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Poema sujo de vidas: alarido de vozes

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Academic year: 2017

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MARI A DO SOCORRO PEREI RA DE ASSI S

POEM A SUJO DE VI DAS: ALARI DO DE VOZES

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PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LETRAS

POEM A SUJO DE VI DAS: ALARI DO DE VOZES

TESE DE DOUTORADO

MARI A DO SOCORRO PEREI RA DE ASSI S

ORI EN TADORA: PROF. DR. AN A MARI A LI SBOA DE MELLO

Tese de Dout orado apresent ada ao Program a de Pós Graduação em Let ras da Pont ifícia Universidade Cat ólica do Rio Grande do Sul – PUCRS – com o requisit o parcial para a obt enção do grau de Dout or na área de concent ração em Teoria da Lit erat ura.

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DEDI CATÓRI A

Meu m arido, Renato de Oliveira, por quem , um dia, m e apaixonei, ouvindo- o declam ar um poem a de Baudelaire, à beira m ar, em Recife.

Meus filhos Hian, Bruno e Alexandre, que souberam sent ir e com preender a dist ância e a saudade.

Meu am igo André Pereira, que sem pre fala sorrindo sobre o m eu poet a.

Professora Ana Maria Lisboa de Mello, por todos os cuidados dispensados a m im e ao m eu t rabalho, e pelo “ cant inho” .

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RESUMO

Est e t rabalho aborda o Poem a suj o ( 1976) , de Ferreira Gullar, a partir de um a análise herm enêutica que sust ent a a tese de ser o seu valor estético t ão fundam ent al quant o o seu t eor polít ico. Est a t ese concebe o Poem a

com o resultado das experim entações polít icas e est ét icas pelas quais o poet a passou. A originalidade e o carát er inaugural dest e t rabalho consist em na visão post a sobre o Poem a com o obra polít ico/ est ét ica que, longe de out ros casos que podem ser caract erizados de igual form a, é elaborado a part ir da m em ória de um suj eit o hist órico que se insere de form a ficcional na linguagem , t om ando o passado com o instante presente. Por est e at o, a m em ória part icular do poet a é um a identificação com um povo com preendido com o realidade hist órica t angível, e, consequent em ent e, um a et ernização de sua própria exist ência. Essa sínt ese result a num a obra poét ica que se dist ancia do m ero com prom et im ent o polít ico e dos t ranses linguíst icos nos quais im ergiram poet as do m undo int eiro, e, ao m esm o t em po, efet ua um am algam ent o de ideia e linguagem que t orna o Poem a suj o um m om ent o especial na art e cont em porânea brasileira.

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RÉSUMÉ

Ce t ravail est une analyse du Poem a suj o ( “Poèm e sale” - 1976) de Ferreira Gullar, à part ir d’un approche herm énéut ique qui sout ien la t hèse selon laquelle sa valeur est hét ique est un signe de son engagem ent polit ique. Cet t e t hèse conçoit ce Poèm e en t ant qu’un résult at des expérim entations politiques et est hétiques vécues par le poèt e. L’originalit é et le caract ère inaugural du Poèm e, en tant qu’oeuvre polit ico/ est hét ique, découlent du fait que, loin des aut res cas qui peuvent êt re conçus de la m êm e façon, le Poem a suj o est elaboré à part ir des m ém oires d’un suj et hist orique qui s’insère dans le langage de façon fict ive, en prennant le passé en t ant qu’inst ant présent . Par cet t e act ion, la m ém oire part iculière du poet e est une ident ificat ion avec un peuple en t ant que réalit é hist orique t angible, et , par conséquant , ét ernise sa propre exist ence. Cet t e synt hèse about it dans une oeuvre poèt hique qui s’écart e d’un com prom is polit ique m ineur, bien ainsi que des t ranses linguist iques dans lesquels se sont soum is des poètes part out dans le m onde, t out en effect uant un am algam e d’idée et du langage qui érigent le Poem a suj o à la condit ion d’un m om ent m aj eur de l’art cont em poraine brésiliènne.

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I NTRODUÇÃO ... 4

1 LI NHAS DI VI SÓRI AS E CONCI LI AÇÕES NA LI NGUAGEM POÉTI CA ... 21

1.1 Engaj am ento lit erário ... 21

1.2 Est ét ica e polít ica ... 35

1.3 Arte e m em ória: o outro com o referência ... 59

1.3.1 O olhar interior que enxerga a si m esm o e aos out ros ... 66

1.3.2 Da egologia à intersubj et ividade: o olhar de Husserl... 74

1.3.3 O olhar exterior de Maurice Halbwachs: a fratura da m em ória ... 80

1.4 Com prom etim ento polít ico ou evasão absolut a?... 83

2 FERREI RA GULLAR, ELE MESMO – SUA TEI A DE AÇÕES – SUAS RELAÇÕES ... 92

2.1 O poeta em seu percurso histórico e est ét ico ... 97

2.2 O suj eito contextual e o seu duplo: o processam ento do lirism o ... 117

2.3 I nterfaces num a geração de engaj ados ... 158

2.3.1 Carlos Drum m ond de Andrade... 160

2.3.2 João Cabral de Melo Net o ... 165

2.3.3 Vinícius de Moraes ... 172

3 LÍ RI CA E SOCI EDADE ... 179

3.1 Modernidade e subjetividades ... 179

3.2 Um a escrit ura lit erária da história: a sociedade brasileira aos olhos do poeta ... 198

CONSI DERAÇÕES FI NAI S ... 214

REFERÊNCI AS ... 231

Do aut or ... 231

Sobre o autor ... 232

Teórica ... 236

Revistas / cadernos / j ornais ... 246

Sítios/ docum ent ários ... 246

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A lit erat ura ocupa- se de m uit os saberes [ ...] Se por um qualquer excesso de socialism o ou de barbárie todas as nossas disciplinas fossem retiradas do ensino, excetuando- se um a, a literatura deveria ser a disciplina salvaguardada, porque todas as ciências se encontram dissem inadas no m onum ento lit erário. E é por isso que se pode dizer que a literatura, qualquer que sej a a escola em nom e da qual se m anifest e, é absoluta e categoricam ente realista: ela é a realidade, realidade essa que é um luar do real. Todavia, e nesse aspecto é verdadeiram ente enciclopédica, a literatura desvaira os saberes, não estabelece ou fet ichiza nenhum deles; concede- lhes um lugar dissim ulado e essa dissim ulação é preciosa. Por um lado, perm ite designar saberes possíveis – insuspeitos, inacabados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sem pre para além ou para aquém dela, tal é a pedra de Bolonha que irradia à noite o brilho que acum ulou durante o dia e com esse luar tênue ilum ina o novo dia que desperta. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e a literatura interessa- nos na m edida em que tende a corrigir essa distância, essa diferença. Por outro lado, o saber que a literatura m obiliza nunca é nem com pleto nem tão pouco conclusivo; a lit erat ura não diz que sabe algum a coisa; ou m elhor: que conhece algum a coisa acerca desse saber, que sabe m uito sobre os hom ens. O que ela conhece acerca dos hom ens é aquilo a que poderíam os cham ar o grande e m a r a n ha do de linguagem , que eles m anipulam e que os m anipula, quer ela reproduza a diversidade dos socioletos, quer, a partir dessa diversidade que experim enta com o um despedaçam ento, im agine e procure elaborar um a linguagem - lim it e que fosse o seu grau zero. É porque a literatura põe em cena a lin gua ge m, em vez de sim plesm ente a ut ilizar, que engrena o saber no m ecanism o da reflexividade infinit a: através da escrita o saber reflete continuam ente sobre o saber, segundo um discurso que j á não é epistem ológico, m as dr a m á t ico.

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I N TRODUÇÃO

O Poem a Suj o ( 1976) , de Ferreira Gullar, é o recorte da hipótese desta pesquisa que o tom a com o obra poética de teor social e político, alinhada a um a elaboração est ét ica de linguagem que t ransgride os padrões artísticos da época. “Poem a suj o de vidas: alarido de vozes” é o est ranho t ít ulo crít ico dest e t rabalho que nós ent endem os ser a busca/ descoberta daquilo que foi tão int ensam ent e invest igado na obra, a suj eira. Esse t ít ulo é m et áfora da sua própria hipót ese. Sua com preensão e seu desvelam ent o acont ecerão sim ultaneam ente ao processo herm enêut ico de leit ura que abrirá a carga de sím bolos. Afinal, cabe a cada leitor trazer os sent idos pelos quais os sím bolos clam am .

O argum ento principal consiste no fato de que, debruçados sobre a fortuna crítica do Poem a1, não encont rarm os nenhum result ado que se

assem elhasse ao propósit o deste trabalho. Adm it im os, com o m ot ivo secundário, o fato de o autor do Poem a haver realizado outras publicações de t eor polít ico e confessado a sua int encionalidade. I sso ocorre t ant o no caso dos poem as de cordel, que se t ornaram panflet ários, publicidade de um “ produt o” , com o t am bém na obra Dent ro da noit e veloz, que é processada a partir de critérios artíst icos que não est iveram present es nos poem as de cordel. Essas obras são reconhecidas pelo próprio aut or e pela crít ica com o obras polít icas, principalm ent e os poem as de cordel, associados a um a dem anda part idária, port ant o, de carát er dogm át ico. O nível de engaj am ento do autor no fazer art íst ico dessa obra – Dent ro da       

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noit e veloz – e a panfletarização result ante da m ilitância política na out ra – os poem as de cordel – são fenôm enos que fazem a dist inção est ét ica e obj et iva ent re am bas.

Ao contrário das duas obras, o Poem a suj o não possui carát er dogm át ico e não result a de um a int enção polít ica, m as acaba ult rapassando os lim it es da pret ensão aut oral e se t ransform a, pelas razões que passam os a invest igar, em poesia vinculada à realidade social e polít ica. Em alguns m om ent os de nosso percurso investigat ivo, percebem os que as leit uras conduzem a um a percepção m ais solitária da realidade por part e de um suj eit o perdido no m undo, um “ eu” sozinho no

Poem a; nout ras, reconhecem os o t eor m em orialíst ico de resgat e da própria existência. Observam os que a obra foi m uit as vezes vist a com o um a produção subj et iva, com o int eresse de evidenciar a posição m arginal do aut or.

Além de t odas essas possibilidades consideradas, que t am bém aliam os à nossa pesquisa e que se const it uem com o leit uras m uit o pert inentes do Poem a, outras percepções e sent idos farão am pliar a visão posta sobre ele. O Poem a funde elem ent os da realidade e os recria pelos processos estéticos, buscando seu lugar à m argem dos sucessivos cam inhos e m ovim ent os que seguiram os padrões estéticos na cham ada pós- m odernidade ou cont em poraneidade. I sso quer dizer que, para falar no caso do Brasil, a art e poét ica t ant o podia t ender para um a vert ent e m ais engaj ada quant o para puras experim ent ações linguísticas2, m uito frequent es a part ir dos anos 50. Esse t ipo de produção poét ica, para não est agnar de um lado ou de out ro, vai se exercit ar e culm inar t ant o no abandono do “ lirism o puro” com o do engaj am ent o puram ent e panflet ário, revelando, assim , art ist as que conseguiram , em suas poét icas, am algam ar as duas correntes. É nesse tipo de art e que inserim os o Poem a suj o, de Ferreira Gullar, produzido nos anos de exílio do poeta, entre 1975 e 1976.

      

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Sob essa perspect iva, reit eram os nossa hipót ese de que o Poem a suj o é engaj ado, m as não panflet ário, e foi elaborado sob crit érios est ét icos rigorosos e, ao m esm o tem po, t ransgressores na linguagem . Não são m uitos os estudos sobre os aspectos polít icos, sociais e artíst icos da obra. No ent ant o, dest acam os duas abordagens crít icas que contem plam a necessidade desse tipo de consideração sobre o Poem a.

Essas leit uras críticas feitas sobre o Poem a suj o são sobrem aneira im port ant es. A prim eira é a de Tito Dam azo ( 2006) . Ele observa a linguagem t ransgressora do Poem a suj o, porém , exagera na percepção de um lirism o saudosist a que vê, nas rem iniscências do poeta, o coletivo, de m odo vago e im preciso. O caráter realístico que poderia ser desvelado se encerra num a t om ada de m et áforas que sim bolizam , para Dam azo, o espaço circunscrito da velha cidade de São Luís ( DAMAZO, 2006, p. 28-29) . O tom político/ estético e as referências aos aspectos sociais do País foram pouco explorados por Dam azo.

A segunda leitura é de Zaíra Turchi ( 1985) . A pesquisadora faz um a análise da obra polít ica de Ferreira Gullar e, com o nós, refere o caráter do vigor político presente na m em ória do suj eito histórico e do poeta. Essa força é encetada na linguagem do Poem a suj o para traduzir não apenas a “ consciência da desilusão” , m as t am bém a exigência da lut a: dinâm ica da salvação. A aut ora faz um a alusão im port ant e ao t eor “ relacional com as coisas do m undo” ( TURCHI , 1985, p. 106) , e adm ite que essa relação que Gullar m antém acesa com o real –sua fase solidária - é um a fase de suas experim entações, e não o dínam o de sua poét ica. Evident em ent e, com o reflexão, m uit o há de se considerar da leit ura de Turchi, inclusive com o acréscim os im port ant es à leit ura que int ent am os do Poem a suj o, especialm ente a solidariedade ao colet ivo m anifesta por Gullar, em m uitas de suas obras.

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aliar- se aos valores estéticos. O nosso j ulgam ento sobre o Poem a suj o

envolve a análise t ant o sobre um viés quant o sobre o outro, j á que entendem os que o autor, em bora não confirm e a ideia, concebeu o Poem a

sobre os dois pontos de vist a, e isso faz a obra m uit o m ais m últ ipla e valorosa do que se pensou até agora. Não nos preocupam os com a aut ent icidade ou não dos sent im ent os expressos na obra, t am pouco se as ideias são corret as ou não, originais ou não, post o que se t rat a de poesia. O que nos propom os a fazer é a verificação de que o engaj am ent o do poet a e de sua obra exist e e é t ransgressor, não som ent e do pont o de vist a da linguagem ut ilizada – pouco poét ica, im port a salient ar3 – m as principalm ent e porque se opõe a um m om ento polít ico cont urbado4, em que a art e, cit ando Sart re ( 1985) , poderia ser um a arm a para enfrent ar o m undo. Nessa perspect iva, som os conduzidos por aquilo que Mukarovsky ( cf. 1981) entende sobre os valores do m undo extraestético na obra de art e. Eles podem ser de t al m odo, elaborados pelo suj eit o poet a que deixam para t rás, de cert a form a, seu carát er de “ realidade” , passando a com por o quadro de valores estéticos da obra:

A função extra- estética da poesia não pertence aos problem as da poética, m as sim aos da sociologia da poesia. No entanto, isso não significa que o crit ério da função da obra não sej a t om ado em linha de conta ao assinalar- se a sua construção artística, pois que, j á no processo da criação da obra, pode caber papel im portante à ideia que o poeta tem acerca do efeito exterior dela ( MUKAROVSKY, 1981, p. 172- 173) .

Pode ser que, no m om ent o da criação, o poet a sequer t enha pensado na perm anência de sua obra, m as sobre os efeitos das referências à realidade, decerto pensou. I sso é perceptível nos m om entos em que referim os suas elucubrações sobre o passado e sobre o m odo com o o transform a em linguagem . Fato é que ent endem os que o “ suport e” do real at ribui força est ét ica e polít ica ao Poem a suj o.

      

3 A expressão “ pouco poética” diz respeito àquilo que propõe Hugo Friedrich, em sua Est rut ura da lírica m oderna, conform e explicam os em capítulo posterior.

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Depois de expor os obj etivos de nossa tese e de salientar os pressupostos teóricos, tom am os com o plano de trabalho a adoção sequencial de um capít ulo t eórico que indica os cam inhos dessa reflexão, e de dois capít ulos que concernem aos it ens prát icos dest e t rabalho.

O prim eiro capít ulo pret ende colocar em discussão o conceito de engaj am ent o – t erm o que, de algum a form a, recupera seu valor num a abordagem dessa nat ureza - , subsídio fundam ent al para a hipót ese de que o Poem a Suj o é um poem a engaj ado de valor est ét ico indiscut ível. Ele faz referências a um a época – a dit adura m ilit ar no Brasil – m as não se encerra, com o quis fazer crer a crítica at ual, num a at ividade poét ica m em orialíst ica, sim plesm ente.

Do conceit o de engaj am ento – principal arcabouço t eórico dest e t rabalho – discut ido a part ir de Benoit Denis ( 2002) , seguem - se out ros aportes teóricos que se associam a ele com o linhas de raciocínio com plem ent ares, com o, por exem plo, as t eses sobre art e e polít ica, m em ória e referência de dois t eóricos que são fundam ent ais para essa discussão: Jacques Rancière ( 2007) e Paul Ricoeur ( 2007) .

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com preendem os que a polaridade entre arte engaj ada e arte pela arte é falsa, ou sej a, que as duas posições não são pólos ant agônicos.

De acordo com Benoit Denis ( 2007) , desde a segunda m etade do século XI X, quando surge a ideia de um cam po lit erário autônom o, até a prim eira m et ade do século XX, quando a presença dos int elect uais im põe um a nova at it ude frent e às quest ões sociais e polít icas, est abelece- se um a nova ut opia, especialm ente na Europa, na qual “ o escrit or quer assenhorear- se da vida da coletividade” ( DENI S, 2007, P. 24) . I sto ocorre porque nesse m om ent o os int elect uais acodem a um a cam inhada que, com o propõe Sart re, significa a busca do sonho de um a sociedade sem classes, “ const ruída at ravés de um cam inho que ele m esm o tenha de dit ar, num m undo onde ele, o escritor engaj ado, encont re o seu lugar e assum a o seu papel” ( SARTRE, 1994, p. 42) . O que se vê a part ir desse m om ent o, cham ado de t ropism o revolucionário, é um a grande polit ização da lit erat ura, que acarret a um a divisão ent re esquerda e direit a e, principalm ent e, ent re escrit ores engaj ados e não engaj ados. A esse fenôm eno circunscrevem - se escritores e art ist as de t odas as part es do m undo, não sendo diferente no Brasil. Acirrando- se o conflit o entre o cam po polít ico e o cam po lit erário, ora se fundindo, ora se digladiando, a nova ut opia vem , na verdade, sendo “ idealizada” desde a revolução russa de 1917, e a guerra civil, de 1919, quando os sistem as político, social e educat ivo são elevados a níveis de j ust iça que causam desej os de m udanças m undo afora ( MARRAMAO, 1985, p. 279) .

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respect ivos. I sso quer dizer que as vanguardas se aut odenom inam nat uralm ent e revolucionárias, dadas as suas vontades de ruptura com as form as artísticas ant eriores e, nesse sent ido, ent endem que os polít icos nada têm a ver com esse papel, ao passo que a eles, vanguardistas, cabe preludir e antecipar os cam inhos da revolução ou da transform ação sociopolít ica. A segunda respost a, que é a dos escrit ores engaj ados, surge em relação à posição defendida pelas vanguardas. Essa respost a indica que os int elect uais pret endem colocar diant e do m undo, e a seu serviço, suas obras. Essa é a postura m ais det erm inant e da lit erat ura engaj ada:

Recusando a validade da hom ologia entre inovação artística e revolução política estabelecida pela vanguarda, o escrit or engaj ado entende participar plenam ente e diretam ente, através das suas obras, no processo revolucionário, e não m ais sim bolicam ente, pela m ediação de um a hom ologia est rutural. I st o quer dizer que, diferentem ente da atitude da vanguarda, que, nesse ponto, é por essência preocupada com a preservação da especificidade da literatura e da arte, a posição do escritor engaj ado questiona a autonom ia do cam po literário, tal com o ela tom ou form a com a m odernidade ( DENI S, 2002, p. 24- 25) .

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Na verdade, a história da literatura engaj ada será discut ida nest e t rabalho t om ando com o pont o de part ida a m odernidade lit erária5, que concebe a autonom ia da escrit ura de m odo geral depois de 1850, dat a em que se propaga m undo afora. No Brasil, este m arco é o da geração de sim bolistas, acusados, inicialm ente, de “ ensim esm ados” ( BOSI , 1977, p. 177) . A respeit o desse dem asiado sim bolism o, Ferreira Gullar ( 1976, p. 45) , declara que esse m om ento é um a visão de m undo, e, ao contrário do que se pensa com um ent e, não possui sent ido m eram ent e ornam ent al, m as “ é um a elaboração de linguagem poét ica que assim ila e supera as influências parnasianas e filosóficas, com o o verso conciso, o rit m o tenso e a t endência ao filosofant e” . Grande parte dos poem as que surgem sob essa configuração, com o os de Augusto dos Anj os e Cruz e Sousa, dão lugar a um a estética que necessit a do reconhecim ento do seu valor. “ o gost o pelas palavras- sím bolo com m aiúsculas, o recurso da aliteração e certos valores fonéticos e m elódicos são elem ent os que se m esclam na poesia dessa época” ( idem , ibidem ) . Tudo isso significa m uit o m ais do que um a preocupação form alist a; significa um m eio, um a busca por um a linguagem int ensa, que, por m ais barroca que possa parecer, j am ais será est rit am ent e ornam ent al. Ant es, é o encont ro brut o com a realidade – banal ou sofist icada – que é sua m at éria.

Nest e t rabalho, no ent ant o, vam os nos debruçar de m odo m ais obj etivo sobre o m om ent o de confronto diret o no País ent re artistas e int elect uais cont ra os regim es polít icos, que vai ocorrer na ditadura da tríade de generais, ent re os anos 60 e 80, e a part ir da qual referim os nossas balizas de reflexão. Nesse período, j á podem os denom inar o sent ido de m odernidade com o contem poraneidade, posto que o seu conceit o é algo confuso e suspeit o, m as sem pre pode ser t om ado sob a perspect iva da superação do velho por um novo m om ent o.

      

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Esse fenôm eno m últ iplo e com plexo, cham ado “ lit erat ura engaj ada” , est á longe de ser sim plist a e de nat ureza caricat ural, com o m uit os pensam ou pensaram . Ao cont rário, o engaj am ent o tem pressupost os com plexos que fundam ent am a busca do escrit or engaj ado, com o a sua j ust ificação filosófica e lit erária, e não som ent e o seu dogm at ism o, o que, por vezes, ocorre a m uitos, sobret udo quando a ação no m undo e o com prom et im ent o com a realidade sociopolít ica est ão acim a de quaisquer quest ões est ét icas. Est a posição últ im a é ext rem am ent e radical, e foi abandonada por Ferreira Gullar desde a difusão dos poem as de cordel, o que leva o poet a, com o é habit ual em sua t raj et ória, a experim ent ar os dados do m undo real com o at uant es est ét icos em suas obras. Essa posição est á em harm onia com o princípio da ideia prim eira, ou sej a, com um a ação polít ica a part ir da art e, e não com o um a atitude a serviço de obj et os ou part idos dit ada por quaisquer interesses. É nessa direção que assum im os a expressão “ polit icidade est ét ica” com o um a possibilidade do fazer artístico. O seu oposto ocorreu, m as em poucos casos tornou- se eficaz do pont o de vist a est ét ico.

Outro ponto fundam ental para a elaboração t eórica dessa hipótese de pesquisa é aquele propost o por Jacques Rancière ( 2007) , segundo o qual a arte nunca est á para a subm issão ou para a autonom ia de m odo est anque: ela serve à t ransform ação porque, com o “ j ogo de palavras e ideias” , cont radit oriam ent e pode servir a um ou a outro padrão. Para o aut or, os conceit os de Modernidade, vanguarda e Pós- m odernidade são sem pre cat egorizações em suspeição, e o que ele propõe é que se perceba que exist em linhas de raciocínio que dizem respeit o à hist oricidade dos regim es da art e e out ras que dizem respeit o às decisões de ruptura que se operam dent ro desses regim es. O que essas linhas fizeram foi favorecer um a nova ligação ent re as art es ou ent re as prát icas de art e, dar- lhes novas form as de visibilidade e reconceit uá- las dent ro de um paradigm a que j á não é m ais fixo: é um não paradigm a.

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por terra, porque tentaram tornar próprio de um a ou de outra corrente, cert as noções da art e, com o a de polit icidade e a de pureza est ét ica. Na verdade, Rancière aponta um destino inevitável para as relações entre polít ica e est ét ica: um entrelugar onde se encont ram pensam ent o e linguagem art íst ica.

Ainda sobre as proposições t eóricas, no t rat am ent o dado ao est udo das lem branças, recorrem os ao que Paul Ricoeur ( 2007) propõe com o “ divisões” ent re o olhar individual, int erior, e o olhar exterior, coletivo. Ele associa ao fenôm eno das lem branças a quest ão da ordem e da desordem propost a tanto por Sant o Agost inho ( 1983) , quant o por Edm und Husserl ( 2001) . A convocação de lem branças, de m odo ordenado, est á ligada à m em ória “ feliz” , sem culpabilidade; a questão das lem branças invasivas est á ligada à m em ória im aginária e sôfrega, m al resolvida. Essas possibilidades sem pre acom et em o art ist a que vê, em seu t em po present e, a possibilidade de et ernização do próprio tem po, tanto o seu com o o dos outros. Nessa “ associação de m em órias” reside out ra pert inent e problem át ica: a validade dos discursos dos protagonistas e a validade dos discursos da colet ividade dent ro do indivíduo poet ant e. O que o suj eito lírico do Poem a suj o tenta fazer é evidenciar essas vozes que se espraiam pelo corpo do Poem a, desm ist ificando o carát er da aut oridade de um a voz ou de um discurso para dar lugar a várias vozes e a vários suj eit os: um alarido de vozes.

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Diluído ao longo do texto, no capít ulo 2 – que diz respeit o ao pensam ento político e hist órico de Ferreira Gullar e ao suj eit o lírico do

Poem a suj o – est ão as pressuposições de que há dist inções ent re os suj eit os aut oral e lírico. Consideram os desde as experiências estéticas que o poet a teve com a poesia parnasiana, até a abordagem de sua fase m ais experim ent al e neoconcret a. Esse m ovim ent o revela um art ist a preocupado com a form a da poesia e com o seu aperfeiçoam ento, m as tam bém revela um a insat isfação em relação às ideias e ao obj eto, o que perm eia quase t udo o que ele publica a part ir do rom pim ent o com o m ovim ento concretista. Essa insat isfação parece ser aplacada nas obras

Dent ro da noit e veloz e Poem a suj o, am bas elaboradas ent re os anos de 1975 e 1976. O conteúdo assum e um st at us que é fundido à form a, sem ser post o em relação dicot ôm ica, com o t am bém sem at ribuir valor de predom inância de um a caract eríst ica em det rim ent o de out ra. A respeit o da prim eira obra cit ada, o aut or consent e na afirm ação; em relação à segunda, ele descart a a caract eríst ica do com prom et im ent o polít ico presente no corpo do Poem a ( ent revist a, anexo 1, p. 231) .

Um percurso histórico e estético, de m odo panorâm ico, de Gullar é evidenciado ao longo desse capít ulo. No entanto, são as relações entre o suj eit o hist órico e o suj eit o lírico que se colocam com o im prescindíveis, a fim de delinear o com port am ent o do ser hist órico que parece dist int o do com port am ent o do ser lírico. Cert am ent e, Gullar não é um caso exclusivo de poet a engaj ado no Brasil e, por isso, colocam os em evidência nest e est udo, um a geração de poet as que, com o Gullar, soube t rat ar em suas poéticas das vinculações do hom em na sociedade, e do suj eito que se eleva na linguagem poét ica.

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regim e político ditat orial da época. Cont radit oriam ent e, o m esm o suj eit o consegue se salvar e voltar ao Brasil por decorrência de causa sem elhante: os efeitos provocados por outra de suas obras – o Poem a suj o –, cuj os sentidos inferidos foram inicialm ent e considerados “ inofensivos” e de característ ica m em orialíst ica volt ada à infância. Essas intercorrências são apontadas por Vinícius de Moraes e Glauber Rocha, em t ext os publicados em j ornais da época, e republicados, o prim eiro, pela edit ora Nova Aguilar, em 2008 ( SECCHI N, 2008) , num a alusão com em orativa aos 80 anos do poeta, e o segundo, na revist a Poesia sem pre, da Bibliot eca Nacional do Rio de Janeiro, em 2004 (Poesia sem pre, 2004) .

O suj eito histórico, José Ribam ar Ferreira, Ferreira Gullar, sente- se com prom et ido com o seu t em po, que é de igual m odo o t em po de sua obra: 1976. O suj eito lírico, ou a persona lírica do Poem a suj o “ carrega traços” desse m om ento conflituoso ( TYNI ANOV, 1985, p 69) . I sso quer dizer que a art e e a polít ica se ent recruzam na elaboração est ét ica e histórica. Nas prim eiras leituras, poderão colocar- se em engano aqueles que não diferenciam os est at ut os dos suj eitos frente a um a obra de arte. O próprio t eor do t ext o, às vezes, quer levar para o engano os leit ores m ais desavisados, com o nos versos do Poem a suj o em que um a “ m ãe ident ifica com o sendo de seu filho” o corpo de alguém . Tal corpo aparece no Poem a, com o sendo do próprio Gullar, m as que pode ser o de qualquer ser hum ano, e não o de um suj eit o específico, com o o “ corpo que se pára de funcionar provoca/ um grave acont ecim ent o na fam ília: / sem ele não há José Ribam ar Ferreira/ não há Ferreira Gullar... e m uit as coisas acont ecidas no planet a est arão esquecidas para sem pre” ( GULLAR, 2004, p. 239)6. Nesse m om ent o do Poem a, a referência ao suj eito- fato é explícit a, por isso afirm am os seu carát er social e polít ico. No ent ant o, a represent ação desse suj eit o é im plícita e universal, pois aponta para

      

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vários suj eit os, em bora est es sej am designados pelos nom es do poet a enquant o suj eit o hist órico.

Dizer essa equivalência significa dizer que a art e é a fiadora do acordo entre o cam po est ét ico ou cult ural e o cam po da polít ica, ou sej a, é o ponto de encontro entre o poeta e o seu duplo, apontado no texto pelo seu próprio nom e. Essa quest ão é am plam ente discut ida ao longo dest e est udo. O que há é um a singularidade no m undo da arte cont em porânea no Brasil: um suj eit o hist órico que se insere, de m odo ficcional, na lírica. Ao olharm os para o hom em que escreve, m iram os um m om ent o da própria realidade social brasileira. É o que ocorre, com suas devidas peculiaridades, em alguns m om ent os das obras poét icas publicadas ent re os anos de 1954 e 1976, de Carlos Drum m ond de Andrade e João Cabral de Melo Net o.

Pode- se pensar que essa fusão im plica um panflet arism o da obra do poet a, um a pobreza est ét ica de sua art e. No ent ant o, o m odo com o articula seus m ovim entos estéticos e históricos é de tal form a unidim ensional que o dist ancia inevit avelm ent e da banalização da cham ada com um ent e “ art e engaj ada” . O Poem a, para Ferreira Gullar, significa m ais do que um at o em pírico de seu t raçado, j á que expõe, at é m esm o à revelia do próprio poet a, a sua face polít ica, ou m elhor, out ro suj eit o, que seria sua dupla face, t ão decant ada nos est udos de t eoria lit erária. Essa face polít ica, conform e ent revist a a nós concedida7, é hoj e posta em relevância m ínim a, porque o poet a não acredit a na necessidade de um engaj am ento lit erário nos dias at uais, em bora em seu últim o livro de poem as Em algum a part e algum a ( 2010) , volte a se envolver com

      

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quest ões de nat ureza sociopolít ica. Além disso, afirm a que o Poem a suj o

não é um poem a político e, contradit oriam ent e, faz m enção a algo que “ está por trás do Poem a” .

Com essa problem atização sobre “ os suj eitos” da obra poét ica, est abelece- se um a cabível discussão sobre o estatuto do suj eito lírico e sobre as dinâm icas artísticas que configuram det erm inada época social e polít ica de um povo, especialm ent e sobre o período “ regido” pelas forças m ilit ares no Brasil.

No capít ulo 3, evidenciam os, no Poem a suj o, a visão da hist ória feita sob o signo da corrosão, dessacralizando o evento histórico, retirando- lhe qualquer vest ígio de heroísm o, legit im idade e est agnação. A t ravessia em direção ao novo – considerem os que Gullar é poet a das experim ent ações de linguagens e das vanguardas artísticas – coloca o poeta sem pre de frente com o atraso e o conservadorism o. Na m edida em que os proj et os de renovação cultural se entrelaçam com os proj etos de renovação da sociedade e da ordem polít ica, com o se pret endeu desde os anos de 1945 até os anos de 1970, ocorre tam bém a cham ada renovação estética e política. Esse m om ento teve com o principais artífices nom es com o Oswald de Andrade ( est e em período ant erior, 1920) , Carlos Drum m ond ( no período ent re 1930 a 1970) , João Cabral de Melo Net o e Ferreira Gullar ( ent re 1949 até 1976) , para restringir o núm ero, conform e se pode perceber em grande parte das obras desses art ist as produzidas no período cit ado. Na “ efet ivação de pensam ent o e linguagem ” , esses art ist as t om am da realidade elem ent os do cot idiano, densos ou não, e os “ reconfiguram ” linguist icam ent e, conj ugando, nos suj eit os polít ico e poét ico, o ser hist órico e o ser artíst ico. É a poesia da vida cot idiana colocada no seio da cham ada “ poesia com plexa” ( CANDI DO, 1975, p. 4) .

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e ainda evidencia a presença de um com prom isso polít ico em t oda obra de art e, a despeit o da vont ade de seu criador.

No m esm o capít ulo 3, que ainda diz respeit o à sociedade e ao com port am ent o dos art ist as num dado período circunscrito nos anos de 1945 at é a cont em poraneidade ( anos de 1970) , discut im os, com base nos argum entos propostos por Theodor Adorno ( 2003) e Alfonso Berardinelli ( 2007) , o est at ut o do suj eit o lírico e das vozes que est ão present es no

Poem a suj o. Teóricos vão at est ando as pressuposições hipot éticas, com o T. S. Eliot ( 1989) , Ant onio Candido ( 1975) , Michel de Cert eau ( 2002) e Käte Ham burger ( 2005) , além de outros, const ant es da bibliografia dest e t rabalho.

No últ im o it em desse capít ulo, os “ t raços” da hist ória são revelados nas linhas do Poem a suj o, últ im o processo de leit ura que em preendem os neste trabalho. Assim o fazem os porque com preendem os que a história dessacralizada que Gullar apont a est á cont ida e silenciada nos versos do

Poem a. Num a linguagem corrosiva e ant i- inst it ucional, a poesia de Gullar dá conta de um a época cronológica que se insinua nas linhas de sua poesia, m as esse processo não inibe o valor estético da obra que produziu no período, posto que, com o afirm a o próprio poeta em entrevista anexa, “ é o m om ent o hist órico que dit a a necessidade do engaj am ent o art íst ico”8.

      

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Esses traços históricos não são por si m esm os suficient es para declarar o carát er político do Poem a suj o, m as não deixam de ser ingredient es. Afinal, eles denunciam a visão que o art ist a possui da sociedade brasileira, seu desej o de t ransform á- la e acent ua a validade dos discursos de vozes não aut orizadas na const rução hist órica convencional.

A “ ação sim bólica” est á present e no Poem a suj o, através do suj eito que se invest e de um est at ut o que o distancia de qualquer classificação banal. Não é um ser hist órico frent e a um t ext o de t radição e não é um ser m eram ent e sim bólico dot ado de um olhar ensim esm ado. É um suj eito que se et erniza no gest o da linguagem . É o ant ipadrão, que num sim ulacro realiza t odo um m undo possível. O result ado desse j ogo é um discurso social e político insinuado na const rução de im agens que carregam no boj o e não nas suas entrelinhas, a recriação dos fatos assim ilados pela form ulação est ét ica.

Esse j ogo lit erário, invest ido da t ent at iva de inovação para a superação da tradição que as vanguardas artísticas tanto se esforçaram para conseguir, é realizado nas “ let ras” do Poem a suj o. É dele que em erge um a nova poesia na qual “ o banal t orna- se belo com o rastro do verdadeiro” ( RANCI ÈRE, 2007, p. 50) . A palavra conhece, nos versos desse suj eit o lírico, um a nova e int ensa form a de enfrent ar- se com os obj et os. Essas nuanças j á haviam sido percebidas por críticos com o João Alexandre Barbosa ( 2001) e Davi Arrigucci Jr. ( 2002) nas obras de out ros poet as, com o Carlos Drum m ond de Andrade e João Cabral de Melo Net o, m as sobre a obra de Ferreira Gullar, especialm ente sobre o carát er est ét ico/ político do Poem a suj o, a quest ão ainda é incipiente, a não ser pelos est udos de Zaíra Turchi ( 1985) e Eleonora Ziller ( 2004) .

A pret ensa originalidade dessa propost a de t ese consist e no fat o de que a sínt ese poét ica efet uada por Ferreira Gullar ou, para dizer com

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Alfonso Berardinelli ( 2007) , pela voz do poem a, result a das elucubrações retiradas das m em órias do poeta, fazendo o passado do suj eit o hist órico t ornar- se inst ant e present e do suj eito poeta, com o afirm a Paul Ricoeur ( 2007) nos seus est udos sobre o t em po passado, com o t am bém sobre os m odos de exam inar e interpretar as lem branças, processo subsidiado pelos vieses do olhar interior e do olhar exterior.

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1 LI N HAS DI VI SÓRI AS E CON CI LI AÇÕES N A LI N GUAGEM POÉTI CA

1.1 Engaj am ent o lit erário

O engaj am ent o lit erário subsidia as principais reflexões dest e t rabalho. Para a sua com preensão, é necessário referir algum as balizas cronológicas que foram paradigm áticas na const rução hist órica do fenôm eno. Segundo Benoit Denis (2002) , a lit erat ura engaj ada e a noção de engaj am ent o são suscet íveis de duas acepções pelo m enos, que norm alm ent e são pouco dist inguidas:

A prim eira tende a considerar a literatura engaj ada com o um fenôm eno historicam ente situado, associado à figura de Jean Paul Sartre e à em ergência, no im ediato pós- guerra, de um a literatura passionalm ente ocupada com questões polít icas e sociais, e desej osa de part icipar da edificação do m undo novo anunciado, desde 1917, pela Revolução Russa; a segunda acepção propõe do engaj am ento um a leit ura m ais am pla e flexível, e acolhe sob a sua bandeira um a série de escritores, que de Volt aire e Hugo a Zola e Cam us, preocuparam - se com a vida e a organização da Cidade, fizeram - se defensores dos valores universais, tais com o a j ustiça e a liberdade, e, por causa disso, correram frequentem ente o risco de se oporem pela escritura aos poderes constituídos ( DENI S, 2002, p. 17) .

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pont os de vist a dão acesso a m odos de apreciação da lit erat ura engaj ada e dos conceit os derivados dela. Pode- se considerá- la com o um m om ent o da hist ória da lit erat ura francesa, ist o é, com o um a dout rina que conheceu seu apogeu ent re 1945 e 1955, ant es de perder posições para out ras concepções ou prát icas de escrit ura lit erária que lhe foram quase ou t ot alm ent e opost as, com o o novo rom ance, o pensam ento est rut uralist a, a Nova Crít ica. Tam bém se pode pensá- la com o um a possibilidade lit erária trans- histórica, que aparece sob out ras nom enclat uras ao longo de t oda a hist ória da lit erat ura.

Em princípio, Roland Bart hes é o prim eiro a sint et izar um post ulado sobre essas form as de apreciação propost as. É dele a ideia de que há caract eríst icas fundam ent ais que dist inguem aqueles que “ t rabalham ” com a literatura: alguns são escritores, outros são escreventes. “ O escritor cum pre um a função, o escrevent e, um a at ividade” ( BARTHES, 1977, p. 207) . Na int enção de separar as at uações de am bos, Barthes sist em atiza posição:

O escritor é um hom em que absorve radicalm ente o porquê do m undo num “ com o escrever” [ ...] ele concebe a literatura com o fim , o m undo reenvia- lha com o m eio: e é nesta decepção infinita, que o escritor reencontra o m undo, um m undo estranho, aliás, visto que a literatura o representa com o um a questão, nunca, em definitivo, com o um a resposta ( BARTHES, 1977, P. 208) .

Assim , o escrit or nunca est á preocupado obj et ivam ent e em dar explicações sobre o m undo, pois a fala, para ele, é um fingim ent o da explicação ou um a am biguidade do real. Apesar dessa caract eríst ica, é a part ir dessa am biguidade que o escrit or pode interrogar o próprio m undo. Com essa at it ude, o escrit or não pode requerer o t otal com prom etim ent o de sua obra, e é com essa posição que Barthes se distancia daquilo que Sartre propõe: um escritor com pletam ent e engaj ado com o m om ent o present e ( SARTRE, 1985) .

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reduzida “ à nat ureza de um inst rum ento de com unicação, a um veículo do pensam ent o” ( BARTHES, 1997, P. 211) .

A ideia de “ um t ipo bast ardo de escrit or/ escrevent e” é propost a por Bart hes para, de cert o m odo, solucionar as pendências conceit uais sobre os escrit ores. Nem um t ipo, nem out ro, m as um a nova sit uação determ ina, por necessidade de classificação, a “ função paradoxal” desse novo suj eit o que Bart hes descreve com o aquele

Que provoca e conj ura sim ultaneam ente; form alm ente, a sua fala est á livre, subt raída à inst it uição da linguagem lit erária, e cont udo, encerrada nessa m esm a liberdade, ela segrega as suas próprias regras, sob a form a de um a escrita com um ( BARTHES, 1977, P. 214) .

Esse tipo bastardo que Barthes ressit ua at ende exigências que o nosso t rabalho quer responder. A fusão de “ feiticeiro e intelectual” serve à figura do poet a que, ao m esm o t em po em que se cont rapõe às inst it uições, entrega sua própria subj etividade à exposição pública. Ele veicula um a m ensagem à sociedade que j am ais se ext ingue em seus sent idos, ant es a am plia e m ovim ent a ( idem . P. 214) .

É pelo olhar de Sart re ( cf. 1985) que a lit erat ura engaj ada do século XX, discut ida e definida ao longo desse m esm o século, adquire valor trans- histórico e t orna- se um a possibilidade lit erária suscet ível de se aplicar a outros m om entos ou a outras épocas da hist ória lit erária.

O engaj am ent o abre, port ant o, segundo Sart re, um m odo de pensar e exam inar a m aneira pela qual alguns “ hom ens das let ras” quiseram ou desenvolveram um a concepção e um a prát ica engaj ada de escrit ura num tem po em que essa noção parecia ainda não exist ir. Sartre se refere de m odo específico ao engaj am ent o lit erário.

Na verdade, Segundo John Willet ( 1987)9, durante e a partir da Revolução Russa de 1917 j á houve um a “ m obilização” de polít icos,

      

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int elect uais e art ist as que decidiram abrir novas possibilidades sociais e culturais para o m aior núm ero de pessoas possível, post o que não podiam alcançar a hum anidade inteira. Esse fenôm eno não fica circunscrito à Rússia, m as despert a m undo afora o desej o de igualdade e o est abelecim ent o de novas ut opias ( WI LLET, 1987, p. 77) .

Toda essa problem át ica sobre a lit erat ura engaj ada parece t er t ido sua efervescência em finais da Segunda Guerra, m as a sua discussão acont eceu ant es desse período. A ideia surgiu nos anos subsequent es à Revolução de Out ubro quando as ut opias por sociedades igualit árias surgiram , e t inham com o paradigm a, o padrão russo. A evidência do t erm o veio à t ona m uit o t em po depois. A expressão “ engaj am ent o” foi cunhada pelos art ist as, especialm ent e pelos escrit ores, som ent e depois de 1945. O surgim ent o da ideia, no ent ant o, ant ecede em m uit o esse m om ento, e percorre todo o século XX, chegando at é os dias at uais, quando se faz present e em t odo debat e lit erário e ganha configuração específica, dist int a daquela prim eira que a via com o historicam ente sit uada e superada.

Para Denis ( 2002) , a configuração específica do engaj am ent o ou da lit erat ura com prom et ida com o social pode ser det erm inada pela conj unção de três fat ores: o prim eiro diz respeit o à criação de um “ cam po lit erário aut ônom o” , que Pierre Bourdieu analisou abundant em ent e em 1971, 1991, 1992 ( BOURDI EU apud DENI S, 2002, p. 24) e, segundo o qual, esse fenôm eno de aut onom ização t eve várias consequências:

O agrupam ento ou enclausuram ento de grupos de artistas ou escritores dentro de um a suposta aristocracia sim bólica tiveram por efeito estabelecer um corte profundo ent re a lit eratura e a sociedade em geral, com a prim eira dependente de um a lógica que vai no contrapé da lógica em curso na segunda. Essa atitude foi afirm ada com a distância tom ada pelo escritor da realidade política e social, e na focalização da sua atividade sobre o trabalho da form a ( DENI S, 2002, p. 20) .

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Essa visão de enclausuram ento aproxim a- se um t ant o daquela propost a na alt ernância discut ida por Bart hes, da art e social versus art e pela art e, pelo m enos se isso quer dizer "desengaj am ent o”10, e leva à criação de um a lit erat ura que t om ou o nom e de m oderna, na qual o art ist a recusa- se a se sentir em débito com a sociedade em geral, e passa a não tom ar part e nas lut as e em bat es da sua época.

O segundo m om ento é a “ aparição, na passagem do século XI X para o XX, de um novo papel social, sit uado à m argem da lit erat ura e da Universidade, o do int elect ual” ( DENI S, 2002, p. 22) . Ret om am os Bart hes ( 1977, p. 214) que novam ent e aparece no cent ro da polêm ica quest ão, at ravés do que ele cham a “ um t ipo bast ardo: o escrit or escrevent e” , classificação est a que pode reconhecer o nom e de Paul Verlaine com o seu grande expoent e. Em relação à escrit a essencialm ent e engaj ada, é o próprio Sart re que ocupa o principal lugar no pant eão, ao lado de out ro de igual vigor, Bert holt Brecht .

O terceiro fator da problem ática do engaj am ento gira em torno da Revolução de Outubro de 191711. Esse advento exerceu grande atração sobre os int elect uais de t odas as esferas lit erárias, e, dizem os especialm ent e, no cam po da lit erat ura. É o cham ado período do ent reguerras:

      

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Desengaj am ento é um term o utilizado por Roland Barthes e discut ido por Benoit Denis para definir a form a de abstenção do m undo real pelo escrit or ou int elect ual.  

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As causas da instalação duradoura deste “ tropism o”12 revolucionário são m últ iplas. Há de início um apego t ipicam ent e francês à idéia de revolução: para m uitos, 1917 prolonga 1789 e representa assim a realização de um processo histórico inaugurado na França, as figuras de Lênin ou de Trótski correspondem de algum m odo às de Robespierre, Saint Just ou Danton. A isso se acrescenta o desastre de 14, 18: diant e da carnificina da Prim eira Guerra, que deixa a Europa exangue e sem perspectiva, a Revolução Russa é com o a satisfação de um a utopia que com pensa satisfatoriam ente a depressão consecutiva a um a guerra inédita pela sua duração e violência ( DENI S, 2002, p. 22) .

Para Denis ( 2002) , a Revolução Russa é portadora de um a nova utopia da qual o escrit or quer ser com ponent e. Ele desej a erguer a bandeira de ent rada dessa revolução, a fim de ser, ele m esm o, o prot agonist a de um a sociedade sem classes, const ruída através de um cam inho conduzido por sua intervenção e autoria. Esse m undo é o lugar utópico em que o escritor engaj ado encont ra seu lugar e o dos seus pares, assum indo seu papel social. Nesse m om ent o, põe- se em xeque a aut onom ização do cam po lit erário. O que se vê a partir desse conflito cham ado de “ tropism o revolucionário” é um a grande polit ização da lit erat ura, que acarret a um a divisão ent re esquerda e direit a, e, principalm ent e, ent re escrit ores engaj ados e não engaj ados. A esse fenôm eno acodem escrit ores ou art ist as de t odas as part es do m undo, no Brasil não sendo diferent e. Acirra- se o conflito entre o cam po político e o cam po literário, que ora se fundem , ora se digladiam .

De acordo com Denis ( 2002) , o acontecim ento desses três fatores – aut onom ia do cam po lit erário, invenção do int elect ual, Revolução de Out ubro – produziram dentro do cam po literário dois tipos de respostas. “ A prim eira é aquela da vanguarda, que consist e em post ular um a hom ologia est rut ural ent re rupt ura estética e revolução política” ( DENI S, 2002, p. 26) . Para o artista de vanguarda – no caso do Brasil pode- se

      

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citar o m om ento vivido pelos artistas que produziram grande part e de suas obras dos anos 45 até os anos 70 – “ há um a hom ologia est rut ural ent re a sua posição em lit erat ura ( e out ras art es) e aquela do revolucionário na polít ica” ( DENI S, 2002, p. 12) .

Exem plo conhecido no Brasil é o que acont ece com Drum m ond, alt o funcionário do governo de Get úlio Vargas, no gabinet e do m inist ro Carlos Capanem a, que t ent a harm onizar a angúst ia da liberdade art íst ica com a do cum prim ent o do dever part idário. Essa angúst ia pode ser associada àquilo que Denis afirm a sobre o fazer social e o fazer artístico: “ Um e out ro se sit uam no ext rem o do que aut orizam , em t erm os de possíveis, os seus cam pos respectivos” ( idem ) . I sso quer dizer que as vanguardas se aut odenom inam nat uralm ente revolucionárias, dadas as suas vont ades de rupt ura com as form as art íst icas ant eriores e, nesse sent ido, ent endem que os polít icos nada t êm a ver com esse papel, ao passo que a eles, os vanguardist as, cabe preludir ou ant ecipar os cam inhos da revolução ou da transform ação sociopolítica.

Outra posição ou respost a é aquela proposta pelos artist as engaj ados:

Recusando a validade da hom ologia entre inovação artística e revolução política estabelecida pela vanguarda, o escrit or engaj ado entende participar plenam ente e diretam ente, através das suas obras, no processo revolucionário, e não m ais sim bolicam ente, pela m ediação de um a hom ologia est rutural. I st o quer dizer que, diferentem ente da atitude da vanguarda, que, nesse ponto, é por essência preocupada com a preservação da especificidade da literatura e da arte, a posição do escritor engaj ado questiona a autonom ia do cam po literário, tal com o ela tom ou form a com a m odernidade ( DENI S, 2002, p. 24) .

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de consciência de que a participação da literatura, no processo revolucionário, exige certas contrapart idas que Denis m enciona em sua leit ura de Sim one de Beauvoir (apud DENI S, 2002, p. 25) , para quem o art ist a deve renunciar “ a cert os privilégios ligados ao estatut o do escrit or e de sua responsabilidade” . I sso im plica um a represent ação m odificada do valor lit erário, ou sej a, da t ransform ação da prim azia do t rabalho form al para um a busca sôfrega por um a nova articulação entre o literário e o social.

É sob esse viés que a história da literatura engaj ada será discutida nest e t rabalho, t om ando com o pont o de part ida, de m odo m ais geral, a m odernidade lit erária, com a configuração dos “ t rês fatores” propostos por Denis ( 2002) , e, de m odo m ais específico, a produção poét ica dos anos 50 at é os anos 70 no Brasil, especialm ent e nos anos da dit adura m ilit ar.

Esse fenôm eno m últ iplo e com plexo cham ado lit erat ura engaj ada est á longe de ser sim plist a e caricat ural, com o m uit os pensam ou pensaram . Cont rariam ent e, há pressupostos com plexos que fundam entam a busca do escrit or engaj ado, com o a sua j ust ificação filosófica e lit erária, e não apenas a prát ica de um dogm atism o, o que, por vezes, ocorreu. Ent ret ant o, a m era ação no m undo e o com prom et im ento com a realidade sociopolítica não são elem entos suficientes para a efet ivação do valor est ét ico de um a obra.

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em negociação é a relação ent re o lit erário e o social, ou sej a, a expect at iva que a sociedade possui em relação à lit erat ura e aos efeit os que est a adm it e provocar.

Dessa m aneira, é possível t ent ar com preender o escrit or engaj ado. Não é difícil ent ender que esse suj eit o est á com prom et ido com a colet ividade e que há um “ acordo” a cum prir entre as part es com prom et idas, ou ligadas, no dizer de Denis, por um a prom essa, ou por um a regra de j ogo, no dizer de Bourdieu ( 1999)13. Nesse j ogo, ou no conj unt o de regras, est ão sob j uízo a obra e o seu aut or, ou sej a, a credibilidade de am bos. A lit erat ura, assim , ult rapassa seu fim próprio, j á que est á a servir a algum a out ra coisa ou causa que não a ela m esm a. Desse m odo, t orna- se a própria fiadora e fiada num t ipo de “ t ransação” em que o obj et o do j ogo passa a ser o próprio j ogo, no qual, havendo ganho ou perda, o valor da aposta é o m esm o: os autores do acordo, ou sej a, a lit erat ura, o escrit or e a colet ividade.

A part ir desse significado inicial, pode- se elaborar um significado m ais próprio para o verbo engaj ar ou para a ação do engaj am ent o: o sentido que m elhor pode traduzir essa ação é o fato de o escritor ter de t om ar um a “ direção” . No cent ro da problem át ica, um sent ido figurado aparece: fazer a escolha de se envolver num a causa que evident em ent e diga respeit o a si m esm o com o suj eito de um a colet ividade. Dito de out ra form a, a escolha indicia as im plicações da ação, pois nela não est ão subscrit os apenas int eresses individuais, m as interesses que extrapolam a int ersubj et ividade. É a at it ude do escrit or const ruindo influências na ordem da realidade, num procedim ent o que desregula a ét ica e os im perat ivos da vida social. Cert am ent e, a lit erat ura e o seu escrit or est ão, nesse m om ent o, em plena consciência de sua at uação na realidade e sobre a vida das pessoas, não podendo, no entanto, prever a am plitude de t ais efeit os. Ainda raciocinando sobre o t erm o, no sent ido figurado, engaj ar- se consist e “ em prat icar um a ação, volunt ária e efet iva, que

      

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m anifest a e m at erializa a escolha efet uada conscient em ent e” ( DENI S, 2002, p. 32) .

É essa insistência sobre a pessoa e o m undo a principal caract eríst ica do exist encialism o crist ão, que est á present e de m odo inconfundível no exist encialism o sartreano. Esta característica advém da orientação proposta por Gabriel Marcel em seus Diários, cit ados por Denis ( 2002, p. 33) . Tal orient ação vai consolidar a “ corrent e” que Sart re ( 1985) const ruirá sobre a ideia de engaj am ent o lit erário, t endo sido ele o prim eiro a utilizar o term o “ engaj am ent o” , e em bora não t enha sido “ o aut or” da ideia, t orna- se um dos seus principais represent ant es e propagadores. Na verdade, os term os aparecem sist em at icam ent e depois do período ent reguerras, nos discursos dos int elect uais e dos crít icos. A ideia de solidariedade é im ediat am ente im prim ida no cent ro daquilo que se convencionou dizer engaj ar, dado que, com o princípio cristão, agir em favor do Out ro é um dever, quase um a devoção. Derivativam ente, o engaj ar- se é a m anifest ação de um a fidelidade a si m esm o, e, com o ato de fidelidade, “ é ação volunt ária e efet iva pela qual a pessoa se define e se escolhe, seguindo um cam inho que com porta risco e desconhecim ent o” ( DENI S, 2002, p. 33) .

Segundo Denis, o engaj am ent o “ põe em evidência a relevância de um a decisão de ordem m oral, na qual o indivíduo em preende a sua ação prát ica de acordo com suas convicções ínt im as, e isso inevit avelm ent e com port a riscos” ( DENI S, 2002, p. 33) . O palco da realização dessa ação é a vida colet iva, suas quest ões sociais, polít icas, ou para dizer de m odo definit ivo, públicas.

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Para Denis, a com unicação literária ent re o suj eit o que decide e o Out ro, ou os outros, j ust ifica- se pela dist inção do im perat ivo m oral no em aranhado da lit erat ura e da vida colet iva. Quando observa a dout rina sartreana – cuj os predecessores são os existencialistas cristãos –, Denis vê o engaj am ent o sendo definido no at o da escrit ura, cuj a int enção propriam ent e est ét ica não pode bast ar- se a si m esm a, por isso se duplica em um proj et o ét ico que a j ust ifica e a subent ende. Nesse m om ent o, Sart re est á t rat ando especificam ente da lit erat ura, com t odo o cuidado que t eve para dist ingui- la de out ras art es, com o a m úsica, a pint ura, a escult ura, dist inção que não foi feita nas revoluções russas, nas quais todos os intelectuais, art ist as e políticos se m anifestaram à sua m aneira, cum prindo cada a sua part e ( DENI S, 2002, p. 34) .

No proj eto ético de que fala Sartre ( 1993, p. 32) , há a im plicação de um a ética interna à literatura, o que significa dizer que o escrit or engaj ado est á perm anent em ent e em busca da propost a de um a ét ica alt ernat iva, na m edida em que a sua própria concepção de ética se opõe a certa represent ação inst it uída da lit erat ura. Assim , não cabe falar de engaj am ento quando escrit ores ou out ros art ist as elaboram suas obras em consonância com os poderes instit uídos ou com polít icas vigent es opressoras. A arte, para Sartre, é sem pre, por consequência de um m om ent o hist órico social, um a form a de com bat e e de alt ernat iva de ação para a colet ividade.

Quando faz referência ao conceito de ét ica lit erária, Denis m enciona a célebre frase de Gide: “ não se faz literatura com bons sentim entos” ( GI DE apud DENI S, 2002, p. 36) . I sto evidencia os sentim entos que perm eiam o coração dos escritores engaj ados. O at o da linguagem e a proposta ética de um a obra definem o carát er do engaj am ent o do art ist a e o valor estético e contraventivo da obra:

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ult rapassá- la. Contudo, a literatura engaj ada não saberia ser e não se ident ificou nunca com um a lit eratura de “ bons sentim entos” : a sua intervenção m oral se situa toda em outro nível ( DENI S, 2002, p. 36) .

É por essa questão m oral e pela discussão dos sentim entos present es nessa ou naquela lit erat ura que se pode afirm ar que num a obra literária realizada por um escritor engaj ado reside sem pre um “ escândalo” , term o que o próprio Sart re ut iliza, ou sej a, esse t ipo de obra não é j am ais expressão de um a m oral inst it ucional, isso porque se recusa a conceber a obra literária com o um a “ finalidade sem fim , t endo nela m esm a o seu próprio princípio e o seu próprio fim ” ( DENI S, 2002, p. 36) . I sso im plica cert a concepção de hom em e de m undo, ou sej a, o papel que a lit erat ura ent ende preencher na sociedade, no m undo, enfim , na vida das pessoas. Dessa form a, reafirm am os que a lit erat ura engaj ada é um a ação pública na qual se em penha toda a responsabilidade, e na qual se põe em j ulgam ento t odos aqueles que dela part icipam : o escrit or, o leit or e as ações dela desencadeadas.

Convencido disso e em penhado em propagar as tarefas do escrit or, Sartre busca esclarecer que, contrariam ente ao pensam ento vulgar, a lit erat ura engaj ada não é, por definição, polít ica, vindo a sê- lo em virtude de um a necessidade secundária, pois onde quer que as quest ões m orais ou ét icas envolvam a colet ividade, inevitavelm ente o caráter político se m anifestará, e “ é a nossa tarefa de escritor a de fazer entrever os valores de et ernidade que est ão im plicados nos debat es sociais e polít icos” ( SARTRE, 1993, p. 35) .

Cabe, então, pensar naquilo que aproxim a ou distancia a literatura engaj ada daquela lit erat ura que Denis cham a de lit erat ura m ilit ant e:

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É t em erário afirm ar que os escritores engaj ados t enham de possuir um a filiação polít ica part idária, apesar de m uit os assim t erem agido, ou de ainda o fazerem . Afinal, um escrit or engaj ado não deve ser o port a- voz de um a dout rina polít ica, ant es devem ser os seus t ext os a m anifest ação das cont radições e das dificuldades de um a sit uação em que a polít ica, associada à m oral vigent e, apareça m uit o m ais com o um m al necessário do que com o um a escolha posit iva. “ Todos som os com prom et idos” , afirm ava Sartre (apud DENI S, 2002, p. 36) , pois ainda que um escrit or decida calar- se, o seu silêncio não será m udo, m as será um a recusa a falar, ou, dit o de out ro m odo, a em itir um a posição. De outro m odo, é corret o assinalar que o “ engaj am ento é a recusa da passividade com relação a um inevit ável envolvim ent o com o m undo” , porque, de qualquer form a, aquele que não escolhe livre e conscient em ent e acaba sendo escolhido pelas circunstâncias e situações. I sso desfaz a ideia de que um escrit or possa operar sua ação art íst ica de m odo t ot alm ent e descom prom et ido, do qual falara Bart hes ( 1997, p. 207) .

Segundo Denis ( 2002, p. 37) , Sartre quase foi “ abalado” pelas tessituras de Barthes quando leu e, post eriorm ent e, quando escreveu sobre Mallarm é. Na obra inacabada de 1986, cham ada Mallarm é: a lucidez e a sua face som bria, correndo riscos de ceder aos principais opositores, Sart re provou que não era t ão dogm át ico assim , pois ficou m uit o pert o de reconhecer a pert inência e a validade de um cert o “ desengaj am ent o” . Ele adm it iu que Um lance de dados, feit o com rigor e coerência por Mallarm é, seria o único caso de um “ engaj am ent o prat icável” para a poesia no contexto do final do século XI X. Talvez por isso Sart re t enha deixado inacabados os escrit os sobre Mallarm é14 e recobrado a consciência e o desej o de cont inuar lut ando pelo t em a do engaj am ento, e era nisso que acredit ava fielm ente, ret om ando lições m undo afora. Abalado pela leit ura de Mallarm é, m as seguro da necessidade de int eração no m undo pelo escrit or, afirm ou essa necessidade de m odo definit ivo.

      

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Essa vacilação de Sartre t am bém denuncia out ra hesit ação de posição: a de Bart hes, que passa a afirm ar que

O desengaj am ento do escritor era de fato a form a m ais autêntica do engaj am ento literário, aquela pela qual a literatura realiza plenam ente a sua função prim ordial: separar- se integralm ente do m undo, suspender de algum a form a a sua realidade, para m elhor interrogá- lo e fazer pesar sobre ele um questionam ento sem resposta, que é o único capaz de verdadeiram ente atingir o dado ( BARTHES, 2003, p.140) .

Considerando am bas as posições, Denis ( DENI S, 2002, p. 37) vê em Sartre e em Barthes influências que result aram das leit uras que est es fizeram da obra de Mallarm é: os dois hesit am nas suas post uras depois de lerem o poet a de Um lance de dados. O engaj am ent o, t al qual Sart re o concebeu, ganha força nos m eios literários e int electuais, sendo t om ado em definit ivo com o um a posição reflet ida, consciente e lúcida do escritor de pert encer ao m undo e da vont ade de m odificá- lo. É, port ant o, m ais pert inent e e “ m ais significat ivo ver na literat ura engaj ada a ação e a part icipação” ( DENI S, 2002, p. 37) que se opõe à total abstenção e ao puro int im ism o, que ret iram do suj eit o escrit or a vont ade de realizar- se no m undo, e de com prom eter- se com ele, fazendo de sua art e um a intervenção no seu tem po. Por sua vez, Barthes com preendia a necessidade de “ suspensão da realidade” para m elhor ser observada pelo escritor. A partir desse m om ento ele não conceberia com o ideal o purism o ou o afastam ento absolut o do suj eit o artíst ico da realidade ( BARTHES, 2003, p. 142) .

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real, é preciso que o escrit or em nada falte com o seu tem po” ( SARTRE, 1993, p. 35) .

I sso difere significat ivam ente da lit erat ura m oderna no que diz respeito à evolução de sua tem poralidade t radicional. Essa t em poralidade, sit uada no t em po present e para o escrit or engaj ado, está referida por Sartre desde o episódio da Libération15, que represent ava “ um acordo de reagrupam ent o dos escrit ores engaj ados e da equipe da revist a Tem ps

Modernes ( 1947) ” , publicação da época que versava sobre

acont ecim ent os t am bém do “ inst ant e”, e é cham ada por Bart hes ( 2003, p. 144) , de m odo irônico, de “ linguagem profissional da presença” . E finaliza Sart re: “ Já que o escrit or não t em nenhum m eio de se evadir, nós querem os que ele abrace est reit am ente a sua época; ela é a sua chance única: ela é feit a para ele e ele é feit o para ela” ( SARTRE, 1993, p. 38) .

1.2 Est ética e política

As relações ent re art e e realidade sociopolítica não cessam de exigir reflexão e debate, tal é a im portância desse fenôm eno e longa a exist ência da lit erat ura que se definiu com o "engaj ada” . Segundo Rancière ( 2007, p. 11) , há a necessidade de se rever algum as questões que dizem respeit o a algo que se denom inou cham ar de “ est ét ica da polít ica” , t erm o que possui relação im prescindível com o engaj am ent o lit erário. Para ele, não há um a form a sim ples para conjugar a fusão da art e com a vida, ainda assim , acredita que é fundam ental um debat e sobre a crise da art e e suas captações pelo discurso. Esse debat e poderá ser de grande valor elucidat ivo, j á que, durant e a segunda m et ade do século XI X e princípio do século XX, a lit erat ura engaj ada foi “ acusada” de ser m uit o m ais m at éria do discurso do que da est ét ica:

      

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A m ultiplicação dos discursos denunciando a crise da arte ou a sua captação fatal pelo discurso, a generalização do espetáculo ou a m orte da im agem são indicações suficientes de que, hoj e em dia, é no terreno estético que prossegue um a batalha ontem centrada nas prom essas da em ancipação e nas ilusões e desilusões da história. Talvez a traj etória do discurso situacionista – saído de um m ovim ento artístico de vanguarda do pós- guerra, vindo a ser nos anos 1960 crítica radical da política e, hoj e, absorvido no com um do discurso desencantado que com põe o avesso “ crítico” da ordem existente – sej a sintom ática das idas e vindas contem porâneas da estética e da política, e das transform ações do pensam ento vanguardist a em pensam ent o nostálgico ( RANCI ÈRE, 2007, p. 12) .

A arte dos anos 60 absorveu os excessos do discurso realist a que pretendia resolver/ denunciar tanto quest ões est ét icas quant o quest ões da realidade sociopolítica. O frenesi das vanguardas que se sent iam responsáveis pelas t ransform ações polít icas do m undo acabou reconhecendo sua cham ada “ inerente lut a” com o insuficient e, post o que se transform asse em atitude m eram ente revolucionária e discursiva. I sto significa que tanto os proj etos est ét icos se perderam no afã de consolidarem - se com o proj et os t am bém polít icos quant o seus prom ot ores se t ransform aram em “ nost álgicos” e “ desencant ados do m undo” , além de inviabilizarem a possibilidade de represent ação da realidade.

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papéis e desest abilizar as font es inst it ucionais reconhecidas com o im ut áveis.

Para Rancière ( 2007, p. 13) , a quest ão que se int erpõe não é m ais um a posição cont ra o “ desencant am ent o pós- m oderno” , em favor de “ um a vocação vanguardista da arte ou do elã da m odernidade vinculando as conquist as da novidade art íst ica às da em ancipação” ( RANCI ÈRE, 2007, p. 13) . O que aconteceu, na verdade, é que as vanguardas confundiram o em aranhado de perm issividades e novidades com um a int ervenção, de fat o, no m undo real, ou sej a, na realidade com o t al. De cert o m odo, at é se pode dizer que houve cert a int ervenção, m as nada que pudesse gerar um debate sério sobre a relação ent re est ét ica e polít ica. É sobre essa polêm ica que Rancière insere um a propost a que se preocupa com os ent ornos da const rução de um a plat aform a que dit e as form as da art e sem m encionar os efeit os desse m odelo sobre as sensibilidades. O que acont ecia era, na verdade, um m odo de articulação entre as m aneiras de fazer, j unto aos m odos de pensam ent o dessas m aneiras e um novo desenho das form as de visibilidade desses feit os, o que im plica um a det erm inada ideia da afet ividade do pensam ento. A chave de Rancière para a nova experiência passa a ser cham ada de “ part ilha do sensível”16:

Denom ino partilha do sensível o sistem a de evidências sensíveis que revela, ao m esm o t em po, a exist ência de um “ com um ” e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Um a partilha do sensível fixa, portanto, ao m esm o tem po, um “ com um ” partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda num a partilha de espaços, tem pos e tipos de atividades que determ ina propriam ente a m aneira com o um “ com um ” se presta à participação e com o uns e outros tom am parte nessa partilha ( RANCI ÈRE, 2007, p. 15) .

É possível desfazer a opinião com um de que o sensível est ej a diret am ent e ligado àquilo que define a im ediat a relação art ist a versus m undo real, sem desconsiderar que isso sej a plausível, m as nunca um a definição à priori, indiscut ível. Essa relação é frut o de um a ação art íst ica e polít ica, ao

      

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m esm o tem po. Cert am ent e, nem t odos os art ist as assim a concebem . O sensível é um t odo no qual t odos ou m uitos tom am parte, ou lhe integram de algum m odo. Est á o t erm o, portant o, ligado de form a inevit ável à palavra part icipação. I sso im plica um a com preensão dos acont ecim ent os e da realidade, pois não cabe a t odos a part icipação, m as apenas àqueles que com preendem a sua necessidade de interação e intervenção. Tom ar parte significa ocupar- se de acordo com sua vocação ou com pet ência do com um , e isso para o artista não quer dizer “ captura perversa da política por um a vont ade de art e” , conform e considerava Walter Benj am in ( 2004) em sua discussão sobre a “ era das m assas” . Ou sej a, nem t odo pensam ent o do povo pode significar pensam ent o de art e, at é porque se m uit os est ão apt os a capt ar o sensível, ao m esm o t em po, out ros t ant os est ão surdos a ele, alheios ao t em po e ao lugar, silenciados em suas condições e lim it ações, desconcert ados nos sentidos históricos e espaciais da vida. Por essa razão, Arist ót eles afirm ava que “ o anim al falant e é um anim al polít ico. Mas o escravo se com preende a linguagem , não a ‘possui’” ( 1993, p. 79) .

Referências

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