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Cartografia afetiva de um grupo de gestão autônoma da medicação em uma cidade do interior do nordeste brasileiro

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE-UFRN ESCOLA MULTICAMPI DE CIÊNCIAS MÉDICAS-EMCM

PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM ATENÇÃO BÁSICA TRABALHO DE CONCLUSÃO DA RESIDÊNCIA

IASMIN SHARMAYNE GOMES BEZERRA

CARTOGRAFIA AFETIVA DE UM GRUPO DE GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO EM UMA CIDADE DO INTERIOR DO NORDESTE BRASILEIRO

Currais Novos, Rio Grande do Norte 2020

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CARTOGRAFIA AFETIVA DE UM GRUPO DE GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO EM UMA CIDADE DO INTERIOR DO NORDESTE BRASILEIRO

Projeto de Trabalho de Conclusão da Residência Multiprofissional para obtenção do título de especialista em atenção básica, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade da Saúde do Trairi (FACISA) sob o parecer nº 18056319.0.1001.5568, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Orientado por: Profª. Drª Ana Karenina de Melo Arraes Amorim.

Currais Novos, Rio Grande do Norte 2020

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CARTOGRAFIA AFETIVA DE UM GRUPO DE GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO EM UMA CIDADE DO INTERIOR DO NORDESTE BRASILEIRO

Projeto de Trabalho de Conclusão da Residência Multiprofissional, apresentado a Escola Multicampi de Ciências Médicas do Rio Grande do Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte das exigências para obtenção do título de especialista em atenção básica.

Caicó, __ de _________de____.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

Prof.ª Ana Karenina de Melo Arraes Amorim (Orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Departamento de Psicologia

_____________________________________

Prof.ª Raquel Littério de Bastos (Co-orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Escola Multicampi de Ciências Médicas do Rio Grande do Norte

_____________________________________

Carlos Eduardo Silva Feitosa (Professor avaliador) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Departamento de Psicologia

_____________________________________

Kleylenda Linhares da Silva (Professora avaliadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho a memória do meu grande amigo, professor, mestre, louco, companheiro de leituras e de militâncias antimanicomiais, Mário Alberto Dantas. Seguimos juntos, na luta por uma sociedade sem manicômios...

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AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, amiga e companheira de militâncias antimanicomiais, Ana Karenina Arraes. Pelas aberturas e por tornar possível outros modos possíveis e sensíveis de viver a vida e a academia.

A minha grande amiga, Clarissa Guerra, por me proporcionar a virtude da amizade e as forças afetivas das trocas literárias.

Aos meus irmãos, Eva e Tiago, por me mostrarem que família não é sobre sangue, mas sobre lugares.

As mulheres da minha família, minha mãe Conceição, minhas tias Olivia e Socorro e a minha avó Odiva Gomes, pela força e pela coragem feminina. Sobretudo, pelo cuidado.

Ao meu amor, Ingrid, por me ensinar a importância de confiar no tempo e na vida.

Aos meus amigos multiamores, Rafaella, Jéssica Rocha, Jéssica Keicyane, João Paulo, Gabriella, Pauliane e Úrsula por fazerem da residência multiprofissional uma verdadeira jornada coletiva e por me ensinarem sobre a importância dos diferentes saberes em nossas vidas.

A Mattheus Rocha, Indianara Fernandes e Marcelle Janine, por me inspirarem outros modos de fazer psicologia e por acreditarem na força afetiva dessa profissão militante.

A Claúdia, Valeska e Rosário, pelo cuidado proporcionado através da sabedoria que há no tempo e no ser mulher.

As mulheres do grupo “GAM – MULHERES”, por viverem comigo uma de minhas maiores revoluções. Por terem feito de mim, psicóloga. E sobretudo, por me ensinarem a importância do feminismo, ao apostarem no espaço da residência como um lugar de resistência.

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“Acho que invento a felicidade para compor todas as coisas e não haver preocupações desnecessárias. E inventar algo bom é melhor do que aceitarmos como definitiva uma qualquer realidade má. A felicidade também é estarmos preocupados só com aquilo que é importante. O importante é desenvolvermos coisas boas, das de pensar, sentir ou fazer”.

(O paraíso são os outros, Valter Hugo Mãe)

“Acho que devemos permitir não só pessoas e estados de consciência marginais, mas também o que é incomum ou divergente. Defendo vigorosamente os divergentes. E também penso, é claro, que seria impossível que todos fossem divergentes – é obvio, a maioria das pessoas tem de escolher uma forma central de existência. Mas em vez de nos tornarmos cada vez mais burocráticos, padronizados, opressivos e autoritários, por que não permitimos que mais e mais pessoas sejam livres? ” (Susan Sontag – entrevista completa para a revista Rolling Stone)

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SIGLAS E ABREVIATURAS

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial RAPS – Rede de Atenção Psicossocial GAM – Gestão Autônoma da Medicação NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família UBS – Unidades Básicas de Saúde

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1- INTRODUÇÃO E CAMPO PROBLEMÁTICO ... 9

2- OBJETIVOS ... 17

2.1 Geral:... 17

2.2 Específicos: ... 17

3- ASPECTOS METODOLOGICOS ... 17

3.1 Caraterização teórica do estudo: ... 17

3.2 Aspectos éticos: ... 20

3.3 Local e população: ... 21

3.4 Critérios de Inclusão e Exclusão: ... 21

3.5 Procedimento para coleta e análise dos dados: ... 22

4- RESULTADOS E DISCUSSÕES ... 23

4.1 A PRODUÇÃO DO SOFRIMENTO PSIQUÍCO NO FEMININO: mulheres como corpos passiveis de medicalização ... 24

4.2 DO (DES)CONHECIMENTO AOS EFEITOS (IN)DESEJADOS: da obscuridade dos medicamentos psiquiátricos à luz sobre o seu conhecimento ... 30

4.3 A GAM COMO DISPOSITIVO PARA ABERTURAS: participação política entre o cuidado de si e movimentos de cogestão ... 38

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 45

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1- INTRODUÇÃO E CAMPO PROBLEMÁTICO

Em tempos de soberania do modelo capitalista, no qual as forças dominantes se expandem por meio de poderes institucionais, no intuito de circular e permanecer impondo normas hegemônicas, a subjetividade na contemporaneidade incide sobre a criação de formas de ser, de pensar, de sentir e agir, traçando formas de como se deve existir (PELBART, 2011). Nesse sentido, a produção de subjetividade dissemina significados e sentidos homogeneizantes que intervém sobre a vida das pessoas e na sua relação com o mundo, fornecendo e corroborando para a legitimidade de modos de viver que se aproxime de uma ideia de normalidade.

Para Foucault (2005), a normalidade no contemporâneo vem se configurando desde o período do marco da biopolitica entre meados do final do século XVII e início do século XVIII, sendo associada como suposta forma ideal e legítima de vida, e assim, erigindo barreiras sobre o que seria anormal. Nessa lógica, que traça uma linha entre normal e anormal, ao invés de administrar as diferenças, a biopolitica passa a querer eliminar o que foge dos parâmetros estabelecidos a normalidade. Em consequência, surge o poder sobre a vida, sobre os meios de reprodução e de governo dos corpos, que podem dizer quais tipos de vidas podem existir ou deixar de existir.

Dessa maneira, Foucault (2005) compreende que a biopolítica corresponde ao poder sobre a vida da população, assegurando os ideais da normalidade diante do controle da natalidade, da saúde, da mortalidade e da reprodução, tentando prever ameaças e desvios a essa ordem, para extingui-las. E é a partir disso que a biopolitica passa a requisitar da psiquiatria uma intervenção médica que possa extinguir os que desviam da normalidade, uma vez que, as instituições psiquiátricas podem demarcar as fronteiras do que seria um comportamento normal ou patológico. (CAPONI, 2014).

Tais acepções, nos direcionam a pensar sobre o fenômeno da medicalização. Esse conceito pode ser compreendido quando fatores de origem “não-médica”, como experiências e comportamentos próprios da condição humana, passam a serem alvos de intervenção da medicina, operando mecanismos de produção de subjetividade sobre os indivíduos, a partir da influência do poder médico que passa a ser determinante na contemporaneidade. Motivo disso, diz respeito a psiquiatria ao longo da história, ter

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fixado o seu território institucional sobre a vida nos processos do que seria normal-patológico, deixando a população dependente de um ideal de normalidade. Em decorrência, mesmo que esse fenômeno parta da linguagem médica\psiquiátrica, ele não se restringe a ela, podendo estar presente em práticas e discursos de outros profissionais de saúde. Além de que, nos dias atuais, sua abundância discorre por meio de diagnósticos de transtornos mentais que corroboram exacerbadamente para o uso indiscriminado de psicofármacos. (CARVALHO et al., 2015; CAPONI, 2014; ZORZANELLI, ORTEGA; BEZERRA JÚNIOR, 2015).

Dado o conceito de medicalização ser complexo e abrangente, porque não se restringe apenas ao uso de medicamentos, mas a práticas e discursos sociais que reduzem a complexidade da vida humana a questões individuais, orgânicas e psíquicas com intuito de controlar a vida e a sociedade. A medicamentalização, como extensão desse fenômeno se refere ao tratamento de problemas considerados antes “não-médicos”, em que posteriormente, não existia intervenções psicofarmacológicas para tal. (BRASIL, 2019; FORÚM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE E DA EDUCAÇÃO, 2015)

Visto isso, e ao considerar a medicalização, como um processo que ganha maiores proporções no Brasil, principalmente, sobre populações-chaves para o Ministério da Saúde (2019): crianças em idade escolar, adolescentes e adultos em privação de liberdade, usuários que necessitam de atenção à saúde mental e pessoas com mais de 60 anos. Este fenômeno torna-se evidente quando observamos a medicamentalização crescente no país na última década.

Chama a atenção, por exemplo, o debate em torno do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e seu correspondente tratamento medicamentoso, a Ritalina - principal nome comercial do fármaco Metilfenidato, medicamento psicoestimulante. Segundo dados do Fórum sobre Medicalização da Sociedade e da Educação (2015), no Brasil, a Ritalina teve um crescimento de venda de quase 59.000 caixas em 2009 para aproximadamente 108.600 em 2013 - mais de 180% em quatro anos. O clonazepam (psicotrópico benzodiazepínico), por sua vez, prescrito para transtornos de ansiedade e de humor, também foi uma das substâncias que obtiveram grande crescimento na dispensação nos últimos anos: de quase 268.000 UFD (unidades físicas dispensadas) em 2008, pulou para quase 4.800.000 em 2013. Seu maior correspondente comercial, o Rivotril, trata-se de um dos medicamentos mais consumidos no país, ocupando o lugar de 13º em 2012 e, no ano seguinte, o Brasil tornou-se seu maior consumidor mundial desse medicamento.

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Faz-se necessário ressaltar que os medicamentos são recursos importantes para o cuidado e tratamento das pessoas, no entanto, o seu uso abusivo, acrítico, inadequado e, por vezes, desnecessário pode leva-las a sérios problemas de saúde, podendo chegar a serem causa de óbito. Tal apontamento, envolvendo o uso inadequado de psicotrópicos, pode ser justificado por uma série de fatores, dentre eles estão: a falta de conhecimento adequado sobre prescrição e uso, influências econômicas em todos os níveis, falta de sistemas reguladores adequados, fatores culturais, crenças comunitárias, falta de comunicação entre prescritores e pacientes e falta de informações objetivas sobre medicamentos, combinadas com sua promoção comercial. (WHO, 2005; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019).

Dessa forma, no que tange ao crescimento exacerbado do uso de psicofármacos no Brasil, como faceta para questionar o processo de medicalização, o presente trabalho chama a atenção para esse fenômeno, especificamente dentro do campo da saúde mental, uma vez que os valores psiquiátricos têm estabelecido um grande legado sobre a captura do sofrimento psíquico através da apropriação da loucura.

Ao considerarmos esse problema no campo da saúde mental, a medicalização expressa-se através do processo de psiquiatrização da vida. Dessa forma, os exercícios de poder da psiquiatria na contemporaneidade operam através da multiplicação de diagnósticos de transtornos mentais que se tornam cada vez mais comuns, levando-nos a questionar se trata-se, efetivamente, das condições sociais atuais que promovem mais adoecimento, ou se trata-se de uma banalização da tarefa diagnóstica por médicos com perdas ou enfraquecimento na sua capacidade de operar a clínica, restringindo sua tarefa à identificação de sinais e sintomas a partir das classificações diagnósticas.

Caponi (2014) discute a psiquiatrização da vida como um processo que se alarga em tempo de grande medicalização do social, pela qual a psiquiatria é capaz de definir como patológico, processos existenciais e sofrimentos psicológicos comuns, transformando-se num domínio de saber e de intervenção ao mesmo tempo intra e extra-asilar. Nesse sentido, os exercícios de poder da psiquiatria vão além da qualificação das psicopatologias em sentido estrito, categorizando os sofrimentos psicológicos comuns à condição humana, tais como o luto, a ansiedade, o medo, como “patologias leves”.

Essa problemática pode ser exemplificada pela classificação dos transtornos mentais de caráter universalista, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental

Disorders (DSM) ressaltada “bíblia” da psiquiatria, criada em 1952, que em tempos

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evidente a patologização de comportamentos que vem sendo apontados no DSM, a qual desde seu nascimento tem passado por várias modificações ao longo de seu percurso. Hoje, encontra-se na sua quinta edição (DSM-V), gerando críticas, controvérsias e polêmicas, no meio científico americano. Críticas estas feitas pelos próprios psiquiatras ligados à própria The American Psychological Association (APA), em razão do exacerbado cardápio de signos e sintomas, que ao serem apontados como causa de sofrimento psíquico, passam a ser circunscritos como patologias (SOALHEIROS; MOTA, 2014). Exemplos disso são o TDAH, agora não mais restrito apenas a idade da infância, mas também na vida adulta; o processo do luto, agora caracterizado como depressão, e o transtorno disfórico pré-menstrual, considerado também como compulsão alimentar.

A evidência de que o DSM é um dispositivo que não alcança os limites das singularidades, por se basear nos princípios da universalidade, imparcialidade e neutralidade cientifica. Isso pode ser percebido quando consideramos a história, por exemplo, da questão da homossexualidade que foi considerada por muito tempo como doença/transtorno mental e que, com a luta do movimento gay, passou por mudanças significativas até sair das classificações nosográficas na versão do DSM-IV, sendo considerado apenas entre as possibilidades de orientação sexual. Assim, ao afirmar e indagar como um estilo de vida próprio poderia ser patológico, também ao conseguir alicerce com outros movimentos sociais, visibilizando suas reivindicações e ganhando suporte no meio cientifico e acadêmico, o movimento dos gays, sai da armadilha da medicalização e conquista seus próprios direitos políticos. (FREITAS; AMARANTE, 2015).

Nessa medida, podemos perceber que o fenômeno da medicalização, por mais que seja pertinente dentro da esfera da cientificidade médico-psiquiátrico, não se restringe ao campo delimitado, devido o DSM acabar “sendo um instrumento adotado pelas políticas de saúde mental, no extremo, sendo utilizado como uma lista para configuração de diagnósticos. ” (SOALHEIRO; MOTA, 2014, p. 74).

Anterior a implantação do Sistema Único de Saúde – SUS, o modelo biomédico de atenção à saúde era priorizado, ou seja, tinha-se por noção que saúde significava a ausência de doenças e o acesso aos serviços de saúde se centralizavam em hospitais filantrópicos e privatizados. Assim, restringindo o cuidado em saúde a práticas assistencialistas e privatistas, o que evidenciava o caráter discriminatório da política

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pública de assistência à saúde, em virtude da “indústria da doença” e a “indústria da loucura” legitimadas pela medicina\psiquiatria moderna, excluía os desviados da normalidade de cuidados dignos e humanizados. (FOUCAULT, 2014; ZAMBENEDETTI; SILVA, 2008).

Nesse passado histórico, marcado pelo caráter meritocrático da saúde e pela ausência de políticas públicas de saúde acessíveis a toda população, ainda quando o país vivia sob um regime autoritário, o movimento sanitário entre os anos de 1970 composto por professores, pesquisadores, trabalhadores, sindicatos, associações e partidários da esquerda haviam começado a defender um modelo de saúde que iria de contraponto a uma visão reducionista e biologizante da doença. Deste modo, passaram a defender um modelo de saúde não mais dentro das concepções da medicina hegemônica, mas como fatores multifacetados e complexos, não reduzido apenas a seu caráter biológico e relacionados a determinantes e condicionantes sociais que refletem em um estado de bem-estar biopsicossocial na vida das pessoas. (PAIM, 2008).

Dessa maneira, os desdobramentos contra hegemônicos da Reforma Sanitária Brasileira, ao defender um novo olhar sob a dimensão dos polos saúde\doença, na interface com o campo da saúde mental, significava igualmente romper com o conceito de doença mental legitimado pela psiquiatria pineliana. Nessa ruptura, a Reforma Psiquiátrica Brasileira inspirada nos ideais democráticos da psiquiatria Italiana influenciada por Franco Basaglia, surge igualmente nos anos de 1980, com a consolidação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) que reivindicava o fechamento de hospitais psiquiátricos, denunciando as violências asilares e a mortificação da vida de pessoas atravessadas pelo estigma da loucura, dentro desses espaços. Desta forma, se consolida o movimento da luta antimanicomial também com apoio de profissionais, usuários e familiares do campo da saúde mental, que passaram a lutar a favor da desinstitucionalização da loucura, apostando na criação de serviços abertos a comunidade para acolher a pessoa em sofrimento psíquico que substituíssem o modelo asilar hospitalocêntrico. (AMARANTE, 2013).

Assim, com as conquistas das lutas advindas por esses movimentos sociais, foi criada a Constituição Federal de 1988, que consolidou a lei 8080/90 dispondo na criação de um Sistema Único de Saúde (SUS), refletida por uma política pública democrática que direciona a saúde como direito de todos e dever do Estado, palpada nos princípios da universalidade, da integridade, da equidade e da participação popular.Dentro do âmbito

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do SUS, a Política Nacional de Atenção Básica, portaria nº 2.436, de 21 de setembro de

2017, diante das Unidades Básicas de Saúde – UBS e através da Estratégia da Saúde da

Família – ESF composta por equipe multiprofissional, supera o modelo hospitalocêntrico como único lugar de cuidado e prioriza a atenção primária à saúde, objetivando atuar em territórios específicos na comunidade inserida, para promover estratégias de promoção, prevenção e redução de agravos a doenças da população. (BRASIL, 2017).

Especificamente no campo da saúde mental, outro ganho federativo foi conquistado e legitimado pela lei n. 10.216\2011, (BRASIL, 2001) que cria a Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, sendo instituída para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, dispondo de serviços abertos à comunidade, como a Rede de Atenção Psicossocial – CAPS, que substituem o modelo manicomial de atenção hospitalar. (BRASIL, 2011) Diante da conexão entre esses dois campos de atuação, a Saúde Mental começou a ser pensada na Atenção Primária, através da criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF, direcionada pela portaria

nº 154 de 24 de janeiro de 2008, e alguns dos seus princípios norteadores são o trabalho

intersetorial, interdisciplinar e multiprofissional dentre as práticas dos profissionais de saúde, visando a reabilitação psicossocial, a desinstitucionalização, a promoção da cidadania e construção da autonomia das pessoas em sofrimento psíquico. (BRASIL, 2008).

Todavia, mesmo que esses serviços tenham sidos criados para promover o cuidado em saúde mental, Onocko-Campos et al (2011) afirmam que vários sistemas de saúde, mundialmente, apontam dificuldades na relação entre ambas, e uma delas surge em consequência do crescimento exacerbado da medicalização dos problemas sociais. Perrusi (2015) também sinaliza que a patologizacão pelos critérios diagnósticos sustentados pela biomedicina, continua a predominar o campo da saúde mental, em razão do fato de que, o tratamento neste espaço continua a ser centralizado nos medicamentos psicotrópicos. Dessa forma, outros meios de tratamento são deixados em segundo plano e muitas vezes, sendo os medicamentos a única opção.

Ao chamar atenção para esse problema, Severo e Dimenstein (2009) analisaram o efeito do diagnostico psiquiátrico na vida de pessoas em serviços substitutivos de saúde mental em Natal/RN. Após serem diagnosticadas, segundo seus prontuários com

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G40 doença convulsiva e, em sua maioria F20.0, esquizofrenia, enfatizando o que se refere ao consumo de medicamentos, as autoras mostraram como o uso dos psicotrópicos aparece constantemente nos relatos das pessoas entrevistadas. Discursos como: “eu me conscientizei e até hoje tomo a medicação. Eu sou louco para tomar a

medicação, porque eu sei que tenho necessidade da medicação”, implica que, para essas

pessoas, a relação medicamentosa as manteriam dentro da configuração da normalidade, já que evitaria o aparecimento de sintomas atribuídos a loucura.

Ao visualizar o desejo por medicamentos, a submissão ou aceitação naturalizada diante dos critérios diagnósticos, percebe-se a ausência da autonomia das pessoas em questionar essa realidade (IILLICH, 1975). Esse fato chega a ser predominante no campo da saúde mental, porque o poder médico-psiquiátrico, muitas vezes, aparece como inquestionável e o seu saber acaba imperando, tanto sobre os usuários, como sobre outros profissionais não médicos do serviço.

Diante do exposto, essa problemática nos leva a pressupor que mesmo em serviços abertos a comunidade para acolher a demanda de saúde mental tenham sido criados em contraponto ao modelo asilar, eles continuam atravessados pela lógica da psiquiatria de base biomédica, “e mesmo que outras formas de abordagens terapêuticas tenham sido criadas (psicoterapias e socioterapias), transferindo o tratamento medicamentoso como complementar, ainda é esse último que continua a predominar” (PERRUSI, 2015, p. 149-150). Tendo isso em vista, podemos nos indagar: como práticas de desinstitucionalização podem ser criadas se as capturas do modelo asilar e médico-centrado continuam a percorrer o campo da saúde mental? Como criar estratégias que potencializem o protagonismo e autonomia de usuários em sofrimento psíquico num contexto em que as subjetividades são medicalizadas em novos manicômios a céu aberto? Essas pessoas, em decorrência de seus diagnósticos, estão sendo alvos de medicalização?

Com intuito de questionar a experiência com psicotrópicos, a relação das pessoas junto do poder médico-psiquiátrico e sua participação na decisão sobre o seu tratamento, o Guia de Gestão Autônoma da Medicação - GAM 1surge como uma estratégia que busca transformar a lógica da medicalização. A partir de movimentos sociais em defesa dos direitos do usuário do campo da saúde mental, na cidade do Quebec província do

1 Guia da Gestão Autônoma da Medicação. Disponível em:

<https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_para_dowload_com_correcoes.p df> Acessado em: 03 dez. 2019.

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Canadá, o Guia – GAM nasce e traz como proposta a reflexão para as pessoas sobre sua relação com os medicamentos, buscando investigar que papel eles ocupam na sua vida, orientando a criação de estratégias sob suas redes de cuidado, bem como o acesso a informação sobre o seu próprio tratamento. (ONOCKO-CAMPOS ET AL., 2013).

Por se situar em outro contexto social, político e econômico, o Guia GAM produzido no Canadá, tem como finalidade além do estimulo de que as pessoas tenham acesso a informações sobre sua medicação e a ajuda necessária para reduzi-la, ele também propõe a retirada dos medicamentos de suas vidas. No entanto, ao adaptar a estratégia GAM para a realidade brasileira, algumas modificações foram feitas. Dentre essas, o GAM-BR, desloca o foco da redução ou retirada de medicamentos, para a participação e negociação no tratamento, ao comtemplar o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, o SUS, a voz e os direitos dos usuários, além de ter sido implementado em grupos realizados nos serviços de saúde mental do SUS. (ONOCKO-CAMPOS et al., 2012).

Os princípios básicos da GAM estão em consonância com a reforma psiquiátrica brasileira. Um deles diz respeito a autonomia, na qual compreendemos nesse contexto como algo antagônico a independência. Deste modo, atribuímos o sentido dessa ação, conforme Kinoshita (1996) a relacionando a visão de que uma pessoa se torna gradativamente autônoma, quanto maior sua necessidade do outro. Dado a crença que ampliamos a capacidade de gerar a própria vida, cada vez mais que nos tornámos dependentes das nossas redes afetivas, pela nossa virtude de contratualidade. Assim, na GAM pressupõe-se que quanto mais as pessoas compartilham com os outros suas vivências e reflexões geradas pelo uso de psicofármacos, tais movimentos poderão contribuir para a produção de sua autonomia.

Outro princípio, refere-se a cogestão. Em que se entende a implicação de várias pessoas envolvidas no processo de trabalho ou de uma grupalidade. No qual, o exercício dos poderes é descentralizado da figura do profissional ou do moderador, fazendo a gestão acontecer de forma compartilhada, naquilo que irá emergindo entre o protagonismo dos diferentes sujeitos em questão. (CAMPOS, 2000). Dessa forma, em um grupo GAM objetiva-se que os usuários possam construir e debater de forma conjunta aos profissionais sobre a gestão do cuidado e o sobre o uso dos psicofármacos, na busca de compreender qual o melhor medicamento que lhe caia bem, respeitando a singularidade que há no tratamento em saúde mental de cada sujeito.

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A partir do que observamos ao longo do texto, a reforma psiquiátrica e a política de saúde mental no SUS construída a partir desse movimento, propõe que o cuidado em saúde mental seja realizado em uma rede serviços abertos e comunitários, territorializados, tais como as UBS e o CAPS. No entanto, vivemos em uma sociedade medicalizada em que os processos de captura manicomial e medicalizante atravessa as subjetividades de profissionais, usuários, familiares e da sociedade em geral, colocando em questão os princípios de participação e protagonismos dos usuários no próprio cuidado e na construção do próprio campo da saúde mental. Assim, vários desafios e problemas são colocados, dentre eles destacamos como questão de pesquisa: o que a participação de pessoas em sofrimento psíquico na atenção básica em um Grupo GAM pode produzir em relação ao uso crônico de psicofármacos e à produção do cuidado dessas pessoas?

2- OBJETIVOS

2.1 Geral:

Cartografar a participação de pessoas em sofrimento psíquico na atenção básica em um Grupo GAM, na cidade de Currais Novos, Rio Grande do Norte.

2.2 Específicos:

(a) identificar quais os efeitos, sentidos e percepções de usuários em relação ao tratamento com psicofármacos; (b) discutir a participação e acesso de usuários em seu próprio tratamento; (c) investigar o lugar de outras práticas terapêuticas, em relação ao tratamento por medicamentos, na vida dos usuários; (d) conhecer a participação dos profissionais da rede de saúde no tratamento dos usuários a partir do cotidiano dos serviços; (e) analisar as transformações relativas ao cuidado e tratamento a partir da participação no GAM.

3- ASPECTOS METODOLOGICOS

3.1 Caraterização teórica do estudo:

Essa pesquisa situou-se pela perspectiva qualitativa, tendo por base a necessidade da reflexão crítica em torno das relações humanas ao compreender que a

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realidade social possui suas complexidades e não se limita a uma verdade única e universal, na medida que os participantes possuem diferentes vivências e pontos de vista, em decorrência das suas perspectivas sociais e histórias pessoais. Dessa forma, a pesquisa qualitativa distancia-se de análises neutras, a-históricas e a-políticas, por defender que entre o pesquisador e o objeto que ele estuda existe uma implicação, sendo essa implicação essencial para o processo de investigação e pela construção do conhecimento na pesquisa social. A implicação é efeito de uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos e crenças imbricados na relação entre o pesquisador e o objeto estudado por ele. (LOURAU, 2004; MINAYO, 2013; ROMAGNOLI, 2014).

Ao abarcar as singularidades das experiências humanas e a complexidade dos processos de subjetividade, tratou-se de uma pesquisa-intervenção, em que o sujeito percebido como coletivo e atravessado pela composição de forças que se cruza entre objeto, instituição e campo social, dado as linhas segmentares molares e moleculares, se engendraram para criar, intervir e produzir planos de consistência no processo de investigação. (LOURAU, 2004, ROMAGNOLI, 2014). A esse percurso somou-se a cartografia como perspectiva metodológica que possibilitou um posicionamento ético e político da pesquisadora no campo pesquisado.

Deleuze e Guattari (2011) apostam na cartografia como um mapa; um modo de experimentar o pensamento e a escrita a partir de linhas rizomáticas que se estabelecem por diferentes conexões e heterogeneidades voltadas para a experiência do real, em que qualquer ponto pode ser conectado a um outro, reverberando em conectividades múltiplas, diferentemente de direções una, lineares, dos decalques, reduzidos a leis de combinações universais, como nas raízes e arborescências. Deste modo, para os autores, um rizoma compõe-se por linhas segmentares duras, propensas ao plano molar da macropolítica, em que somos segmentados binariamente em classes, homem\mulher, adulto\criança e etc., e linearmente sendo demandados e demandantes das instituições escola\família\exército e etc.

Por outro lado, um rizoma é feito por segmentaridades flexíveis, em que linhas moleculares, do ponto de vista da micropolítica, definem linhas de fugas que sempre escapam das organizações binárias, do aparelho de ressonância do Estado, á maquinas que sobrecodificam as subjetividades, como remetem as anormalidades biopolíticas, por exemplo. No entanto, ainda que essas últimas apareçam como uma oportunidade para traçar um plano de consistência no qual as multiplicidades são captadas e vistas, também

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aparecem como um risco, se a sua natureza não é metamorfoseada e acabe cristalizando os microfascismos que, como nas linhas duras, a atravessam. (DELEUZE; GUATTARI, 2012).

Além disso, faz-se importante ressaltar que mesmo que essas linhas sejam divergentes em sua natureza, elas não são inseparáveis e atravessam as pessoas, os grupos e a sociedade simultaneamente constituindo-se em um plano de força conflitivo. Assim, a pesquisa-intervenção cartográfica é produzida no meio desse jogo de forças em que podemos visualizar o instituído e o instituinte, quando observamos as instituições em sua forma instituída, ao serem mantidas e atravessada por linhas duras de segmentaridades molares, arborescentes e cristalizadas, estando em constante estratificação e apontando para a ordem da macropolitica, na qual os saberes endurecidos da racionalidade cientifica e a lógica biomédica se sustentam e se operam. Em contrapartida, numa instituição, consideramos que o instituinte poderá emergir, tensionadas por ações micropolítica, compondo linhas de segmentaridades moleculares, onde o novo poderá ser criado, ao provocar rupturas com aquilo que está estabelecido, ao defender outros modos de pensamentos e fazeres científicos. De tal modo ao considerar que linhas de fugas podem ser acionadas e transmutadas para a ordem do devir e não das reproduções binarias e lineares entre a processualidade da pesquisa. Produzindo, desvios, rupturas e descolamentos no campo pesquisado e na subjetividade dos envolvidos, assim, dando lugar a suas implicações, aos encontros, bloqueios e aos acontecimentos que se emergem no processo. (PAULON; ROMAGNOLI, 2010; DELEUZE; GUATTARI, 2012; ROSSI; PASSOS, 2014).

Levando-se em conta que neste modo de pesquisar, não basta ser apenas um agente de mudanças e reformular os campos investigados, mas sobretudo, mudarmos a nós mesmos, a subjetividade da cartógrafa apareceu como central no processo de desdobramento da pesquisa. Pois, na cartografia o importante não é a busca de uma verdade universalizável e cientificamente neutra, afirmando em contrapartida a redução da realidade como insuficiente; ao defender o pensamento complexo que essa compõe, sendo indivisível sua relação com a vida, na medida que, ao cartografar-se a realidade, estaria entrando-se no mundo das relações, das conexões e das afetações atravessadas pelas complexidades sociais das quais o pesquisador faz parte e onde se subjetiviza. (ROMAGNOLI, 2009; PASSOS;KASTRUP, 2013).

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Assim, a cartografia mostrou-se como uma estratégia valiosa, já que ela não se direcionou como um método determinador, buscando representações e interpretações, desenhando previsibilidades no ato de pesquisar. Em dissonância, o elemento cartográfico se configurou como um caminho que a pesquisadora esteve traçando, percorrendo, compondo e transformando no seu campo e no plano do real entre o processo de investigação. (ROMAGNOLI, 2009; SOUZA, 2015). Já que para a cartografa, a interpretação se converteu em análise da implicação e as variáveis intervenientes tornaram-se dispositivos analisadores. (PAULON; ROMAGNOLI, 2010).

Seguindo esse pensamento, a análise da implicação aconteceu entre supervisões coletivas, buscando respaldar “um cuidado de si e do mundo como condição para acessar o plano de forças que constituem sujeitos e objetos” colocando em evidência as relações de poder e seus interesses que os compõe no campo. (SOUZA, 2015, p. 77). Quanto as utilizações de analisadores, eles foram essenciais quando postos para investigar aquilo que não é dito, o que esteve oculto, causando silenciamento e formas de repressão sustentado pelo instituído. Por essa razão, os analisadores também fizeram emergir porta-vozes dos conflitos existentes, revelando a ação do instituinte. (LOURAU, 2004). Por isso, como defendem Rossi e Passos (2014, p.168) os analisadores “pode ser tomado tanto como o evento que denuncia, quanto aquele portador da potência da mudança” já que agem sobre as instituições mostrando o que elas vêm reproduzindo, como também, atuam na imprevisibilidade do surgimento de algo impensado e conflitivo. (ROMAGNOLI, 2014).

Por fim, as narrativas presentes na cartografia foram essenciais para revelar implicações que orientam a pesquisadora sobre o mundo e sobre si mesma. Além disso, as narrativas nas pesquisas em saúde, tem sido utilizada para abrir espaços, onde os discursos sociais façam-se presentes no campo pesquisado, articulando as relações de poder, políticas e identitárias, atribuídos ao contexto social da pesquisa. (ONOCKO-CAMPOS; FURTADO JR, 2008). Tais implicações se deram pela pesquisadora ocupar o lugar de psicóloga, trabalhadora e residente multiprofissional em formação no Sistema Único de Saúde, em especifico, na Atenção Primária.

3.2 Aspectos éticos:

Considerando esses pressupostos teóricos, o presente projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas do Trairi

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(FACISA) sob o parecer 18056319.0.1001.5568. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização para Gravação de Voz, respaldando a proteção do sigilo ético da pesquisa.

3.3 Local e população:

A pesquisa aconteceu na Unidade Básica de Saúde – Centro, localizada no município de Currais Novos, Rio Grande do Norte.

A população desse estudo foi composta inicialmente por profissionais de saúde de nível superior, sendo: (1) psiquiatra do Núcleo de Apoio à Saúde Família – NASF; (1) psicólogo do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS; (2) psicólogos, (1) farmacêutica, (1) assistente social e (1) profissional de educação física da Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Escola Multicampi de Ciências Médicas do Rio Grande do Norte; (14) usuárias e (1) usuário da rede de saúde de (06) territórios do município, sendo essas pessoas de raça, classe, etnia variadas na faixa etária de 30 a 65 anos.

Participaram do estudo efetivamente em média de (12) a (08) usuários por encontro, tendo (03) desistido no decorrer do grupo. A média de participação efetiva entre profissionais foram de (02) e parcialmente de (05). A escolha dos participantes aconteceu pela pesquisadora junto da psiquiatra do NASF e da equipe multiprofissional de residentes em Atenção Básica, no qual convidaram usuários de um grupo preexistente para participar da pesquisa.

3.4 Critérios de Inclusão e Exclusão:

Foram selecionados usuários que: (a) fazem uso de psicofármacos há 1 ano ou mais; (b) com idade igual ou superior a 18 anos; (c) moradores dos territórios cobertos pelas equipes da atenção primária (NASF e Residência Multiprofissional em Atenção Básica) e pela equipe do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II que participaram da pesquisa; (d) profissionais que fazem parte das equipes do NASF, CAPS e Residência Multiprofissional em Atenção Básica do Município de Currais Novos - RN.

Foram desclassificados usuários que: (a) façam uso de psicofármacos em menos de 1 ano; (b) menores de 18 anos; (c) não são moradores dos territórios cobertos pelas equipes da atenção primária (NASF e Residência Multiprofissional em Atenção Básica)

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e pela equipe do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II que participaram da pesquisa; (d) profissionais que não façam parte dos respectivos serviços do município.

3.5 Procedimento para coleta e análise dos dados:

A análise dos dados da pesquisa aconteceu por meio de narrativas construídas a partir dos registros do diário cartográfico da pesquisadora e das gravadas em voz dos encontros do grupo mediado pela utilização do guia GAM como intervenção no campo pesquisado. Esses registros deram origem a linhas de análise. Essas linhas emergiram diante da identificação de analisadores que contribuíram para a discussão das problemáticas apontadas nos resultados e discussões, referentes a produção do sofrimento psíquico de mulheres, os efeitos das drogas psiquiátricas na vida das pessoas e como a GAM mostrou-se como um dispositivo promovente de participação política em saúde mental.

As ferramentas e ações metodológicas que a pesquisadora utilizou para o desdobramento da pesquisa, são os seguintes procedimentos:

(a) mobilização e sensibilização da rede de atenção primária à saúde e com a equipe de saúde mental, a partir de reuniões de matriciamento em saúde mental entre as equipes multiprofissionais do NASF, CAPS e Residência Multiprofissional em AB, onde configurou a apresentação, e posteriormente, a formação do grupo GAM, selecionando a UBS – Centro, como campo para realização da intervenção, posto que por essa unidade de saúde se localizar em um território central da cidade, ficou de fácil acesso para os participantes, que eram de diferentes bairros locais; (b) apresentação da estratégia GAM para os referidos participantes que, anteriormente a realização da pesquisa, participavam de um grupo de desmame de benzodiazepínicos conduzido pela psiquiatra do NASF, pela psicóloga pesquisadora, pela farmacêutica e assistente social da residência multiprofissional em AB, assim possuindo vínculos com os demais profissionais que participaram da pesquisa; (c) leitura e distribuição do TCLE e do Termo de Autorização de Gravação de Voz para esclarecimentos e recolhimento de assinaturas dos profissionais e usuários que aceitaram participar da pesquisa que se iniciou no primeiro encontro do grupo GAM; (d) o grupo GAM aconteceu em 24 encontros semanais, no período de 6 meses, de outubro de 2018 a maio de 2019 com duração aproximadamente de 1h30; (e) realizou-se impressões de guias GAM e distribuição de canetas para os participantes da pesquisa, sendo essa uma contribuição material da Secretária Municipal

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de Saúde do Município; (f) selecionou-se uma sala privativa na UBS, onde barulhos e ruídos de voz não poderiam ser ouvidos, no campo referido, resguardando o sigilo ético da pesquisa ao buscar não expor os participantes; (g) a pesquisadora utilizou de diários de campo para registrar as afetações imanentes ao longo da experiência com o grupo GAM e de aparelho de celular próprio para realizar as gravações de voz.

4- RESULTADOS E DISCUSSÕES

A experiência com a GAM começa nos chamando a atenção quanto a participação, exclusivamente, de mulheres no grupo, certo que não havíamos delimitado, que ele seria restrito a esse público. Tendo apenas, 2 homens participado nos últimos 3 meses. Isso nos direcionou a pensar sobre a necessidade de trazer a importância do olhar acerca do movimento da reforma psiquiátrica brasileira e de suas possíveis aproximações com os estudos feministas a partir daquilo que a experiência com a GAM nos trouxe de problematizações nessa interface.

Com esses fluxos-pensamentos, descobrimos que na história da loucura é possível observar, criticamente, formas de exclusão, segregação e preconceito acometidos, especificamente, a mulheres em sofrimento psíquico, tendo em vista que as relações de gênero, classe e raça produziram históricas violações de direitos na vida de mulheres que foram institucionalizadas e medicalizadas na realidade dos manicômios brasileiros e em diversos lugares do mundo (PASSOS; PEREIRA, 2017). Dessa forma, começamos a nos indagar como as relações de gênero estão presentes nos discursos medicalizantes, em especifico, no corpo e na vida das mulheres que participaram da experiência? Assim, uma das questões analisadas, diz respeito a produção do sofrimento psíquico no corpo feminino, onde as drogas psiquiátricas apareceram como silenciadores para “mal-estares” provocadas pela condição de mulher-mãe-pobre-doméstica. Além disso, no decorrer da história-experiência, percebemos o desconhecimento sobre os efeitos das “pílulas mágicas” como sugere Withaker (2017) e, igualmente, acerca da ausência de conhecimento das usuárias quanto aos seus direitos, se mostrando passiveis ao questionamento da soberania médica\psiquiátrica. No entanto, ao longo dos encontros a trajetória da história-experiência, se reverte. Ganha novos corpos e transmuta a pele. Em movimentos de cogestão, luzes surgem á obscuridade médica. A partir dos quais, os direitos são retirados das sombras e as “luminosidades” sobre os psicofármacos e as

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relações com as vidas das pessoas transparecem. Ativando, possíveis caminhos, para uma autonomia construída coletivamente.

4.1 A PRODUÇÃO DO SOFRIMENTO PSIQUÍCO NO FEMININO: mulheres como corpos passiveis de medicalização

“Triste, louca ou má Será qualificada Ela quem recusar Seguir receita tal A receita cultural Do marido, da família Cuida, cuida da rotina...” (Francisco El Hombre) Após vivências interessantes sobre o consumo de benzodiazepínicos nos dois grupos de bem-estar mental (nome esse intitulado pela psiquiatra do NASF) onde participamos anteriormente, nasceu o Grupo GAM em Currais Novos-RN com as participantes desses primeiros grupos. Muitas das usuárias relataram histórias que nos sensibilizaram, uma vez que por serem mulheres em contextos de machismo, pobreza e ruralidade, restringidas a vida entre os trabalhos domésticos e na agricultura e reduzidas a função da maternidade, nos sugerem que, consequentemente, esses fatores desdobraram a experiência com psicotrópicos em suas vidas. Certamente, porque, quando trabalhamos a pergunta-reflexão presente na cartilha GAM “eu sou uma pessoa e não uma doença, o que você pensa sobre essa frase? ”, essas mulheres colocaram em debate a realidade de que hoje usam drogas psiquiátricas por estarem ou terem estado inseridas em tais cenários aprisionadores e violentos.

Essas considerações tornam-se ainda mais nítidas, quando ao falarmos de relações familiares algumas narrativas fortes emergiram de Luce e Judith 2relembrando memórias de sua infância e adolescência, em que além de cuidar dos trabalhos domésticos, também tinham que cuidar do trabalho na agricultura. Assim, Judith nos conta se referindo sobre os trabalhos domésticos e no campo, em que era ordenada por seus familiares a se responsabilizar por eles:

Eu fui expulsa de casa com 18 anos, porque briguei com o meu irmão e a minha mãe o preferiu em casa por ele ser homem. Depois, eu fui morar com um

2 Nomes fictícios foram adotados para resguardar o sigilo dos participantes. Os nomes de mulheres foram escolhidos pela pesquisadora por remeterem a mulheres escritoras, poetisas, feministas que lhe são fonte de intercessão e inspiração. Os de homens, também foram inspirados em escritores e poetas.

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homem de 55 anos e engravidei. Eu fui homem e mulher da casa! (Judith, participante GAM – registro de diário cartográfico).

Luce, por sua vez, queixando-se do fato que não aprendera a ler e a escrever, afirma que foi impossibilitada de ir à escola quando criança, porque haviam dias que era proibida de ir as aulas pelo pai, sendo disciplinada a cuidar do trabalho na agricultura. Nas falas de Luce:

O estudo foi a inchada! Trabalhava na inchada. Papai não deixava a gente estudar. Aí eu adoeci e nunca tive condições de trabalhar pelos medicamentos que eu tomo. (Luce, participante GAM – registro de diário cartográfico).

Essas narrativas apresentadas, tornaram-se como analisadores no decorrer da pesquisa, ao que remete a condição das mulheres no campo da saúde mental e consequentemente sua medicalização, ao considerarmos o campo de forças em que elas se constituem subjetivamente. Primeiro, pelo próprio fato de serem mulheres, depois, por terem existido em sua infância e adolescência no contexto de ruralidade, e por último, por possuírem diagnósticos de transtornos mentais comuns. Deste modo, esses fatores que constituem as subjetividades das mulheres, trouxeram elementos para o nosso cenário de análise.

De tal modo ao percebemos que estudos evidenciam que mulheres que vivem em contexto rural estão mais sujeitas a desenvolverem transtornos mentais comuns - TCM, como, por exemplo, insônia, irritabilidade e queixas somáticas, tendo a possibilidade de intensos sofrimentos psíquicos elevarem a situações crônicas ou serem até maiores do que quadros de cronicidade já estabelecidos, em relação a população geral de trabalhadores rurais. (GOLBERG, HUXLEY, 1992; ARAÚJO, PINHO, ALMEIDA, 2005; COSTA, LUDERMIR; 2005). Em consequência de que, além das mulheres estarem em um lugar desfavorável socioeconomicamente, constituindo 70% dos pobres do mundo e respaldando as iniquidades de gênero ao acesso à educação e a sobrecarga do trabalho doméstico; o trabalho feminino na agricultura familiar além de rígido, dado as relações de desigualdade de gênero, é invisibilizado. (WHO, 2001; LUDERMIR, MELO FILHO, 2002; BONFIM, COSTA, LOPES, 2013).

Em consonância, os dados epidemiológicos visualizam as mulheres como os maiores consumidores de ansiolíticos e antidepressivos na população brasileira, por estarem mais propensas a experiências de ansiedade\depressão, sendo os perfis prevalentes dessa população constituídos por mulheres negras, casadas, pobres e também usuárias de drogas ilícitas (VIANA, SILVEIRA, ANDRADE, 2012; FREITAS,

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AMARANTE; 2015). No que reflete aos estudos de Noto e Galduróz (1999) ao sinalizarem as diferenças de gênero nos padrões de consumo de drogas líticas e ilícitas no Brasil, dado que enquanto homens usam mais drogas ilícitas como, especificamente, a maconha e a cocaína, as drogas psiquiátricas (ansiolíticos, antidepressivos e etc.) são mais consumidas por mulheres.

Assim, esses fatores se fazem importantes para compreendermos o sofrimento psíquico de mulheres nos espaços rurais, servindo igualmente para questionarmos as facetas da medicalização não apenas de mulheres, mas também de males sociais. Em razão das pesquisas realizadas junto a agricultores no Brasil, além de detectarem forte prevalência de TCM nesses contextos, sobressaltam o uso abusivo de ansiolíticos e a alta demandas de internações psiquiátricas por agrotóxicos e uso abusivo de álcool. Ainda considerando que as condições de vulnerabilidade no campo são demarcadas pela pobreza e pela miséria, dados refletidos por indicadores socioeconômicos, tais como: considerável índice de não alfabetizados, precariedade das condições de trabalho, dificuldade no acesso aos serviços públicos e assistência técnica, maior dependência dos programas de transferência de renda e etc. (DIMENSTEIN; LEITE; MACEDO; DANTAS, 2016).

Além disso, outros fatores relacionados a medicalização de mulheres surgem entre os caminhos dos encontros. Em um deles, aconteceu um diálogo sobre como as usuárias foram medicalizadas em seus períodos de crise e como essas crises se iniciaram por problemas relacionados ao casamento heteronormativo, ao período pós-parto e após dietas de emagrecimento. Como relata a pesquisadora:

Judith nos diz que faz uso dos benzodiazepínicos acerca de 21 anos e que as crises começaram após sair de um relacionamento matrimonial com um homem. Luce, em concordância com Judith, afirma que começou a ter crises após conflitos familiares entre filhos e o ex-marido, chegando a afirmar: - meu marido deixou eu, porque eu sou problemática. (...) no meio dos fluxos de conversas entre essas usuárias, Hilda relata que teve depressão pela primeira vez após sua segunda gravidez e que a partir de tal diagnostico, iniciara o uso com psicotrópicos. Ela também nos disse que antes de fazer uma dieta para emagrecimento, havia parado de tomar sua medicação, mas retornou após finalizar a dieta. (Pesquisadora GAM – registro de diário cartográfico).

O discurso de Hilda nos chama bastante atenção ao perceber que o seu sofrimento psíquico atravessa um lugar que remete ao ser mulher, pois, isso está entrelaçado tanto a sua condição materna e também a dietas de alto risco, comumente adotada por mulheres a fim de atingir um ideal de beleza. Nas falas de Hilda, podemos visualizar tal acepção referindo-se ao uso de psicotrópicos:

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A primeira vez que tive depressão, foi pós-parto, depois do nascimento da minha segunda filha. (...) depois, fiz tratamento para emagrecer e veio a depressão. (...) eu aumentei de peso porque tem alguns que prejudicaram demais com o meu metabolismo. (Hilda, participante GAM – registro de diário cartográfico).

Seguindo a partilha de experiências, entre o ser mulher e usar drogas psiquiátricas, outras usuárias Ângela e Susan afirmaram que quando começaram a tomar medicamentos psiquiátricos, houveram desaprovação e estigmatização por seus maridos:

Meu marido me chama de doida. Ele disse que eu não precisava disso. (Ângela, participante GAM – registro de gravação de voz).

Meu marido reclama porque os medicamentos são caros. (Susan, participante GAM - registro de gravação de voz).

Quando a gente não é chamada de doida porque toma medicação, é “ô mulher preguiçosa! ”. (Luce, participante GAM - registro de diário cartográfico).

Ao conversamos sobre os efeitos dos medicamentos psiquiátricos em suas vidas, um debate, especifico, tensionado por elas, foi sobre como os efeitos colaterais provocaram alterações de peso em seus corpos. Assim, elas nos colocaram isso de forma muito intensa, ao afirmarem que após passarem a tomar psicofármacos o aumento de peso chegou a ser constante e isso começou a interferir em suas autoestimas, na medida que, sempre que vão a lojas para comprar roupas na cidade interiorana, chegam a sofrer preconceito por números padrões de vestimentas não caberem em si, sendo constrangedor, segundo elas, pedir por uma numeração maior aos funcionários da loja. Logo, como relatou Judith:

A gente perde a auto-estima e sofre “bullying” nas lojas, porque as roupas que a gente experimenta não cabe na gente. (...) tem alguns que reclamam demais com o meu metabolismo (Judith, participante GAM – registro de gravação de voz).

Nessas narrativas das usuárias, percebe-se o processo de medicalização ligado a uma identidade feminina, visto que as experiências com o sofrimento psíquico das participantes iniciaram, através, delas estarem em condições sociais que são restritas, especificamente, a prescrições socialmente atribuídas ao “ser mulher”, como as funções maternas, o trabalho doméstico, a submissão e a dependência financeira de figuras masculinas, bem como a dietas de risco com o intuito de possuir um corpo dentro dos padrões hegemônicos. Portanto, nos mostrando que as configurações do normal e patológico, não se restringe apenas ao corpo fisiológico e orgânico do feminino, como também a funções sociais que esse corpo deve responder em uma sociedade que produz subjetividades hegemônicas e serializadas. (VIERA, 2008; GUATTARI, 2000).

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Para Guattari (2000) as subjetividades são fabricadas e modeladas no registro das sociedades, estando associadas tanto a instâncias intersubjetivas do humano que podem ser manifestadas pela sua linguagem ou em outras situações identificatórias ligadas à sua etologia. Como, por outro lado, concernem a interações institucionais operadas pela mídia, as tecnologias e a aspectos não só sociais, mas também econômicos. Sendo, entre essa articulação de instâncias, que ocorre a criação de uma auto-referência no nosso campo existencial. Por isso, o autor defender uma heterogênese da subjetividade, no qual não somos apenas producentes do seus sentidos e significados, mas também consumidores daquilo que se produz em nossos modos de sentir e viver. (PELBART, 2011).

Dessa maneira, ao pensarmos a normalidade como auto-referência para os corpos das mulheres, dada a lógica de produção de subjetividade – producentes a mulher doméstica, materna, magra e submissa as masculinidades –, e compreendendo a biopolítica como mecanismo regulador das anormalidades, observamos os corpos das mulheres como alvo para regulação de comportamentos desviantes, quando esses aparecem enquanto anormais, ligadas a identidade de loucas, preguiçosas e gordas. Em que para solucionar, tais anormalidades, as intervenções psiquiátricas e medicamentosas são convocadas para legitimar esses corpos dentro dos parâmetros da normalidade. (FOUCAULT, 2005; GUATTARI; ROLNIK, 2005).

Além disso, o que nos chama atenção, é como cada mulher fala do desencadeamento do seu sofrimento psíquico, afirmando que quando começaram a se “sentir mal” o primeiro contato que tiveram na rede pública de saúde foi com a psiquiatria ou com um clinico geral e o tratamento direcionado a elas se restringiu ao uso de psicotrópicos. Nada lhes foi ofertado além disso. Como descrito pela pesquisadora:

Luce e Judith, ao falarem sobre suas histórias em períodos de crises, nos disseram que em Currais Novos, quando chegaram a passar mal com uma ansiedade intensa, quase sempre, iam parar no hospital regional da cidade, onde chegavam a tomar fortes injeções de Diazepam. Ademais, Luce relata ainda que passou cerca de um ano nesse processo. Ela usa medicamentos psiquiátricos há cerca de 3 anos e eles foram receitados por um clinico geral, chegando a ter um acompanhamento psiquiátrico apenas esse ano. Para mais, Judith nos conta sobre a sua história de uma longa vida medicalizada, em que ela relata que passou 20 anos sem ir em uma consulta psiquiátrica, sendo acompanhada por clínicos gerais que sempre a receitam um Clonazepam. Ainda nos disse ela que começou a tomar o medicamento em comprimidos de 0,25mg (dosagem mínima) até chegar a 2mg (dosagem máxima). Ela alega que o médico dizia “você vai morrer” quando chegava muito ansiosa em uma consulta e que “todo remédio que ele passava, eu ficava pior”. Nessa experiência, Judith nos diz que foi encaminhada por esse clinico geral para um

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neuropsiquiatra, que realizou diversos exames neurobiológicos nela que não resultaram em nada. (Pesquisadora GAM – Registro de diário de cartográfico).

Os relatos de Lucy e Judith nos direcionam a pensar que um dos fatores do uso indiscriminado de psicotrópicos no Brasil está associado ao fato de que qualquer médico poder receitá-los, não sendo apenas atributo de tal ação a especialidade psiquiátrica. Tal fato se coaduna com achados de estudos nacionais e internacionais que apontam os médicos da atenção primária como os que prescrevem antidepressivos com mais frequência (AMARANTES; FREITAS, 2015). Além disso, percebemos a ordem médica e psiquiátrica, como detentor de poder\saber de práticas sociais em uma sociedade governada pelo imperialismo da masculinidade, no qual além de não ofertar formas de cuidado em saúde mental que não se restrinja ao uso de psicotrópicos -, também não tem oferecido estratégias que acolham, especificamente, o sofrimento de mulheres e que percebam as relações de gênero como determinantes desse processo, evidenciando que a os estudos de gênero ainda são subestimados no campo da saúde mental. (ZANELLO; COSTA E SILVA, 2012).

Diante desses relatos, terminamos alguns dos encontros do grupo que se intitulou, posteriormente, como “GAM-Mulheres”, percebendo as relações assimétricas de gênero como possíveis compositoras de fenômenos medicalizantes no corpo de mulheres, tal como de mazelas sociais a elas relacionadas. Decerto, porque nos encontros estávamos sempre nos interrogando: será que se esse fosse um grupo apenas de homens ou composto em sua maioria por homens, suas vivências com as drogas psiquiátricas seriam semelhantes aos das mulheres? E indo além: como a loucura, no sentido trabalhado historicamente por Foucault (2014), tem sido pensada através das relações de gênero, em especifico, na condição das mulheres? Qual o lugar que os saberes psiquiátricos têm proporcionado as mulheres em sofrimento psíquico? Como outros profissionais de saúde percebem o lugar das mulheres na saúde mental? Diante da escassez de pesquisas para responder tais indagações, essas perguntas passaram a nos acompanhar inspirando nossas análises e novos direcionamentos para estudos posteriores.

Portanto, não se restringindo a esses questionamentos e as análises que buscamos apresentar referentes as producentes subjetividades de mulheres medicalizadas e ao governo biopolítico dos seus corpos dentre as multiplicidades sinalizadas. Em seguimento, continuaremos narrando o conhecimento que as usuárias e um outro usuário desenvolveram sobre o uso de psicotrópicos nos encontros do grupo GAM.

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4.2 DO (DES)CONHECIMENTO AOS EFEITOS (IN)DESEJADOS: da obscuridade dos medicamentos psiquiátricos à luz sobre o seu conhecimento

Dentre as trajetórias dos nossos encontros, tornaram-se também como analisadores os desafios que Cecilia relata ao se referir sobre a sua dependência com o Rivotril, o medo de tal dependência pelo uso do psicotrópico e as dificuldades políticas e organizacionais encontradas para negociar o uso de sua medicação com a sua psiquiatra de referência. Da mesma forma, os relatos de Judith sobre a autoridade do saber médico psiquiátrico nos chamaram a atenção. Essas problemáticas podem ser vistas diante das narrativas a seguir:

Cecilia chegou eufórica no grupo hoje desejando conversar sobre o desafio que tem sido tentar fazer a diminuição da dosagem do Rivotril, já que, nos dias de hoje mesmo tomando apenas uma gota da medicação, tendo por indicação da sua psiquiatra de referência em diminui-la, alega não conseguir dormir sem essa pequena dosagem. Assim, ela chegou no grupo hoje dizendo, “gente, preciso da ajuda de vocês. Porque meu sonho é parar de depender desse medicamento”. Para mais, alegou sobre sua necessidade demasiada do medicamento para afasta-la da insônia e afirmando também que não consegue negociar com a sua psiquiatra a possibilidade da retirada do medicamento, porque mesmo estando consumindo uma dosagem mínima, não obtém êxito em dormir sem o benzodiazepínico e necessita pagar por consultas na rede privada para os atendimentos, devido à alta fila de espera por atendimentos psiquiátricos no município. Ainda por cima, quando o grupo desabafava sobre os efeitos dos medicamentos, ela falou baixinho para mim, pois estava sentada ao meu lado: - é aquele efeito do choque, sabe? Com um tom de denúncia. – A gente treme com a medicação também. A necessidade de Cecilia em conversar sobre o Rivotril não cessava, visto que quando estávamos conversando sobre os efeitos do tratamento medicamentoso, ela voltou a falar do Rivotril e de como fazia falta a psiquiatra na rede para alegar algumas questões. Deste modo, chegando a afirmar como quem teme algo: eu vou ficar escrava do rivotril! (Pesquisadora GAM – Registro de diário cartográfico).

(...) Judith nos conta que, ao questionar uma médica psiquiátrica em referência aos medicamentos que atualmente estava tomando e sobre outros novos medicamentos que iria tomar, receitados por tal especialidade em um dia de consulta, discordou que não gostaria de tomar os medicamentos receitados. Em reação, a psiquiatra a interrogou: - então, por que você está aqui? Igualmente, entre suas várias travessias pela rede pública de saúde da região, em uma outra consulta com um clinico geral, ela nos relata que a receitaram um medicamento que custava um valor alto, que ela não poderia pagar, e o médico foi assertivo: você tem que comprar! Á vista disso, por essas diferentes experiências, ela demonstra certa resistência ao saber médico e afirma: eu tive um diagnóstico há 20 anos atrás, que se eu tivesse seguido, não estaria aqui. (Pesquisadora GAM – Registro de diário cartográfico).

Após esses relatos, outra questão que se tornou como analisador, por nos causar certa preocupação, foi sobre perceber o quanto podemos ser desinformados de nossos direitos enquanto cidadãos que usufruem do SUS e dos serviços de saúde mental, tal como por não conhecermos esses direitos em relação ao uso de medicamentos. Isso nos ocorreu, muito possivelmente porque quando discutimos a parte da cartilha GAM sobre qual é o

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nosso compromisso em relação ao tratamento medicamentoso no campo da saúde mental, muitas usuárias presentes naquele dia ficaram silenciosas e do pouco que falaram sobre foi “é tomar na hora certa”. No entanto, se faz importante ressaltar que no guia a discussão sobre tais direitos está, especificamente, voltada para o campo da saúde mental, o que esse estudo evidencia a necessidade de uma ampliação para uma discussão mais abrange referente aos usuários do SUS na atenção primária.

Porém, mesmo diante de tais limitações, achamos interessante o movimento de Frida no dia em que ocorreu essa discussão:

(...) relembrando que em um encontro anterior do grupo, chegou nos dizendo que não estava se sentindo bem, em decorrência de sensações de vertigem que a estavam levando a sentir tonturas exaustivas por estarem sendo recorrentes há mais de duas semanas. Desse modo, naquele encontro anterior, ao conversarmos, como em tom de quem confessa algo, Frida começa a se questionar se estaria assim pela mudança dos medicamentos. Conseguinte, ao perguntamos se aconteceu algo em relação a isso, ela nos diz que, quando fora pegar seus medicamentos na farmácia da rede pública de saúde, não haviam comprimidos de Ecitalopram de 20mg, - dose que lhe fora receitada pelo clinico geral do seu bairro -, cujo ela já fazia uso de tal especificidade medicamentosa há mais de 1 ano. Assim, ela nos relata que o farmacêutico a dispensou uma dosagem menor, sendo de 10mg do medicamento, lhe dizendo para tomar dois comprimidos daquela dose, para chegar a quantidade exata conforme a sua receita. Porém, Frida afirma que não entendeu bem tal atribuição e estava tomando apenas um comprimido, como era de seu costume, de certa maneira que a levou a reações adversas relacionadas a interrupção do uso. Da mesma forma, ela afirma que não sabia que isso poderia lhe ocorrer e que só descobriu isso ao conversar conosco no grupo GAM, onde a farmacêutica participante também orientou que esses sintomas podem aparecerem quando se diminui a dosagem bruscamente. Portanto, ao recordar desse episódio, ela sugere para nós “é não fazer o que eu fiz”. (Pesquisadora GAM – registro de diário cartográfico).

Outro episódio que nos trouxe inquietações referentes aos direitos mencionados, foram quando as participantes disseram não saber que poderiam optar ou não pelo medicamento que lhes eram prescritos, de tal modo que para Dilma:

Nunca me passou pela cabeça que o médico pudesse estar errado. (...) eu achei foi bom quando fulana me passou, eu não tava bem. (Dilma, participante GAM – registro de gravação de áudio).

Diante das narrativas expostas, em consonância com os estudos de Onocko Campos et al. (2012) e Onocko-Campos et al. (2013) em experiências participativas em grupos GAM na rede de atenção psicossocial, observamos semelhanças na atenção básica em relação as dificuldades dos usuários em discutir o uso dos psicofármacos com médicos e psiquiatras. De modo que, em conformidade as nossas discussões, mencionarem a ausência de informações sobre o seu tratamento medicamentoso, receio em questionar a autoridade médica psiquiátrica, sendo consequência, da grande dificuldade de conversar

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com os mesmos, estando atrelada também, a falta dessa comunicação a carência desses profissionais nos serviços.

Além disso, as narrativas conciliam com as análises de Caron e Feuerwerker (2019) do mesmo modo em grupos GAM, ao apontarem que a cronificação dos usuários na atenção básica por uso indiscriminado de psicofármacos, está associada a invisibilidade da saúde mental nesse espaço. Uma vez que o uso de psicotrópicos é sustentada no cotidiano dos serviços por um esquema de renovação de receitas, sem atenção, acompanhamento e espaços de discussão sobre o tratamento com esses tipos de fármacos.

Em outros encontros GAM, as participantes falaram demasiadamente sobre os sintomas colaterais dos medicamentos, principalmente, reclamando do excesso de tremores que eles causam. Assim, ao discutimos sobre os efeitos indesejados das drogas psiquiátricas, nos chamou a atenção, também de modo quantitativo, o quanto eles apareceram em demasia em relação aos efeitos desejados, deste modo, tornando um outro analisador para o nosso estudo. Seguramente, por queixarem-se sobre eles em diversas narrativas de diferentes modos, referindo-se ao excesso de sono, a baixa libido sexual, a amnésia frequente e a certa apatia emocional, bem como, supostamente, ao agravamento de outros fatores de saúde. Como apontam suas vozes a seguir:

Deixa a gente esmurecida. Com sono. Ele não faz dormir. Ele embebeda. (...) dá muito sono, tremor, baixa a libido sexual. Também a pessoa fica apática, ganha peso. E não é sono, é um desânimo. (Virginia, participante GAM – registros de diários cartográficos).

Eu não sabia que apagava o fogo, pro lado do namoro, esse remédio não ta dando certo. (Hilda, participante GAM – registro de diário cartográfico). Me dá falta de memória, fico muito acelerada e com lapsos de memória. Na primeira semana tomando antidepressivos, você pode piorar. (Clarissa, participante GAM – registro de diário cartográfico).

Depois da depressão, começaram a surgir outros problemas de saúde. Eu vou para o médico doente e volto muito mais. Os tremores são sintomas frequentes. (...) A gente endurece tomando Aldol. (Hilda, participante GAM – registros de gravação de voz e de diário cartográfico).

Um amolece e o outro endurece. (Judith, participante GAM – registro de voz).

Antes eu chorava muito. Agora não choro mais. Parece que secou. (Cecilia, participante GAM – registro de gravação de voz).

A gente pensa que tomar resolve todas as coisas, mas muitas permanecem. (Judith, participante GAM – registro de diário cartográfico).

Referências

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