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ARTE E MÍDIA – A AÇÃO DO GRUPO ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E SUAS RECEPÇÕES NA MÍDIA

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BEATRIZ DE ARAUJO BRITTO

ARTE E MÍDIA – A AÇÃO DO GRUPO ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E SUAS RECEPÇÕES NA MÍDIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica – Signo e Significação nas Mídias sob a orientação do Prof. Doutor Silvio Ferraz

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA DA PUC-SP

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

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Ao meu orientador, Silvio Ferraz pela compreensão e dedicação.

Ao prof. Renato Cohen que foi quem primeiro se interessou pelo projeto que apresentei

aqui na PUC. Ao grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz e ao Paulo Flores, sem o qual o

nosso trabalho não poderia ser realizado. Ao CNPq cuja bolsa possibilitou a realização

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RESUMO

O foco desta tese é o estudo da relação dos discursos da mídia com a ação do grupo teatral Ói nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre. Em nossa abordagem a mídia será considerada aqui por suas estratégias de biopoder – poder sobre a vida –, em contraposição à ação de alteridade, de desterritorialização em que o sentido torna-se produção para além da idéia de representação – a biopotência. É do contrachoque entre estes dois territórios, o fixo e o móvel, que brechas podem surgir, potencializando os pontos de resistência do grupo presentes também nas redes de poder. Mais especificamente, a tese analisa a relação do grupo com a mídia jornalística; como se processa a reação da imprensa em relação à linguagem do grupo e à intervenção em diversas manifestações culturais e políticas da cidade, aspectos sócio-culturais e políticos que influem na recepção da mídia em relação à atuação do grupo dentro da “comunidade”.

Para pensar este contraponto a tese se vale da filosofia da diferença, mais precisamente da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari quando estes expõem a fórmula do devir e sua concatenação, sobretudo, com a idéia de ritornelo e corpo sem órgãos, tal qual apresentada em Mil Platôs. Para dar concretude à dinâmica dos conceitos implicados, a tese traz a análise da natureza dos diferentes discursos na relação cena-mídia. Busca também detectar alguns dos principais procedimentos da prática cênica do grupo e seu histórico, investigando também até que ponto tais procedimentos podem potencializar uma estratégia de biopotência através da linha de fuga dos processos de subjetivação. Partimos do princípio de que a ação do grupo pode se tornar uma possibilidade de fuga das potências de controle (Estado, Comunicação, TV), uma estratégia de resistência a essas potências, à homogeneização do pensamento, na medida em que busque liberar os automatismos da percepção e os hábitos perceptivos já cristalizados. O ato de criação e a arte serão vistos como espaço do devir, que rompe com os significados pré-fixados, os códigos e valores estabelecidos pela razão do aparelho de Estado, devir-minoritário como desvio padrão dominante, processo pelo qual o grupo se subtrai à maioria.

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ABSTRACT

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ……….p. 1

CAPÍTULO 1 – A assinatura do grupo Ói Nóis Aqui

Traveiz-Devir minoritário ...p. 16

CAPÍTULO 2 – Primeiro operativo cênico da linguagem do grupo: A atuação do Ói Nóis Aqui Traveiz – corpo como espaço intensivo e

Teatro de Vivência ...p. 40 Procedimentos de atuação do grupo –

a) Ritual como presentificação das forças ...p. 50 b) Treinamento sobre as ações físicas ...p. 61 c) Improvisação como processo de desterritorialização e

a criação coletiva ...p. 71

CAPÍTULO 3 – Segundo operativo cênico da linguagem do grupo:

Texto performativo como espaço do devir ...p. 76

CAPÍTULO 4 – Arte e Comunicação – O discurso da arte como modo menor e o discurso da mídia como palavra de ordem ...p. 91

CONCLUSÃO ...p. 152

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INTRODUÇÃO – Considerações iniciais

O grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz de Porto Alegre, foi criado em 1978, quando o país vivia o período final da ditadura militar e desde então desenvolve um trabalho que até hoje tem se caracteriza pela afirmação da diferença, de independência radical em relação ao mercado e às estruturas de dominação, constituindo um espaço de resistência aos valores e padrões de comportamento estabelecidos pela maioria. O grupo acredita na idéia de libertação através do teatro como lugar de novas formas de relação entre as pessoas, como produção de uma subjetividade autônoma que busque liberar os automatismos da percepção e os hábitos perceptivos já cristalizados, vendo o trabalho do ator como ação num sentido mais amplo, uma forma de atuação não naturalista e autêntica, em que arte e vida se fundem, buscando uma comunicação real com o público. O grupo tem uma técnica própria, desenvolvida desde seu início e que passa por diferentes fases, fundamentada no uso da improvisação e da cena como processo, da criação coletiva e da corporalidade no trabalho do ator. O trabalho do Ói Nóis divide-se em duas vertentes principais: o teatro de rua, de intervenção direta na realidade da cidade, e o teatro ritual, no sentido de experiência partilhada, geralmente realizado em seu próprio espaço, a Terreira da Tribo, um galpão que permite diferentes aproveitamentos do espaço cênico.

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processos seriais de subjetivação disseminados pelas potências de controle (Estado, Comunicação, TV, etc.); sendo capaz de criar novos valores que ultrapassem os valores ditados pela maioria em favor de novas formas de existência.

Um dos focos da tese é analisar como se dá a relação do discurso da mídia impressa como estratégia de biopoder, de poder sobre a vida, com a ação do grupo, como estratégia de biopotência, potência política da vida, como produção de vida, destruição e criação de novos valores, segundo análise de Michel Foucault, na leitura de Peter Pelbart.1 É do contrachoque ente estes dois territórios, o fixo e o móvel, que brechas podem surgir da dinâmica entre estes dois discursos, como pontos de resistência presentes nas redes de poder. Se bem, que o papel da mídia pode variar, conforme o momento e o tipo de sociedade onde a publicação está inserida - aspectos sócio-culturais e políticos que influem na recepção da mídia em relação à atuação do grupo, levando em conta a existência de mais de uma posição na imprensa (tradicionalista ou progressista). Considerando, porém a mídia de um modo geral, como parte de um sistema de comunicação que se utiliza de uma linguagem que se atém a significados pré-fixados; o discurso da mídia enquanto reprodução, “faculdade de identificação que relaciona uma diversidade qualquer á forma do Mesmo”2, senso comum, palavra de ordem, em relação ao caráter paradoxal da arte como sensação, que toma o sentido como produção, para além da idéia de representação, uma arte capaz de tornar sensíveis as forças.

Mas para avaliarmos melhor como se dá o contraponto entre estes dois discursos, precisamos analisar como se dão os operativos cênicos da linguagem do grupo, a sua assinatura; procedimentos estéticos e criativos, seu comportamento e modo de vida como devir minoritário em relação à subjetividade dominante. Detectar alguns

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Pelbart, P Vida Capital, p. 86.

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dos principais procedimentos da prática cênica do Ói Nóis e seu histórico dentro do grupo e investigar até que ponto estes procedimentos podem potencializar uma estratégia de biopotência como linha de fuga dos processos seriais de subjetivação, através de um uso menor da linguagem como possibilidade de produção do novo, na medida em que coloca em variação a língua maior ao tentar subverter as técnicas vigentes de representação. Devir-minoritário como desvio do padrão dominante, processo pelo qual o grupo se subtrai à maioria, a ação do grupo como espaço de experimentação e resistência, reinventando as formas de comportamento e linguagem.

Procuramos dar concretude aos conceitos da filosofia da diferença, mais precisamente da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari recorrendo aos conceitos de

devir, ritornelo-território que implica movimentos de territorialização e

desterritorialização, corpo sem órgãos, rizoma; devir-minoritário e máquinas de guerra; e palavras de ordem, entre outros. A filosofia da diferença como pensamento nômade, que ultrapassa a recognição e a representação com suas leis e códigos - para além do pensamento logocêntrico e dualista, a multiplicidade informal e potencial como expressão da mobilidade imediata das coisas3, como movimento de desterritorialização. Utilizamos na análise dos procedimentos do grupo os registros de vídeos (o Ói Nóis tem a maior parte de seus espetáculos e ensaios gravados a partir de 1985), o material escrito e depoimentos de integrantes do grupo, inclusive da própria pesquisadora que participou (em períodos intercalados) de trabalhos do Ói Nóis desde 1982 e que até hoje é colaboradora do grupo. Na parte da análise dos operativos cênicos, faremos um recorte que analise os trabalhos de sala e o teatro ritual, sem comentar os trabalhos de rua; não que esses, porém, não possam recorrer aos procedimentos característicos da linguagem do grupo, mas é no teatro de sala que encontramos com mais clareza, os operativos de

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linguagem que analisaremos mais adiante. Quanto às matérias de jornal, recorremos ao arquivo do grupo, que é bastante completo e que é constituído na sua maior parte de material xerocado; por isso, algumas poucas matérias não tem o dia da publicação (mas é possível situa-las no mês de acordo com a cronologia do grupo) e outras não tem o nome da publicação, caso dos jornais mais alternativos. As principais notícias de parte da trajetória do grupo, porém, são do arquivo pessoal da pesquisadora.

Como a maior parte da história do Ói Nóis Aqui Traveiz será analisada mais detalhadamente através de manifestos, notícias e espetáculos em alguns dos capítulos seguintes, tentaremos fazer aqui apenas um resumo de sua trajetória para situar melhor o grupo dentro das diferentes fases pelas quais atravessa. Poderíamos considerar três fases principais dentro do Ói Nóis de acordo com o fluxo de pessoas dentro do grupo, cuja dinâmica é sempre movente, e de certas tendências dentro da sua prática cênica que vão tomando forma e se modificando com o passar do tempo.

O Ói Nóis Aqui Traveiz, foi criado em Porto Alegre, no dia 31 de março, data que faz uma alusão direta ao golpe militar, por Paulo Flores e Rafael Baião, alunos egressos do curso de Arte Dramática da UFRGS e Júlio Zanotta, escritor, que Paulo havia conhecido em um curso dado por Aderbal Júnior na cidade em 1977. Surgiu como uma necessidade de refazer o teatro para experimentar a tocar na vida, dissolvendo os limites entre palco e platéia e procurando uma forma ao naturalista e autêntica como forma de rebelião4, consequência de uma insatisfação profunda com o tipo de teatro que vinha sendo feito até então na cidade e com a situação política da época. Decidiram alugar um espaço próprio onde estrearam o primeiro espetáculo em março de 1978, A Divina Proporção e A Felicidade Não Esperneia, Patati, Patatá, ambas de Júlio Zanotta, que tratavam da desumanização da sociedade, com temas como a especulação

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do ciclo morte-renascimento através do contato sensorial e da interação entre os atores.Ainda no mesmo ano, colocam em cena O Rei Já Era Parará Tim Bum baseado em um texto do grupo chileno Aleph, que falava sobre as formas de dominação entre os homens, criação coletiva de Paulo Flores, Jussemar Weiss e Adauto Ferreira, entre outros, em que três mendigos revezavam-se na disputa pelo papel do rei. Com este espetáculo o grupo se apresenta pela primeira vez em espaços abertos, no caso, o campus da PUC de Porto Alegre; em uma das cenas um ator seminu cobria-se com uma bandeira do Brasil, o que provocou a reação da reitoria, motivando a expulsão de dois estudantes que haviam organizado o evento. Em 1980, por falta de condições financeiras o grupo repassa o teatro para Júlio Zanotta e aluga um sobrado antigo, onde passam a viver em comunidade, chamado de “Casa para aventuras criativas” onde ensaiam o próximo espetáculo, a criação coletiva Ananke, a Luta pela Vida que estreará no mesmo ano, ficando apenas três dias em cartaz em um teatro particular da cidade, já que não conseguiram espaço nos teatros ligados à prefeitura. Na peça, a família aparecia como instituição que reproduzia as relações de poder do Estado e logo na entrada, os atores convidavam o público a assistir a encenação em cima do palco, estimulando-o a participar diretamente da ação. Em 1981 surgem as primeiras performances criadas para serem apresentadas em manifestações políticas, como a da passeata pelo Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho; a Casa para aventuras criativas é fechada e, do grupo original que criou o Ói Nóis só resta Paulo Flores. A partir de 1982 começam as oficinas dentro do campus da UFRGS que incorporaram novos integrantes ao grupo, que realiza intervenções durante atos públicos e encena performances no campus da universidade e nas ruas.

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linguagem que passa a ter um caráter mais ritual em relação à fase do happening do período anterior. A Terreira, inaugurada significativamene no dia 14 de julho de 1984, com um show punk que aglutinava várias bandas, passa a funcionar como uma espécie de centro cultural, indo além das atividades teatrais. Ali aconteciam as manifestações artísticas as mais diversas como shows musicais, projeção de filmes alternativos, oficinas teatrais, debates, festas, espaço para ensaios além do funcionamento de um bar e casa de lanches naturais, que manteria o espaço durante alguns anos até 1989, quando estréia Antígona e quando o grupo passa a se manter com atividades ligadas ao teatro, oficinas e espetáculos de rua, como veremos mais adiante. Os shows musicais na Terreira merecem atenção por serem um ponto de referência que aglutinava os jovens da cidade - muitas vezes as apresentações reuniam quase duzentas pessoas - e era um espaço democrático que acolhia os músicos que quisessem se apresentar. Em 1985 começam as oficinas teatrais que investigavam o trabalho do ator ou que eram dirigidas para a criação de espetáculo de rua, como veremos em seguida. A Visita do Presidenciável ou os morcegos estão comendo os abacates maduros é o primeiro espetáculo do grupo apresentado na Terreira, em 1984, e era uma mistura de teatro do absurdo, cinema underground , rock e vanguarda plástica, que ainda mantinha algo da estética do happening, mas que caminhava para uma maior ritualização da cena; a ação central se passava numa casa em ruínas que era habitada por um casal de velhos, enquanto a sua volta várias ações simultâneas se sucediam; o ritual suicida de um casal de jovens, bonecos gigantes e agitáveis, Adão e Eva, o drama de Alice, etc. É também a época da intensificação das intervenções ecológicas e pacifistas, que tinham iniciado em 1981 e que irão se estender durante a década de 90.

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oficinas teatrais; o espetáculo era todo ritualizado, não tinha texto e se desenvolvia através das ações físicas dos atores, que portavam grandes máscaras e trabalhavam com ritmo mais ralentado que o normal. É aí que se inicia a experiência do teatro de rua, de intervenção direta no cotidiano da cidade e que, junto com o teatro ritual apresentado na sala, são as duas principais vertentes do trabalho do grupo. Na tese, porém, faremos um recorte que privilegiará o teatro de sala, porque consideramos que nele estão presentes com mais intensidade os procedimentos da linguagem do grupo que iremos analisar mais adiante, embora o trabalho de rua trabalhe princípios comuns como a relação direta com o público, a prática da improvisação, o texto de ações físicas e a dilatação do gesto e da voz, etc. A vertente do teatro de rua é a que viabilizará a sustentação econômica do grupo, principalmente a partir de 1988, com a apresentação de espetáculos nos bairros populares e de oficinas desenvolvidas nestes bairros, já que o público no teatro de sala é reduzido em função da proposta do grupo, de interação entre atores e espectadores, de no máximo 50 pessoas por apresentação. Mas isto não significa que o interesse no trabalho de rua seja comercial, a preocupação em democratizar o espaço da arte, atingindo um público que normalmente estaria excluído das salas de espetáculo, faz parte da prática libertária do grupo.

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Rodrigues, dirigido por um dos atores do grupo e apresentado em temporada paralela com alunos de oficinas; e A Heroína de Pindaíba, espetáculo de rua baseado no texto de Augusto Boal. É neste ano também em que vários atores que estavam há pelo menos sete, oito anos no grupo resolvem sair, o que iria resultar na fase seguinte do Ói Nóis, quando novos membros são incorporados através das oficinas que estavam sendo desenvolvidas, recorrendo a um trabalho mais específico de treinamento conforme falaremos um pouco mais adiante.

Por esta época o grupo inicia a campanha pelo tombamento da Terreira da Tribo como área de preservação cultural, promovendo shows, recolhendo assinaturas e pedindo o apoio da classe artística; mas apesar de uma campanha de mais de quatro cinco anos pela preservação da Terreira (em vista da ação de despejo movida contra o Ói Nóis) com o apoio da Temática de Educação, Cultura e Lazer do Orçamento Participativo, da Câmara de Vereadores e outras instâncias, além de um abaixo-assinado com 15 mil assinaturas da população da cidade, o grupo perde seu espaço em 1999. O Executivo Municipal acaba por vetar a indicação de tombamento da Terreira, sob alegação de “não há alternativa legal”. Um parecer da Secretaria de Planejamento Municipal alega que:

“Aceita a idéia de preservação da atividade do Grupo (...) através da

desapropriação do espaço que o mesmo ocupa, certamente estaremos abrindo

precedentes para as escolas de samba, tribos e grupos carnavalescos, CTGs,

Associações Beneficentes, Comunitárias, ONGs e centenas de entidades

filantrópicas, numa evidente distorção das atribuições e competências do Poder

Público Municipal.”5

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Não é preciso muito para perceber o quão distorcida é a visão do poder público sobre o grupo, reflexo de um preconceito que, apesar de todos estes anos de trabalho não conseguiu digerir a prática libertária do Ói Nóis, subestimando sua importância e o caráter singular da sua experiência. O depoimento de Maristela Bairros Schmidt, jornalista e crítica teatral do Correio do Povo, sintetiza em parte a postura de parte da população da cidade em relação aos “rebeldes” e desviantes:

“Eu acho que o Ói Nóis, no sentido de mexer com o teatro, foi a coisa mais

saudável que aconteceu nesta cidade. Porto Alegre nasceu para ser aquela coisa

certinha, quadradinha, onde até a vanguarda é comportada. Eles não; eles são

caóticos. Acho que a contribuição deles para o teatro de Porto Alegre é

exatamente a provocação, e isso, eles conseguem estar fazendo há muito tempo.

(...) Enquanto grupo, nunca ninguém vai fazer um trabalho parecido com o do Ói

Nóis. É um trabalho muito específico. Eles não tem o que trocar com outros

grupos. Possuem uma língua própria. Querem reinventar o código de teatro cada

vez mais. Para mim é um caminho sem volta, não dá para fazer parte do mesmo

movimento. Vai ser sempre assim: o teatro de Porto Alegre e o Ói Nóis. Isso é

necessário, porque a desigualdade tem que haver em algum ponto. Não podem

estar todos trabalhando do mesmo lado. E mesmo aqueles que tem suas diferenças

trabalham dentro do teatro padrão, usam o mesmo código. Já o Ói Nóis parte de

uma vivência. O preparo de uma peça não é simplesmente o preparo de uma peça,

é a vida deles que vai sendo preparada dia a dia para aquela encenação. O

trabalho do Ói Nóis é único e supernecessário para nós, para todo o mundo, até

para aqueles que não dão a mínima para eles e que, teoricamente, nunca irão

assisti-los.”6

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O grupo, neste quase trinta anos de existência, ainda hoje permanece como uma potência de metamorfose, de criação e resistência, apesar das tentativas de exclusão ou cooptação pelas potências de controle que procuram neutralizar sua ação. A prática do Ói Nóis poderia ser associada à noção de máquina de guerra, de Deleuze e Guattari, cujo objetivo não é tanto o da guerra em si (conforme veremos mais adiante), mas o traçado de uma linha de fuga criadora, criadora de novos fluxos e conexões e que é expressão de um devir-minoritário, num processo de desterritorialização permanente que escape ao padrão da maioria hegemônica. A seguir, faremos um breve resumo dos capítulos associando-os aos conceitos da filosofia da diferença em Deleuze e Guattari, que são as principais referências teóricas do trabalho.

O primeiro capítulo é dedicado ao que poderia ser chamado de assinatura do grupo como marca expressiva e territorial que não pertence a um sujeito, mas é a marca de um domínio; seria antes a expressão do grupo como um todo, a diversidade de suas qualidades expressivas, que se dão num processo dinâmico a partir das relações estabelecidas com o outro7, e que se manifestam através de seu processo criativo, linguagem e modo de vida. Também analisamos as referências mais marcantes para o Ói Nóis e seus manifestos que exprimem sua concepção de arte e de vida, associando-os aos conceitos da filosofia da diferença como devir minoritário e máquina de guerra, molar e molecular, espaço liso como espaço do devir, ritornelo que implica movimentos em ambos os sentidos, de territorialização e desterritorialização.

No segundo capítulo analisamos a linguagem do grupo através de um de seus operativos cênicos, que é referente à atuação tal como a compreende o Ói Nóis, como ação onde arte e vida se fundem, em que o ator vive uma experiência no momento presente onde há uma abertura para o imprevisto, o não-programado como um meio de

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encontrar um fluxo de vida, o que o grupo chama de Teatro de Vivência, a partir de um contato direto e criativo com o público. Uma experiência comum partilhada por atores e espectadores, como era na origem, quando o teatro era comunhão; o ritual como espaço de encontro com as forças da vida, cena dos sentidos, capaz de materializar o invisível. Nesta parte comentamos os principais procedimentos de atuação do Ói Nóis: o ritual como espaço de presentificação das forças, o treinamento sobre as ações físicas e a prática da improvisação associada à criação coletiva, dando alguns exemplos concretos e recorrendo às noções de Deleuze e Guattari de corpo sem órgãos, intensidade, sensação, molecular, plano de consistência, devir, rizoma.

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No quarto capítulo analisamos a relação entre arte e comunicação, através do contraponto entre os dois territórios, o do teatro e o da mídia, vendo a ação do Ói Nóis como discurso de alteridade, como menor e desterritorializante, em que o sentido torna-se produção, para além da idéia de repretorna-sentação, ou torna-seja, uma arte capaz de tornar sensíveis as forças não sensíveis, espaço de intensidades e não de representações, movimento do devir no que ele tem de indeterminado e imprevisível na circulação das forças antes das formas, sendo presença antes que representação de um modelo exterior ao mundo. Já o discurso da mídia faria parte de um sistema de controle que busca territorializar a ação do grupo através do uso de palavras de ordem, como clichês, significados pré-fixados que procuram submeter a ação do grupo e sua diversidade a um padrão de comportamento – mas as posições variam conforme a época e o jornal. Analisamos as matérias de jornal publicadas sobre o grupo desde seu surgimento, no final da década de 70 até hoje, selecionando as matérias mais significativas e incluindo as críticas teatrais, dando prioridade à imprensa do Rio Grande do Sul, mas incluindo também algumas matérias publicadas em jornais do centro do país, a partir dos conceitos de Deleuze e Guattari que expusemos no início do capítulo como sociedade de controle, uso menor da linguagem, senso comum e de Foucault, os de sociedade disciplinar, pensamento do Fora, biopoder e biopotência.

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CAPÍTULO 1 – A ASSINATURA DO GRUPO ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ – DEVIR MINORITÁRIO

O grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz de Porto Alegre, foi criado em 1978, quando o país ainda sofria o jugo a ditadura militar e desde então lançou-se num trabalho que até hoje tem se pautado pela afirmação da diferença, de independência radical em relação ao mercado e às estruturas de poder. A data de criação do grupo, 31 de março, faz uma alusão direta a data do golpe militar de 1964; o país passava então por uma série de manifestações que visavam sua redemocratização. O trabalho do Ói Nóis divide-se em duas vertentes principais: o teatro de rua, irreverente e lúcido – de intervenção direta no cotidiano da cidade – e o teatro ritual, no sentido de experiência partilhada, geralmente realizado em seu próprio espaço – a Terreira da Tribo, um galpão que permite diferentes aproveitamentos do espaço cênico. As montagens do grupo levam geralmente de um a dois anos para serem elaboradas e são resultado de um longo processo de pesquisa fundamentado basicamente no uso da improvisação. A encenação também procura eliminar a distância entre atores e público, a maior parte das vezes dirigindo-se a um número restrito de espectadores8 e reestruturando completamente o espaço cênico.

O grupo foi um dos primeiros em Porto Alegre a tentar conjugar em sua prática arte vida, estética e política, a radicalidade de comportamento e linguagem transbordando do espaço cênico para o cotidiano da cidade. Propunham quebrar os padrões tradicionais de representação até então vigentes, trabalhando uma outra

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qualidade de relação com o espectador, numa relação direta na qual os limites entre palco e platéia são dissolvidos, uma atuação não naturalista e autêntica como forma de ”rebelião”. Vários são os procedimentos que caracterizam a ação transgressora do grupo: a cena como presença, atu-ação9, corporalidade, visceralidade, improvisação como processo, criação coletiva, intertextualidade, materialidade dos sentidos, desde os trabalhos mais performáticos do final dos anos 70 até sua última montagem, Kassandra

(2001) (procedimentos que analisaremos nos próximos capítulos).

A prática libertária do grupo faz parte de uma estratégia micropolítica, que parte dos processos de subjetivação, de produção de uma subjetividade autônoma que busca liberar os automatismos da percepção e os hábitos perceptivos já cristalizados. Uma recusa à homogeneização do pensamento, que passa por uma qualidade de percepção que produza novos blocos de sensação na relação com o mundo como força, que coloque em colapso os órgãos da percepção, através de uma reunião de heterogêneos10, uma máquina de captação de forças11, onde um elemento ressoa no outro; e como intensidade de experiência.

Uma das referências mais marcantes para o Ói Nóis veio da ação do grupo teatral Living Theatre e das idéias de Antonin Artaud, principalmente do Teatro e seu Duplo, reunião de ensaios sobre suas propostas teatrais.12 O Living Theatre, grupo

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O grupo emprega este termo vendo o teatro como ação num sentido mais amplo, em que arte e vida se fundem, o ator deve se despojar das suas máscaras para buscar uma relação direta e aberta com o público, uma comunicação real.

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Como reunião de heterogêneos entendemos aqui, elementos contrastantes com vibrações diferentes, que normalmente não seriam ligáveis, cujo acoplamento pode fazer aparecer linhas de força que produzam novos blocos de sensação, isto é, um composto de perceptos e afectos.

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Podemos falar um pouco mais sobre o que seriam as máquinas desejantes para Deleuze e Guattari .Segundo Baremblitt são máquinas que formam a si mesmas ao mesmo tempo que funcionam, movidas pelo desejo, que é criador de fluxos e conexões e seu sentido é a produção. As máquinas captam as forças tornando-as materiais (máquina fonte) ou as cortam (máquina órgão) e podem conectar-se entre si (baseadas em operações de fluxo e corte) em todas as direções, formando um rizoma. Baremblitt,G

Introdução à Esquizoanálise, pp. 92-97.

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símbolo da contracultura dos anos 6013, procurava conciliar as idéias do teatro da crueldade de Antonin Artaud com a crítica social e política de Bertold Becht; no entanto, é a influência de Artaud que acaba por se tornar predominante, pois Julian Beck e Judith Malina, fundadores do grupo, se identificavam com a necessidade de expurgar a violência através de sua representação, de exorcizar a violência real através da violência teatral.14 Artaud mesmo já dizia: “Todas as nossas idéias sobre a vida tem de ser revistas numa época em que nada mais adere à vida. E esta penosa cisão é motivo

para as coisas se vingarem, e a poesia que não está mais em nós e que não

conseguimos mais encontrar mais nas coisas reaparece, de repente, pelo lado mau das

coisas; e nunca se viu tantos crimes, cuja gratuita estranheza só se explica por nossa

impotência em possuir a vida.”15 A idéia da ação teatral como mágica, real e efetiva; como uma cura, uma purificação, através de um árduo processo de iniciação, onde a cisão entre corpo e mente possa ser finalmente abolida, como forma singular de percepção, estava em sintonia profunda com o ideário libertário-pacifista do grupo, que via no teatro um instrumento de ação sobre o mundo, com um potencial de transformação que ocorre primeiramente a nível individual, que buscava recriar o ser humano. O Living Theatre tem seu processo de criação centrado nos happenings e, segundo Renato Cohen, em seu livro Performance como Linguagem, é um dos grupos que melhor concretiza o teatro artaudiano. O happening como incorporação da vida, absorve tudo: “magia, rituais terapêuticos, plástica, estética de vanguarda, luta de classes, etc.”16 A simbiose arte/vida, a idéia de viver como ato de experimentação e

formação do grupo mudou bastante nestes quase 30 anos de existência, pessoais fundamentais para a criação de uma “assinatura” do grupo passaram pelo Ói Nóis, mas Paulo Flores é o único que se mantém desde o início – retomaremos mais adiante a questão do fluxo de pessoas como aumento do número de conexões, dando maior dinâmica ao grupo.

13

Criado em 1947 em Nova York, o grupo dura até 1970, após quatro anos de estada na Europa, quando se divide em sub-grupos.

14

Marinis, M El Nuevo Teatro – 1947-1970, p. 55.

15

Artaud, A O Teatro e seu Duplo, p. 17.

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resistência conduz a um processo de ruptura das convenções teatrais, um processo de desteatralização da cena que manifesta-se em procedimentos tais como a criação coletiva, o uso radical da improvisação e o fim da separação palco-platéia chegando até o comprometimento físico do público, criando uma nova poética teatral em que o processo importa mais que o produto. O Living Theatre acreditava também na vida em comunidade, uma “comunidade de convivência e trabalho, ligada por este mesmos ideais anarco-pacifistas (liberação sexual, independência, coletivização das funções e das tarefas, rechaço de benefício econômico, da violência e todo o tipo de poder)”17 como prática de uma nova sociedade baseada na libertação do indivíduo e nas relações e afeto e solidariedade - a utopia aqui e agora.

A concepção do Living da cena como ritual e como percepção de outras realidades subjacentes à realidade aparente tem paralelo com a “metafísica da linguagem” de Artaud, outra influência fundamental para o Ói Nóis. Para Artaud, o “verdadeiro teatro” é a expressão do dinamismo da vida universal, é preciso “captar, dirigir e derivar forças” cósmicas ocultas sob a aparência das formas individuais – o duplo, ou a sombra do teatro é a vida, e a verdadeira cultura é uma exaltação da vida. Mas, para fazer da cultura um meio de compreender e exercer a vida, é preciso romper a linguagem articulada para tocar o cerne da vida – refazer o teatro, refazer a linguagem, por uma linguagem concreta capaz de entrar em contato as forças latentes no universo (retomaremos mais adiante esta questão no capítulo referente à corporalidade e à noção de corpo como espaço intensivo no trabalho do Ói Nóis).

Outras referências importantes que serão retomadas mais adiante nos capítulos seguintes, vem do Teatro Oficina (principalmente a fase a partir de Gracias Señor e do te-ato), que marca o grupo desde seu início; da noção de auto-desvendamento do ator

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que vem Jerzy Grotowski (mais manifesta a partir de Ostal) e do trabalho com a presença cênica e a partitura de ações, do Odin Teatret de Eugenio Barba (influência mais tardia).

Todas estas figuras Living Theatre, Artaud, Grotowski, Oficina, Barba formam uma espécie de rede que cria pontos de contato com a necessidade do grupo em resgatar a existência integral do ser humano, buscando novas formas de percepção onde arte e vida se toquem, através de “um teatro que não comente a vida, mas participe dela”18, vendo a arte e a vida como políticas. A noção de contágio poderia ser mais adequada no que ela tem de forma aberta, rizomática, e que não pressupõe uma relação hierarquizada, centralizada, linear, por filiação, que estaria implícita no termo influência.

O Óí Nóis Aqui Traveiz relaciona-se com todas estas referências rearticulando-as dentro do contexto de uma sociedade reativa às mudançrearticulando-as como é a sociedade do Rio Grande do Sul e, de certa forma, a do Brasil em geral; e por isso mesmo o seu discurso, que começa a tomar forma nestes primeiros anos, surge marcado por uma necessidade radical de resistência às estruturas de poder, como prática libertária dentro de uma sociedade dominada por uma estrutura rígida e hierarquizante; principalmente na época do surgimento do grupo, no final da ditadura militar - são desta época os primeiros manifestos que transcreveremos a seguir. A ação do grupo como espaço de experimentação e resistência, reinventando as formas de comportamento e linguagem, de produção de uma subjetividade autônoma como possibilidade de fuga das potências de controle (Estado, Comunicação, TV, etc.), ainda hoje permanece como uma potência de metamorfose, de criação e resistência, se levarmos em conta a situação atual de Porto

18

(28)

Alegre, onde as linhas de segmentariedade dura das potências de controle estão presentes, em certa medida, de uma maneira similar ao contexto da criação do grupo, em 1978. Explicando um pouco melhor: após o período de redemocratização do país, quando o PT se elegeu em 1988, no rio Grande do Sul, com uma proposta democratizante e de esquerda, que prometia ser uma possibilidade de mudança dos modos de estratificação vigentes, tudo parecia conduzir a um projeto de consolidação democrática, que provocasse enfim, uma mudança radical nestas mesmas estruturas; e no entanto, o que se viu ao longo de 16 anos de hegemonia do partido, (na prefeitura e no governo do estado) foi que ano após ano, a prática do partido no governo deu lugar à consolidação de estruturas burocráticas e monopolizadoras que provocaram o ressurgimento das linhas de segmentariedade dura e dos microfascismos que estavam latentes na sociedade19, abrindo caminho para o surgimento de discursos autoritários, excludentes e hierarquizantes, típicos da direita tradicional, num processo de homogeneização do pensamento, de caráter totalitário que recusa toda forma de alteridade, com um poder “incomparável sobre as massas”.

Neste sentido, a noção de devir minoritário e máquina de guerra em Deleuze/Guattari ganha uma atualidade impressionante, se considerarmos a prática do Ói Nóis e de outros segmentos da sociedade que há muito tempo vem lutando contra as

19

(29)

estruturas hegemônicas de poder; estruturas burocráticas e hierarquizantes que se constituem de segmentos duros ou molares que não param de “vedar, obstruir, de barrar as linhas de fuga, enquanto ela (a máquina abstrata de mutação) não pára de fazê-las escoar ‘entre’ os segmentos duros e numa outra direção, submolecular.”20 Cabe aqui uma breve explicação sobre o que são linhas de segmentariedade dura e linhas de fuga. As linhas de segmentariedade dura operam por binariedade, por divisão em grandes segmentos dicotômicos, homem-mulher, classes sociais, raças, criança-adulto, etc. que sobrecodificam as relações e que implicam um aparelho de Estado: “Os segmentos implicam também dispositivos de poder, bem diversos entre si, cada um fixando o código e o território do segmento correspondente.(...) sobre a linha de segmentariedade dura, deve-se distinguir os dispositivos de poder que codificam os segmentos diversos, a

máquina abstrata que os sobrecodifica e regula suas relações, o aparelho de Estado que efetua essa máquina.21” Já as linhas de fuga são moleculares, traçadas a partir de devires que desfazem os códigos e os territórios. Existem também as linhas de segmentariedade flexível que estão entre estes dois pólos, os segmentos existem, mas são relativamente flexíveis, onde pequenas modificações, devires e micro-devires podem se passar, já que “as linhas moleculares fazem correr, entre os segmentos, fluxos de desterritorialização, que já não pertencem nem a um nem a outro, mas constituem o devir assimétrico de ambos,(...) traçar outra linha no meio da linha segmentaria, no meio dos segmentos, e

20

Deleuze/Guattari op. cit., p. 104. Se nos atermos à ação política do grupo, em um sentido mais amplo, basta lembrar também que após 15 anos de ocupação de seu espaço próprio, a Terreira da Tribo,

inaugurado significativamente em 14 de julho de 1984 e que tornou-se referência do movimento alternativo em Porto Alegre, o grupo perde a Terreira no final de 1999 - apesar de uma campanha de quase cinco anos pelo tombamento do espaço, (em vista da ação de despejo movida contra o Ói Nóis) com o apoio da Temática de Educação, Cultura e Lazer do Orçamento Participativo, da Câmara de Vereadores e outras instâncias, além de um abaixo-assinado com 15 mil assinaturas da população da cidade. O Executivo Municipal acaba por vetar a indicação de tombamento da Terreira, sob alegação de “não há alternativa legal” e o grupo transfere-se em 2000 para uma nova sede no bairro Navegantes, periferia da cidade. O Ói Nóis, no entanto, estava atravessando uma boa fase, rearticulando o grupo e investigando novas formas de expressão, em 98 por exemplo, em função do projeto Cena Aberta, iniciativa do governo federal, suas apresentações na Terreira estavam sempre lotadas, com ótima receptividade e as viagens para fora do estado a partir daí tornaram-se constantes, o que fez com que o grupo passasse a ser mais conhecido no país.

21

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que as carrega conforme velocidades e lentidões variáveis em um movimento de fuga ou fluxo.”22 Também é necessário ressaltar que o molecular implica um plano de consistência onde micro elementos informais ressoam uns nos outros, composto de intensidades e não de um recorte de formas, unidades macro como nos conjuntos molares.23

O ato de criação como “uma linha de fuga, uma possibilidade de transgressão dos limites impostos pelas leis da linguagem sedentária24”, o pensamento nômade como forma de descodificação, “para subverter e embaralhar os códigos do mundo fechado e estriado do Estado.25” A potência de metamorfose da máquina de guerra contra as potências de controle e a máquina de captura do aparelho de Estado; a própria linguagem do grupo como movimento de desterritorialização, como crítica aos valores estabelecidos, pensamento nômade que ultrapassa a recognição e a representação com suas leis e seus códigos, para “criar novos parâmetros e novas formas de existência.26” Para Regina Schöpke, “ a razão é, ao mesmo tempo, o reflexo e a condição de emergência dos ideais do Estado. Só quando a razão rompe com seus valores mais arraigados é que ela pode efetuar-se como potência criadora. Criar é, portanto, uma

22

Deleuze/Parnet op.cit., p. 152. Existe uma definição anterior destas linhas no texto sobre micropolítica e segmentariedade: “ (...) vemos que não há somente duas linhas, mas três linhas efetivamente: 1)Uma linha relativamente flexível de códigos e territorialidade entrelaçados; é por isto que partimos de uma segmentariedade dita primitiva, na qual as segmentações de territórios e de linhagens compunha o espaço social; 2) Uma linha dura que opera a organização dual dos segmentos, a concentricidade dos círculos em ressonância, a sobrecodificação generalizada: o espaço social implica aqui um aparelho de Estado. É um sistema outro que o primitivo, precisamente porque a sobrecodificação não é um código ainda mais forte, mas um procedimento específico, diferente daquele dos códigos (assim como a reterritorialização não é um território a mais, mas se faz num outro espaço que os territórios – precisamente, no espaço geométrico sobrecoficado); 3) Uma ou algumas linhas de fuga, marcadas por quanta, definidas por descodificação e desterritorialização (há sempre algo como uma máquina de guerra funcionando nessas linhas).” Deleuze/Guattari MilPlatôs, vol. 3, p. 102.

23

Zourabichvili,F O Vocabulário de Deleuze, pp. 49-50. Mais precisamente: “ Animalidade, infância, feminilidade valem por seu coeficiente de alteridade ou de desterritorialização absoluta, abrindo a um para-além da forma que não é o caos mas uma consistência dita “ molecular”: então a percepção capta variações intensivas (composições de velocidade entre elementos informais) e não um recorte de formas (conjuntos ‘ molares’ )(...).”

24

Schöpke,R Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade p. 181.

25

Schöpke,R op. cit., p. 181.

26

(31)

atividade nômade, já que o sedentário nada mais faz do reconhecer e reproduzir.27” O ato de criação e a arte como espaço de devir, que rompe com os significados pré-fixados; o pensador nômade como um criador de novos sentidos.

A arte não como imitação, mas conexão com as forças da Vida. Para o Ói Nóis, o ato de criação é inseparável da vida, atitude e linguagem são expressão de uma concepção de mundo e de um modo de vida muito particulares que não obedecem às exigências do Estado e da moral sedentária, eles são antes uma tribo, um “bando”, talvez como guerreiros que pertencem às estepes e ao deserto, ao “espaço liso” de Deleuze, que é lugar do devir e não de movimentos previsíveis e codificados. Imagens como “teatro de guerrilha”, uma tribo em pé de guerra”, “a tribo amaldiçoada”, etc., são frequentemente atribuídas ao grupo, e isso não é por acaso. Seu isolamento é visto muitas vezes, como “maldição”, mas também como uma potência, própria de uma minoria que cria os suas próprias regras e que não se submete a um modelo exterior. Devir-minoritário como desvio do padrão dominante, processo pelo qual o grupo se subtrai à maioria, como veremos mais adiante. É o que acontece, pelo menos, durante a maior parte da trajetória do Ói Nóis, se bem que em alguns períodos, a tendência à territorialização torna-se mais evidente. É significativo o primeiro manifesto do grupo, de março de 1978.

“UM TEATRO COM PEDRA NAS VEIAS – Pedra nas veias para tentar criar

uma manifestação coerente da barbárie. A selvageria como uma relação entre ‘

civilizados’. A humilhação como coragem de suportá-la. Pedra nas veias para buscar

um acontecimento teatral que negue a desumanização do indivíduo e denuncie a

descaracterização consumista. Pedra nas veias para deformar aquilo que até ontem

chamávamos teatro. Uma deformação que resulte não apenas em um mero efeito

27

(32)

formal, mas que transcenda os limites físicos da cena como idéia de libertação. Pedra

nas veias para expor cruamente, no espaço cênico, uma figuração crítica do cotidiano.

Pedra nas veias para encontrar no ator sua desilusão, a sua frustração, a sua raiva, os

seus pesadelos. Para construir em cena com este material uma forma que procure

sacudir o espectador com emoções. Pedra nas veias para não fazer concessões ao

esteticismo burguês nem aos pregões do teatro palavra. Pedra nas veias para ir um

pouco além da cultura de resistência. Para ousar opor-se.”

A visceralidade e a irreverência do discurso inicial do grupo são consequência de uma insatisfação profunda com o tipo de teatro que até então estava sendo feito na cidade e com a situação política da época. A expressão “pedra nas veias” faz uma alusão à contracultura e ao momento político do país – o primeiro espaço do grupo foi alugado onde anteriormente existia uma minúscula boate que se chamava “Las Piedras”, e a pintura que recobria a fachada, por exemplo, mostrava um homem nú aprisionado por trás das grades de um muro de pedra. O grupo acreditava na idéia de libertação através do teatro como lugar de novas formas de relação entre as pessoas, sem couraças e sem máscaras, uma atuação espontânea e autêntica que recusasse todas as formas de estratificação e dominação, como produção de uma subjetividade autônoma que escapasse às estruturas e aos códigos de poder. Foram taxados de loucos, agressivos, alienados por parte da mídia impressa e pela maior parte da classe teatral28 (analisaremos a recepção da mídia num capítulo posterior). A resposta de um

28

(33)

colaborador do grupo, Nelson Rego, dada numa entrevista ao jornal Folha da Tarde em maio de 1981, não deixa de ser também uma espécie de manifesto, sintomático do pensamento do grupo:

“(...) Penso que o trabalho do Ói Nóis é considerado agressivo porque

confunde-se muito facilmente paixão por aquilo que se acredita, como violência.

(...)Viver aquilo em que se acredita passa por agressividade, quando a regra é ser

cumprir tarefas, obedecer. Os trabalhos do Ói Nóis Aqui Traveiz remontam à violência

que existe e propõem uma ação ao público baseada nesta realidade. Ou seja, existe a

violência; o que fazer a partir desta realidade Outro aspecto que valeu para o Ói Nóis

este rótulo de agressividade é a não reprodução das hierarquias , que estratificam a

sociedade do vassalo ao ditador, passando pela função dos artistas oficiais. Nas peças

do Ói Nóis não existe o ator e o público, o teatro é uma ação de homens que fazem um

exercício de liberdade. Com esta maneira de ser, o Ói Nóis Aqui Traveiz desperta o

ódio de alguns setores do meio teatral em Porto Alegre, tanto artistas, produtores,

diretores, como críticos. Isto é perfeitamente compreensível, pois com nossa atuação

criamos posições radicalmente opostas a estes setores. Por isso somos agressivos,

porque não aderimos às farsas. Eu pergunto se será agressividade propor a ação

coletiva? E porque não se considera agressivo condicionar e, até mesmo, exigir que as

pessoas permaneçam imóveis em suas cadeiras, cumprindo a função de público?

Empregamos os adjetivos como conceitos da ideologia dominante, a ideologia do

cerceamento a toda espontaneidade. Por que são consideradas agressivas algumas

características do Ói Nóis, como a nudez, a ausência de roteiro, a sua linguagem? (...)

É dentro deste posicionamento que eu vejo o que acontece em Porto Alegre, nisto que a

imprensa chama de o meio artístico. Vejo uma série de pessoas mesquinhas, que

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tantos anos de ditadura militar, um povo que não pode traçar sua história, uma

juventude castrada de seu futuro.” 29

No entanto, a tão propalada agressividade do grupo não é senão a manifestação de um desejo profundo de transformação das estruturas vigentes, que tem paralelo com a noção de máquina de guerra em Deleuze/Guattari conforme veremos mais adiante -que é espaço do devir e linha de fuga criadora, tateando em um terreno desconhecido. É notória a postura libertário-pacificista do grupo, a dita “violência” do Ói Nóis, teria muito mais afinidade com o teatro da crueldade de Artaud, no que ele tem de necessidade e de identificação com as forças latentes sob as formas, com as forças da Vida. Transcreveremos a seguir uma matéria de um momento posterior, já em 1986, quando o grupo começa a obter os principais prêmios do teatro local, ameaçando romper o isolamento que vinha sofrendo até então, e que resume de uma maneira eficaz alguns dos princípios do grupo:

“A TRIBO AMALDIÇOADA – A tribo de atuadores ‘ Ói Nóis aqui Traveiz’, o

grupo mais ‘amaldiçoado’ de todos os tempos da história do teatro porto-alegrense,

marcados por trabalhos de forte conteúdo político e ruptura das convenções cênicas do

teatro tradicional, burguês, tem já seus oito anos de coerência/resistência: ‘ Com uma

proposta tribal-desierarquizante-pacifista-libertária, o Ói Nóis Aqui Traveiz tem se

jogado na procura de uma nova relação entre artistas e público. O que se coloca em

discussão é exatamente esta relação artista-espectador, a mística das técnicas dos dons

que separam, arbitrariamente, os que sabem dos que não sabem, os que podem criar

dos que não podem, os que fazem dos que engolem. A proposta é criar um novo tipo de

29

(35)

comunicação, mais visceral que intelectualizada, onde as pessoas sejam chamadas a

romper com a relação morta do palco/platéia, através de um contato direto e criativo

de um corpo com outros corpos, desmoronando assim as relações de autoridade,

passividade, obediência ao poder e às hierarquias, onde o palco é qualquer lugar e o

ator qualquer um. O teatro não mais como uma ‘ arte’, mas como um ato de rebelião

que nos liberte das mordaças e prisões, das energias encarceradas. Buscamos uma

relação humana nova onde as ações não sejam marcadas pelo funcionalismo e pelo

utilitarismo, mas sim vendo o homem como um todo, que pode desenvolver-se,

espontaneamente, sem rótulos e preconceitos. Não somos violentos, somos

apaixonados.”

Essa nova forma de relação entre artistas e público passa por uma forma de percepção capaz de entrar em contato com as forças do Cosmos, de torná-las visíveis ao invés de reproduzir o visível; não se trata mais de representação, mas de conexão com as forças. A cena é vista como produção de sentido, com ênfase no caráter processual da performance, como fenômeno imprevisível, já que acontece ao vivo, no instante presente, o que Renato Cohen chama de ritualização do instante-presente, um processo de presentificação30 (abordaremos esta questão no capítulo sobre os operativos cênicos da linguagem do grupo).

A busca de um maior grau de abertura na interação com o público pretende propiciar o surgimento de novos processos de subjetivação capazes de resistir às potências de controle, democratizando os meios de expressão, onde o palco é qualquer lugar e o ator qualquer um, estimulando a capacidade criativa das pessoas, novos modos de sentir e relacionar-se. Sair dos espaços especiais, procurando uma forma de experiência comum, em que a arte não é vista como separada da vida. Como uma recusa

30

(36)

aos procedimentos de exclusão e formas de estratificação vigentes.Deleuze, citando Paul Klee, refere-se a um “povo que falta” e a um “ povo por vir” capaz de resistir ás potências de controle:

“O poeta,(...)é aquele que solta as populações moleculares na esperança que

ela semeiem ou mesmo engendrem o povo por vir, que passem para um povo por

vir, que abram um cosmo.(...) É nesse sentido que a relação dos artistas com o

povo mudou muito; o artista deixou de ser o Um-só retirado em si mesmo, mas

deixou igualmente de dirigir-se ao povo, de invocar o povo como força constituída.

Nunca ele teve tanta necessidade de um povo, no entanto ele constata no mais alto

grau que falta o povo – o povo é o que mais falta. (...) Fazer da despopulação um

povo cósmico, e da desterritorialização uma terra cósmica, este é o voto do

artista-artesão, aqui e ali, localmente.(...) O próprio das criações, perguntamos, não é

operar em silêncio, localmente, buscar por toda a parte uma consolidação, ir do

molecular a um cosmo incerto, enquanto que os processos de destruição e de

conservação trabalham no atacado, têm posição de destaque, ocupa todo o cosmo

para subjugar o molecular, colocá-lo num conservatório ou numa bomba?”31

O povo como multidão, que escape da lógica binária das linhas duras de segmentariedade, como potência, como virtualidade, numa relação de transversalidade onde os indivíduos mantém sua autonomia. Espaço da conjunção E, do entre, da multiplicidade, ao invés da rigidez das essências e identidades, espaço de relação, devir, rizoma. Não há hierarquia nem filiação, mas uma linha de fuga que passa entre dois termos que se desterritorializam mutuamente: “é sobre essa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam32”, diz Deleuze a respeito de Godard.

31

Deleuze/Guattari Mil Platôs – vol 4, pp. 163-164.

32

(37)

Antonio Negri e Michael Hardt33, dão uma definição esclarecedora de multidão que, ao contrário da noção de povo, que é una, e que reduz as diferenças sociais a uma identidade, seria plural e múltipla:

“A multidão é composta de um conjunto de singularidades – e com

singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não

pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente. As

partes componentes do povo são indiferentes em sua unidade; tornam-se uma

identidade negando ou apartando suas diferenças. As singularidades da multidão

contrastam, assim, com a unidade indiferenciada do povo.”

Também Peter Pelbart refere-se à multidão como “multiplicidade heterogênea, não-unitária, não-hierárquica, acentrada e centrífuga. Na sua riqueza, ela é constituída pelo intelecto geral, afetividade, vitalidade a-orgânica, etc. A multidão como figura subjetiva não identitária, que não delega poderes nem pretende conquistar o poder, mas desenvolver uma nova potência de vida, de organização, de produção.34” A multidão como espaço do devir, como possibilidade de surgimento do novo, de criação e de produção de uma subjetividade autônoma que escape aos modos de produção da subjetividade dominante.

O manifesto refere-se também à questão da técnica, passível de converter-se em um instrumento de dominação que legitimaria as estruturas de poder, quando vista como um saber acessível a poucos, e quando vista como reprodução de um modelo exterior à obra, que é repetição do mesmo, com um sentido fechado, numa relação estática e previsível, (aprofundaremos estas questões num capítulo à parte). E que não raro pode converter-se em clichê, se não fizer parte da dinâmica interna da obra, de relações imanentes criadas dentro da própria obra, permitindo a entrada do acaso, do

33

Negri,A/Hardt,M Multidão – Guerra e Democracia na era do Império, p 139.

34

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imprevisível, atualizando as forças do futuro. Na verdade, o Ói Nóis tem uma técnica própria, desenvolvida desde seu início e que passa por diferentes fases, como veremos mais adiante, fundamentada no uso da improvisação e da cena como processo, da criação coletiva e da corporalidade no trabalho do ator. Fazer “gaguejar” a técnica, subvertendo seus códigos e convenções. Conforme Artaud: “Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro; e o importante é não acreditar que este ato deva ser algo sagrado, isto é, reservado. O importante é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é preciso uma preparação.35”

A idéia de comunidade, tanto no processo de criação como na vida, está presente há muito tempo no trabalho desenvolvido por eles, o próprio nome do grupo e do seu espaço já traz em si uma visão do teatro como celebração e resistência: Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. Terreira vem de “terreiro”, lugar onde se celebram os cultos afro-brasileiros, espaço ritual, devir-minoritário. O termo atuadores,

como já foi visto, remete à concepção de teatro num sentido mais amplo, em que arte e vida se fundem, um lugar de experimentação que busque novas formas de subjetivação, através de uma relação aberta e direta com o público. A expressão “ói nóis aqui traveiz” vem do nome de uma música de Adoniran Barbosa e que tem um caráter nitidamente popular pela subversão dos padrões gramaticais, como uma reinvenção da língua e que sugere resistência e comunhão. Quanto à “tribo”, Paulo Flores mesmo esclarece o termo em entrevista dada em 1986: “O termo tribo começou a ser usado em 1981, porque sugere o tipo de uma sociedade que emerge, baseada na comunidade e na camaradagem, nas relações pessoais diretas e na responsabilidade individual.”

O grupo como forma alternativa de organização, baseada nas relações de afeto e solidariedade, é marcado por relações de transversalidade, que recusam as

35

(39)

discriminações sociais, raciais e sexuais; são antes, ou foram, pelo menos, uma tribo unida pelo desejo de reinventar as relações entre os indivíduos, uma comunidade enfim, um laboratório, um espaço de troca de experiências, de busca de novas formas de subjetividade política como alternativa à asfixia geral. O termo tribo remete também ás comunidades indígenas, e a um modo de vida mais conectado com as forças do cosmos, em que cultura e vida não são vistas como separadas, como diz Artaud, a verdadeira cultura é um meio apurado de “compreender e exercer a vida.36” Por isso mesmo o logotipo do grupo mostra um índio apontando uma flecha em direção ao céu. Como se o Ói Nóis procurasse, ao menos, um equilíbrio maior entre natureza e civilização.

Existem também os textos e entrevistas dos anos 90 e 2000 que preferimos deixar para o capítulo que trata da recepção da mídia, por tratarem-se mais de depoimentos do que manifestos propriamente ditos e porque as idéias básicas que dão forma a uma assinatura do Ói Nóis estão presentes com mais força nestes primeiros manifestos. Eles exprimem um desejo profundo de transformação dos modelos estabelecidos pela maioria à procura de novas formas de relações sociais e novos modos de subjetivação, traçando uma linha de fuga criadora, um movimento incessante de desterritorialização.

Se recorrermos à noção de máquina de guerra, de Deleuze/Guattari, veremos que ela é a forma de expressão própria do agenciamento social que é o nomadismo37; e o objetivo principal das tribos nômades não é a guerra em si, mas o traçado de uma linha de fuga, sobre a qual se constrói um movimento de desterritorialização que forma um espaço liso e o faz crescer em diferentes direções. Mais precisamente segundo Deleuze: “(...) a máquina de guerra não tem por objeto a guerra; ela tem por objeto muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga. O nomadismo é

36

Artaud,A op. cit., p. 18.

37

(40)

precisamente esta combinação máquina de guerra-espaço liso.38” Espaço liso como espaço do devir, terra não delimitada, móvel e imprevisível nas suas conexões, movimento do desejo em oposição ao espaço estriado com seus códigos e limites. Para o nômade (...) é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização39. O nômade com sua máquina de guerra é oposto ao déspota com sua máquina administrativa40, a máquina de guerra é exterior ao aparelho e estado e seus mecanismos de captura41, para Deleuze:

“Quanto à máquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutível ao

aparelho de Estado, exterior a sua soberania, anterior ao seu direito: ela vem de

outra parte. (...) Seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, a

irrupção do efêmero e potência da metamorfose. (...) Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma

potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho.”42

As máquinas de guerra são criadoras de fluxos e conexões, são produtivas e movidas pelo desejo, mas nem todo movimento de uma linha de fuga é criador; pode se converter em linha de destruição quando o desejo é reprimido e acha “na destruição dos outros e de si ‘o único objeto’ que lhe resta quando ‘perdeu sua força de se mover’.43” É o caso das máquinas de guerra fascistas. É preciso fazer da máquina de guerra uma potência criadora e autônoma, que produza novas “relações sociais não-orgânicas”, organização descentralizada e rizomática que se opõe aos órgãos de poder, que “inibe a formação de poderes estáveis, em favor de um tecido de relações imanentes.44”

38

Deleuze,G Conversações, p. 47.

39

Deleuze/Guattari Mil Platôs, vol. 5, p. 53.

40

Deleuze Pensamento nômade, p. 65.

41

Quando a máquina de guerra é apropriada pelo aparelho de Estado, torna-se instituição estratificada e estática, como o exército, cujo objetivo principal é a guerra e não mais a invenção. Deleuze/Guattari, Mil Platôs, vol5, pp.12-13.

42

Deleuze/Guattari op. cit., pp. 12-13.

43

Zourabichvili,F op.cit., p. 65.

44

(41)

Produzir uma máquina de guerra não é privilégio de um agenciamento nômade, segundo Deleuze, ela pode ser revolucionária ou artística, mais do que guerreira. Pode ser expressão do devir-minoritário, que implica arrancar o sujeito de sua identidade maior, um padrão da maioria ao qual é preciso estar conforme: o homem-branco, adulto, macho, habitante das grandes cidades. “A maioria supõe um estado de dominação, não o inverso.45” Ao invés, a minoria46 não tem modelo, é um devir, um processo, “todo o mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo.47” O devir-minoritário implica a simultaneidade de um duplo movimento, pelo qual um termo se subtrai à maioria, e outro pelo qual um outro termo (o termo medium ou agente) sai da minoria territorializando-se - as coisas mais insignificantes podem precipitar-nos num devir. Um devir-minoritário só existe através de um termo médium e de um sujeito desterritorializados que são seus elementos.48 Ocorre um processo de desterritorialização, quando há contraponto entre os dois modos, o maior e o menor, constituindo um bloco de devir, que é capaz de fazer surgir linhas de fuga, como pontos de resistência presentes nas redes de poder.

O Ói Nóis vive um processo de desterritorialização e reterritorialização permanentes conforme as relações dinâmicas e embates dentro e fora do grupo. Como se sabe, o próprio processo de criação do Ói Nóis é um espaço de descoberta e investigação, o uso da improvisação, o mergulho no inconsciente do ator e a relação direta com o público, que caracterizam o “teatro de vivência” abrem um campo de

45

Deleuze/Guattari Mil Platôs, vol. 4, p. 87.

46

É preciso definir um pouco melhor o que Deleuze entende por minoria: “O que define uma minoria não é o número, são as relações interiores ao número. Uma minoria pode ser numerosa ou mesmo infinita; do mesmo modo uma maioria. O que as distingue é que a relação interior ao número constitui no caso de uma maioria um conjunto, finito, ou infinito, mas sempre numerável, qualquer que seja o número de seus elementos. O que caracteriza o inumerável não é nem o conjunto nem os elementos; é antes a conexão, o ‘e’, que se produz entre os elementos, entre os conjuntos, e que não pertence a qualquer dos dois, que lhes escapa e constitui uma linha de fuga.” Deleuze/Guattari Mil Platôs, vol 5, p. 173.

47

Deleuze Conversações, p. 214.

48

(42)

novas possibilidades na procura de uma linguagem original e autônoma que fuja dos códigos pré-estabelecidos e de um “saber fazer” que seria reprodução das estruturas dominantes. O fluxo de novas pessoas dentro do grupo e a produção de novas conexões, imprevistas, também pode se tornar um fator de desterritorialização, já que a dinâmica do Ói Nóis é sempre movente. Mas esse mesmo processo que caracteriza o grupo é passível de converter-se numa linguagem estratificada, que tende a fixar-se num código demasiado rígido, pois há sempre o risco de que o estilo possa converter-se em clichê. Se é necessário um certo grau de permanência para que não se possa cair no caos, em que medida o ritornelo do grupo pode ser capaz de um movimento de desterritorialização permanente, mantendo a potência do Ói Nóis e produzindo novas formas de percepção?

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