A
noçãoderealidadetemumestatutocuriosonapsicanálise, poissignificatantoocamponoqualosujeitoageesofre aação,encontrandoumlimiteparaseusdesejosimperiosos e onipotentes, quanto os meios para, justamente, “realizá-los”,istoé,torná-losreal.Freudsereferiaaessacenacomo Psicóloga;psicanalista;mestre emPsicologia, Universidade FederaldeMinas Gerais(UFMG).
IzabelCristinadeSouzaAzzi
RESUMO:ApartirdoestudodostextosdeFreudeLacan,procura-se demonstrarhavernointeriordarelaçãodosujeitocomosobjetos, constitutivosdesuarealidade,umvaziodereferênciaquedetermina quearealidadepsíquicaseconstituideumaperda.Paraapsicaná-lise,oacessoàverdade,ourealidade,estáligadoàprópriadivisão dosujeitoeaodiscursoqueocircunda.Pretende-semostrarquea realidadeéumaordem,ourazão,deestabilidadelógica,àqualo sujeitoestáassentido,ouseja,crê,semexplicação,equedepende deumprincípiodeordenaçãodiscursivo,quesópodeseexercer senãoforquestionadopelosujeito.
Palavras-chave:Realidadepsíquica,perdaderealidade,referente, assentimento,crença.
ABSTRACT: Reality:areasoningthatcannotbeexplained,butbe-lieved.Theauthordemonstrates,usingFreud’sandLacan’stheory, theexistenceofarelationbetweenthesubjectandtheobjects,that constitutehisreality,anemptinessofreferencesthatdetermines thatpsychicrealityisconsistedofaloss.Forthepsychoanalysis theaccesstothetruth,orreality,isrelatedtosubject’sdivisionand discourseinwhichheisembraced.Realityisanorder,orreason, oflogicalstability,towhichthesubjectisassented,hebelieves, withoutexplanation.Therealitydependsonarbitraryelectionof significantasinmaître-mot(masterword)toconstituteone’sself, andtheprincipleofdiscursiveordering,thatcanonlyexistifthe subjectdoesnotquestion.
realidade“exterior”,realidade“material”,ou,àsvezes,realidade“histórica”. Aelaseopõearealidadepsíquica,ouniversodoinconsciente,dasfantasiase desejosquecercamepovoamosujeito,equesão,paraele,tãoreaisquantoos seussentidoscaptamomundoàsuavolta.Arealidadepsíquicaéaquilosobreo quesetrabalhanasituaçãoanalítica,que,aliás,éumdispositivocalculadopara evidenciá-la,exatamentepelaexclusãosistemáticadarealidadeexterior.
Nestetexto,procurodemonstrarqueaconstituiçãodarealidadepsíquica estáligadaàentradadosujeitonalinguagem,àfundaçãodoinconscientee, conseqüentemente,aumaperdadovínculocomoreferenteexterno.Apartir dessaargumentação,pergunto-meseodelírioégeneralizável.Descrevooque Freuddelimitacomoperdadarealidadenaneuroseenapsicoseparaentender suaespecificidadeepensarcomoéfeitoovínculocomarealidade.Oensaio sobreanegaçãoenriqueceadiscussãosobreasdefesaseintroduzanoçãode discurso,queindicaaquilonoqualosujeitoteriadeestarassentido,ouseja, crer,paraquearealidadeeaverdadelheestejamgarantidas.Iniciemos.
Parecehaveremmuitostextospsicanalíticosumaconcepçãodarealidade externacomosendoalgojádado,algoinquestionávelequeservedereferência avaliativa dos processos psíquicos, por exemplo, de processos alucinatórios. Nessaconcepção,arealidadeexternaseriaindiscutíveleapenasaapreensãoque cadaumrealizadessarealidadepoderiaserquestionada.Mas,propomosquehá entreelas(realidadepsíquicaeexterna)umarelaçãoestrutural,moebiana,de modoquenãopodemossepará-lascomoseseparaojoiodotrigo.Essatopologia, deduzidaapartirdeumaanálisemetapsicológicadosprocessoseprincípiosdo funcionamentomental,permiteumalógicamaisapropriadaparaacompreensão dasrelaçõesdaneuroseedapsicosecomarealidade.
Para introduzir o tema, retomo um sonho relatado por Freud (FREUD, 1900/1986).Éosonhodeumpaiqueapósamortedofilho,veladonumquarto contíguo,sonhaqueesteestavadepéaoladodesuacama,oapanhapelobraço elhemurmura:Pai,nãovêsqueestouqueimando?
Freudnoscontaque,defato,ovelhoencarregadodevelarocorpodormira, umavelatombaraepartedocorpoestavaemchamas.Mas,oquedespertaesse pai?Seusonhonoqualofilhoochamaemapelo?Ouoclarãooualgumbarulho doquartoaolado,arealidademesmadeumavelatombadaequepegafogona camaondeofilhorepousa?
Ossonhostêmumcaráterequivocanteparaosujeitojustamenteporqueen-cenamumarealidadeque,pornãoserassimiladadeformanenhumaàrealidade davigília,éexperimentadacomobizarra,estranha.Osabsurdos,incoerências, esquecimentos,dúvidas,assimcomooslapsos,ganhamoutrarealidadeneles, bemcomonossintomasneuróticos.Freudescolheosonhoparademonstrara hipótesedoinconscientecomoumadeterminaçãoqueexerceseusefeitossobre osujeito.Orelatodosonhoeoutrostestemunhosderupturadosentidopermi-temrecolheroqueseinscrevecomoperdanafaladosanalisantes,fazendocom queseconfrontecomumarealidadeoutra,diferentedaquesearticulacomo sentidonaconsciência.Dessaforma,odespertardosonhopõeosujeitodiante dacontradiçãonoseiodarealidade.Comosaberseessasituaçãovividacomo realidadeéumsonho?
ComFreudaprendemosquetodoprocessopsíquicooperapelaheterogenei-dadedocampodopensamentoquelheéintrínseca,ondeaquiloqueconfere existênciaaorepresentadonaconsciênciajáseconstituicomoumpensamento. Sendoassim,ondeestáoreferente?Seumpensamentoéaquiloqueserealiza pelarepresentação,oquedárealidadeàscoisasqueseapresentamaosujeito? Comodistinguir,apartirdaquestãodaexistência,umaexperiênciaperceptiva deumaalucinatória?
Olimiteentrearealidadechamadamaterialearealidadepsíquicaétênue. Freudusadoistermosemalemãoparanomeararealidade:RealitäteWirklichkeit. Segundo Lacan, noSeminário7, Freud não os utiliza de forma indiferenciada. PorRealitätdesignaarealidadepsíquicaqueédefinidadesdeo“Projeto”(1895) comoarealidaderegidapeloprincípiodeprazereseucorrelatoprincípiode realidade.ComWirklichkeit, Freudserefereaumarealidadedoexterno,do“fora-representação”,realidadeque,inicialmente,seapresentaemsuateoriacomo traumática,masquepoucoapoucovaisendoassimiladaaofuncionamentoda estruturacomoaquiloqueapontaalgodaverdadedosujeitoedaqualelenão quersaber.AWirklichkeitédaordemdeumaefetividademuitomaisdoqueuma correspondênciacomoexterno.
Eleparece,inicialmente,sustentarumadistinçãoentrerealidadeexterna/ materialerealidadeinterna/psíquicaeumabuscadecompreensãodecomoa realidadeexternasefazinterna.No“Projeto”,vemosestadistinçãoquevaise fazendocadavezmenosnecessáriaeaparente.Atesedarealidadepsíquicacomo realidadequeinteressaparaapsicanálisesuperpõe-sedemaneiradefinitiva.Ela demonstraquearelaçãodosujeitocomarealidadejáéefeitodaformacomo essesujeitosearticulanolaçosocial,ouseja,domodocomoelesedirigeao Outro,efeito,portanto,daformacomoestaalteridadeseapresentaaele.
podelevá-loaele.Assim,arealidade,enquantosustentadapelodesejo,é,de início,alucinada.Estacondiçãoapresenta-nosumarealidadeprecária,coma qualosujeitoestaráàsvoltas.Abuscadoobjetoperdidosupõedistinçõesentre realidades,definidasporoposiçõesentreinterior/exterior,indiferente/diferente, prazer/desprazer,quesereferemàrelaçãodosujeitocomocampodoOutro, cujooperadorfundamentaléaprovaderealidade.
Assim,nadefasagementreapercepçãoevanescente(masquenemporisso émenosreal)eaconsciênciaestáolugardarealidadepsíquica(Realität),que nosdespertalentamenteparaumaoutrarealidade—adofuro,dobarulho, dabatidanaporta,umarealidadequeestáaliàespera,equesóseapresentaà consciênciaaposteriori,sobaformadarepresentação.Talrealidade,queLacan localizoucomoaWirklichkeitfreudiana,éumarealidadeforasignificante. Estelimiteàsignificaçãosópodeserconcebidonafalaatravésdarealidade que se rege pelo significante — a realidade psíquica — e por repetições, quesãofurosnacadeiasignificante;tallimiteéoutrarealidade,queLacan denominou‘real’.Oencontrocomessarealidadeocorrenointervaloínfimo entreosonhoeodespertar,emoutracena,naqualencontramostambém oprocessoprimário,queintroduzumarupturaentreapercepçãoearepre-sentaçãoconsciente;essarealidade—ourealparaLacan—permaneceali retornando na insistência dos signos, nos deslocamentos e condensações, ondesemisturamtraçosdopassadoedopresente,serepetindopormeiode formasindefinidasdaoutrarealidade,oudarealidadepsíquica,quepodemos chamarrealidadessignificadas.
nosajudaacompreenderquearealidadenãoé,portanto,algoapreensível,mas, certamente,éalgocomoqualosujeitotemdesehaver.
Noentanto,apesardearealidadepsíquicaseconstituirapartirdaperdado vínculocomoreferenteexterno,questãoamplamentedebatidaporlingüistas, lógicosefilósofos,paraapsicanáliseimportaqueaausênciaouaimpossibilidade deefetivaçãodasfunçõesnomeadaspelosconceitosde“provaderealidade”e “valorderealidade”implicamemestadosconsideradospatológicos,quesemani-festamporalucinação,delírioeexperiênciasdedesrealizaçãoouestranhamento (comoFreuddescrevenotextode1936—UmdistúrbiodememórianaAcrópole).Num textode1894,Asneuropsicosesdedefesa,Freuddiz:
“Oeuretira-sedarepresentaçãointolerável(Unerträglich),1masestaseligademaneira inseparávelaumfragmentodarealidadeobjetiva;eaomesmotempoemqueoeu realizaessaoperaçãodesliga-setambém,totalouparcialmente,darealidadeobjetiva. Estaúltimaé,ameuver,acondiçãosobaqualsedáàsprópriasrepresentaçõesuma vivacidadealucinatória,eassimapartirdeumadefesaqueteveêxito,apessoacai emconfusãoalucinatória.”(FREUD,1894/1986,p.64-65,grifosnossos)
Nestefragmento,percebemos,entreoutrascoisas,queparaFreudháuma possibilidadedefragmentaçãodarealidade;dividida,podemosnosrelacionar compartesdela.EmAinterpretaçãodesonhosdemonstraquesepode“brincarcoma realidade”,tomandopartesaquieacoládela,paracomporumsonhoerealizaro desejo,ouseja,construirumarealidadedeacordocomosprocessosimperiosos doIsso,querecebemaregênciadoEuedacensura.
ParaFreud,osneuróticosnãorecusam,nemnegam,nemfogemdarealidade inteira,massimdepequenospedaçosdela.Aperdadarealidadenaneurosese dápela“fuga”,pelaevitação,naqualarelaçãocomarealidadeaparecedemodo conflituoso.Portanto,arupturacomarealidadenaneurosesedácomparteda realidadepsíquica,enãocomarealidadetoda.
NoSuplementometapsicológicoàteoriadossonhos (1917),Freuddizqueumpensa-mento,aoseguirocaminhoregressivo,atingeostraçosmnêmicosdeobjetos eencontraapercepção,queéaceitacomoreal;essa“alucinaçãotrazconsigoa crençanarealidade(Realitätsglaube)”(FREUD,1917/1986,p.262).Elejáhaviadito noProjeto(1895)queaconclusãodoatodepensarlevaaosignoderealidade paraapercepção,oujuízoderealidadeparaapercepção,acrença,alcançando-se ametadotrabalho(GABBIJR,1995,p.46).
1Unerträglich (intolerável) substituiuUnverträglich (incompatível), que estava na publicação
Então,arealidadealémdesergarantidaaosujeitopelosimbólico(represen-tações)epeloimaginário(imagens,identificaçõesefantasias),queconformam ocampodesuaconstituição,ouseja,campodosemblant,precisasergarantida porumsistemadecrença.Voltaremosaestepontomaisadiante,antesgostaria deprecisarmelhoroqueFreudchamadeperdadarealidadenaneuroseena psicose.
Freuddiz,notextode1924,queoafrouxamentodasrelaçõescomarealida-deé,naneurose,oefeitodeumretornodorecalcadoparaarealidade,sempre conservada,mas,porassimdizer,secundariamenterevestidadeum“sentido secretoquechamamosde(nemsempredemaneirainteiramenteapropriada) simbólico”(FREUD,1924/1986,p.234).Pensamosquearestriçãoquefazdo termo “simbólico” deve-se ao fato de o Isso não se articular na linguagem comum,quechamamossimbólica,massearticulardeoutromodo,alhures, fazendo“símbolos”dequalquerforma.Aessênciadaneuroseconsiste,portanto, noretornodorecalcadoenquantoesseretornolevaàorganizaçãodarealidade, segundoumsentido“secreto”,“simbólico”.Retornoquenãosedánodiscurso articuladodosujeito,masnossonhos,sintomas,lapsos,atosfalhos,esqueci-mentos,acting-out,emtudoqueconstituiatramaefetivadaexistência.Diante desta,osujeitoencontra-secomoquediantedeumdiscursoinscritoemlíngua estrangeira.2
QuandoFreudusaotermo“simbólico”,eleparecefazerreferênciaaodesejo, queserevela“estruturadocomoumalinguagem”,antesmesmoqueosujeito compreendaquehádiscurso.Demodoquetambémnaneurose,apesardeo sujeitoencontrar-sepresoàcadeiadalinguagem,algosedestacadele,provavel-mente,esseinarticuláveldeseudesejo,oqueFreudnomeouderecalcamento primário.
Napsicose,hádeinícioumconflitocomarealidadeexterior,eéaí,apartir desseprimeirotempo,queseproduzumarupturadoseloscomarealidade;daí anecessidadedeumsegundotempo,quecompenseessaperdaouquesubsti-tuaarealidadeperdidaporelementosquetomamemprestadosdomundodas fantasias,nuncasubmetidosaoprincípioderealidadeeúnicosmateriaisnos quaisnossosdesejosinfantisencontramsatisfação.Então,napsicose,aperdada realidadeocorrenumprimeirotempo,umtempoantesdoaparecimentodos delírios,osquaisconsistiriamnoesforçoquevisapreencherovaziocriadocom todosos“materiais”disponíveisdocampodasfantasias.
2“Umdiscursoéaquiloquedeterminaumaformadeliamesocial”(LACAN,1985,p.110).Lacanositua
Arealidade,portanto,nãoéhomônimaderealidadeexterior,eenquanto oneuróticoevitaumarelaçãocomarealidadepsíquicaerompecompartes desta,emprestando-lhedepoisumasignificaçãoparticular(simbólica,comoFreud nomeou),napsicosedá-seesburacamento,dilaceração,hiâncianarelaçãocom arealidadeexteriore,noseulugar,osujeitocolocasuaprópriarealidade,fa-zendoseuremendo.
Anegaçãoéumaviaquetomaremosparaenriquecerestadiscussão.Apresen-tadanumtextode1925,elaéumargumentodeFreud,quepermiteadiscussão deduascoisasimportantes:primeiro,apossibilidadedeinclusão“nodentro” dealgoposto“fora”,configurandoumatopologiadeextimidadeparaaCoisa,e quepermitiuaFreuddescreverasoperaçõesdeafirmaçãoeexpulsão(Bejahunge
Austossung )compondoosantecedentesnecessáriosparaacompreensãodasope-raçõesdedefesaqueencontramosnaneuroseenapsicose.Segundo,anegação importacomooperaçãoquepermiteaosujeitotirarconseqüênciasdofatode queforamperdidososobjetosqueforneceramasatisfação,ouseja,daperda instauradapordasDingnaentradadosujeitonalinguagem.Assim,aprovade realidadeganhaumestatutomaispreciso,namedidaquenãosetratadeuma correção(julgamento)oucontroledarealidadepsíquicapelamaterial,masela seconstituicomoaprópriaprovadoinconsciente,poiséaoperaçãoquerevela aausênciadaexperiênciadesatisfaçãoeanecessidadedesuapresençanocampo darepresentação.
Noensaiosobreanegação,aparecetambémaimportânciadodiscurso:o
não,quenãohánoinconscientedosujeito,apareceránasuafala.Senomear umacoisaafazexistir,negando-a,pode-sefalardelaemsituaçãodeexclusão oudediscordância.Freudvêaío“valordeíndice”domomentoemqueaidéia oudesejoinconscienteirrompenodiscurso,tantonaanálisecomoforadela. Comonãoosujeitoprofereoquenãoquersaber.Esuarelaçãocomarealidade psíquicaseconstróinesseparadoxo.
Para fazer o mundo representado, é necessária a exclusão de uma coisa pressuposta,delimitandoumcampoentreprazererealidade,correlativoaos processosprimárioesecundário,ouaoqueFreudchamouidentidadedeper-cepçãoeidentidadedepensamento,quedelimitamoscomocampodarealidade. Estarealidade
Este“apeloàordem”,estaprovaderealidade,segundoLacan,tornaindistin-güíveisosprincípiosdeprazerederealidade,poissefaznecessáriaumaretenção, uma obstrução para que o processo primário passe pelos laços significantes, comomododecessaraalucinação.
É,pois,sobreabateriasignificanteincorporadanadivisãodosujeitoque intervirãoasnegaçõesdosujeito.Eessaspermitemareintroduçãodosujeito excluídocomofaltanocampodasrepresentações,comolugardaenunciação, restabelecendo,assim,asrepresentações(Vorstellungen)nasuaautenticidadede significantesdoOutro.Demodoqueéovazioeaperda,introduzidosporessa operaçãosignificante,quevêmconferiralgumarealidadeaomundodosujeito. Estaé,entreoutras,aespecificidadedoqueapsicanálisepropõeàsquestões relativasàrelaçãoentrealinguagemearealidade.
Assim,seporumladoessaoperaçãonospermiteexplicarporquealguns sujeitos estão condenados a levar uma existência desprovida da sensação de realidadeeoutrosaumaexistênciaemquearealidadeseapresentapordemais animada,poroutrolado,estamesmaoperaçãonoscolocaacontundenteques-tãodoquefazarealidadesecontraporàalucinaçãoseambassãoprodutosdo mesmosubsolosignificante.
FreuddiznoEsboçodepsicanálise(1938)queoeu,combastantefreqüência,se encontraemposiçãodedesviaralgumaexigênciaqueachaaflitivadomundo externoeistoéfeitopormeiodeumanegaçãodaspercepçõesquetrazemao conhecimentoessaexigênciaoriundadarealidade.Segundoele,negaçõesdesse tipoocorremcompsicóticosecomfetichistas,masnãoapenascomeles,esão consideradas“meias-medidas,tentativasincompletasdedesligamentodareali-dade”(FREUD,1938/1986,p.233).
Aanálisedessasnegaçõespermiteestabelecerasdiferençasentreorecalque, aforaclusãoeodesmentido.Orecalqueéumafalhadetradução,um“empurrar paraolado”,umdeslocamentoparaoutrarepresentação,umfalsoenlaceque permitecertoganhoseosujeitobancaseupré-juízo,suaarbitrariedade;nele, oinconscientesabedarealidade,aconsciêncianão,elasóconheceelementos desprovidosdesentido.
Nodesmentido,arepresentaçãointolerávelédesmentidaaomesmotempo quesubsistesuaaceitação,tendocomoconseqüênciaumacisãonoeu;nele,a realidadeésubstituídaporoutrarecíprocaeestesubstitutonãoéumapercepção, massimumacrença.Seria,portanto,anegaçãodacrençaoquedemonstraa importânciadestanaconstituiçãodarealidade.
elançadonastrevasexteriores:esseforacluídoseráparasempre“ininscritível, parasempreilegível,parasempreindizível.Seráparasempreexcluídodahistória dosujeito,ondenuncamaisseráencontrado”(RABINOVITCH,2001,p.21).Por isso,aforaclusãonãodefineapenasumaoperaçãodedefesadosujeito,locali-závelnoaparelhopsíquico.Elainstauraumlugarexterioraosujeitoedistinto daqueledoretornodorecalcado:o“fora”.Masnessecaso,elanãoseriaentão generalizável?Oquedefineaforaclusãocomomecanismodapsicose?
Jacques-AlainMillerpropõeumaforaclusãodosujeitonaprópriaestrutura dalinguagem,apartirdeumargumentológicoquesustentaquealinguagem éumaparelhofracoparareferirarealidade,tesequetenhotentadoaquide-monstrar.Assim,aforaclusãodoNomedoPaifazumarestriçãoàforaclusão (generalizada).ONomedoPai,comosignificanteprivilegiado,produzumefeito designificação,asignificaçãofálica,queatuacomoumasinalizaçãodogozo. Emsuafalta(oudefeito)apareceumgozonãosubjetivado,foradetodosentido; emoutraspalavras,umrealexcluído,umaperdadovínculocomarealidade. Quandoessesignificanteprimordialseencontraforacluído,aparecearelaçãodo sujeitocomoreal.Asuplênciaaquiaparecenaformadodelírio.Millerafirma queaconstruçãododelíriosedá,justamente,nessepontonoqualovínculo comarealidadefracassa,dizendo:
“Chamodelírioumamontagemdelinguagemquenãotemcorrelatoderealidade, ouseja,aquenadacorrespondenaintuição.Chamodelírioumamontagemdelin-guagemconstruídasobreumvazio.Edigo:todomundodelira.Essaéaperspectiva quechamodedelíriogeneralizado.”(MILLER,1999,p.95)
Demodoqueseestamostodosnestaperda,nestevazio,oquenosimpede deserloucosseosignificantecomotalnadasignifica,seameraconsideração dalinguagemnosfazsuporumaforaclusãogeneralizávelouuma“clínicauni-versaldodelírio”?
EncontramosqueFreudtambémconfereàneuroseeàpsicoseuma“etiologia comum”,queseriaumaprivação(Versagung)darealidade,que,emúltimaanálise, ésempreexterna.Emsuaspalavras:“algumaprivaçãodesejantedarealidade (Wunschver-sagung)”quelhepareceintolerável(FREUD,1923-24/1986,p.191).Entendemos queaVer-sagen(sagen=dizer)configura-secomoumainterdiçãododizer,imposta pelapróprialinguagem,umaprivação.Issopodesedaremváriassituaçõese paratodos,demodoqueelanãoépatogênicaemsimesma,apossibilidadede adoecerestánomodocomoosujeitorespondeaela.
Paratentarresponderaestasquestões,retomoumartigode1936,noqualFreud descreveaRomainRollandumacontecimentovividoaovisitaraAcrópole,queele consideramarcadopeloquechamoudeinquietanteestranheza.TalcomoFreud,nessa estranhaexperiência,encontramosnanossaclínica,oumesmoemnossavidadiá-ria,muitosexemplosdessesentimentodeestranhezaquenoscolocadiantedealgo quevivemosemposiçãodeestranhaausência:issoquevejoéreal?Ounão?
AvivêncianaAcrópoleconfigura,naanálisequeFreudlhededica,oestatuto deumanão-crença(Unglaube):“Pelotestemunhodemeussentidosestouagorana Acrópole,masnãopossocrê-lo”(FREUD,1936/1986,p.238).Essanão-crença insereumelementodedúvidadarealidade,queofazpensarquetudopartede umfatooriginárionoqualsentiualgo“incríveleirreal”,quecompreendiaasua pessoa,aAcrópoleesuapercepçãodamesma.Essetriângulonosfazpensarnas coordenadasemqueosentimentoderealidadeseinsere,poisvemosqueentreo sujeitoquepercebeeopercebido,ouseja,oobjeto,háapercepção,queparece seralgoquedevesersustentadoporumacrença,casocontrário,produz-seum estranhamentodiantedesseobjeto.
Freuddiz:
“Esses estranhamentos são fenômenos muito singulares, pouco compreendidos ainda.Podemserdescritoscomo‘sensações’,massão,freqüentemente,complicados processosamarradosacertosconteúdoseenlaçadosadecisõessobreessesconteúdos. Muitofreqüentesemcertasdoençaspsíquicas,tampoucosãodesconhecidospara ohomemnormal,assimcomoasalucinaçõesocasionaisdossãos.Mascertamente sãoatosfalhos,deestruturasanormaiscomoossonhosque,apesardesuaaparição regularnapessoasadia,servem-noscomomodelodeperturbaçãoanímica.São observadosemduasformasdiferentes:oubemumpedaçodarealidadenosparece estranho,oubemumpedaçodopróprioeu.”(FREUD,1936/1986,p.242)
issoseriabomdemaisparaserverdade:Toogoodtobetrue.Expressaassim,emlíngua estrangeira,aexperiênciadealgoirrealizável,comoseosujeitofosse“fundamen-talmentecéticodiantedoadventodaquiloquelhetrariaproveito,doquepoderia satisfazê-lo”(MILLER,2005,p.299).Esepergunta,comahonestidadequelhe épeculiar:“Porque,noentanto,semelhantenão-crençafrenteaalgoque,pelo contrário,prometeumgrandeprazer?”(FREUD,1936/1986,p.239-240).
Adescriçãodestaexperiênciadeestranhamentodemonstraumdeslocamento doinacreditável:dofatodeveraAcrópoleparaaexistênciadamesma,persis-tindoaíumarecusaemcrer,umadescrença.Taldeslocamentorepousasobre adistânciaentreosignificanteeareferênciaevalorizaopoderdeirrealização doprópriosímbolo,“elidindoapresençadopercipiensemproldadúvidasobrea realidadedoperceptum”(MILLER,2005,p.256).Éumaexperiênciaquenosajuda asustentaraidéiadequeovínculocomoreferentepassanecessariamentepela questãodacrença,comomododeosujeitoassentir.
Oquevejoéreal?Comogarantirestacerteza?Oquemelevaacrernoque vejo?Ecomoéfeitoovínculoentreapalavraeoreferente?
REALIDADE,VERDADEECRENÇA
Foucaultajudaaretomaraquestãodoreferenteesuarelaçãocomapalavra,tão caraafilósofoselingüistas.Dizquenemsemprehouveumaseparaçãoentre aspalavraseascoisas,ounemsempresepensounesseencontrocomocontin-gente.Localizaestaseparação,emostracomoque,apartirdisso,cria-seuma novadisposição,naqualalinguagemdeixadeseraescritamaterialdascoisas, passandoaterseuespaçono“regimegeraldossignosrepresentativos”(FOU-CAULT,2002,p.59),oqueimplicaoaparecimentodeumnovoproblema,até entãodesconhecido:Comoreconhecerqueumsignodesignerealmenteaquilo quesignifica?Comopodeestarligadoàquiloquesignifica?
Essaquestãoserárespondida,naidadeclássica,pelaanálisedarepresentação e,naidademoderna,pelaanálisedosentidoedasignificação.Então,senum primeiro momento só há a representação, num segundo momento esta não representanadademodopuro(FOUCAULT,2002).Apartirdaidadeclássica, alinguagemsedesenvolvenointeriordarepresentação,numdesdobramento desimesma,desenrolando-senossignosverbaisqueamanifestam.Torna-se, dessemodo,discurso.Substitui-seoenigmadeumapalavraque“umasegunda linguagem deve interpretar” (FOUCAULT, 2002, p.109) pela discursividade essencial da representação. Ou seja, não se trata mais de desvelar o “grande propósito enigmático que está oculto sob os signos” do discurso, mas de se perguntarcomoelefunciona(FOUCAULT,2002,p.109).
fundadanasquestõesquealinguagemimpõeàrelaçãodohomemeseumundo (internoe/ouexterno),massimnovalorqueteráounãooimpulsoàverdade, edeondebrota.Umavezqueaficção,devendoasuaexistênciainteiramenteà linguagem,participadeummodoparticularderealidade,aquelaverbal,advinda deumradicaldescolamentodareferencialidadeimediata,oqueimportaseo signotomaporreferênciaumoutrosignoouobjeto?Asentidadesfictícias,ou seja,fingidaspelaimaginação,são,emverdade,fingidascomopropósitodeum discursoenãoénecessárioquetenhamsubstânciaalguma,poisnãoseancoram numarealidadeindicadapelapercepção,mas,sim,nummatizi-rreal,deuma existênciaimpossível,porémindispensável,ancoradoapenasnalinguagem.“O fictício,efetivamente,nãoéporessênciaoqueéenganador,mas,propriamente falando,oquechamamosdesimbólico”(LACAN,1959-60/1988b,p.22).
QuandoFreudnomeiacomoum‘distúrbiodememória’oquelheocorreu naAcrópole,apontaoquenãofunciona,adesarmonia,adissonânciaemsua relaçãocomarealidadeperceptiva,umvacilaremsuarelaçãocomarealidade externa,noqualotesourodaslembrançasencontra-seemperturbação,ope-rando-seumdesmentidocomodefesa.Assim,nãohádistúrbionarealidade perceptiva,naWirlichkeitnãofaltanada,maséumcampoarticuladoaodesejoe àcastração,poispartedeumafalta;daíanecessidadedequeametáforapaterna lhedêsuporte.Acrençaapontaaposiçãodosujeito,namedidaqueexpressa aquiloqueeleadere.Elaabre,portanto,adimensãodaverdade.
Então,oquetornaaverdadeefeitodeumdiscurso?
Nietzschedizqueanoçãodeverdadesurgemuitodepoisdacriaçãodeum acervolingüísticogeralquesirvaàsexpectativasdogrupo,geradopeladissocia-çãocrescenteentreaspalavraseseureferente.Anoçãodaverdadeéa“exigência dequeoempregodeumproferimentoobedeçaàquiloqueécostumeiramente admitidocomoseusentido”(NIETZSCHE,2005,p.13).Nãohavendoreferen-tesdadoseadmitindo-sequetodaregraparaodiscursoéarbitrária,averdade passariaavalertantoquantoqualquerconveniência.
“Queéentãoaverdade?Umexércitomóveldemetáforas,demetonímias,dean-tropomorfismos,numapalavra,umasomaderelaçõeshumanasque,forampoética eretoricamenteintensificadas,transpostaseadornadasequedepoisdeumlongo uso,parecemaumpovofixas,canônicasevinculativas:asverdadessãoilusõesque foramesquecidasenquantotais.Metáforasqueforamgastasequeficaramesvaziadas deseusentido,moedasqueperderamoseucunhoequeagorasãoconsideradas, nãosócomomoedas,mascomometal.”(NIETZSCHE,2005,p.13)
conhecido,aincongruênciadaconvençãoqueestabeleceoqueeleé.Oquenos levaaconstatarqueosimbóliconãodescreveaverdade,ouquenãoháverdade aserdescritapelosimbólico.Averdadetemestruturadeficção.
Oimpulsoàverdaderequerqueamantenhamosnumcampodealgoque brotadoficcional,poisapenasdestemodopodemosnosaproximarumpouco melhordeseureal.PensoqueLacanintroduzotermosemblant para,entreou-trascoisas,posicionarquenãohárealidadepré-discursiva:homens,mulheres, criançassãosignificantes,comodiznoSeminário20.Oquevaiparticularizaro discursoanalíticoéaidéiadequeaosignificantedaremosumaleituradiferente doqueelesignifica.Estáaíanoçãodeescutaquedeixaaodiscursoanalíticoo potencialdeser“umdiscursoquenãoseriadosemblant”.Comonojogodo sem-blantdeCallois,adimensãodaverdadefazato,“fazsemblant”talqualaposição doanalista,comoLacanvaipensá-la:efeitodosemblant.
AWirklichkeit ,portanto,éefeitodediscurso,efeitodoatoquefazaverdadeapa-recer.Eacrença?Pensemosumpoucoaseurespeito,restringindosuaabordagem, noentanto,aosescritosdeFreud,quandoabordaotemadoassentimento.
EmMoiséseomonoteísmo,pensandosobreaquestãodacrençanumdeusúnico, Freuddefendeatesedequeéarenúnciapulsional,sobapressãodaautoridade quesubstituieprolongaopai,oquetransformaosagradoemalgoquenãose podetocar,proibiçãocujotomemocionalforteesemnenhumabaseracional sópodesergarantidaporumassentimentodosujeitoàleidopai,queésuce-didapelaleisagrada.Oqueanteseraavontadedopai,passaaser,apartirdo assentimentodosujeitoaessalei,algoquesecrê,algosagrado.
Acrençaéaatitudedequemconhececomoverdadeiraumaproposição, portanto,éaadesãoàvalidadedeumanoçãoqualquer,quenãoimplicaporsi sóavalidadeobjetivadanoçãoàqualaderenemexcluiessavalidade.
NotextodaAcrópole,Freud,aodiscutiradescrença,ponderaqueaidéiaque lheocorreu,bemcomoaperturbaçãodalembrança,sedeuemdecorrênciada seguintehipótese:“percebe-seprecisamentequenaqueletempo(docolégio),no inconsciente,nãoseacreditounisso;somenteagoraseadquiriaa convicção(Überzeu-gung)queseestendeaoinconsciente”(FREUD,1936/1986,p.295/296).Mesmo afirmandoserdifícildemonstraressahipótese,deixa-anotextomarcandouma diferençanostermosquenoslevaapensarquenarelaçãoaoinconscientenãose trataapenasdocampodacrença.Decanta-sedanecessária“construçãoemanálise” nãoapenasacrença,mastambémaconvicçãonaexistênciadoinconsciente.O termo‘convicção’apareceemoutrosmomentosdaobradeFreudsempreligado aotrabalhoinconsciente.Numapesquisaetimológica,3encontramosque‘crença’,
3DictionnairedêsRacinesdesLanguesEuropeennes:Croyance:raizindoKret
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emsuaraizKret, reportaàidéiadecrençareligiosa,dafé,enquantoapalavra‘con-vicção’apontapara‘combater’,‘convencer’,estandomaisligadaaoqueseextrai doinconscientecomotrabalho,trouvaille,dizLacan(LACAN,1971-72)usandouma palavradesualínguaquefazumjogocomapalavratrabalhoeaexpressãoachado noburaco,ouseja,umtrabalhoquerequeraparticipaçãodosujeito.
Assim,paradefender-sedasacusaçõesdequeapsicanálisefuncionapormeio deargumentosapologéticos,umavezqueàsproposiçõesdoanalistatantofazse oanalisanterespondasimounão—osiméaxiomático;onãoéresistência—, Freudirá,emConstruçõesemanálise,reafirmarosdireitosesquecidosdoanalisante, atravésdaidéiadoassentimento(ASSOUN,1990).
Freudvênaconstruçãodoanalistaumtrabalhopreliminar,quesóiráse completar quando o analisante autenticar a construção, vinculando-a ao seu própriomovimentoderememoração.Portanto,“nadapedeaosujeitoverbal doassentimento”(ASSOUN,1990,p.68)encontra-onosujeitodoinconsciente, masàreveliadesuaprópriaverbalização.Cabeinteiramenteaoanalisantetal iniciativa.“Comonocasodanegação,existeaía‘marcadefábrica’,queassegura aproveniênciainconsciente”(ASSOUN,1990,p.68).
Lacandizqueoinconscienteé“ocapítulodeminhahistóriaqueémarcado porumbrancoouocupadoporumamentira:éocapítulocensurado.Masaver-dadepodeserreencontrada;namaioriadasvezesjáestáescritaemalgumlugar” (LACAN,1998,p.260).Nosemináriosobreosaberdopsicanalista,eledizquea palavradefineolugarquesechamaaverdade,masqueaverdadenãodiztoda averdade,ouelaodizAutre-ment(avecumgrandA),ouseja,o“Outro-mente”;ora, édissomesmoquetrataapsicanálise:dedesvelarcomoseorganizamasficções dodesejodosujeito,numafabulaçãosuportadasomentepelalinguagem;ouseja, doladodaverdadedosujeitonãohánenhumenraizamentonumareferência àrealidadecomotal,massomenteadimensãodoverossímil,queéumadiz-mensão,dit-mansion,poisaverdaderesidenummeio-dizer,testemunhadodesde umlugarOutro.OtestemunhodesuaveracidadeficafundadonoqueoOutrose constituicomoolugarqueosignificantesecoloca,naquiloqueoinconsciente éodiscursodoOutro.Apalavraéelamesmaagarantiadaautenticidade.A mentiraédeestrutura,ouaverdadetemestruturadeficção.Mas,Lacanmarcou issocomoS(A):olaçodapalavraaogozo.
“Issonosfazverque,paraapsicanálise,averdadeécomplexa,desdobradaemficções enãoenunciadadeformasimplesedireta.ComodisseLacanemseutexto‘ACoisa freudiana’,elaexigeumpercurso,éhumilde.Euacrescentariaque,porcaracterística mesma,elaésoberba,poiséalheiaàrealidade.Elaéefeitodainadequaçãoentrea palavra.Oatodefalanãoadiz,anãoserporalusão.”(PINTO,1999,p.72)
Todaessaproblemáticaestáligadaaofatodenãohaverumreferenteparao discurso;assim,tantoaverdadeporcorrespondênciacomacoisa,averdadeda adequação,quantoaquelaancoradanacoerênciaentreostermosdaassociação livre,sãoinsuficientesparacaracterizarasrelaçõesentreosignificanteeoreal (nostermosemqueapsicanálisetrabalha).Odiscursosesustentapormeiode um“grampeamentoarbitrárioefetuadoporumelementodoprópriodiscurso,e quenosdáosemblantdeumreferente.Issonospossibilitaolaçosocialefazcom quenãovivenciemosodiscursocomodelirante”(PINTO,1999,p.72).
Mascomosedáessegrampeamento?
A pesquisa da questão do assentimento nos textos freudianos leva-nos a constatarqueesteestáligadoàquestãodaautoridade—creréobedecer;tal autoridademantémosujeitoenlaçadoaumsignificanteordenadorquefaza funçãodaprovaderealidade.
Assoundizqueportrásdofatodequeumsujeitoesteja“propenso”aaceitar umconteúdoexplicativodizendo:“Éexatamenteisso”,esconde-seaquestãoda autoridadedoanalistanatransferência(ASSOUN,1990).
Freudfalasobreisso,notextoPsicologiadosgruposeanálisedoeu(1921).Quando comparaarelaçãohipnóticaaogrupo,dizquedestacomparaçãopodemosiso-larumelementorelevanteaoestudoqueéocomportamentodoindivíduoem relaçãoaolíder.Chama-lheaatençãoqueoassentimentoquesefazaolíder, ouaohipnotizador,mantémosujeitonumestadode“sujeiçãohumilde”ecolo-caohipnotizadoroulídernolugardeidealdoeu.Conclui,numaafirmação acrescentadaaotextoem1923:
“Ohipnotizadorconstituioúnicoobjetoenãoseprestaatençãoamaisninguém quenãosejaele.Ofatodeoeuexperimentar,demaneirasemelhanteàdosonho, tudooqueohipnotizadorpossapedirouafirmar,relembra-nosquenosesquece-mosdemencionarentreasfunçõesdoidealdoeuatarefadeverificararealidade dascoisas.Nãoadmiraqueoeutomeumapercepçãoporreal,searealidadedela écorroboradapelainstânciamentalqueordinariamentedesempenhaodeverde testararealidadedascoisas.”(FREUD,1921/1986,p.145)
Estaquestãoérelevantequandopensamosaclínicapsicanalíticacomouma clínicasobtransferência.Searealidadenãoseconstituicomoalgoquetemexis-tênciaontológicacomumatodososindivíduospertencentesaumgrupo,mas, aocontrário,vematingirosujeitonopontomesmoemqueumadeterminação ligadaaeleemergecomoverdade,elasóseráreconhecidacomosuarealidade, sustentáculo de sua fantasia, se ele estiver assentido nessa determinação que exercesobreeleumpoder.
Trabalhando essa questão em outras referências, podemos dizer que o significantesópoderá“fazersociedadedesignificantes”(LACAN,1970-71, p.14) por intermédio da eleição arbitrária de um significante qualquer comomaître-mot(Palavra-AmoouPalavra-mestre)quefazafunçãodolaço (MILNER,1999).
Milnersustentaousodeumatopologiaborromeanaparapensaroenla-çamentodostrêsregistros(R,SeI)naanálisedaquestãodovínculocom arealidadeeafunçãodessesignificantequalquercomoPalavra-Amo.Para ele,arealidadetorna-senossaPalabra-Amo:nomequeestáenlaçado(nonó Borromeu), dando corpo a nossas crenças infatigáveis. Essas crenças são, emsuaspalavras:“asistemáticasinonímiadosUnseapossibilidadeúltima dedominaroshomônimos”4(MILNER,1999,p.72).Arealidadetorna-se referência, quando separada de toda a palavra, mas, por outro lado, em conseqüência da sinonímia, ela é sempre dizível. O enodamento permite formasdeencontrocontingente,quetocaoUmdecadaregistro(R,SeI), conseguindo,assim,umanomeaçãoreal,umnomequeéoresumodetoda sinonímia contingente do Um. Na clínica, chamamos esse representável contingentedecaso,umnomepróprioouorealdeumaposiçãosubjetiva, singular.Chamamosaesseencontrodesentido,quandooefeitodeverdade deumproferimentoseseparadesuassignificaçõesrepresentáveiseexcede seu material significante. Por fim, chamaremosverdade a algo que aponte paraoefeito(oefetivo)resultantedeumenunciado,nomomentodesseato (MILNER,1999).Porisso,podemosdizerqueoverdadeiro,arealidadeeo
semblant sãodamesmaordem(MILLER,1992).Essaordeméadonó(Bor-romeu),queenodaostrêsregistros(R,SeI).
Concluindo,osujeitolidacomumarealidadeprecáriaporestarnalinguagem. Porsuavez,odiscurso(apartirdoqualseconectaaoreferente)sópermite referiralinguagemàrealidadeaocolocá-lasoboregistrodosignificantemestre ouPalavra-Amo.Arealidadedepende,paraseconstituir,daeleiçãoarbitráriade
4Milner,J.-C.(1999)Homonímia:freqüênciaouocorrênciadenomesiguais.Sinonímia
umsignificantequalquercomoPalavra-Amo,cujaconsistêncialógicaapóia-se, emúltimainstância,sobreabaseilógicadoassentimento,queéumacrença, umaapreensão,umato,queexigedosujeitoaadesãoaumanormaquenão demonstrasuarazãodeser.Noentanto,essepontoencerraapossibilidadede dispersãoradicaldarealidade,masnãodependedeumcálculosubjetivo.Aor-denaçãodoreferentepelaPalavra-Amo,deriva,portanto,deumprincípioque sópodeseexercersenãoforquestionadopelosujeito.
Trata-sedeumprincípioquedeveterinquestionavelmenterazão,porsera própriapossibilidadedejulgamentofactualsobreverdadeeerro,oquetornaa realidadeumarazãoquenãoseexplica.
Opsicóticocontestaesseprincípiodeordenaçãodiscursivadosignificante quenãoseexplica.Aperdadarealidaderesultariadesuarecusaemaceitara coesãoarbitráriadarealidadeimpostapelaPalavra-Amo.Aforaclusãoincide nãopropriamentesobreosignificante,massobreafunçãodecomandoquelhe deveriaseratribuída.
SegundoMilner,aPalavra-Amoautorizatodoenunciadoqueseprofere,e se todas são desvalorizadas nenhum enunciado será válido; esse desprezo se estenderádosconjuntosdizíveisatudooquesediz,aofatomesmodequese diga.Naesquizofreniaháa“línguadeórgão”;oórgãonãoseseparadapalavra, coisaepalavraseconfundem.OOutronãoseseparadedasDing,oolhoseolha, abocasecome,avozsefala,apulsãonãopassapeloOutro.“Oburacoéum buraco”(FREUD,1917-1915/1986).
Assim,sepensamosarealidadecomoefeitodoreal,elaseriauma“ordem”(e aíexploramosotermocomoLacannosdá)deestabilidadelógica,eacreditamos quetambémtopológica,queligaelementoselevaaoefeitonecessáriodeorde-namentodomundoemumsistemaregular.Talsistemapossui,portanto,uma consistêncialógicaeprescreveumsentido—oquechamamos‘discurso’.
Otermo‘realidade’assinaoquechamamosumacoisa,seustraços,seulugar eseunome;nãosem,contudo,reivindicarseuestatutodereal.
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