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A ressignificação do poeta na figura do saltimbanco: Aldo Palazzeschi

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

ÉGIDE GUARESCHI

A RESSIGNIFICAÇÃO DO POETA NA FIGURA DO SALTIMBANCO: ALDO PALAZZESCHI

Florianópolis 2018

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Égide Guareschi

A RESSIGNIFICAÇÃO DO POETA NA FIGURA DO SALTIMBANCO: ALDO PALAZZESCHI

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de doutora em Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano.

Florianópolis 2018

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Ao Rodrigo (in memoriam). Ao nosso lindo AMOR!

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar a minha gratidão a todos que me ajudaram ou de alguma forma participaram deste longo ciclo que se encerra.

Obrigada à minha orientadora Patricia, por me acompanhar, ensinar e orientar em todos esses anos!

À minha mãe Gelci, por ser uma mãe leitora e por, com toda a sua simplicidade, ter me incentivado ao mundo dos livros e da docência! À minha família, meus pais, irmãos e sobrinho, pela torcida e pelo apoio de sempre!

Aos amigos de todos os lugares, que estiveram comigo nesse período. Sintam-se todos abraçados!

Aos amigos-colegas, meus mais sinceros agradecimentos pela disponibilidade e generosidade, com que me auxiliaram na realização desta tese. À Patrícia Curri, Ana Carolina e Tatiara pelos momentos de estudo e troca de ideias. Ao Francisco Degani, por compartilhar seus conhecimentos, pelas traduções e conversas, e por me acolher com tanta delicadeza. À Arivane Chiarelotto por me indicar a leitura dos poemas de Palazzeschi!

Às professoras da banca e aos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, com os quais tive a oportunidade de conviver!

À UTFPR por me conceder afastamento das atividades na instituição, nos anos finais do doutorado, para a conclusão da tese. A todos os colegas do Departamento de Letras do Campus Pato Branco, pela compreensão e pela ajuda.

Aos meus alunos, de todos os lugares, por me incentivarem a ser uma “eterna-aprendiz”!

Ao Rodrigo de Souza Mota (in memoriam), companheiro de vida e de estudos, pelo infinito amor, o cuidado, as inúmeras horas de estudo partilhadas, o incentivo na escrita desta tese, por ser poesia e ter me ensinado tanto, em especial, que “a força do acaso do encontro é uma constelação1”.

Muito obrigada!

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Un poeta quando è stanco cambia castello;

piglia sulle spalle il suo fardello come un qualunque saltimbanco. [...]

(“Quando cambiai castello”, Aldo Palazzeschi, 1910)

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RESUMO

A descentralidade da figura dos poetas, a fragmentação do “eu” poético, bem como a melancolia de alguns poemas do período de transição entre o final do século XIX e início do século XX, apontam para questões significativas que são pensadas nesta tese. Sob essa perspectiva, a partir da imagem do poeta-saltimbanco, é feita uma leitura de poemas de Aldo Palazzeschi, um dos precursores da poesia moderna italiana e figura atuante no futurismo, cuja obra pervive na literatura contemporânea. Assim, a identificação de Palazzeschi com a imagem do saltimbanco permite observar a ressignificação desse poeta e da sua poesia como uma predisposição para o moderno.

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ABSTRACT

The decentralization of the figure of the poets, the fragmentation of the “poetic self”, as well as the melancholy of some poems from the transition period between the end of the nineteenth century and the beginning of the twentieth century, indicates significant questions that are reflected upon in this thesis. Through this perspective and from the image of the clown (or, the saltimbanco) poet some poems by Aldo Palazzeschi, one of the forerunners of modern Italian poetry and Futurism’s active figure, are critically read as to show that Palazzeschi’s works survive in contemporary literature. Thus, the identification of Palazzeschi with the image of the saltimbanco allows one to observe the ressignification of this poet and his poetry as a predisposition to the modern.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Arlequim sentado (1923), de Pablo Picasso ... 39

Figura 2 - Melancolia I (1514), de Albrecht Dürer ... 65

Figura 3 - Angelus Novus (1920), de Paul Klee ... 78

Figura 4 - Captive Pierrot (1923), de Paul Klee ... 80

Figura 5 - Futurismo, II: Marinetti e Palazzeschi (1957) ... 149

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: MULTICORES 21

2. CAPÍTULO I – FRAGMENTOS: O SUJEITO POÉTICO,

DESLOCAMENTOS E RESSIGNIFICAÇÕES 33

2.1 O SALTIMBANCO RESSIGNIFICADO 35

2.2 SUJEITO, SUBJETIVIDADES E POTENCIALIDADES 47

3. CAPÍTULO II – FARRAPOS: UMA LEITURA DA MELANCOLIA E A CONDIÇÃO DO POETA E DA POESIA 61

3.1. O GÊNIO MELANCÓLICO 61

3.2 O VELHO SALTIMBANCO BAUDELAIRIANO 81

3.3 OS PIERRÔS LAFORGUEANOS E OUTROS PARADOXOS

DA MODERNIDADE 96

4. CAPÍTULO III – LOSANGOS: ALDO PALAZZESCHI O

POETA SALTIMBANCO 113

4.1 ITINERÁRIOS: DO TEATRO À POESIA 114

4.2 À PROCURA DO EU: GALERIA PALAZZESCHI 125

4.3 TONS VANGUARDISTAS 134

4.4 ENSAIOS DO (PARA O) MODERNO 156

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: RETALHOS 163

REFERÊNCIAS 167

ANEXO A – Poema “L’orologio”, de Aldo Palazzeschi 179

ANEXO B - Obras de Aldo Palazzeschi 183

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1. INTRODUÇÃO: MULTICORES

O início do século XX trouxe consigo marcas profundas nas artes daquele período, prenunciadas por artistas do final do século XIX e deflagradas, com mais vigor, com as vanguardas e o modernismo. Nas veredas da poesia deste período, a descentralidade da figura do poeta e a fragmentação do sujeito poético trouxeram inovações tanto na forma quanto no conteúdo dos poemas, são deslocamentos e reelaborações ocorridas, também em busca de uma renovação estética pelos poetas da época.

Assim, é importante se pensar nas mudanças do período de transição entre o final do século XIX e o início do século XX. A partir da ampliação e fragmentação do mundo moderno, conforme Paz (2012), os sujeitos têm uma imagem diferente do novo mundo, que é desconhecido, como um passo no escuro. Questão que também é averiguada na poesia, com a redução do espaço centralizado dos poetas, pois com o enfraquecimento da figura do poeta-vate, há uma mudança de perspectivas, uma descentralização do sujeito poético, que assim como o mundo moderno, torna-se fragmentado e estilhaça-se em diferentes “eus”, em diferentes vozes no poema.

As principais mudanças observadas nos poemas desse período delineiam uma poesia menos formal, com formas que se abrem para o verso livre e, também, com conteúdos mais voltados para o cotidiano, com o uso de palavras simples, pela presença do prosaico, da coloquialidade, da polifonia. Por vezes, os poetas utilizam recursos como os disfarces (as máscaras), as citações, a presença de outras pessoas do discurso (como o tu), ou, os vários “eus”.

Desses recursos, aquele que interessa pensar neste estudo é a presença da imagem do saltimbanco nos poemas, ou do eu-poético-saltimbanco, que figura como um prolongamento do próprio poeta e como uma representação irreverente do ato poético. Esse novo sujeito poético apresenta-se como uma característica da inquietação do processo criativo e da condição do poeta, enquanto imagem marginal e cômico-irônica do desencanto, da decadência do lugar sagrado do poeta “vate”, mas ao mesmo tempo, da irreverência e da profanação (AGAMBEN, 2007). A relação feita com a figura do saltimbanco, é possível por conta das ressignificações – o termo ressignificação(ções) aponta, nesta tese, para as inúmeras potencialidades de aberturas, não pretende criar outra categoria ou definição para a figura do saltimbanco – que ele teve ao

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longo do tempo2, bem como pelo viés da melancolia, da ironia da marginalidade e do tom trágico que sempre esteve presente nesta figura, mas que ganha novos tons no final do século XIX e início do século XX, como, por exemplo, na imagem do saltimbanco Pierrô3, que foi notória

entre os escritores simbolistas. Segundo a pesquisadora Vera Lins (1998, p. 11, grifo da autora):

O Pierrô, personagem da Commedia dell’Arte, recriada pelos simbolistas, apesar de sua leveza, é um artista perseguido pela má-sorte, voltado aos acidentes e às quedas mais humilhantes. É um ser à margem, que mostra incessantemente que sua pátria não é desse mundo.

Além de Pierrô, outro personagem da Commedia dell’arte, envolto pela ideia do trágico e popular nas artes no início do século XX, é o saltimbanco Arlequim. Como referência à nominação desses saltimbancos, há além destes nomes específicos (Arlequim, Pierrô, Pulcinella), outros mais “generalistas”, como acrobata, bufão, palhaço, malandro, tolo, clown, truão, funâmbulo, curinga, polichinelo, cortesão, intrigante-intriguista. Em função disso, importa esclarecer que se optou, nesta tese, pelo emprego do substantivo “saltimbanco” com o intuito de “padronizar” as diferentes denominações usadas pelos poetas ao se referirem à imagem dessa personagem ou máscara, uma vez que este termo pode tocar, de alguma maneira, esses diferentes nomes. Com relação ao poeta Aldo Palazzeschi, estudado no terceiro capítulo, este utiliza, preponderantemente, a palavra saltimbanco. Dessa maneira, é importante observar que o vocábulo saltimbanco, comporta a ideia de:

[...] artista popular que, nas praças públicas, quase sempre em cima de um tablado, fazia demonstrações de habilidades físicas, de acrobacias, de teatro improvisado, antes de vender

2 Sobre as ressignificações da figura do saltimbanco, é interessante pensar sobre

a ideia da pervivência, que traz o tom da continuidade. O sentido de “perviver” é pensado por Walter Benjamin, por exemplo, a partir da sua ideia de tradução, segundo Susana Lages: “Benjamin emprega três substantivos: Leben (“vida”),

Uberleben (“sobrevivência”, “sobrevida”) e Fortleben (“o continuar a viver”).

Para este último, Haroldo de Campos propôs o neologismo ‘pervivência’” (2011, p. 104), mantido por ela, na sua tradução do ensaio A tarefa do tradutor.

3 A grafia aparece de diferentes maneiras, é possível encontrar registros como:

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ao público objetos variados, pomadas e medicamentos. Saltimbanco é o termo genérico para malabarista, pelotequeiro, embusteiro, charlatão, farsante, pregoeiro [...]. (PAVIS, 2015, p. 349).

Definição que é interessante para se pensar a poesia nesse início de século, pois, de acordo com o excerto citado, o saltimbanco conota a ideia do popular (sua “posição marginal”), do irreverente, do jogo e do improviso. Nessa linha, a partir das pesquisas realizadas, aferiu-se que as denominações, que aparecem em muitos poemas do início do século XX, tais como foram destacadas anteriormente, são variadas e dilatadas, elas abarcam muito da elasticidade que está na acepção da “explosão”, da fragmentação e da liberdade que caracteriza o sujeito poético, no início do século XX.

Nesse contexto de transformações, em que o fazer poético também se redimensiona, sob as vestes do saltimbanco, Velloso (2014, p. 368-369), em artigo “Acrobatas simbólicos: Leituras críticas na modernidade transatlântica”, coloca que os poetas:

[...] sensíveis ao enigma das máscaras, sob as quais se ocultavam os fantasmas e angústias da criação, os literatos simbolistas deram particular ênfase à imagem do Pierrot. Contrastando com o Arlequim, ele representava surpreendente ambivalência, conquistando a cumplicidade e simpatia dos leitores. Esse imaginário da marginalidade simbolizava a vulnerabilidade e o desenraizamento, mas na realidade o artista não estava tão só, pois se integrava a um grupo que funcionava como sua salvaguarda. Projetores de uma tradição crítica, tais literatos mediaram transformações sociais importantes no campo das sensibilidades modernas, integrando imagens intelectivas e materiais. [...] Tais críticos estavam atentos ao trânsito em direção às ruas. No carnaval, vendo passar diante da sua janela um cordão de Pierrots, Colombinas e Arlequins e guiando-se por suas vestimentas. (VELLOSO, 2014, p. 368-369).

Por esse ângulo, observa-se que a imagem enigmática e mascarada do Pierrô simbolista passa a ter outros contornos. O

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saltimbanco do século XX, muitas vezes, aparece sem máscara, não é necessariamente enigmático, mas sim, carregado de tons melancólicos, contemplação que traduz não só as angústias, mas a própria condição cada vez menos central dos poetas e da poesia. Para Mario Fernando Bolognesi (2003, p. 178), as máscaras da Commedia dell’arte são capazes de materializar situações-limite, assim:

Na commedia, a força simbólica das máscaras reporta-se a sentidos sociais e psicológicos próximos de arquétipos: são expressões psicossociais. No jogo cênico das máscaras evidencia-se um embate entre extratos e classes sociais distintos, como entre os zanni e Pantaleão ou entre os criados e o Doutor. O antagonismo psicológico, por sua vez, pode ser notado no confronto entre Arlequim e Pierrô. O primeiro é enganador, misto de ingênuo e grosseiro; o segundo, honesto, terno e encantador. As características distintas (tanto sociais quanto psicológicas) se materializam em máscaras específicas, símbolos de situações-limite. No caso de Arlequim, por exemplo, ele é uma figura que, muitas vezes, aparece em situações limítrofes (de trânsito), primeiramente como um diabo, na Idade Média e depois como um criado, nas peças da

Commedia dell’arte. Em geral, é um irreverente que ousa, pois tende a

“profanar” os papéis sociais entre ele e o seu senhor, por exemplo, mesmo figurando em posições, aparentemente, marginais, ele se coloca no centro das ações. Quando maltratado ele se mostra resiliente às adversidades, o que aponta para uma certa carga de tragicidade inerente a sua figura. Por esses e outros motivos, a fragmentação dessa máscara da Commedia dell’arte (a de ser muitos em um mesmo) possui pontos de contato com os sujeitos multifacetados da modernidade. Mario de Andrade, por exemplo, que trouxe em alguns poemas o neologismo arlequinal4, afirma que teve um losango cáqui em sua vida, ou seja, um

losango amarelado, como a cor de um tipo de barro ou da seriedade de

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Palavra que, em alguma medida, foi usada por Jules Laforgue, poeta que é analisado no segundo capítulo desta tese “Et vais m’arlequinant des défroques / Des plus grands penseurs de chaque époque...” [E vou me arlequinando dos refugos / Dos maiores pensadores de cada época] (LAFORGUE, 1912, p. 360-361).

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uma farda militar, essa imagem parece misturar às multicores alegres dos losangos de arlequim a seriedade do trágico losango cáqui. Assim, em carta a Manuel Bandeira, em vinte de novembro de 1924, ele escreve: “É bem losango que quero dizer...A vida que carrego, que carregas, carrega, é uma veste de arlequim. Cada losango tem sua cor, tive um losango cáqui em minha vida” (BANDEIRA, 2001, p. 34),

Losango Cáqui é nome de um livro de poemas de Mario de Andrade, de

1926. Esta ideia que aproxima sentimentos opostos está no poema “Tristura”, em que Mario de Andrade registra “E dizem que os polichinelos são alegres! / Eu nunca em guizos nos meus interiores arlequinais!” (ANDRADE, 2013, p. 89), o que infere as questões paradoxais do saltimbanco e do poeta.

Outro saltimbanco que é relacionado às situações de “entre-lugar” e importante para este estudo, é o Pulcinella. Segundo Benedetto Croce, em Pulcinella e il personaggio del napolitano in commedia [Pulcinella e a personagem do napolitano em comédia], de 1899, Pulcinella não se define e, apesar das inúmeras tentativas, é de difícil definição (CROCE, 1899, p. 1). Essa leitura dialoga, em alguns pontos, com aquela feita mais recentemente por Agamben (2015), na qual considera que o saltimbanco está sempre no limite entre “aqui e lá”, “Pulcinella è al di là tanto del destino che del carattere, della tragedia come della commedia”5

(p. 53). Segundo Agamben, diante das catástrofes, Pulcinella tem sempre uma saída e, ainda, se a comédia é mais antiga e mais profunda do que a tragédia, ela está mais próxima da filosofia e, portanto, é mais “plausível” de ser lida e apreciada em momentos nos quais parece ser difícil achar espaço para o riso. Momentos como aqueles vivenciados pelos poetas no início do século XX.

Nesse sentido, em uma leitura acerca da questão do cômico, também, presente na imagem do saltimbanco, é possível considerar que ela coexista, juntamente com outras características, como uma necessidade, uma demanda histórica, em um tempo de tantas ebulições. Conforme discorre Marta Barbaro (2008, p. 39), em seu estudo I

poeti-saltimbanchi e le maschere di Aldo Palazzeschi [Os poetas saltimbancos

e as máscaras de Aldo Palazzeschi], “L’elaborazione comica della materia esistenziale sembra imporsi al secolo come una necessità storica; in un tempo in cui il sublime e il tragico sono impraticabili e la realtà appare contradittoria e assurda, il riso si offre come l’unico

5 “Pulcinella está além do destino do personagem, tanto da tragédia como da

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attegiamento intellettuale possibile”6. Nessa perspectiva, há uma abertura para as ressigificações que a imagem dos saltimbancos teve, nesse período, quando além das marcas do cômico, eles passam a carregar, mais do que nunca, a imagem do trágico, do melancólico.

Com relação a essa questão, compreende-se que muitos poetas conectam a imagem do saltimbanco ao seu fazer poético e à melancolia como uma atitude estética, sendo uma “metáfora da condição existencial moderna”, nas palavras de Roberto Vecchi (1996). O passado, nesse caso as imagens da Commedia dell’arte, é relido como fonte de criação, de inspiração e de ampliação dos horizontes criativos7. Sobre esse tema, especialmente na poesia, Barbaro (2008, p. 9) discorre que:

[...] il tema ha già avuto una sua codificazione letteraria e può contare su una ricca e autorevole tradizione poetica, di matrice prevalentemente francese come è noto, infatti, dalla seconda metà dell’Ottocento fino ai primi deceni del Novecento, poeti e scrittori si sono volti al mondo dei saltimbanchi come ad un luogo simbolico privilegiato dal quale attinge una serie di figurazioni e motivi poetici. Per piú di mezzo secolo la letterattura elegge i propri protagonisti fra il popolo dei circhi, dei teatri e delle fiere, e con una volontà allegorizante, che nulla concede alla mimesi realistica, tende a tradurne il movimento di corpi e colori in riflessione

6 “A elaboração cômica da matéria existencial parece impor-se ao século como

uma necessidade histórica; em um tempo em que o sublime e o trágico são impraticáveis, e a realidade é contraditória e absurda, o riso se oferece como a única atitude intelectual possível”.

7 Entende-se que a Commedia dell’arte também pode ser pensada como um

elemento do novo e da ousadia. Além de imprimir novas características às técnicas teatrais, compreende-se que ela trouxe, por exemplo, a figura da mulher para a cena, o que dá mais potência ao espírito de coletividade desse tipo de peça. Nesse sentido, Patrice Pavis, afirma que, “A commedia revivifica (mais que destrói) os gêneros “nobres”, mas esclerosados, como a tragédia cheia de ênfase, a comédia demasiado psicológica, o drama sério demais; ela representa, desse modo, o papel de revelador de formas antigas e de catalisador para uma nova maneira de se fazer teatro, privilegiando o jogo e a teatralidade. Provavelmente, é esse aspecto vivificante que explica a profunda influência que ela exerceu sobre autores “clássicos” como SHAKESPEARE, MOLIÈRE, LOPE DE VEGA ou MARIVAUX” (PAVIS, 2013, p. 62).

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intellettuale e in discorso metaletterario. Allo stesso tempo, la poesia in particolare – quella che aspira ad essere moderna – si fa emula di quei modelli extraliterrarios e tenta di superarli sul piano della potenza significante, sfidando, con i propri strumenti, verbali e persino graffici e tipografici, un linguaggio puramente visivo e fisico8. (BARBARO, 2008, p. 9).

Das “potências significantes” citadas, um movimento importante é o trazido pela melancolia, a qual também “alimenta” a poesia, enquanto potência geradora no terreno do sensível. São sensações de um poeta que, mesmo não enunciando um “eu”, é carregado pela subjetividade daquilo que observa e sente. É interessante perceber que a poesia traz não só a palavra, mas o silêncio, a impossibilidade do dizer, o indizível e o aberto, em que as palavras construídas na página, mesmo que escolhidas, não dão conta do “inapreensível”, cada vez mais patente no mundo moderno.

No que é atinente ao fazer poético e à imagem dos saltimbancos, permeados de “horizontes” paradoxais, é possível pensar na aproximação entre o belo e o feio, por razão da subtração das distinções trazidas pelo moderno, que, segundo Friedrich (1978), são necessárias para uma orientação normal do universo. Tais aproximações, muitas vezes, acentuam a presença de uma linguagem dissonante, com traços “complexos” que estão no conteúdo e na forma. Nesse sentido, para o autor:

[...] pode-se falar de uma dramaticidade agressiva do poetar moderno. Ela domina na relação entre

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“[...] o tema já teve uma codificação literária e pode contar com uma rica e respeitável tradição poética, de matriz preponderantemente francesa, como se sabe, de fato, a partir da segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX, poetas e escritores voltaram-se ao mundo dos saltimbancos como a um lugar simbólico privilegiado do qual se extrai uma série de figurações e motivos poéticos. Por mais de meio século a literatura elege seus protagonistas entre o povo dos circos, dos teatros e das feiras, e com um desejo de alegoria, que nada concede à mimese realista, tende a traduzir seu movimento de corpos e cores em reflexão intelectual e em discurso metaliterário. Ao mesmo tempo, a poesia em particular – aquela que aspira a ser moderna – se faz emulação desses modelos extraliterários e tenta superá-los no plano da força significante, desafiando, com os próprios instrumentos, verbais e até gráficos e tipográficos, uma linguagem puramente visual e física”.

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os temas ou motivos que são mais contrapostos do que justapostos, além disso, domina na relação entre esses e um comportamento inquieto de estilo que separa, tanto quanto possível, os sinais do significado. Mas ela determina também a relação entre poesia e leitor. Este não se sente protegido, mas, sim, alarmado. (FRIEDRICH, 1978, p. 17). Assim, a poesia tende a “fazer sentido a partir do que excede o sentido; à margem da razão, entre a escória e o fogo, operar a síntese de uma razão superior” (STAROBINSKI, 2014, p. 8) e, nesse aspecto, o poeta-clown, o fool, o louco – que está sempre vigiando e sendo vigiado pelos olhos do abismo, pelo desassossego da alma e pela morte – consegue manipular esses deslocamentos e transbordamentos da linguagem poética do moderno, que não objetivam, necessariamente, a “eficácia do discurso”, pois:

Nem a angústia, nem a exaltação amorosa, nem a alegria ou o entusiasmo são estados poéticos em si, porque não existe o poético em si. São situações que, por seu próprio caráter extremo, fazem desabar o mundo e tudo o que nos rodeia, incluindo a morta linguagem cotidiana. Só nos resta então o silêncio ou a imagem. E essa imagem é uma criação, algo que não estava no sentimento original, algo que nós criamos para nomear o inominável e dizer o indizível. Por isso todo poema vive à custa de seu criador. Uma vez escrito o poema, aquilo que ele era antes do poema e que o levou à criação – isso, indizível: amor, alegria, angústia, tédio, nostalgia de outro estado, solidão, ira – se fundiu em imagem: foi nomeado e é poema, palavra transparente. (PAZ, 2012, p. 174-175).

Conforme Paz (2012), os estados de alma “angústia, exaltação amorosa, alegria, entusiasmo” não são manifestações poéticas em si. Corporificam-se no processo de criação, potencializando-se no silêncio ou na imagem. A imagem no discurso poético reproduz uma expressividade única e pungente, como aquela imagem, por exemplo, do saltimbanco contemplativo do poema em prosa “O velho saltimbanco” de Charles Baudelaire. Nesse horizonte, compreende-se que o sujeito poeta, na condição de sujeito moderno, sob a máscara de um

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saltimbanco ou sob as vestes de losangos sem cor, como é o caso do Arlequim de Picasso, sem máscara e sobre o qual se discorre no primeiro capítulo deste estudo, questiona-se sobre a própria existência e a sua identidade, enquanto artista. Assim, esse sujeito, imerso em sentimentos conflitantes do mundo moderno e, ao mesmo tempo, carregado de angústia em função da reconfiguração de seu espaço no mundo, enfrenta esses paradoxos e aflições e escreve, ou seja, encontra estratégias para encarar os embates com o mundo e com a linguagem e, nessa perspectiva, tais sentimentos acabam potencializando o seu caráter producente.

Naquilo que concerne à tragicidade das máscaras dos saltimbancos, como estratégia utilizada por muitos poetas e artistas, Vecchi considera que elas operam como metáforas da condição existencial moderna, ou seja:

Maschere e fantocci costituiscono, in fondo, voce privilegiata dell’enciclopedia del decadentismo che, affermandosi universalmente come metafora immediata della condizione esistenziale moderna, forma vere e proprie correnti sotterranee di influenze che attraversano le erosioni calcaree della tradizione decadente9. (VECCHI, 1996, p. 453).

Nesse universo simbólico, o salto do saltimbanco figura como a manifestação, inquestionável, da vida e da própria morte. “El arte, como se ve, no es una eficaz operación de salvación, sino más bien una pantomima sublime al borde de la tumba, que vela, sólo por un instante,

los terrores del precipicio10” (STAROBINSKI, 2007, p. 70). Nesse sentido, o saltimbanco (aqui ele se refere ao Arlequim) é figura que excede o humano, liga-se ao divino e, também, ao animal, algo quase infantil, movido pela inocência e as inquietudes da criança; os

9 “Máscaras e fantoches constituem, no fundo, voz privilegiada da enciclopédia

do decadentismo que, afirmando-se universalmente como metáfora imediata da condição existencial moderna, forma verdadeiras e autênticas corrente subterrâneas de influências que atravessam as erosões calcárias da tradição decadente”.

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“A arte, como se vê, não é uma operação eficaz de salvação, mas sim, uma pantomima sublime à beira da sepultura, que vela, apenas por um instante, os terrores do precipício”.

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saltimbancos, com sua agilidade, tocam o alto e o baixo, o céu e o inferno (BAKHTIN, 2013) e, assim, segundo Starobinski (2007):

La vida inferior se convierte en la vía de acceso a un saber superior. Un cortocircuito reúne la animalidad y la soberanía. Nos encontramos en un umbral iniciático: los saltimbanquis conocen la contraseña que conduce hacia el mundo sobrehumano de la divindad y hacia el mundo infrahumano de la vida animal11.

(STAROBINSKI, 2007, p. 101).

Desse modo, conhecer e compreender os processos de construção e de ressignificações do sujeito poeta da poesia moderna é uma questão crucial neste estudo. Diante das questões apresentadas, perfila-se a tese, que norteará este estudo: o poeta da poesia moderna do início do século XX se ressignifica por meio da figura do saltimbanco.

A problemática que perpassa esta tese centra-se na compreensão de como o poeta moderno, dentro de suas condições de produção, ressignifica-se e pensa o seu fazer poético por meio da figura do saltimbanco, em especial, em poemas do italiano Aldo Palazzeschi, com incursões em Charles Baudelaire e Jules Laforgue. São poetas que possuem características das diversas tendências da época (simbolismo, decadentismo, crepuscularismo, modernismo, futurismo), estão, portanto, em um contexto de transições, que marcaram as bases para a poesia do século XX. Nesse sentido, se eles forem aproximados à “condição crepuscular”, por exemplo, sobre a qual discorre Guido Mazzoni (2005, p. 186-187), então, entende-se que estes poetas traçaram caminhos que, de alguma maneira, afastam-se da poética romântica, tratando as subjetividades “do eu”, de modo irreverente.

De modo que, o objetivo é compreender como o poeta, diante da descentralização da sua imagem, constrói a sua poesia, pela figura do sujeito poético que se multifaceta, fragmenta-se, na e pela linguagem e, de alguma maneira, também se refunda, por meio de vários artifícios, dentre os quais a máscara do saltimbanco. Em face disso, a presente tese se justifica por este movimento que busca refletir tanto sobre a figura do poeta (sem aura), quanto a do saltimbanco, verificando como elas se

11 “A vida inferior se converte em via de acesso a um saber superior. Um curto

circuito reúne a animalidade e a soberania. Estamos em um umbral iniciático: os acrobatas conhecem a senha que leva ao mundo sobre-humano da divindade e ao mundo infra-humano da vida animal”.

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ressignificam e, assim, apresentam-se no fazer poético moderno, ou seja, no “campo delle forze della poesia moderna12”. (MAZZONI, 2005, p. 184).

A partir disso, conhecer as novas reelaborações literárias, que a imagem do saltimbanco possibilita, motiva esta pesquisa. O devir da máscara do saltimbanco instiga conhecer as suas múltiplas figurações. Por fim, pode-se dizer que um trabalho dessa natureza será profícuo pelas discussões importantes que se inscrevem no âmbito da teoria literária e no âmbito da literatura comparada. Em se tratando do primeiro caso, o da teoria literária, compreende-se que a releitura feita acerca do “eu poético” permite repensar, de alguma maneira, essa “posição” dentro da literatura. No que tange à literatura comparada, o presente estudo permite traçar, de alguma maneira, pontos de contato entre as literaturas dos diferentes contextos culturais.

Dividida em três capítulos, esta tese se propõe a discutir, primeiramente, as subjetividades que envolvem o sujeito poético, para pensar na condição do poeta e da poesia na transição entre o século XIX e o século XX. Para tanto, no primeiro capítulo, “Fragmentos”, é feito um preâmbulo acerca das ocorrências e das ressignificações da imagem do saltimbanco, para compreender como ele se recria e pervive no meio artístico. Enquanto retrato do sujeito poético moderno: fragmentado, deslocado, multifacetado e contemplativo, assim, propõe-se a leitura de um dos arlequins pintados por Pablo Picasso, o Arlequim sentado (retrato do pintor Jacinto Salvado), de 1923. Nesse sentido, o salto do acrobata saltimbanco é visto como uma alegoria do poeta ante seus abismos. Além disso, discute-se ainda, em um caminho teórico-crítico, acerca da problemática do eu-lírico e das compreensões desse sujeito, nos diferentes contextos sociais e estéticas literárias, para se chegar nas concepções da época, acerca dessa figura.

Com o intuito de esclarecer e de elucidar os itinerários da imagem do saltimbanco, parte-se, no segundo capítulo, “Farrapos”, de alguns aspectos, como a melancolia e a despersonalização, características que fertilizam a poesia de alguns poetas finisseculares. A ideia de melancolia que perpassa o final do século XIX e o início do século XX é vista à luz dos pressupostos de Walter Benjamin e Giorgio Agamben, com foco na imagem do intriguista, personagem dos dramas barrocos alemães, enquanto gênio melancólico. Nessa linha, a análise do poema “O velho saltimbanco”, de Charles Baudelaire, dá corpo à condição do artista no fim do século XIX, que se desdobra no legado

(32)

dos poetas do início do novo século. Nesse viés, outra imagem importante é a do saltimbanco Pierrô, trazida pelo poeta Jules Laforgue, a qual contribui tanto para a compreensão da imagem do poeta e dos seus travestimentos, na modernidade, quanto para a ideia do fazer poético e da herança dos saltimbancos que perpassa os seus pierrôs lunares.

Já no terceiro capítulo, “Losangos”, chega-se ao cerne deste estudo, em que, por meio da análise de poemas de Aldo Palazzeschi, são amarradas as questões expostas nos primeiros capítulos. Os ímpetos vanguardistas de alguns poemas e do manifesto futurista de Palazzeschi são lidos enquanto proposta de renovação, possíveis pela irreverência do sujeito-poético-saltimbanco. Este poeta compõe o corpus deste estudo, por entender-se que, ao trazer a imagem do saltimbanco para a cena poética, Palazzeschi dá um passo inovador e atua, assim, como marco importante em um período de tempo decisivo, de transformações e transições entre século. Cabe destacar que este poeta ainda é pouco estudado e traduzido no Brasil, assim, esta tese também tem o papel de, em alguma medida, apresentar aos leitores brasileiros alguns poemas e aspectos da produção poética do escritor Palazzeschi.

Ainda em tempo, faz-se necessário uma informação de cunho metodológico acerca da tradução das passagens em língua estrangeira, as quais, quando não indicadas de outra maneira, foram feitas para fins deste estudo, em sua maioria, em conjunto com o tradutor Francisco Saraiva Degani, que também revisou aquelas realizadas por mim.

(33)

2. CAPÍTULO I – FRAGMENTOS: O SUJEITO POÉTICO, DESLOCAMENTOS E RESSIGNIFICAÇÕES

Frente às inúmeras vertentes e colocações acerca do sujeito poético e da subjetividade lírica, este capítulo visa problematizar estas questões que são controversas e não encerradas. Desse modo, é feito, aqui, um preâmbulo que aborda algumas dessas ideias, para desaguar no intuito principal, que é o de se pensar a condição do poeta e da poesia, que se apresentam sob a máscara do saltimbanco, em especial no início do século XX, o qual “leva água ao moinho” que movimenta este estudo.

Nesse sentido, primeiramente são pensados alguns pontos, como as ocorrências e ressonâncias acerca das ressignificações e dos desdobramentos que a figura do saltimbanco adquire, nas artes do início do século XX e, em um segundo momento, mais especificamente as questões relativas às subjetividades do sujeito poético na transição entre os dois séculos. Com relação ao primeiro ponto (ocorrências e ressonâncias), é importante a ideia da sobrevivência, pois, considerando que os saltimbancos se reelaboram e se recriam no contexto das diferentes culturas e gêneros artísticos, de maneira anacrônica, tal reelaboração os fortalece e enfatiza a sua força, para que continuem de alguma forma existindo.

A sobrevivência, entendida pelo viés da intensidade e da continuação da vida que permeiam a figura do saltimbanco, pode ser lida como análoga ao processo de tradução, com o sentido de Fortleben, conforme considera Walter Benjamin, no texto A tarefa do tradutor, de 1923. Ensaio resultante da tradução de poemas de Baudelaire, foi editado como prefácio à sua tradução para o alemão dos Tableaux

parisiens. O termo alemão [Fortleben] traduzido pelo neologismo

“pervivência” por Haroldo de Campos e retomado pela estudiosa Susana Lages (2010, p. 211), mostra que a tradução:

[...] na sua pervivência [Fortleben] (que não mereceria tal nome, se não fosse transformação e renovação de tudo aquilo que vive), o original se modifica. Existe uma maturação póstuma mesmo das palavras que já se fixaram: o que à época do autor pode ter obedecido a uma tendência de sua linguagem poética, poderá mais tarde esgotar-se; tendências implícitas podem surgir como novas da forma criada [Geformten].

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Diante disso, reapropriando a compreensão de pervivência para a imagem do saltimbanco, observa-se que são as inúmeras versões e atualizações dessa figura que garantem a sua sobrevida. A tradução é a sobrevida de um texto, assim, quanto mais leituras (traduções), mais se “alimenta” o texto primeiro e mais se amadurecem e se reelaboram as suas ideias, nesse sentido, o termo pervivência tomado aqui para a máscara do saltimbanco demarca a sua sobrevivência sempre renovada.

Nessa perspectiva, a movimentação temporal dessa figura, volta a atenção para o segundo ponto, ou seja, para as ressignificações que a figura dos saltimbancos tem no início do século XX, a qual pode ser lida, também, à luz dos pressupostos agambenianos (2015), acerca do cômico e do saltimbanco Pulcinella, enquanto imagem portadora de potencialidades reflexivas em tempos de crise.

O cômico13 é visto por Agamben, no livro Pulcinella ovvero

divertimento per li regazzi, in quattro scene [Pulcinella ou divertimento

para jovens, em quatro cenas], como a única saída possível em tempos de crise, no qual parece “não haver espaço para o trágico”. Pelos gestos de Pulcinella, o autor mostra o que pode um corpo quando toda a ação política se torna impossível, uma vez que, esse saltimbanco improvia novas saídas para a escuridão do presente:

Il comico non è solo un’impossibilità di dire esposta come tale nel linguaggio – è anche una impossibilità di agire esposta in un gesto. Ma Pulcinella non è, per questo, semplicemente impolitico, egli annuncia ed esige un’altra politica, che non ha più luogo nell’azione, ma mostra che cosa può un corpo quando ogni azione è diventata impossibile. Di qui la sua attualità, ogni volta che la politica attraversa una crisi decisiva – per Giandomenico Tiepolo, la fine dell’indipendenza di Venezia nel 1797, per noi, l’eclissi della politica e il regno dell’economia planetaria. Mettendo in questione il primato della prassi, Pulcinella ricorda che vi è ancora politica al di qua e al di là dell’azione14. (AGAMBEN,

2015, p. 71).

13

Categoria contemplada em outros momentos da obra do estudioso, como no primeiro ensaio do livro Categorias Italianas, de 1996.

14

“O cômico não é apenas uma impossibilidade de dizer, exposta como tal na linguagem é também uma impossibilidade de agir, exposta em um gesto. Mas Pulcinella não é por isso simplesmente impolítico ele anuncia e exige outra

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Nesse sentido, é possível fazer um paralelo entre o Pulcinella ressignificado por Tiepolo, no final do século XVIII e os saltimbancos ressignificados no período de transição, entre o final do século XIX e o início do século XX, conforme se busca mostrar nesta tese. O saltimbanco enquanto uma imagem que evoca o cômico (mas não só, pois o riso e a ironia encobrem o tom trágico), é lida, portanto, como uma das possibilidades de dar vazão à linguagem e às aspirações das artes daquele momento.

2.1 O SALTIMBANCO RESSIGNIFICADO

O eixo estruturante desta pesquisa, no qual está a imagem do saltimbanco como presença em algumas elaborações poéticas do início do século XX, mostra que ela é portadora de potencialidades plurais, em especial, por meio das máscaras dos saltimbancos Pierrô, Arlequim e Pulcinella, uma vez que tais figuras se recriam, ressignificam-se e pervivem, anacronicamente, na literatura e nas artes, veja-se, por exemplo, os muitos autores e teóricos que trataram dessa questão, conforme o material encontrado e analisado para o corpus deste estudo.

A cartografia desse mapa forma um arquivo em aberto, o qual pode ser lido a partir de diversas constelações, indiretamente também abordadas neste estudo. Esse arquivo funciona como aspecto de um fenômeno, cujos vestígios corroboram a ideia fundamental de se problematizar e pensar o discurso e as subjetividades dos poemas, das narrativas, da dramaturgia e das pinturas desse conjunto. Sendo assim, é possível encontrar, entre outras, as seguintes ocorrências e registros sobre o assunto, conforme o Quadro 1, a seguir.

política, que não tem mais lugar na ação, mas mostra o que pode um corpo quando toda ação se tornou impossível. Isso é o que o faz atual, toda a vez que a política passa por uma crise decisiva – para Giandomenico Tiepolo, o final da independência de Veneza, em 1797, para nós a decadência da política e o reinado da economia planetária. Colocando em questão a primazia da práxis, Pulcinella lembra que ainda há política antes e depois da ação”.

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Quadro 1 – Obras que trazem a figura do saltimbanco

Ano Autores Obras

1864 Machado de Assis “Os arlequins” (poema).

1869 Charles Baudelaire “O velho saltimbanco” (poema em prosa).

1880 Cesário Verde “O sentimento dum ocidental” (poema).

1886 Jules Laforgue “Locuções dos Pierrôs” (poemas). 1884 Albert Giraud “Pierrot Lunaire” (livro de poemas). 1893 Luigi Pirandello “I saltimbanchi” [Os saltimbancos]

(poema).

1893 Cruz e Souza “O Acrobata da dor” (poema). 1896 Rubén Darío “Canción de carnaval” [Canção de

carnaval] (poema).

1900 Cruz e Souza “Canção do Bêbado” (poema). 1909

1909 Leopoldo Lugones Aldo Palazzeschi “Lunario sentimental” (livro). “Chi sono?” (poema). 1913 Guillaume Apollinaire “Saltimbancos” e “Crepúsculo”

(poemas).

1914 Ardengo Soffici Arlecchino [Arlequim] (livro em

prosa).

1919 Manuel Bandeira Carnaval (livro).

1920 Guilherme de Almeida “Carnavalada” (poema).

1920 Menotti del Picchia As Mascaras15 (livro de poemas em forma de peça teatral)

1921 Frederico García Lorca “Arlequín – teorías” (poema). 1922 Martins Fontes Arlequinada: fantasia funambulesca

mimo (texto para teatro).

1922 Mário de Andrade “Noturno” (poema). 1922 D. Xiquote16 Arlequim (livro).

1923 Rainer Maria Rilke “Quinta Elegia” (poema). 1924 Almada Negreiros Pierrot e Arlequim (peça teatral).

1929 Henriqueta Lisboa “Carnaval” (poema).

1935 Giorgio Caproni “Saltimbanchi” [Saltimbancos] (poema).

1940 Mário Quintana Soneto “X” (poema). 1946 Murilo Mendes “O Arlequim” (poema). Fonte: Elaborado pela autora.

15

Optou-se por manter a ortografia da edição consultada, ou seja, sem a marcação do acento agudo na palavra “máscaras”, que intitula a obra.

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Além desses, Jean Starobinski (2007) cita outros autores e artistas que trataram sobre o tema ou que se perfilaram sob a máscara dos saltimbancos, como: Musset, Flaubert, Jarry, Joyce, Rouault, Henry Miller, Gautier, Deburau, Shakespeare, Banville, Mallarmé, Louis Ganne, Leoncavallo, Michel Leiris, Verlaine, Willette, Honoré Daumier, Lautrec.

Como se percebe, é notável o número de artistas e de obras que trouxeram à baila a figura do saltimbanco, principalmente nos anos iniciais do século XX, com algumas variações anteriores e posteriores a esse período. A ressonância entre textos, temáticas e imagens é comum na literatura e nas artes, pois essa “fertilização” ou o “eco entre um texto e outro” é “e sempre foi um dos meios mais correntes de composição”, conforme coloca Antonio Candido (2004, p. 43). Isso ocorre, de alguma maneira, com a imagem do saltimbanco, que já era representada na figura do bobo, o bufão que divertia a corte na Idade Média, enquanto um diabrete, e mais tarde se consagrou e se popularizou na Commedia

dell’arte17 (século XV-XVIII). Depois desse período, nota-se que há uma ressonância dessa figura na transição entre os séculos XIX e XX tanto na literatura como no circo e nas artes plásticas. Sobre esse assunto, também Affonso Romano de Sant’anna (2014), no prefácio que faz à edição da obra Carnaval, de Manuel Bandeira (2014), explica que: O carnaval e os personagens Arlequim, Pierrot e Colombina eram moda, eram assunto de teatro, romance, poesia, ópera e artes plásticas. [...]. O circo, por exemplo, teve nessa época certo esplendor e absorveu alguns desses personagens. Vejamos, apenas como aperitivo, alguns exemplos nas artes plásticas na passagem do século XIX

17 “A Commedia dell’arte era antigamente denominada commedia all improviso, commedia a soggetto, commedia di zanni, ou, na França, comédia

italiana, comédia das máscaras. Foi somente no século XVIII (segundo C. MIC, 1927) que essa forma teatral, existente desde meados do século XVI, passou a denominar-se Commedia dell’arte – a arte significando ao mesmo tempo arte, habilidade, técnica e o lado profissional dos comediantes, que sempre eram pessoas de ofício. Não se sabe ao certo se a Commedia dell’arte descende diretamente das farsas atelanas romanas ou do mimo antigo. [...] parece ser verdade que tais formas populares, às quais se devem juntar os saltimbancos, malabaristas e bufões do Renascimento e das comédias populares e dialetais de RUZZANTE (1502-1542), preparam o terreno para a commedia” (PAVIS, 2011, p. 61, grifo do autor).

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para o século XX. George Seurat fixou nos seus quadros a temática do circo. Em Picasso, entre tantos exemplos, Família dos saltimbancos; Cézanne retratou Arlequins e Pierrots; George Rouault pintou Pierrot branco, Arlequim e

Terça-feira gorda. Na ópera, destaca-se: Pagliacci

(Leoncavallo), de 1892. Até a música de vanguarda, que surgiu dentro da reformulação da arte moderna, voltou-se para esta temática, como prova Pierrot lunar, melodrama de Arnold Schoenberg (1912). Quer dizer, durante uns quarenta anos esse assunto povoou o imaginário dos artistas. (SANT’ANNA, 2014, p. 11).

Dentro desse imaginário presente no meio artístico, são importantes para esta pesquisa algumas elaborações poéticas do início do século XX, em especial na poesia de Aldo Palazzeschi, que problematizam a imagem do “saltimbanco”, a partir da figura descentralizada do poeta e do eu poético, enquanto sujeito(s) da sociedade moderna (do começo do século XX).

Para introduzir a discussão, apresenta-se, pelo campo da pintura, uma imagem do saltimbanco arlequim plasmada por Pablo Picasso (Figura 1), entre os tantos arlequins que pintou ressalta-se um dos seus quadros intitulado Arlequim sentado, de 1923, que retrataria a condição de deslocamento da figura do sujeito (artista) moderno, nesse caso, trata-se de um retrato do pintor espanhol Jacinto Salvado18 (1892-1983), que posou algumas vezes como modelo para o pintor Picasso. É a imagem de um arlequim silhuetada em seus contornos, que são preenchidos por cores apenas em poucas partes, isto é, a face é pintada em tons pastéis e o ombro direito aparece com alguns poucos losangos amarelos e laranja. Constam, também, ornamentos como o chapéu e o lenço amarrado ao pescoço em cores, que, nesse caso, são escuras, quase pretas. As demais partes da roupa e do corpo desse arlequim são preenchidas pelo branco, que contrasta com o fundo escuro do quadro, o qual, por sua vez, chama a atenção por ser manchado por uma espécie de nuvem aurática que põe em evidência a cabeça e o ombro direito, onde está, justamente, a única parte colorida da roupa.

18

Jacint Salvadó i Aragonés, pintor espanhol amigo de Picasso e apresentado por ele aos “marchands” parisienses, serviu de modelo para alguns retratos dos arlequins de Picasso.

(39)
(40)

Isso posto, compreende-se que o arlequim, da pintura de Picasso, pode ser a imagem do “eu” em uma época em que este parece se fragmentar, como os losangos coloridos da roupa de arlequim, ou até, fundir-se no branco do apagamento, a cor branca enquanto combinação de todas as cores, representaria tanto o desaparecimento, quanto a ressignificação desse eu, que neste caso, poderia ser “tudo quanto te convém”19. O que é reiterado pelo rosto sem máscara: “Diciamo subito una cosa importante: tutti, proprio tutti gli Arlecchini di Picasso sono senza maschera; offrono alla finzione la loro faccia. Sicuramente c’è una ragione poetica: il mascheramento è interiore, non servono protezioni di cuoio per nascondere la personalità dell’artista” 20 (FANO, 2012, p. 43).

Sobre isso, uma leitura possível é feita por Nicola Fano (2012), no livro La tragedia di Arlecchino: Picasso e la maschera del

Novecento [A tragédia de Arlequim: Picasso e a máscara do século XX],

em que considera que:

Arlecchino è l’ultimo individuo prima dell’esplosione della massa nella quale si perderà il Novecento; è il comico che – senza più la forza della maschera – dovrà riassumere sulla propria faccia nuda tutti i guai del mondo perché, non potendo più piangere, i suoi spettatori possano almeno liberarsi dal dolore ridendo. Picasso se ne era reso conto per tempo, beato lui!21. (FANO,

2012, p. 7, grifo do autor)

Nesse sentido, o que a citação traz é a força do saltimbanco de Picasso, para se mostrar sem máscara, sem proteção. Não há mais uma máscara física, porém, continua uma “máscara”, pela roupa e pelo olhar

19

Em referência a um verso do poema “O descante de Arlequim”, de Manuel Bandeira (1990, p. 170), “Eu nesta veste de retalhos / Sou tudo quanto te convém”.

20 “Devemos dizer algo importante: todos, simplesmente todos os Arlequins de

Picasso são sem máscara; oferecem sua face à ficção. Certamente há uma razão poética: o mascaramento é interior, não usam proteção de couro para esconder a personalidade do artista” (FANO, 2012, p. 43).

21 “O Arlequim é o último indivíduo antes da explosão da massa na qual se

perderá o século XX; é o cômico que – sem mais a força da máscara – deverá reassumir sobre o próprio rosto nu todos os problemas do mundo, para que, não podendo mais chorar, os seus espectadores possam pelo menos libertar-se da dor rindo. Picasso se deu conta prematuramente, abençoado seja!” (FANO, 2012, p. 7).

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que é perdido, por exemplo. Esse artista apresenta-se “nu”, com o rosto “limpo” e, desse modo, é capaz de assumir em si todos os “eus” com suas vicissitudes e problemas que sobrevém junto com o novo século. Portanto, essa multiplicidade de sujeitos, cujos olhos não conseguem mais “chorar”, ganha motivos para “sorrir”22 ao se ver, de alguma maneira, espelhada nesse rosto de arlequim. Se de acordo com a citação, esse arlequim de Picasso seria o último dos indivíduos antes da “explosão da massa”, em que os sujeitos parecem dissolver-se, fragmentar-se, em meio à massa da modernidade, por outro lado, a aura que o envolve pode ser tanto a luz que está se apagando, e deixa, então, de iluminar e de lançar cores a esse sujeito único e múltiplo, quanto à luz que está se acendendo para revelar a multiplicidade única desse sujeito, de forma a potencializar seu ar melancólico23.

A postura desse arlequim é grave e ausente, característica comum a muitas imagens da melancolia, conforme esclarece Starobinski (2014, p. 45-46), em A melancolia diante do espelho:

Pintores, gravuristas, escultores produziram imagens em que, por vezes, não se encontram os índices seguros que permitiriam distinguir entre a tristeza estéril e a meditação fecunda, entre prostração do vazio e a plenitude do saber. A gravidade inspirada, o gênio pensativo, muitas vezes fazem figura de meio-termo entre esses dois estados: o artista que representa esses personagens quer que os vejamos tomados pelo sentimento da morte e por pensamentos imortais. Daí as significações ambíguas que podem assumir, nas artes visuais, a personagem inclinada, que às vezes apoia a cabeça numa das mãos. Esse gesto aponta a presença do corpo que pesa, do espírito que se ausenta [...]. Sobre o que se inclinam esses personagens? Às vezes, sobre o vazio ou sobre o horizonte infinito. (STAROBINSKI, 2014, p. 45-46).

No caso da imagem arlequinesca de Picasso – que se mescla tanto com a fisionomia séria e com o branco das roupas, que é uma das

22 A questão do riso, em “substituição” ao choro, é também apregoada pelo

Manifesto Futurista de Aldo Palazzeschi, Il Controdolore, de 1914, como se verá mais adiante.

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características do melancólico saltimbanco Pierrô, quanto, em alguma medida, com a imagem de Pulcinella, que também se apresenta com roupas brancas – sua postura ausente (mais perceptível no olhar) condiz com o deslocamento de sua face voltada para o lado, quase perfilada. Ela pode conotar uma autorreflexão, uma contemplação própria dos espíritos melancólicos, dos “gênios pensativos” aos quais se refere Starobinski.

Esse movimento denota um desconforto como se o retratado estivesse tateando novos sentidos e repensando uma nova postura, “uma tomada de posição” outra, diante da liquefação das suas “certezas” enquanto sujeito moderno. O descolorido, como “apagamento” do sujeito que sem as suas singulares cores se perde na escuridão da massa, evidencia, sobretudo, uma abertura para o novo, o desconhecido em um espaço que, por estar em branco, concentra toda a heterogeneidade de cores e de sujeitos, cujos fragmentos compõem o mosaico que é a modernidade do século XX. Com relação ao arlequim plasmado por Picasso, Nicola Fano (2012, p. 3, grifo nosso) atenta que nessa imagem não há mais do que resignação:

A fissarlo per un po’ c’è da sentirsi scuotere dentro. Sembra che osservi qualcosa per terra

come per evitare il confronto diretto con lo spettatore: e invece quegli occhi si perdono nel vuoto. Le mani giunte sono colte dal pittore in un

momento di tregua, ma si capisce che si stanno sfregando senza rabbia: un gesto ripetitivo. Forse un modo per combattere il freddo: un movimento automatico, magari un tic. Non c’è altro che rassegnazione, in questo quadro24.

E que resignação seria essa, que deixa o arlequim pensativo e com o olhar voltado para o vazio, em busca de algo que nem ele sabe o que é? Pode ser a resignação diante da “falta” de luz, do “enfraquecimento” da aura e do espaço do artista, frente ao progresso e

24 “Olhando-o por algum tempo, sentimos algo se agitar dentro de nós. Parece

que ele olha para algo no chão, como que para evitar o confronto direto com o espectador: e, em vez disso, aqueles olhos se perdem no vazio. As mãos juntas são capturadas pelo pintor em um momento de trégua, mas se nota que se esfregam sem raiva: um gesto repetitivo. Talvez uma forma de combater o frio: um movimento automático, talvez um tique. Não há nada além de resignação nesse quadro” (FANO, 2012, p. 3).

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aos avanços tecnológicos. O fin de siècle (século XIX) e o começo do novo século (século XX), conforme indicam Lorenzini e Colangelo (2013, p. 11), são marcados tanto pelas convulsões históricas traumáticas, quanto pela transformação das percepções de espaço e tempo e, desse modo, pelas categorias nas quais se estruturam a linguagem e o pensamento – a literatura, a filosofia, a antropologia, as artes – em função de uma aceleração radical que altera as dinâmicas sociais.

Por esse ângulo, pode-se perceber o saltimbanco de Picasso absorto em seus pensamentos e “Con quello sguardo sembra quasi che Arlecchino si chieda: a che serve più un comico dopo una guerra?”25

(FANO, 2012, p. 3). Nesse caso, o crítico refere-se à Primeira Guerra Mundial e à questão da atuação dos artistas/intelectuais depois de uma guerra. Nessa ótica, esse Arlequim, enquanto retrato do pintor Salvado, também está se ressignificando, imerso em contemplações, que ainda conforme Fano (2012), tem a face nua, sem máscara e aparece como um rei sem autoridade, deposto, vencido pela ascensão industrial, pela luz elétrica e pelo riso desmedido defronte ao drama comum. Assim, o

Arlequim sentado, de Picasso, está mais próximo da imagem que,

comumente, tem-se do bufão Pierrô, no entanto, demonstra também a tendência, inaugurada no século XX, de um saltimbanco “em negativo”, isto é, com traços melancólicos.

Nesse sentido, com relação ao início do século passado, é importante lembrar que os movimentos de vanguarda (e Picasso participou deles) quiseram cortar os elos com o passado, mas retomaram e ressignificaram alguns de seus elementos, assim, Arlequim e outros saltimbancos, vindos da Commedia dell’arte ou ainda da idade média, ganharam novo espaço, como explica Fano na passagem “Soprattutto a teatro. Ma anche altrove, grazie alle mille chiavi di lettura che l’antica maschera italiana poteva garantire a discipline di studio nuovissime, come l’antropologia o la psicoanalisi”26 (FANO, 2012, p. 7-8). Desse modo, a máscara do arlequim ressignificada no início do século XX amplia as percepções acerca de suas plurissignificações, o que toca de alguma maneira, nos múltiplos “eus” dos sujeitos modernos, cindidos e variados, como os retalhos da sua roupa. O arlequim do novo século

25

“Com aquele olhar parece quase que o Arlequim se pergunte: para que mais serve um cômico depois de uma guerra?” (FANO, 2012, p. 3).

26

“Especialmente no teatro. Mas também em outros lugares, graças às mil chaves de leitura que a antiga máscara italiana podia garantir a novíssimas disciplinas de estudo, como a antropologia ou a psicanálise”.

(44)

representa o sujeito que sabe se adaptar, de maneira elástica e resiliente, às inúmeras atividades da vida moderna, em uma reelaboração que potencializa a comunhão das diferenças, tanto do grotesco diabólico27do

arlequim medieval, quanto da leveza do cômico e irônico do arlequim da

Commedia dell’arte.

Assim, é possível relacionar o movimento das acrobacias e do cabriolar dos saltimbancos à “leveza poética”, na forma e no contéudo dos poemas, contudo, nem sempre traz questões “leves”, no mais das vezes, vale lembrar, o riso vem das situações trágicas, é um riso irônico e camuflado que revela as mazelas da sociedade, e se essa figura é aproximada da condição do poeta desse período de transição, então este, por sua vez, carrega as marcas dessa ironia, como é o caso de alguns poemas de Aldo Palazzeschi, analisados nesta tese, nos quais é possível perceber esses deslocamentos e transfigurações no sujeito-poético.

Levando em consideração as marcas que aproximam o saltimbanco da figura do poeta, é importante expor as ideias de Jean Starobinski (2007), em que ao trazer a imagem dos mímicos acrobatas, ele considera que esses abordam o impossível e é assim que os artistas poderiam ser aproximados a esses saltimbancos, pois, no início do século XX, os pintores e escritores exploraram de maneira ativa o impossível. Dessa maneira, o impossível que o autor atribui aos artistas do século XX se refere ao abismo, que está tanto no gesto poético da linguagem quanto no movimento dos saltimbancos acrobatas. O salto do acrobata saltimbanco é uma alegoria do poeta ante seus abismos.

Starobinski (2007), no que diz respeito à obra do artista espanhol Pablo Picasso, retoma as releituras baudelairianas do saltimbanco e as suas possíveis ressonâncias. Dessa maneira, esclarece que a sombra do

Velho Saltimbanco, de Baudelaire, passou pelas obras do pintor Picasso,

assim, considera que:

Es un espectáculo singular ver como la serie de los Saltimbanquis de la época azul de Picasso sale poco a poco de la atmósfera de cansancio y sombría resignación, en la que los había configurado al principio el pintor, para entrar, si

27 Com relção à origem do nome, Dario Fo explica que: “Hellequin ou Helleken,

que se torna, posteriormente, Herlek-Arlekin. Um mesmo demônio também citado por Dante: Ellechino. Na tradição popular francesa dos séculos XIII e XIV, esse personagem é descrito como um endemoniado torpe, arrogante – como deve ser todo diabo que se preza – e, principalmente, zombeteiro, exímio elaborador de troças e trapaças” (FO, 1999, p. 80).

(45)

no en una alegría luminosa, al menos sí en una especie de grave y misteriosa serenidad. Es evidente que Picasso fue seducido en un primer momento por la imagen pictórica y literaria del payaso-victima. La sombra del Viejo saltimbanqui de Baudelaire pasó primero por su pintura y los Pierrots lunares del simbolismo poblaron, sin duda, durante un tiempo su imaginación. Pero Picasso tenía algo más que decir, algo que suscitaría originales ecos en la palabra de los escritores28. (STAROBINSKI, 2007, p. 98, grifo

do autor).

Na medida em que os saltimbancos de Picasso foram ganhando um ar sereno, eles se afastavam cada vez mais da influência das sombras de Baudelaire. Portanto, essa seria uma metáfora do movimento de deslocamento empreendido pelos poetas da época para se repensarem diante da sua condição no mundo. Por sua vez, os ecos que a obra de Picasso causou seriam aqueles desdobramentos que tratam da ressignificação do sujeito-artista, o qual busca se recriar e se adaptar diante dos desafios da modernidade.

De forma mais direta, Starobinski (2007) refere-se a alguns escritores em específico, os quais carregariam o legado dos saltimbancos de Picasso, como Guillaume Apollinaire (1880-1918) e Rainer Maria Rilke (1875-1926), por exemplo. Apollinaire (2013), que além de traçar linhas poéticas que fazem referências aos saltimbancos, em sua obra

Álcoois, com poemas como “Saltimbancos” e “Crepúsculo”, que trazem

a imagem do Arlequim Trimegisto, escreve um ensaio crítico sobre os saltimbancos de Picasso, em 1905. Já sobre Rilke (1972), este teria redigido a Quinta, das suas Elegias de Duíno (1923) sob forte impressão dos quadros de Picasso, nesse texto, ele fala do inefável, do prodígio dos malabarismos e do poeta, contaminado pelos versáteis saltimbancos, que “salta para o problema da morte” (RILKE, 1972, p. 78).

28 “É um espetáculo singular ver como a série dos saltimbancos do período azul

de Picasso sai lentamente da atmosfera de cansaço e de sombria resignação, na qual os tinha configurado a princípio o pintor, para entrar, se não em uma alegria luminosa, pelo menos, em um tipo de grave e misteriosa serenidade. É evidente que Picasso foi seduzido, em um primeiro momento, pela imagem pictórica e literária do palhaço-vítima. A sombra do “Velho saltimbanco” de Baudelaire passou primeiro por sua pintura, e os Pierrots lunares do simbolismo povoaram, sem dúvida, durante um tempo, a sua imaginação. Mas Picasso tinha algo mais a dizer, algo que sucitaria ecos originais na palavra dos escritores”.

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Diante disso, são as constantes pervivências e os múltiplos desdobramentos da figura do saltimbanco, ao longo dos séculos, que oportunizam, por algum viés, a compreensão da figura do sujeito enquanto artista moderno. Ou seja, nesse caso, a ressonância da imagem do saltimbanco, nas diferentes manifestações artísticas do início do século XX, é uma fenda que se abre como chave de leitura do sujeito poético, que vai assumir a máscara do saltimbanco.

Dos muitos exemplos possíveis acerca do perviver da figura dos saltimbancos, é interessante ilustrar aqui, alguns deles, que vão desde textos clássicos da literatura universal, como a Divina Comédia, de Dante Alighieri, até ocorrências mais voltadas para a cultura de massa, como os quadrinhos e o cinema contemporâneo. Na Divina Comédia, importa destacar, o saltimbanco Arlequim figura como um diabo e aparece nos Cantos XXI e XXII do livro do Inferno, ele é citado entre o grupo de dez diabos destinados a cuidar da margem esquerda do rio no Inferno (PRESTA, 1984, p. 125), conforme se lê nos seguintes versos do

Canto XXI:

“Calcabrina, Alichino vão juntar-se Com Cagnazzo, a decúria comandando Barbariccia! E não podem separar-se “Droghinaz, Libicocco, deste bando! Graffiacane, o dentudo Ciriatto, Farfarel, Rubicante vão marchando! (ALIGHIERI, 2003, p. 164, grifo nosso).

Outro indício da reverberação dessa figura está na imagem da Arlequina, originalmente chamada Harley Quinn. É uma releitura feminina da figura de arlequim, da DC Comics/Warner, criada por Paul Dini e Bruce Timm, em 1992, para a série de televisão Batman: a série

animada, aparecendo pela primeira vez no episódio “Joker’s Favor”

[Um Favor para o Coringa]. Mesmo sendo criada para apenas um episódio, sua aparição foi constante em toda a série, que durou até 1999. Durante esse período, também foi inserida nas histórias em quadrinhos da DC Comics, as quais são ainda editadas. Recentemente, foi reeditada para o filme Esquadrão Suicida dos estúdios Warner, de 2016, com direção de David Ayer e interpretada por Margot Robbie.

Referências

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