zulmira, casoupor sua vezcom ofilho único
de um segundo casamento do já velho comendador, Pio
Lourenço Corrêa. Este nãoapenasera afilhadodo dr. Leitede
Moraes, masviveuna suacasaemSãoPaulocomoestudante
e nela se tornou amigo e admirador de um genro dele, Carlos
AugustodeAndrade, casadocomdonaMaria Luísa.São estes
os paisdeMáriodeAndrade.”33
31
PrimadeMáriodeAndrade
32
Foi naChácara da Sapucaia que Macunaíma ganhou, em apenas seis dias, sua
primeira redação. Ementrevista à revista número36 do IEB, Gildade Mello e Souza
confirma ocostume de Mário dese refugiar de seu cotidiano em chácaras de seus
parentes deAraraquara:“ErahábitodeMário passartodososanosummês naregião
de Araraquara, programando regularmente as férias do Conservatório em duas
estadias: uma na fazenda Santa Izabel, de Cândido de Moraes Rocha, meu pai, e
outranachácaradeZulmiraePioLourençoCorrêa,na periferiada cidade.”MELLOE
SOUZA, Gilda eAntônio Candido de. “A lembrança que guardo deMário” – In:
RevistadoInstitutodeEstudosBrasileiros.SãoPaulo:EDUSP,nº36,p.9-25,1994.
33
Intelectual autodidata, poliglota esempre simpático aos estudos
lingüísticos34, Pio Lourenço Corrêapublicou, em 1924, um artigo que, seguido
de vários acréscimos, acabou se transformando em um livro sobre o nome de
sua terra,Monografiada PalavraAraraquara,querendeuoutrastrêsedições;a
quarta, em 1952. Essa perseguição auma questão tão pontual e de certa
forma poucorelevantedá mostrasdesuapersonalidade sempremuitooriginal,
determinada, um tanto autoritária eseriamente conservadora, embora dotada
de grande senso dehumor. Seu berço oligárquico, somado aoseu ímpeto
autoritário, todavia, nãoofizeram um“sacerdote dopoder daselites”, como se
poderiainferir;antes,PioLourençoCorrêadestoava detoda“fidalguia”,sempre
indiferente aoacúmulo deriquezas ealheio ao mundo doculto aoprestígio. É
com esse homem um tanto avesso aoconvívio social erepleto de inquietação
intelectual queMáriodeAndradenutriráumanumerosacorrespondência.
“O tempo e os acontecimentos fizeram dele um misantropo,
uma espécie de‘neurastênico porprofissão’ temidona família,
como ov ai definir Mário de A ndrade. Esse homem
inteligentíssimo, culto,civilizado, é em tudo original: no mundo
cerrado que construiu e no qual se encasulou, no horário das
refeições, na concepção de conforto, na peculiar utilização do
dinheiro,na maneirapessoaldesevestirecalçar,no desprezo
soberano por toda e qualquer sujeição à moda. A
correspondência com Mário será aabertura mais prolongada,
maisimportantequemanterácomomundoexterior.”35
34
A maior parte de sua biblioteca particular, mais de mil exemplares, foi doada pela
viúva àBiblioteca Pública deAraraquara, onde constitui uma coleção reservada.
(Cf.CANDIDO. op.cit.p.13).
35
MELLO E SOUZA, Gilda. “O Arcaico eo Moderno: História deuma amizade” – In:
ANDRADE, Máriode.&CORRÊA,PioLourenço.Pio&Mário–Diálogoda vidainteira
- A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945 – estabelecimento do texto e notas Denise Guaranha – Rio deJaneiro:
CANDIDO,Antonio.“MariodeAndradeeovelhoPio”.In:OAlbatrozeoChinês.Rio
Oconto,emsuaterceiraversão,édatadode26dedezembrode1942;masfoi
Nocontexto dessaamizade,surgiramtambémtextosliteráriosdeMário
de Andrade inspirados na figura singular de Pio Lourenço Corrêa e em seu
“mundo fechado e particular, regido por normas próprias emarcado por uma
extraordinária originalidade”36. Um exemplo disso foi o conto “O Poço”
(publicado postumamente37 em Contos Novos) cujo protagonista, com sua
estimada canetatinteiro,éinspiradoemPioL.Correa38.
Por ser um autêntico registro daproximidade entre Mário ePio, e
principalmente, por constituir um exemplo do quão admiravelmente singular
era, paraMário, afigura do amigo,observemosem umbreve panorama de “O
Poço”.
O conto, narrado em terceira pessoa, éahistória dovelho fazendeiro
Joaquim Prestes, autoritário, perfeccionista “de pouco riso” equase sempre
mal-humorado, donode vastas terras desde onascimento, dado a lançar
modismos e manias que logo eram seguidas por toda av izinhança de
fazendeiros. Rico,culto, viajado evaidoso, orgulhava-se de ter inaugurado em
seu município aprática bem lograda dacriação deabelhas edeser um dos
primeirosproprietáriosdeautomóveldesuaregião.
“Por comprar o seu primeiro carro fora a Europa, naquele
tempo emqueos carroserammaiseuropeus queamericanos.
Viera uma ‘autoridade’ no assunto. E o mesmo com as
abelhas, deque sabia tudo.Um tempoaté lhe dera deeducar
as abelhas nacionais, essas ‘porcas’ que misturavam o mel
com a samora. Gastou anos edinheiro bem nisso, inventou
ninhosartificiaise cruzouasraças,atéfezvirumasabelhinhas
amazônicas.Massemandavanoshomensetodosobedeciam,
36
deJaneiro:OurosobreAzul,2004,p.119
37
publicadopostumamente,em1947.
38
ANDRADE,Máriode.“OPoço”.In:Contosnovos.15ªedição,revistaporMariaCélia
se viu obrigado a obedecer às abelhasque nãose educaram
umisto.”39
Como andava aconstruir seu “pesqueiro” à beira doMogi, que incluía
até uma pequenacasa para abrigar os convidados pescadores, ecomo não o
agradava aideia desempre ter detransportar águapara oconsumo, resolveu
mandar abrir um poço. Os designados para a tarefa de abrir opoço eram os
funcionários daprópria fazenda, dentre eles, dois irmãos: José eAlbino. Este,
de saúde muito fragilizada desde sempre, contava com a“generosidade” do
patrão paraa comprados remédios quetomava, epor isso tinhauma postura
bastante servildiantede JoaquimPrestes.
Mas eis queaoc hecar aprofundidade doPoço, olhando-o de cima,
Joaquim Prestes deixa cair no buraco lamacento asua caneta tinteiro “tão
estimada”. A partir de então, desencadeia-se no c onto uma série
desentendimentos entre opatrão eos empregados, quenãoqueriam esvaziar
o poço, ainda repleto de lama ecom pouca água, tão somente para procurar
uma caneta. Apenas opobr e Albino esbanjava disposição, ec olocava-se
contrário às idéias de seu irmão José e dos demais companheiros. Estes, na
visão dopatrão, sempre “faziam corpo mole” mediante trabalhos pesados e
estavam exigindo a contratação de um poceiro deofício porque, “indolentes
que eram” (na visão do patrão), precisavam de um pretexto que justificasse a
preguiça.
O ponto máximo detensão é oenfrentamento franco deJoaquim
Prestes por José,quenão permitiu queo seuirmão voltasse aofundo dopoço
para procuraracanetadopatrão. Apesardasordensexpressas, Joséentendia
que Albinoestavasofrendomuitocomofrioesuasaúdefracaseriaaindamais
comprometida emfavor deumcapricho. Apósummomentoemqueaviolência
se anunciava inevitável, a obstinação deJoaquim Prestes por sua caneta
inesperadamente arrefeceu, eof azendeiro concluiu entredentes “... nãosou
39
ANDRADE,Máriode.“OPoço”.In:Contosnovos.15ªedição,revistaporMariaCélia
nenhumdesalmado...”.Emseguida,ordenaavoltaparaacasaeacontratação
imediata dopoceiro.
O final de “O Poço” deixanítida a “caricaturada autoridade”que Mário
quis construir a partir da figura do amigo Pio Lourenço Correa. Terminado o
poço, após dois dias detrabalho, e feita abusca pela caneta, um funcionário
entrega aopatrão um embrulho. Joaquim Prestes estava em casa, a fazer
anotações sobre afazenda,e aoabrir oembrulhodeparou-se comoobjetode
suaestima:
“A caneta vinha muito limpa, toda arranhada. Se via que os
homens tinham tratado com carinho aquele objeto meio
místico, servindo pra escrever sozinho. Joaquim Prestes
experimentou mas a caneta não escrevia. Ainda a abriu,
examinou tudo, havia areia em qualquer frincha. Afinal
descobriuarachadura.
–Pisaramnaminhacaneta!brutos...
Jogou tudono lixo.Tirou dagavetadebaixouma caixinhaque
abriu. Havia nela várias lapiseras e três canetas-tinteiro. Uma
eradeouro.”40
Como se pode perceber, na dinâmica de “O Poço”, as relações que
misturam oas sistencialismo patriarcal ao autoritarismo implacável e à
subserviência são de importância fundamental para aconstrução da imagem
do protagonista. Além disso, esse tipo de amálgama das relações sociais
típicas doBrasil éo cerne doestiloácido deMário deAndrade,imediatamente
reconhecível em Amar, verbo intransitivo e refinado aolongo de uma vida
inteira de pesquisas estéticas, de observação meticulosa do cotidiano e fazer
literáriointenso.
40
II. ACorrespondênciaMário &Pio
Dentro de todo oconjunto afortunado dacorrespondência entre Pio
Lourenço Correa eMário deAndrade, Amar, verbo Intransitivo tem seu lugar
cativo. Eésobreesselugar,nassuasmais variadasnuancese porquês,queo
presente trabalho concentrará seus esforços deinvestigação, deforma mais
incisiva.
Em termos numéricos, acorrespondência entre Mário deAndrade e
Pio Lourenço Corrêa éconstituída por 105cartas ebilhetesde PioLourenço e
84 cartas deM ário de A ndrade, todo o conjunto fora cuidadosamente
preservadoporambos41.
Quando a “amizade epistolar” se iniciou, Mário tinha vinte etrês
anos ePio Lourenço, quarenta eum. Para conhecedores dotrabalho deMário
de Andrade, as suas divergências em relação aPio Lourenço Corrêa são
esperadas, eencontram motivação em elementos quevão muito além da
consideráveldiferençadeidadeentreosinterlocutores.
Enquanto Pio Lourenço Correa, pesquisador sistemático e
cultíssimo, era mais ligado àp ercepção normativa dal íngua, ao seu
funcionamento sintático eaos fundamentos etimológicos, Mário entendia a
linguagem humana como mecanismo em constante evolução. Sua busca, em
termos deex pressão artística da palavra, inevitavelmente passa pela
apreensão dos “movimentos” dal inguagem, numa esfera alheia ao
convencionalismo, mas nem por isso desprovida desistematização – uma
tentativa de apreender a“psique brasileira”42 em todas as dimensões, com
41
GildadeMelloeSouzaexplicaquePioLourençosócomeçouacolecionarascartas
do amigoquando estejá contava comcerto prestígio. As mortes do irmãomais novo
(em22dejunhode1913)edopaideMáriodeAndrade (em15defevereirode1917)
teriam sido o motivo maior da aproximação entre essas duas personalidades tão
distintas. (MELLOESOUZA.op.cit.p.19)
42
LOPEZ, Telê Porto Ancona. “Uma Difícil Conjugação”. In: ANDRADE, Mário de.
Dentre esses escritos também está O caso do retrato, pelo qual Mário de atenção especial para amusicalidade sempre marcante dofalar brasileiro, “a
melodianova”.
Em Pio Lourenço Corrêa, Mário deAndrade encontrou muito mais
que um “contraponto” intelectualmente consistente, mas um diálogo sincero e
muitas vezes severo – apesar da ambiência familiar que os circundou desde
sempre43.
No quetange à inventividade literária,Pio Lourenço Correa também
colheu “frutos” desse intercâmbio, em especial apar tir docontato com a
tradução de Amar, verbo Intransitivo para a língua inglesa, feita por Margaret
Richardson Hollingsworth44. Desde então, oculto fazendeiro – mesmo sem
abrir mãodesuasconvicções–seaproximou maisdaarte modernista,aponto
de retomar velhos escritos sua autoria (O caso do Barraqueiro, e Garapa
Azeda)que“talvezpudessemserrefeitos”45.
43
A respeito dessa familiaridade, na carta de 21 de agosto de 1917, quando do
recebimento doexemplar de Há uma gota de sangue em cada poema,Pio Lourenço
diz: “(...) Eu sou oTio Pio, eu sou o amigo do Papai. O Papai, em longos anos de
convivência que eu vivo eviverei revivendo, obliterou em mim olivre exame para
examinar essas coisas, quando elas vêm do Carlinhos, do Mário ou da Lourdes. Eu
me sinto perfeitamente suspeito: é como se houvesse de emitir juízo sobre obra
minha.” (ANDRADE, Mário de. & CORRÊA, Pio Lourenço. Pio & Mário – Diálogo da
vida inteira - A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945 – estabelecimento do texto enotas Denise Guaranha – Rio de
Janeiro:Ourosobreazul;SãoPaulo:SESCSP,2009.p.34.)
44
Fräulein, tradução de Amar, verbo intransitivo, por Margaret Richardson
Hollingsworth(NewYork:TheMacaulayCompany,1933)
45
Andrade tomou especial gostoeque envolve todaumadiscussão estabelecida ao longo de onze cartas (cinco de Mário e seis dePio) Cf. MELLO ESOUZA.
MENDES, Marlene Gomes. “Diálogo Mário eTio Pio” – In: Revista do Instituto de
No ensaio intitulado“Nos caminhosde um livro”, queabre a já mencionada edição
III. Amar:Verbo“Intransitivo”?
1. Omarginare a“artedeação”
Em 1994, na revista número 36do IEB, dentre os vários textos que
celebraram oc entenário deM ário deA ndrade, Marlene Gomes Mendes
apresentou a transcrição do diálogo entre Mário de Andrade ePio Lourenço
Corrêa46. Esse diálogo,nas múltiplas relaçõesque estabelece comoprocesso
de reescritura de Amar, verbo intransitivo, motiva algumas discussões
desenvolvidas aolongodestetrabalho.
O interesse investigativo acerca do‘diálogo’ entre Mário e Pio Corrêa
reside na própria forma doseu registro: notas demargem num exemplar da
primeira edição de Amar, verbo intransitivo que pertenceu ao fazendeiro eque
hoje se encontra no acervo do IEB. Tais notas de margem contam com as
questões, dúvidasedivergências apontadaspor Pio Lourenço(123 nototal), e
também com as réplicas deMário deA ndrade. Além disso, hác uriosas
“sustentações deembargo”, quefuncionam como contrarréplicas (somam 10),
anotadascuidadosamente aofinaldovolumeporPioCorrêa.
Esse registro marginal dediálogo constitui uma forma especial de
correspondência em virtude da natureza incomum deseu suporte material, e
oferece a possibilidade de observar bastidores doprocesso de (re)criação de
Amar, verbo intransitivo, fornecendo detalhes preciosos para acompreensão
dealgumasetapasgenéticasdoreferidoromance47.
46
EstudosBrasileiros.SãoPaulo:EDUSP,nº36,p.190-243,1994. 47
de Amar,verbo intransitivopela EditoraAgir(2008), MarleneGomes Mendescogitaa
existência de umsegundo exemplarde trabalho,baseando-se nasdiferenças entreo
texto estabelecido na edição de 1944 e aquele que consta do exemplar anotado por
Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa. Todavia, opresente trabalho não cuida de
Deumlado,os“conservadores”,defensoresdo“bomgosto”;deoutro,a“geração
Cf.MENDES,MarleneGomes.“Noscaminhosdeumlivro”.In:ANDRADE,Máriode.
Nessesentido,oexemplaranotadocomosdebatesentrePioLourenço
Corrêa eMário deAndrade éde muita importância namedida emque nele se
configura uma correspondência bastante peculiar, através da qual se pode
observar o embate ideológico quese configurava noBrasil dos primeiros anos
do século XX48.O perfil doainda jovemartista eodo críticoamigo se expõem
num espaço detensões, em queépossível apreender aambiência em quea
obrafoiconcebida(1923-1927).
Não obstante,oexemplar anotadosuscita, pelaexclusividade daforma
dos registros às suas margens, odebat e em torno dogêner o “carta”,
(conhecido como gênero epistolar) nasua grande gama depossibilidades de
realização. O debate épossível namedida em queMário deAndrade sempre
se mostrou receptivo em relação aalgumas críticas econtribuições de seus
correspondentes eamigos; é ocaso deManuel Bandeira, por exemplo. Mário
manteve, aol ongo des ua trajetória, uma grande preocupação com as
questões referentes àl inguagem, àc onstrução daex pressão artística e
cotidiana – preocupação ques e refletiu em seus estudos, artigos e nas
múltiplas cartas queescrevia. Portanto, énatural queoex emplar anotado
forneça, edef ato ofaz, elementos querevelam essa faceta generosa do
trabalhodecriaçãoliteráriadeMáriodeAndrade.
O exemplar da primeira edição de Amar, verbo intransitivo oferecido a
Pio L. Corrêa percorreu um itinerário peculiar: saiu das mãos deMário até as
do amigo que, como decostume, leu, fez anotações (ao longo detodo o
exemplar, nas margens enas folhas deguarda) eo reenviou para Mário de
Andrade. Este, por sua vez, fez réplicas aos comentários ef ez voltar o
exemplar às mãos dePio. Finalmente, o livro receberia “sustentações de
embargo” aalgumas das réplicas eretornaria mais uma vez aSão Paulo, de
onde nãomaissairia49.
48
heroica”esuaartedasubversão.
49
Amar,verbointransitivo.RiodeJaneiro: Agir,2008.Estabelecimentodotexto:Marlene
Respectivamente,encontradasno títulodo livro,na página166, ena página179da
Paraefeitodeclareza,asnotasretiradasdatranscriçãolinearizadafeitaporMarlene
Considerando esse transitar complicado, caberia aqui uma prévia dos
debates em torno das questões deestilo e linguagem, apartir das primeiras
notações queconstamdafolhaderosto,do versodacapaedadedicatória.
“Tranzitivo”, “tranzandino” e “tranzeúntes”, essas três palavras50
são os alvos dasprimeiras reprimendas dePio Lourenço Corrêa51 àsousadias
ortográficasdo companheiroescritor.
“(...) Os arbítrios individuais fundamentados, são, talvez, o
maior estôrvo, e omais sério, que se possa apôr àdesejada
uniformidade gráfica da língua portuguesa. Cfr. Gonç. Viana,
Ortografia Nacional, p.6 (Lisboa,1904). Aqui, a intransigência
do autor não se baseia em nenhum pretexto ortoépico; não
assenta, pois, em motivos brasileiros; e ofende de frente a
regra58daComissãoPortuguesa.Senãotransigirmoscomos
outros, não podemos esperar que transijam comnosco.(PLC
p.193-194)”
Ainda que tenha citado Gonçalves Viana e o livro através do qual o
lexicólogo português propôs, no i nício do século XX, uma mudança nos
padrões ortográfico-etimológicos da língua portuguesa, as palavras dePio
Lourenço Corrêa revelam um excessivo rigor metodológico, eum apegoa
fundamentos linguísticos dos quais Mário de Andrade se manteve quase
sempre distante por convicção. QuandoPio Lourenço fala em“intransigência”,
se refere ao fato de que o “s” (da grafia oficial) tem omesmo som do“z” nas
três palavras assinaladas. Esse fato tornaria injustificável aopção deMário
pela grafia com“z”, aque Pio classifica como “arbítrio individual” – já que não
traduziria o conhecido esforço de abrasileiramento dal inguagem escrita
50
ediçãoprinceps.
51
Gomes Mendes para a Revista do IEB (nº36) de 1994, terão ao fim, apenas a
indicação dasiniciais PLC,para Pio Lourenço Corrêa, eMA, para Mário de Andrade,
seguidas pelonúmerodapáginadarevistaemqueconstaatranscrição.Alocalização
espacial das notas nas respectivas páginas da edição princeps de Amar, verbo
intransitivo não será alvo de análise, já que pouco representa nos termos dodebate
proposto;todavia, taisdetalhesestãoprecisamenteapontadosno trabalhodeMarlene
empreendido pelo modernista (talvez por isso Pio tenha grifado o adjetivo
“brasileiros”). Aessainsinuaçãode “oposiçãogratuita”frenteà ortografiaoficial
e, naopiniãodePio,infrutífera,Máriorespondecomosseguintesdizeres:
“Estamos inteirissimamentede acordo eassim procediquando
adotei a Reforma portuga. Porêm depois, batido pelas
contradições constantes dessa ortografia com apr onúncia
brasileira, assim que me pus escrevendo abrasileiradamente,
sempre tendo como base a Reforma portuga, estou pouco a
pouco, ao léu das observações novas que aparecem, criando
uma ortografia pessoalque, seimuito bem, só servepra trazer
maiscáosprocáos.É isso mesmo que eu quero agora.Quanto
maior, mais macota e mais guassú for a barafunda, mais
transparecerá quecarecemosdumaorganisação [sic]oficial. E
estavirá.Rúimouboa,poucoimporta,contantoquesejaoficial
e brasileira,isto é,observando afala da gente. Poucoimporta
que mande grafar cavalo, Cavallo, kavallo ou kavalllllo,
contanto que por essa reforma brasileira e oficial a gente
possua afinal uma ortografia, isto é, saiba que escrevendo
kavalllo acertou e escrevendo cavalo errou. O caos é como o
nada, tem utilidade... divina. Dele se pode criar omundo que
bomoumauésempreummundo.(MAp.194)
A despeito detodo ocomprometimento artístico e da irretocável
consciência criadora, as observações de Mário de Andrade parecem
carregadas deum tom irônico muito forte. Note-se queao mesmo tempo em
que afirma ter adotado a “Reforma portuga”52 Mário ratifica sua postura de
contestação das tradiçõesortográficas doportuguês casto eescreve,deforma
muito insinuante, “organisação”, invertendo al ógica das construções que
motivaram oprotesto deseu interlocutor. Esse exemplo éesclarecedor, não
apenas dobom-humor fartamente percebido no diálogo com Pio Lourenço
Corrêa, mastambémnotocanteàconsciência criadora deMáriodeAndrade e
de seu projeto, sempre repleto de índicesmetaescriturais. A grafia incorpora o
argumento, e a ideia diáfana, aberta àluz da objetividade, se materializa na
simples oposição deformas ortográficas (tranzitivo x organisação), resultando
52
Ainversãodasconsoantes“s”e“z”carregaemsiaintençãodoautordeargumentar
A partir da segunda edição, o título do livro também traz “intransitivo” e não mais
numa construção metalinguisticamente potencializada53. Esse procedimento
ratifica oestilo que, anos antes, os leitores de Mário deAndrade encontraram
na consagradacomposiçãodoPrefácioInteressantíssimo54.
Contudo, mesmo diante das explicações do escritor, Pio mantém
suas opiniões em uma “sustentação de embargo”, dizendo que oargumento
apresentado éuma demonstração de intransigência dequem “quer manter
hasteada a bandeira vermelha” (PLC, p.194). Pio não deixa deressaltar que
espera uma revisão depostura por parte de Mário, visto queseu interlocutor
havia, debom grado, aceitado outras desuas sugestões também constantes
do mesmo exemplar. De fato, essa revisão depostura aconteceu em várias
oportunidades, comodemonstraMarleneGomesMendes55:
“Na discussãoqueasmargensdolivrotestemunham,
entende-se que o modernista, mesmo movendo-se na seara de seu
próprio projeto, e da experimentação, não se mostra
intransigente. Pode-se aqui citar alguns casos em que Mário,
apesar denãoconcordar,emsuasrespostas,comasposições
de Pio Lourenço Corrêa, acaba por adotá-las, modificando o
textonasegundaedição.
Assim,adedicatória,‘Prameuirmão’,torna-se‘Ameuirmão’;o
verbo ‘fariscava’(p.9),passa a‘arranhava’,forma maissimples
e conhecida,namesmalinhade ‘curumim’(p.36),preteridopor
‘rapaz’; ‘ramos em corimbo’ (p.86) por ‘ramos descendentes’;
‘shequendes’(p.107), por‘apertodemão’.‘Mossoroca’(p.119),
e‘satisfa’(p.120)passama‘massaroca’e‘satisfeito’.”56
53
sobre os artificialismos de uma grafia que se afasta da prosódia. Efeito análogo é
obtido na construção gradativa crescente “maior, macota, guassú” usada para
qualificar a “barafunda” e simultaneamente representá-la, através da combinação do
português oficial, da falabrasileira e do étimo indígena – cuja grafia “oficial”, diga-se
depassagem,éconstruídacom“ç”(-guaçu).
54
QueabreolivroPaulicéiaDesvairada(1922)
55
“intranzitivo”, comonaediçãoprinceps.
56
Cf.CANDIDO, Antonio.“Introdução”.In:Formaçãoda literaturabrasileira:momentos
ProferidaporMárioem1942, noseuretornoaoConservatórioDramáticoMusicalde
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de Jamais Aconselhar: A Epistolografia de
Como se háde perceber, muitos dos “silêncios” da narrativa de
Amar, verbo intransitivo estão explicitados eganham voz nas notas marginais,
de forma apropiciar para o leitor especialista uma absorção muito maior das
nuances dotexto edes ua elaboração estética. Isso faz desse exemplar
anotado ummonumento literário ainda maior, capaz dereunir num único meio
material: aexpressão artística do primeiro modernismo, amordacidade da
crítica social, a análise textual criteriosa, a afetividade costumeira do texto
epistolar eo embate teórico polarizado. De um lado, está um intelectual sem
compromisso deser um grande escritor, e que nãoent ende bem oprojeto
literário de distanciamento do“caricatural ruralesco”, empreendido por seu
interlocutor; edeoutro, um artista dedimensões insondáveis, profundamente
preocupado com os subsídios mais íntimos quea obra de arte pode fornecer
aopúblicoreceptor57.
2. Umespaçodedescobertas
Dado ofato dehoje se buscar, nacorrespondência deMário de
Andrade, respostas para questões referentes aum período histórico marcado
por transformações artísticas, políticas e ideológicas noBrasil, não é detodo
descabido cogitar queoprojeto dointelectual eartistamantivesse as atenções
voltadas, inclusive, para as gerações de futuros leitores. Numa breve análise
da conferência “Atualidade deChopin”58, no primeiro capítulo de Orgulho de
JamaisAconselhar59, MarcosAntoniodeMoraes, aofinalizar seuscomentários
acerca da identificação dotrabalho intelectual de Mário deAndrade com odo
compositor polonês Frédéric-François Chopin, fala da “firme intenção do
57
decisivos,1750-1880.–10ªed.–RiodeJaneiro:OurosobreAzul,2006.p.25-39.
58
SãoPaulo,naaulainauguraldocursodeHistóriadaMúsicaPoeeleministrado.
59
PINTO, Edith Pimentel. A Gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto /
escritor brasileiro (atribuída igualmente aChopin) departicipar dos destinos
culturais do país e fazer ‘arte de ação’. Nesse contexto, os leitores “herdeiros
de Macunaíma” seriam, pois, em dimensão diacrônica, agrande edificação
resultante e, aomesmo tempo, os edificadores de um amplo projeto literário
que incluía av alorização da“ língua brasileira”, com suas marcas mais
populares.
Também em função dessas particularidades, este trabalho procura
desvendar os caminhos percorridos pelo escritor quando dareelaboração do
texto de Amar, verbo intransitivo. Para tanto, surgiu a necessidade de buscar,
indo além dos exemplares anotados da edição princeps, alguns registros de
reflexão sobrealinguagemqueo próprioMáriodeAndradecuidoudeelaborar,
embora nunca os tenha publicado. É ocaso da Gramatiquinha de Mário de
Andrade60.
“A Gramatiquinha delinearia, emtraços gerais,o queMário de
Andrade chamava a “línguageral” do Brasil,uma coinê,obtida
impressionisticamente, e em cuja fixação acreditava que os
escritoresdesempenhavampapelrelevante.”61
60
Edith Pimentel Pinto. – São Paulo: Duas Cidades: Secretaria deEstado da Cultura,
1990.
61
MENDES, Marlene Gomes. “Nos caminhos de um livro”. In: ANDRADE, Mário de.
Capítulo 2
Amar
,
através das cartas
62I. Atrajetóriadacriação
Concebido entre os anos de 1923 e 192663, epublicado em
modesta tiragem pela Casa Editora Antônio Tisi no ano de 1927, a expensas
do próprio autor, Amar, verbo intransitivo marcou aes tréia deM ário de
Andrade como romancista. Asegunda edição sairia apenas em 1944, como
terceiro volume das Obras completas de Mário de Andrade (editada pela
LivrariaMartinsEditora).
Tendopor base as anotaçõesem manuscritos diversos (incluindo
o exemplarquefora oferecidoaPioLourençoCorrea) MarleneGomes Mendes
propõe que, no intervalo dedezessete anos quesepara as duas edições, há
pelo menos duas fases distintas detrabalho, quandoMário de Andrade se
ocupou dareelaboraçãodotextodeAmar,verbointransitivo64.
62
A maior parte das cartas citadas aqui foi colhida da seleta de cartas integrante do
estudo desenvolvido por Marcos Antonio de Moraes, “Fräulein em processo”. Cf.
SAGAWA, Roberto (org.). O Amar de Mário de Andrade. Assis: FLC publicações,
2010.p.155-198.
63
Operíodoaproximado de 1923a1926corresponde ao intervalode tempoentreas
primeiras cartas em que Mário de Andrade revela estar trabalhando em Fräulein e a
redaçãofinaldo romance,feitaemcadernetadequese conservamaspáginasfinais,
contendo asúltimaspassagensdotextoe oposfácio,publicadoapenasem1982,em
ediçãorevistaporTeleP.AnconaLopez.
64
Amar,verbointransitivo.RiodeJaneiro: Agir,2008.Estabelecimentodotexto:Marlene
IncluindoatrocadecorrespondênciaseoenviodoexemplaraPioLourençoCorrea,
Percebe-se queopadrão dasanotações,feitasemtinta preta, assemelha-semuito
Nessamesmacarta,ManuelBandeirafazreferênciaaoLieddeHeine(queBandeira
BANDEIRA, Manuel. “Carta a Mário de Andrade, datada de São Paulo, 19 de
A primeira fase corresponderia aoperíodo imediato àpublicação
da edição princeps65, passa pela década de 1930 (em concomitância com a
reelaboração do texto deMacunaíma para sua segunda edição, lançada em
1937 pela JoséOlympio Editora)e abrange oinício dadécadade 1940.Nesse
período, oautor constrói – em outro exemplar detrabalho – uma nova versão
por meiode rasuras, quepontuam supressões, substituições edeslocamentos
realizados jácomvistasparaumtrabalhodereedição66.
Asegundafasecorresponderia aosanosde1942 e1943,quando
Mário volta aoex emplar rasurado para acrescentar uma nova sequência
(conforme registros em uma cartaenviada aFernando Sabino67e também em
carta de Manuel Bandeira68) efazer novos acréscimos em tinta vermelha, em
lápisazul,etambémemlápispreto.
“(...) Recebi ocapítulo inédito do Amar, verbo intransitivo. Não
pude relacioná-lo com oresto da obra porque verifiquei que
não tenho mais esse livro nem o Macunaíma! (...) Das duas
versões propostas prefiro aque remata com ‘Não émictório,
não,minhafilhinha...éTaubaté.’.”69
65
bem como o “debate” acerca das anotações marginais feitas por ambos no mesmo
exemplar,entrejaneiroemaiode1927.
66
ao queconstano exemplarde trabalhoemqueMáriopreparavaa segundaediçãode
Macunaíma.
67
ANDRADE, Mário de. “Carta a Fernando Sabino, datada de São Paulo, 22 de
novembro de1943”In:Cartasaumjovemescritoresuasrespostas/FernadoSabino,
MáriodeAndrade.RiodeJaneiro:Record,2003.p.142/143
68
tambémtraduziu).OLiedconstaemAmar,verbointransitivonoidiomaoriginal.
69
outubro de 1942” In: Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. org.
ANDRADE, Mário de. “Carta aFernando Sabino, datada de São Paulo, 6de
Um, enviado aP io Lourenço Correa em 1927, virou uma espécie de
livro-No conjunto de todo esse emaranhado de rasuras, com seus
códigos que determinam cores e instrumentos específicos para cada
operação70, pode-se reconhecer o esforço constante de reescrita que Mário
cultivouaolongodetodasuavida.
“...terminei,creioqueaoitavaounonaredaçãodeumconto
queandaatravessadonaminhavidadesdecreioque1924,
perdiadataexata”71
Um depoimento como esse comprova agestação problemática
das obrasdeMáriodeAndrade, paraquemodesafio dereencontraroespírito,
o tom exclusivo da escrita, que um dia motivou os urgimento deum
determinado conto, poema ounovela para poder tornar o resultado estético
“milhor” éograndeobstáculodo“artefazer”.
Nesse sentido, chama a atenção ofato deque o texto constante
da segunda edição de Amar, verbo intransitivo apresenta-se bastante
modificado, não apenas em relação àprimeira edição72, mas também em
relação às anotações feitas nos exemplares de trabalho73 (bem como nos
demais manuscritos relacionados aeles, que hoje se encontram disponíveis
paraconsultanoacervodoIEB/USP).
70
Atintavermelhaserviupararasurartrechosgrafadosemtintapretanafaseanterior;
o lápis azul, para marcar supressões e descartes; já o lápis preto foi utilizado em
anotaçõesmarginaisemgeral.
71
dezembro de1942”In:Cartasaumjovemescritoresuasrespostas/FernadoSabino,
MáriodeAndrade.RiodeJaneiro:Record,2003.p.87
72
Em seu estudo A Construção do Espaço Narrativo no Romance Brasileiro (1902 a
1938), Norman MauricePotterlistouasdiferenças estruturais maissignificativasentre
aediçãoprincepseasegundaediçãodeAmar,VerboIntransitivo.Opresentetrabalho
iráabordartaisdiferençasemmomentooportuno.
73
correspondência.Outro,deprojetográficoidêntico,trazanotaçõesdareelaboraçãodo
texto, nas quais se reconhecem várias modificações sugeridas por Pio Lourenço no