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Memórias do corpo

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Academic year: 2021

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Ficha técnica

Preparação dos originais

Izabela Drozdowska-Broering Marcio Markendorf Diagramação Letícia Oenning Revisão do original Juliano Adrian Capa

Izabela Drozdowska-Broering sobre imagem de Beata Ewa Białecka, Must

Have, 2015, óleo sob tela e bordado.

Conselho Editorial

Geovana Quinalha de Oliveira (UFMS) Renata de Felippe (UFSM)

Clélia Mello (UFSC) Gabriela Falcão (UFPE)

Daniel Serravalle de Sá (UFSC)

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

M533 Memórias do corpo [recurso eletrônico] / Izabela Drozdowska-Broering, Marcio Markendorf (organizadores). – Florianópolis : UFSC, 2020. 215 p. : il.

E-book (PDF)

ISBN 978-65-87206-46-2

1. Memória. 2. Corpo humano – Aspectos simbólicos. 3. Corpo humano e linguagem. I. Drozdowska-Broering, Izabela. II. Markendorf, Marcio.

CDU: 82.01

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Izabela Drozdowska-Broering Marcio Markendorf (organizadores)

MEMÓRIAS DO CORPO

1ª edição Florianópolis UFSC 2020

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Sumário

Apresentação

Izabela Drozdowska

-

Broeringe Marcio Markendorf

...06

Memórias do corpo na escrita autobiográfica de sujeitos vulneráveis

Roseli Boschilia

... 11

Cicatrizes e memórias: as marcas da violência em The Dew Breaker, de Edwidge

Danticat

Leila Assumpção Harris e Priscilla da Silva Figueiredo

... 33

Verso em viva voz: três preceitos wagnerianos

André Fiorussi

... 46

Literatura infantil, ciência e imaginação sob gestão no Estado Novo: CNLI e

INPE

Celdon Fritzen e Gladir da Silva Cabral

... 58

Strobo. Corpo e espaço entre êxtase e esquecimento

Izabela Drozdowska-Broering ...

75

Espaço, objetos e afetos: uma fenomenologia das coisas

José Cláudio Siqueira Castanheira ...

87

"A palavra sopra-me da boca feito flama": a poesia de Paula Ludwig

Maria Aparecida Barbosa...

104

Do corpo ao corpus: Jorge Amado bio-grafado

Marina Siqueira Drey e Tânia Regina Oliveira Ramos

... 112

Das regularidades às rupturas discursivas das corporalidades audiovisuais no filme

Coringa (2019)

Patrícia de Oliveira Iuva

... 124

A poesia de Antonella Anedda: “Il mondo che il linguaggio ci permette di

scrutare nasce dal dettaglio”

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A política e a estética do cotidiano no corpo e na voz

Pedro de Souza

... 160

Eros e Tânatos: o feminicídio no século XIX em D. Narcisa de Villar, de Ana

Luísa de Azevedo Castro

Rosana Cássia dosSantos

... 175

Corpos e memória: um lugar para chamar de seu

TâniaRegina OliveiraRamos

... 188

Voz e corpo no arquivo musical

TerezaVirginia de Almeida

... 199

Notas biográficas... 209

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Apresentação

Quais impressões são grafadas a ferro e fogo no corpo? Quais tatuagens de identidade, de trauma, de memórias inscrevem-se na pele dos sujeitos? De que maneira o corpo pode tomar peso, materialidade, visibilidade nas representações artísticas e literárias ou nos relatos de testemunho? Como lidar com os espaços exteriores e interiores das memórias formadas nos contextos de raça, sexualidade, gênero, deficiência, classe? Como se dá o entrecruzamento entre lugares de fala, biografia, memória e afetos?

Para a perspectiva pós-moderna, vivemos em um tempo de amnésia imediata, fruto de uma civilização baseada na imagem na informação, no jornalismo, nas mídias sociais, nas tecnologias, na simulação (Warburg, Baudrillard, Morin, Boehm, Bredekamp, Merleau-Ponty, Lacan, Žižek). Ao mesmo tempo observamos a onipresença do corpo como objeto sexual e o apagamento do sensual. As representações de prazer e de dor na mídia trazem uma ilusão de intensidade (Sennett) fazendo das vivências cotidianas inscritas nos corpos materiais aparentemente mais pálidas. A comunicação parece ganhar uma dimensão mais célere, os conteúdos são absorvidos de modo vertiginoso, muitas vezes sendo descartados prontamente. O tempo da experiência, associado ao caráter épico da sabedoria, é transformado e transmutado em vivência (Benjamin). O modo como os sujeitos experienciam o tempo presente também é afetado. Passado, presente e futuro coexistem de forma paradoxal no espaço físico e simbólico fragmentados, é o que os museus de arte contemporânea parecem atestar.

Assim, em busca de reavivar o debate sobre a memória e sua importância nas construções identitárias, políticas e afetivas, este livro, intitulado Memórias do Corpo, fruto de um seminário homônimo organizado na Universidade Federal de Santa Catarina em outubro de 2019 pelas linhas de pesquisa Subjetividade, Memória e História e Crítica Feminista e Estudos de Gênero da Pós-Graduação em Literatura, pretende articular e compartilhar saberes e práticas acerca da memória, almejando um diálogo interdisciplinar com diferentes campos de estudo e uma perspectiva interseccional para diferentes análises do corpo.

São muitas as aproximações e perspectivas propostas pelas/los autoras/es dos capítulos. Roseli Boschilia torna a atenção para narrativas autobiográficas de dois imigrantes – sujeitos historicamente vulneráveis e marginalizados que, graças

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ao novo olhar da academia, ganham espaço nos discursos dominados pela grande História, que, por sua vez, deixou visíveis marcas de violência nos corpos abjetos. Também das marcas de dor trata a contribuição de Leila Assumpção Harris em coautoria com Priscilla da Silva Figueiredo que, partindo de dupla categoria de memória e amnésia, repensam o espaço pós-colonial. As autoras levantam postulado de uma memória anticolonial e destacam o papel da ficção literária como ferramenta a partir do exemplo da obra de Edwidge Danticat.

Feminicídio e a posição das mulheres na sociedade oito e novecentista comentados e funcionalizados por autoras do Romantismo brasileiro é tema da contribuição da Rosana Cássia dos Santos. Um romance de Ana Luiza de Azevedo Castro denuncia a condição das mulheres na sociedade conservadora e machista que reage com extrema violência para reestabelecer e garantir ordem social.

Tereza Virginia de Almeida busca no seu ensaio “Voz e corpo no arquivo musical” pelos vestígios do corporal na música. O instrumento descrito como extensão do corpo e corpo impresso na peça musical através do toque, sopro, voz proporcionam junto com a escuta uma simultaneidade entre os corpos. À impressão da política e à estética no corpo e na voz dedica-se Pedro de Souza em seu ensaio, percorrendo a produção artística de Elis Regina entre subjetivação e dessubjetivação, como ato corpóreo e incorpóreo. Inseridas na época do regime militar, canções da Elis Regina mostram, segundo Pedro de Souza, a resistência e a recusa na intensidade de emissão vocal e da performance.

A relação entre corpo e música no espaço desvinculado, lugar de apagamentos e com marcas de não-lugar segundo Augé (2011) é tema do ensaio de Izabela Drozdowska-Broering que, a partir do romance Strobo (2009), de blogger alemão Airen, aponta para a condição insular dos corpos em movimento sexual, distantes apesar da proximidade física. Sujeitos, em constante exercício de apagamento de memórias num espaço historicamente marcado pelo rompimento e pela falta de continuidade, buscam a própria identidade por meio da intensificação do corporal.

Acerca do corpo poético circulam os ensaios de Maria Aparecida Barbosa, Patricia Peterle e André Fiorussi. André Fiorussi discorre sobre preceitos wagnerianos mostrando o impacto do compositor alemão na época da crise do verso e “anquilose” do corpo poético “saturado de memória”. Voltados contra a subjugação do verso à música os preceitos, junto com uma série de outros impulsos, parecem revigorar estruturas engessadas e presas em espartilhos métricos.

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Patricia Peterle, analisando a obra de poeta italiana Antonella Anedda, aponta para detalhes como pontes ligando vários planos temporais. A escrita que lida com vestígios de memórias aparece, como aponta Rickens (2002), na forma de uma cicatriz, uma junção de tecidos de ferimento irremediável. A memória do corpo se torna evidente também na poesia da autora alemã Paula Ludwig no ensaio de Maria Aparecida Barbosa que destaca o lugar das cicatrizes de perda e privação nos versos da poeta exilada. Descreve-se a insuficiência de recursos sintáticos e semânticos e a natureza fugaz da poesia entre gozo e dor.

De arquivos e corpos textuais tratam os ensaios de Tânia Regina Oliveira Ramos, Marina Siqueira Drey e Celdon Fritzen em coautoria com Gladir Cabral. Tânia Ramos discorre sobre os arquivos pessoais e a sua durabilidade enquanto coleções híbridas e descontínuas e levanta a questão da memória literária e cultural carregada pelo corpus textual. Destaque ganha aqui o núcleo nuLIME coordenado pela autora com os corpos físicos, digitalizados e, por fim, simbólicos de documentos que guardam memórias da vida literária. A memória guardada no acervo do núcleo mala de Jorge Amado é tema da contribuição de Marina Siqueira Drey e Tânia Regina Olivera Ramos que pergunta sobre o trânsito do arquivo pelo campo do subjetivo no caso de biografias. A metáfora de arquivo como algo composto de carne e ossos (Schneider, 2001) aponta para a imposta estrutura e organização do arquivo sendo uma contrução que busca metaforizar o real.

No capítulo de Celdon Fritzen em coautoria com Gladir Cabral, que trata de corpus literário de literatura infanto-juvenil no Estado Novo, aponta-se para caráter recreador, educacional, mas, também, normativo de avaliações e recomendações da Comissão Nacional do Livro Infantil e Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas. Fritzen e Cabral apontam para as contradições do olhar científico sobre as leituras em questão, nas quais, por fim, prevalece o potencial educacional em prol da normatividade linguística e do fornecimento de padrões de comportamento esperados.

Por fim, as categorias de memória e corpo perpassam os ensaios voltados para o cinema, assinados por José Cláudio Castanheira e Patricia Oliveira Iuva. Enquanto José Cláudio Castanheira propõe uma fenomenologia das coisas partindo das imagens fornecidos pelo cinema, Patricia Iuva discorre sobre o corpo do cinema a partir de perspectiva de Foucault, concentrando-se no corpo-sujeito da personagem Arthur Fleck do filme Coringa (Joker, 2019) dirigido por Todd Philips. No primeiro dos ensaios, após apresentar a tarefa fenomenológica, José Cláudio

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Castanheira traz o conceito de filme como corpo, apontando para o corporal como base dos processos perceptivos. Destaca que a captura das imagens causa efeitos materiais sobre os indivíduos na sua imperceptível onipresença. Já o texto da Patricia Iuva reflete sobre políticas do corpo no cinema, corporalidades audiovisuais e os efeitos do sentido que eles produzem.

Entre privação e exibição, encarcerado e oprimido pela sociedade e suas políticas, o corpo é produzido e produz efeitos simbólicos e materiais. Marcado pela História e memórias pessoais, o corpo perpassa o campo da literatura, das artes e do cinema deixando um fio de Ariadne para leitores atentos e olhar sensível.

Izabela Drozdowska-Broering Marcio Markendorf

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Memórias do corpo na escrita autobiográfica de sujeitos

vulneráveis

Roseli Boschilia (UFPR)

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face? (MEIRELES, 1983, p. 84).

Introdução

No poema de Cecília Meireles, intitulado Retrato, que aparece na epígrafe acima, o corpo é utilizado como metáfora para refletir sobre a passagem do tempo. Todavia, a narrativa da escritora, para além de estabelecer a relação entre presente e passado, também nos motiva a fazer uma reflexão sobre a narrativa autobiográfica

e sua estreita articulação com os conceitos de memória e identidade.1

A partir dessa problemática, o presente texto tem como proposta explorar narrativas autobiográficas oriundas de duas tipologias de fontes distintas (produção literária e história de vida, coletada através da metodologia da história oral), com o intuito de refletir sobre o processo de reconstrução da memória e as representações que dela decorrem. Pata tanto, serão analisados os relatos dos e/imigrantes Francisco Gomes Amorim e Boleslawa Smolincska Kolwalczuk que, em contextos históricos distintos, estiveram expostos a situações de vulnerabilidade, como protagonistas de experiência do deslocamento forçado.

Com o objetivo de perceber os elementos presentes no trabalho de solidificação da memória destes dois sujeitos históricos, sobretudo no que diz

1 O conceito de identidade está aqui sendo entendido a partir das reflexões do etnólogo Denys

Cuche (1999, p. 175-202), que define identidade “como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural”. Nessa perspectiva, identidade e alteridade constituem uma relação dialética, ligadas ao processo de inclusão e exclusão.

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respeito aos acontecimentos, personagens e lugares, foram selecionados fragmentos de narrativas nas quais afloraram lembranças mediadas por representações associadas ao corpo, tais como gestos, sensações físicas, sentimentos e emoções.

Objeto de análise privilegiado no campo da literatura, as narrativas autobiográficas conquistaram espaço em diversas áreas do conhecimento e, mais especialmente, no campo da história, a partir da década de 1970. O crescente interesse dos historiadores por fontes de pesquisa associadas à história dos indivíduos ou por temas ligados à cultura se deu, em grande medida, em função da crise de paradigmas, que, a partir do período pós-segunda guerra e, mais especificamente a partir dos anos sessenta, colocou em xeque a rigidez dos grandes modelos explicativos, cujas categorias interpretativas já não eram capazes de trazer respostas para a compreensão da nova realidade política e econômica e sociocultural que se desenhava.

Cabe lembrar, todavia, que desde as primeiras décadas do século XX já era perceptível uma mudança em relação aos objetos com os quais a história trabalhara anteriormente. O profícuo diálogo interdisciplinar que se estabeleceu entre os historiadores franceses que criaram a Revista dos Annales, em 1929, com representantes da Escola Sociológica Francesa teve como desdobramento a emergência de um leque de novos temas históricos ligados aos fenômenos sociais (comportamentos, crenças, normas e regras), o que obrigou os historiadores a recorrerem não só a novos referenciais teórico-metodológicos, mas também a uma tipologia de fontes que pudesse suprir o persistente silêncio da documentação oficial em relação às massas anônimas.

Os trabalhos produzidos por Marc Bloch e Lucien Febvre, durante a década de vinte, exemplificam essa trajetória. Na obra Os reis Taumaturgos: o caráter

sobrenatural do poder régio França e Inglaterra, publicada originalmente em 1924, Bloch

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de que os reis tinham o miraculoso poder de curar pessoas portadoras de

escrófulas2, através do simples toque das mãos.

Em 1928, Lucien Febvre publica a obra Martinho Lutero, um destino, na qual recorre à análise de um indivíduo singular para descrever a Alemanha da primeira metade do século XVI. Na tentativa de romper com o tradicional gênero biográfico e com a narrativa cronológica, que era comumente adotado pelos historiadores do século XIX, Febvre esclarece no prefácio da obra, o que ele considera ser o papel da história:

Traçar a curva de um destino que foi simples, mas trágico; situar com precisão os poucos pontos realmente importantes por onde passou essa curva; mostrar de que maneira, sob a pressão de que circunstâncias, seu impulso inicial teve de esmorecer, e seu traçado original, inflectir-se; colocar assim, acerca de um homem de singular vitalidade, esse problema das relações entre o indivíduo e a coletividade, entre a iniciativa pessoal e a necessidade social, que é, talvez, o problema essencial da história: tal foi nosso intuito (FEBVRE, 2012, p. 11).

Todavia, é na sua obra mais conhecida, O problema da incredulidade no século

XVI, publicado originalmente em 1942, que Febvre explicita mais claramente a sua

filiação à história das mentalidades, que buscava “ligar as representações coletivas e as condutas individuais a uma realidade social” (RAMINELLI, 1990, p. 99). Ao promover uma análise minuciosa da produção literária de Rabelais, com o intuito de “captar o sentimento religioso de um homem, considerado por muitos estudiosos e analistas do século XVI como descrente” (RAMINELLI, 1990, p. 105), Febvre procura desvendar os mistérios sobre a atmosfera religiosa, no contexto social no qual o autor de Gargantua e Pantagruel estava inserido.

Os pressupostos teóricos introduzidos por estes dois representantes da primeira geração do grupo dos Annales tiveram continuidade nas análises empreendidas por historiadores como Michel Vovelle, Philippe Ariès, Fernand

2 Afecção na pele provocada pelo aumento dos gânglios linfáticos, normalmente associada à

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Braudel e, depois, Jacques Le Goff, Emanuel Le Roy Ladurie e Roger Chartier, que, embora tenham herdado o gosto pelos temas ligados às massas anônimas, aos grupos populares e às minorias, procuraram ultrapassar os limites conceituais da história das mentalidades, adotando uma concepção da história como narrativa e apropriando-se de conceitos como práticas e representações, caros a uma nova abordagem que ficou conhecida como nova história cultural ou “nova história”.

No interior dessa nova abordagem, todavia, é importante destacar a existência de três vertentes diferenciadas de historiadores, conforme explicita Ronald Vainfas (1997). O primeiro exemplo seria o de Carlo Ginzburg, originário da história das mentalidades, que passou a trabalhar a partir dos anos 1960, apoiado no marxista Michail Bakhtin, com a noção de cultura popular e de circularidade cultural. Um segundo modelo seria aquele formulado por Roger Chartier, representante da quarta geração do grupo dos Annales e, portanto, egresso da história das mentalidades. A proposta de Chartier para trabalhar com o conceito de cultura foi a de utilizar a noção de representação como “pedra angular” da chamada nova história cultural. Numa terceira via, bastante distinta, encontra-se Edward Thompson, ligado à corrente conhecida como nova esquerda inglesa. Partindo do marxismo tradicional, calcado em conceitos como ideologia e consciência de classe, este autor investiu em um conceito histórico-antropológico de cultura popular, menos rígido, para “desvendar a identidade sociocultural das classes subalternas” (VAINFAS, 1997, p. 157).

Desse modo, é possível afirmar que embora os estudos promovidos pelos representantes da primeira geração do grupo dos Annales tenham iniciado o rompimento de algumas barreiras no que tange à escolha de seus objetos e de novos referenciais teórico-metodológicos, a diluição das fronteiras entre as fontes históricas mais tradicionais e as fontes literárias só ocorreu efetivamente algumas décadas depois, quando os historiadores associados à história cultural tiveram uma

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mudança de percepção em relação ao “papel ativo da linguagem e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade histórica” (AURELL, 2014, p. 344).

Como resultado desta nova percepção, pode-se referir como exemplo não só os estudos realizados por Carlo Ginzburg, sobre Menocchio (1976), e Natalie Davis, que se debruçou sobre a trajetória de Martin Guerre (1983), mas também as reflexões de Edward Thompson (1979), preocupado com as experiências das classes trabalhadoras, ou ainda de Robert Darnton (1986), que procurou reconstituir modos de pensar e viver de camponeses e artesãos franceses no século XVIII.

Como observa Beatriz Sarlo (2007, p. 15), a partir dessas mudanças, “o olhar de muitos historiadores e cientistas sociais, inspirados no etnográfico deslocou-se para a bruxaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o campesinato, as estruturas do cotidiano, buscando o detalhe excepcional”. Ou seja, esse redirecionamento do olhar dos pesquisadores sobre novos objetos de pesquisa colocou em cena sujeitos anteriormente ignorados pela historiografia tradicional, que, via de regra, se dedicava ao estudo de eventos coletivos ou de personagens vinculados aos espaços de poder.

No interior desse novo cenário, vestígios deixados pelos chamados “homens infames” passaram a despertar o interesse não só de pesquisadores, mas do público em geral, pelo aspecto “romanesco” de suas trajetórias de vida. Nessa perspectiva,

experiências de sujeitos marginalizados como Pierre Riviére3 e Emile Noguier4,

dificilmente teriam visibilidade na história se os pesquisadores não fossem instigados pelas reflexões teórico-metodológicas que propiciaram um novo olhar

3 Em 1835, Pierre Rivière matou, a golpes de foice, a mãe, a irmã e o irmão. Os testemunhos e o

surpreendente relato desse jovem durante o processo de seu julgamento foram analisados por uma equipe de pesquisadores, coordenada por Michel Foucault (1982).

4 Condenado à morte no final do século XIX, Emilie Noguier escreveu, a pedido do médico do

presídio onde ele cumpriu pena, um diário intitulado Memórias de um detento e uma autobiografia que tem como título Lembranças de um pardal ou as confidências de um prisioneiro (ARTIÈRES, 1998).

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em relação a sujeitos anteriormente ignorados pelas ciências humanas, ou seja, pessoas marcadas por vidas precárias, conforme definição de Judith Butler (2011).

Ainda que as trajetórias de Pierre e de Émile possam ser consideradas excepcionais, os estudos ancorados na documentação existente sobre eles, para além de dar visibilidade a sujeitos históricos pertencentes às camadas populares, também mostra o limite das fontes documentais, tendo em vista que apenas uma ínfima parcela destes sujeitos anônimos, sobretudo aqueles que estiveram envolvidos com a justiça, deixou traços de sua existência. De modo geral, a maior parte da população não escolarizada e sem acesso a registros fotográficos – uma prática pouco comum entre as classes populares até meados do século XX –, não deixou outro vestígio sobre sua trajetória de vida, a não ser as lembranças que a família e as pessoas ligadas ao seu círculo de convívio guardaram sobre ela. Contudo, sem o recurso da transmissão oral, o destino desses sujeitos era cair no absoluto esquecimento tão logo ocorresse o desaparecimento da última pessoa que deles se lembrasse. Assim, foi preciso aguardar os avanços do gravador de voz profissional, já no contexto pós-segunda guerra mundial, para que pesquisadores interessados nas narrativas de pessoas comuns tivessem a possibilidade de criar uma nova modalidade de documentação histórica, que são os registros de fontes orais.

Nesse novo contexto, a história oral foi gradativamente se constituindo em uma metodologia apropriada não só para o registro e análise da experiência de homens e mulheres comuns, mas também para refletir sobre questões relacionadas à memória e ao esquecimento de pessoas públicas e privadas.

Ao trabalhar com fontes orais, é importante lembrar que, no contato estabelecido com o narrador, o pesquisador dispõe de outras informações, que vão além da palavra falada, pois o ato de narrar, como lembra Walter Benjamin, “é uma forma artesanal de comunicação”, na qual o narrador deixa impressa sua marca “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1987, p. 205). Outra

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particularidade da história oral em relação a documentação escrita é que na sua produção, outras linguagens, além da narrativa, podem fornecer informações esclarecedoras para a análise do discurso. Neste rol, merecem destaque não só os movimentos do corpo, das mãos em particular, as expressões faciais, gestos e olhares, mas, sobretudo, manifestações de emoção e ressentimento, muitas vezes

representadas pelo silêncio5. Como bem observa Leonor Arfuch, “contar a história

de uma vida é dar vida a essa história” (ARFUCH, 2010, p. 42).

Com base nestas reflexões de caráter teórico-metodológico, esse artigo, pretende analisar, a partir de gêneros discursivos distintos, as narrativas autobiográficas de dois sujeitos históricos, o intelectual português Francisco Gomes Amorim, que nasceu em 1827, e Boleslawa Smolincska Kolwalczuk, nascida um século mais tarde, na Polônia. Apesar das diferenças de gênero, de nacionalidade e do largo espaço temporal que marcam as suas trajetórias, ambos têm em comum o fato de terem protagonizado a experiência do deslocamento forçado, durante a juventude. Ele como e/imigrante clandestino que, ao desembarcar em território brasileiro, foi submetido ao regime de “escravidão branca” e ela que, durante a II Guerra Mundial, viveu a experiência de ter sido convocada pelo regime nazista para trabalhar durante três anos e oito meses em território alemão.

A partir destas duas narrativas autobiográficas, nossa intenção é analisar as diversas representações que emergem nas memórias destes sujeitos e, ao mesmo tempo, destacar como as lembranças por eles selecionadas deixaram em seus corpos marcas semelhantes àquelas deixadas “no vaso pelas mãos do oleiro” (BENJAMIN, 2000, p. 205).

5 Como Michael Pollak (1989), alerta, o silêncio ou a dificuldade de narrar não significam

necessariamente esquecimento. Muitas vezes, o silêncio pode ser entendido como sinal de resistência, sobretudo quando a experiência do narrador está atravessada por memórias traumáticas.

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18 “Como um novo Prometheu”

Apesar das armadilhas que o imaginário arma para a memória, pode-se afirmar que uma busca específica da verdade está implícita no olhar sobre a coisa passada (RICOEUR, 2000, p. 66) (tradução livre).

Segundo Paul Ricouer, a memória contém um enigma. Enigma este que reside no fato de as representações do passado virem à tona, apesar da ausência dos elementos que fizeram parte do cenário que está sendo recordado. Estas imagens, como argumenta Ricoeur, são reconstituídas a partir do reconhecimento daquilo que já vivemos e das marcas afetivas que determinadas experiências deixaram em nós (apud LORIGA, 2009, p. 20).

Foi a partir dessas reflexões que procuramos analisar as representações do passado que emergem na produção literária de Francisco Gomes Amorim, poeta, dramaturgo e romancista português, nascido em 1827 e falecido em 1891. Autor de vasta produção literária, dentre as quais se destacam obras como Ódio da raça (1854), O cedro vermelho (1856), Fígados de Tigre (1857) e Os selvagens (1875), Amorim também tornou-se conhecido pelo fato de ter sido biógrafo do escritor Almeida Garrett.

A escrita de Amorim, independentemente do gênero literário escolhido, tem como principal característica a forte predileção do autor por temas, paisagens e personagens relacionados ao território brasileiro, especialmente no que diz respeito à região amazônica, onde ele viveu durante dez anos.

Mas é no texto autobiográfico, intitulado Cantos Matutinos6, publicado

originalmente em 1858, que Francisco expõe os motivos que fizeram dele um e/imigrante clandestino, que chegou ao Brasil, aos dez anos de idade, na companhia do seu único irmão, apenas dois anos mais velho do que ele.

6 As narrativas publicadas neste texto já foram exploradas, em grande parte, no artigo intitulado

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Originário de uma aldeia “situada numa praia do Minho” e filho de pescadores, Francisco relata que abandonou a escola “quase aos dez [anos], sem saber assinar o nome ou soletrar duas palavras!” (AMORIM, 1875, p. 31). Pouco tempo depois, ele e o irmão foram convencidos por “aliciadores [que] inundavam [...] as províncias do norte do reino, agarrando gente por todos os meios possíveis” (AMORIM, apud CARVALHO, 1998, p. 21) a viajar para o Brasil, onde ambos foram submetidos ao regime de trabalho análogo ao de escravo, à época mais conhecido como “escravidão branca”.

Ao rememorar suas experiências de infância, Francisco destaca a precariedade da vida material, característica comum no cotidiano da maior parte dos camponeses que habitavam a região norte de Portugal, durante o século XIX, como um dos principais fatores que motivavam o deslocamento forçado de menores para o Brasil:

Entrei no mundo no meio de revoluções, que desgraçaram a minha família; o meu primeiro gesto foi estender a mão; nas primeiras

frases que balbuciei pedia esmola para minha mãe, que tinha fome.

Venderam-me para o Brasil [...] (AMORIM, 1875, p. 30, sem grifo no original).

Como é possível notar no fragmento acima, Francisco se utiliza de uma metáfora relacionada ao corpo, com o objetivo de enfatizar as condições de extrema pobreza em que sua família vivia e, de certa forma, justificar o fato de seus pais terem permitido que ele e o irmão embarcassem, como viajantes clandestinos e sem a presença de um adulto responsável, rumo a um país distante e desconhecido. Outro trecho da narrativa, no qual Francisco recorre à gestualidade do corpo para explicitar seus sentimentos, está relacionado ao momento em que ele e seu irmão, Manoel, desembarcaram no Brasil. Após narrar a movimentação do cais, onde passageiros, ainda atordoados pela ideia da chegada, se misturavam aos agenciadores que, avidamente, procuravam aproximar-se do navio, com o objetivo

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de contratar a mão de obra oferecida pelo capitão, ele faz o seguinte relato: “Apenas desembarcamos, formaram-nos em turmas no cais da alfândega, para que os negociantes da cidade viessem escolher dentre nós os que mais lhe agradassem” (AMORIM, 1875, p. 35).

Os negociantes aos quais Francisco se refere eram, na maioria, comerciantes portugueses interessados na contratação de trabalhadores menores que faziam entregas à domicílio ou outras tarefas domésticas e, com o passar do tempo, assumiam a função de caixeiro, trabalhando no atendimento do balcão. De modo geral, estes trabalhadores moravam no próprio domicílio do empregador e não recebiam nenhum tipo de remuneração, além de casa e comida. O objetivo dos caixeiros era adquirir experiência no ramo comercial e um dia ter o seu próprio estabelecimento. Embora os comerciantes preferissem contratar trabalhadores menores com os quais tivessem algum tipo de relação social ou de parentesco, não raro recorriam à mão de obra oferecida por agentes envolvidos na complexa rede de e/migração clandestina ou engajada, cujo interesse era a obtenção de lucros, por meio da exploração da mão de obra imigrante. Nesse sistema, o comerciante ia até o cais, escolhia o e/imigrante que lhe interessasse e quitava a dívida que este havia contraído com o capitão do navio na hora do embarque. Em troca, o e/imigrante assinava um documento que o obrigava a prestar serviço, por um período de aproximadamente dois anos, àquele que havia saldado a dívida referente a sua viagem. No caso de e/imigrantes menores, que, como os irmãos Amorim, vinham sem a proteção de um adulto que pudesse intervir por eles no momento da negociação, a situação era ainda mais desesperadora.

Na sequência de sua narrativa, Francisco relata que, tão logo desembarcaram, o irmão, talvez pelo fato de ser um pouco mais velho e aparentar melhores condições físicas para o trabalho, foi rapidamente escolhido por um negociante e levado, sem que os dois tivessem tempo para despedidas. Ao rememorar essa experiência, emergem na sua narrativa, não só a sensação de desemparo, pela

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brusca partida do irmão, mas, sobretudo, o sentimento de dor de quem, de repente, se vê entregue à própria sorte, num ambiente completamente desconhecido e hostil.

Por fim, de entre os compradores que me rodeavam, saiu um, vestido de pardo, e acariciou-me, pondo-me a mão no rosto, e convidando-me a seguí-lo. Então, rebentaram-me as lágrimas com violência; até ali suportara resignadamente a desgraça, que mal apreciava; tanto, porém, que me chegou a vez de partir, como os outros, sem saber para onde,

chorei! (AMORIM, 1875, p. 37, sem grifo no original).

No caso de Francisco, ele acabou sendo contratado por um comerciante de nome José Maria Fernandes que, conforme o autor relata, “era um excelente

homem [...] apesar da prodigalidade com que ele me servia de palmatoadas”

(AMORIM, 1875, p. 37, sem grifo no original). Ou seja, para além de serem submetidos a uma relação de trabalho análoga à escrava, os caixeiros, frequentemente, traziam no próprio corpo as marcas da violência praticada por seus empregadores.

De acordo com o narrador, foi durante o período de aproximadamente três anos em que trabalhou no estabelecimento de Fernandes, que ele teve acesso ao aprendizado da leitura.

Ao completar os meus doze anos, envergonhei-me por não saber ler, e apliquei-me ao estudo com tanta dedicação, que consegui aprender em poucos meses. O primeiro livro que foi às mãos [...] era a História de Carlos Magno. Eu não o lia só pra mim; queria auditório [...] A quantos pretos, tapuios e mulatos apanhava, nas ocasiões em que meu patrão saia de casa [...] o segundo livro que possui, intitulava-se Lusíadas, de Luiz de Camões (AMORIM, 1875, p. 40, sem grifo no original).

De acordo com sua narrativa, o interesse pela leitura, hábito que, à primeira vista, poderia ser caracterizado como uma iniciativa individual, fazia parte do cotidiano de muitos caixeiros:

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No Pará era raro, naquele tempo, o patrão que permitia aos seus caixeiros ocuparem na leitura as horas vagas; mas o fruto proibido aguça o apetite; a tirania inspira naturalmente o desejo de resistência; e por isso era também raro o caixeiro que não se entregava com avidez a leituras clandestinas. E a isso talvez deva aquela cidade o grande número de mancebos ilustrados que hoje dirigem o seu comércio (AMORIM, 1875, p. 41).

No interior de um ambiente social e econômico adverso, no qual Francisco não possuía redes de sociabilidades que pudessem ajudá-lo a buscar melhores condições de trabalho, o investimento na leitura e na escrita era, sem dúvida, o único caminho possível para que ele alcançasse algum tipo de ascensão econômica. O hábito da leitura despertou nele o gosto pelas lições de poesia e história, aproximando-o de autores portugueses como Almeida Garrett. Ao narrar sua experiência de leitor, quando teve o primeiro contato com os escritos de Garrett, Francisco relata:

Aquele poema transformou-me repentinamente [...] Pareceu-me que as

flores derramavam maior perfume, e se vestiam de mais vivas cores; que o céu e os astros brilhavam pela primeira vez em meus olhos, que toda a natureza tomava formas novas e sublimes [...] ouvia dentro em mim outra voz que balbuciava, traduzindo as minhas sensações por meio de palavras cortadas, incoerentes, e ininteligíveis para o mundo (AMORIM, 1875, p. 44, sem grifo no

original).

Vale lembrar que, graças ao apoio de Garrett, a quem Francisco ousou endereçar várias cartas, solicitando ajuda para voltar a Portugal, ele pode concretizar o projeto de retornar ao seu país de origem, uma década após ter desembarcado no Brasil, um lugar inóspito que deixou profundas marcas não só no seu corpo, mas também na sua alma e na sua identidade, como fica evidenciado nesse trecho do poema intitulado Sobre o rochedo:

Aqui, onde a terra acaba,/ Sobre um rochedo escalvado, Pelas ondas carcomido,/ E dos ventos açoitado,

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Todos podem ir correndo,/ Em procura de outro céu; A todos o mundo é livre;/ Todos vão; fico só eu,

Nesta rocha encadeiado,/ Como um novo Prometheu! (AMORIM, 1875, p. 86-9).

Por fim, é preciso destacar que embora a trajetória individual de Francisco Gomes Amorim seja marcada pela singularidade - não só em virtude do fato de ele ter conseguido retornar a Portugal, mas, sobretudo, por ter se tornado um intelectual renomado que teve interesse em narrar sua experiência como e/imigrante -, a sua escrita permite que nós, leitores, possamos refletir sobre os sentimentos e as emoções de milhares de outros caixeiros cujas experiências foram abafadas pelo silêncio.

O difícil regresso

É mais importante entender do que lembrar, embora para entender seja preciso lembrar (SONTAG, apud SARLO, 2007, p. 23)

Na obra intitulada A longa estrada para casa, o historiador britânico Ben

Shephard observa que, após a derrota da Alemanha nazista, em 1945, cerca de 11 milhões de estrangeiros foram libertados. Este grupo era constituído, na sua maioria, por prisioneiros de guerra e trabalhadores civis que foram recrutados voluntária e involuntariamente para trabalhar no território alemão. Nesse segmento, categorizados como "pessoas deslocadas", estavam poloneses, letões, bálticos, ucranianos, iugoslavos, judeus sobreviventes de campos de concentração e trabalhadores escravos.

No auge da guerra, os trabalhadores forçados representavam 20% da força de trabalho na Alemanha. O plano de recrutamento dessa modalidade de mão de obra, de acordo com Shephard (2012), teve início em 1939 quando os nazistas viram a necessidade de buscar mão de obra estrangeira para substituir os trabalhadores alemães. Esta prática teria sido inspirada na experiência da primeira

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guerra (1914-1918), quando a Alemanha apresentou um déficit significativo da sua força laboral, em razão da maior parte dos civis terem se alistado no exército (SHEPHARD, 2012).

Os poloneses, logo após a invasão, foram os primeiros trabalhadores a serem recrutados, inicialmente de modo voluntário. Todavia, em virtude da baixa adesão, o recrutamento passou a ser compulsório, sendo estendido a toda população entre 14 e 25 anos do sexo masculino e posteriormente feminino (SANTOS, 2020, p. 28).

Shephard (2012) aponta que nos primeiros meses da década de 1940, saíram da Polônia, com destino à Alemanha, cerca de dez trens por dia e cada um deles levava, em média, mil trabalhadores. Apesar da imprecisão dessas cifras, cabe lembrar que ao final da guerra 1,6 milhão poloneses foram repatriados para o território polonês, sem falar daqueles que morreram em solo alemão, vítimas dos bombardeios, das epidemias e de outras doenças e, ainda, de um terceiro grupo de deslocados que, diante das incertezas de retornar aos seus locais de origem, destruídos pela guerra, preferiu emigrar para outros países, especialmente da América.

Neste último grupo encontrava-se Boleslawa Smolincska – mais conhecida como Bolka –, oriunda da uma aldeia do norte da Polônia, que foi recrutada pelos nazistas para trabalhar na Alemanha, em 1941, quando tinha 15 anos.

Finda a guerra, diante da ausência de notícias sobre a família e, principalmente pelo fato de ter se casado com um soldado do exército polonês, nascido no Brasil, Bolka permaneceu na Alemanha até setembro de 1947, quando

então emigrou para o nosso país7.

7 A partir desse período, Bolka passou a residir em Curitiba (capital do estado do Paraná), cidade

onde a família do seu marido - Venceslau Kolwalczuk -, estava radicada desde o final do século XIX.

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A narrativa acerca da experiência de deslocamento protagonizada por Bolka foi registrada em uma longa entrevista, realizada a partir da metodologia da História

oral, em 2006.8

Neste artigo, nossa atenção se volta especificamente à narrativa autobiográfica de Bolka no que diz respeito às lembranças que ela trouxe à tona no momento da entrevista sobre a sua experiência de retorno à Polônia e o reencontro com a família, trinta e cinco anos após ela ter seguido para a Alemanha, de modo forçado.

No início de sua narrativa, ao ser convidada a falar sobre os motivos que a impediram de retornar à Polônia quando findou a guerra, Bolka destaca a principal dificuldade enfrentada pelos sujeitos deslocados que era obter notícias sobre a família:

E [quando] terminou a guerra, a gente achava que podia voltar pra Polônia, mas a gente não sabia se tá alguém vivo. Se tá casa ainda no lugar, a gente não sabia nada, no mínimo quatro meses não tinha carta, não tinha nada (KOLWALCZUK, 2006).

Nesse contexto marcado pela devastação e pela dificuldade de comunicação, o contato com a família só foi reatado alguns meses depois de sua chegada ao Brasil. Bolka relata que passou a receber notícias dos pais através das cartas enviadas pelo irmão mais novo e só então soube que os três haviam sobrevivido à guerra, mesmo após a residência da família ter sido bombardeada.

Durante as duas primeiras décadas após a sua chegada ao Brasil, o contato de Bolka com a família se manteve exclusivamente através de cartas, até que, em 1976, ela teve oportunidade de voltar à Polônia, acompanhado do marido, para rever a família.

8 A entrevista realizada por Etelvina Maria de Castro Trindade e Roseli Boschilia, em junho de 2006, encontra-se depositada no acervo do Centro de Referência Documental, da Universidade Tuiuti do Paraná.

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Ao narrar o reencontro com a família, Bolka, longe de explorar as memórias traumáticas que experimentou durante o período de guerra ou mesmo o sentimento de dor e de saudade que sentiu durante o tempo que permaneceu longe de casa, seleciona especialmente dois aspectos: a emoção de retornar à terra natal e, ao mesmo tempo, a dificuldade de se reconhecer como integrante daquele grupo familiar.

No exercício de rememoração, a casa paterna ressurge como um “lugar de memória”, no qual a figura da mãe ocupa um lugar central na sua narrativa:

Nós chegamos lá, sabe, eu já vai conhecendo: „Mas esta casa já tá nova, essa tá nova, a minha também, já foi, sabe, bombardeada, sabe, modificada mas no mesmo lugar, o mesmo estilo. Entramos, sabe, e portão não tava fechado, entramos lá perto do poço, sabe, e eu dizendo para mim: „ Olha Bolka, você tem que ser forte, tua mãe já tem 76

anos [...] a tua mãe está com 76 anos, você não pode assustar, porque ela

pode...‟ [...] Ela tava assim de lenço assim amarrado atrás, branco [...] Meu Deus do céu, eu achava que eu não ia agüentar, sabe, pegar ela com jeitinho, mas não dá, não adianta! Mas quando eu gritei: „Mama! [...],

ainda consegui pegar ela nos braços e ela quase desmaiou (KOLWALCZUK, 2006, sem grifo no original).

Logo após falar sobre a alegria do reencontro, contudo, Bolka passa a recordar, com certo desconforto, a sensação de estranhamento que sentiu em relação aos pais. Segundo ela, apesar da satisfação de estar ao lado de seus familiares, tudo lhe parecia muito estranho. E, a partir desse momento, como se estivesse refletindo sobre essa ausência de identificação com os seus genitores, ela observa:

É difícil prá vocês entender o que isso significa, 35 anos sem ver o meu pai e a minha mãe [...] Você beija, você abraça, você sabe que essa é tua mãe, trinta e cinco anos você não vê, você sabe que é a tua mãe, mas você não sente ... sabe como é... a gente fala, lembra, mas não sente. Não sente [por] dentro. A cabeça da gente obriga, sabe, que “Olha, veja tua mãe, isso e aquilo, você sabe que é tua mãe, mas você não sente.” (KOLWALCZUK, 2006).

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No exercício de ativar o passado no presente, conforme observa Ricoeur (1999, p. 16), Bolka encontra dificuldades para reconhecer vestígios de identificação afetiva com o grupo familiar do qual ela ficou afastada durante tanto tempo.

Na singularidade de suas recordações, o sentimento de identidade de Bolka parece ter sido afetado pela ruptura das práticas cotidianas, nas quais a protomemória ocupa um lugar privilegiado, na medida em que dela resultam múltiplas aprendizagens, como por exemplo, a “memória gestual”, que ocorre, segundo Candau (2012, p. 22), em uma zona de “penumbra” e cujos traços são introjetados no “espírito sem que neles se pense”. Nessa perspectiva, a protomemória, diferente da memória propriamente dita ou da metamemória, pode ser considerada como uma “memória imperceptível”, que ocorre sem tomada de consciência e da qual resultam “cadeias operatórias inscritas na linguagem gestual e verbal” (CANDAU, 2012, p. 22-3).

De acordo com Jelin (2002, p. 2), “toda memoria es uma reconstrucción más que un recuerdo” e nesse sentido, é preciso estar atento para outras chaves de ativação das memórias que são de caráter expressivo ou performativo. Para Bolka, no exercício de reconstrução de lembranças, o sentimento de pertença só emerge em sua memória, a partir do momento em que alguns gestos passam a ser “ritualisticamente compartilhados” (CATROGA, 2001). Assim, um gesto quase involuntário de sua mãe é suficiente para que ela, finalmente, encontre traços capazes de recompor os espaços vazios provocados pelo esquecimento, conforme ela narra:

E no outro dia, nós íamos plantar batatinha, e minha mãe me pegou... assim: [fazendo um gesto de afago] „Você não vai sentir frio nessas pernas?‟ Assim sabem, porque antigamente a gente não usava muito calças compridas. Quando que ela pegou-me na mão... no pé com a mão, me lembrei o gesto quando ela sempre achava que a gente tinha que usar essas calças curtas, assim, de flanela bem quente, sabe... E quando que ela pegou assim... gozado, parece que uma coisa saiu daqui, [apontando

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para o coração] ela me largou, me pegou assim [faz gestos de demonstração, acompanhando a fala] e foi embora. E, eu, nesse instante, que eu reconheci pelos toques, sabe, reconheci que era a minha mãe [...] Tem que ter um gesto, uma coisa que te lembra, sabe (KOLWALCZUK, 2006).

No esforço de rememorar o passado, Bolka parece acionar a memória involuntária, na tentativa de restabelecer os laços afetivos que, finalmente, permitiriam a ela filiar-se ao passado, reaproximando-a de suas raízes identitárias. Na sequência de sua narrativa, ao buscar nos escombros da memória, algumas “sementes de recordação”, ela evoca uma segunda lembrança inscrita exclusivamente na linguagem gestual, ao falar sobre o pai:

Aí meu pai sentou, como sempre, colocava o chapéu no mesmo prego. Assim quando eu passei [por ele] o meu pai me sentou assim no colo. E eu sempre [...] que sentava, eu sempre olhava nos olhos dele, sabe. E quando eu já casada, ele também me sentou no colo e eu olhei nos olhos dele [...] Ele [...] levantou e foi embora, e eu fui do outro lado. Aí nós se conhecemos choro. Pelo toque [...] Pelos gestos, a gente se reconhece (KOLWALCZUK, 2006).

Considerações finais

Tomando de empréstimo as palavras utilizadas na ementa do evento Memórias do Corpo, que motivou a escrita deste artigo, ao fim e ao cabo, podemos perguntar; quais foram as impressões e sentimentos que ficaram gravadas no corpo e na alma de Francisco e Bolka? Quais foram as lembranças acionadas em suas narrativas que deixaram marcas visíveis nos discursos destes sujeitos? De que maneira o corpo, ou melhor dizendo a memória gestual, se configurou foi um elemento mediador nas representações acerca do passado desses sujeitos?

O fato das narrativas autobiográficas de Francisco e Bolka terem sido escritas ou verbalizadas algumas décadas depois de ambos terem vivenciado a experiência

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do deslocamento forçado, sem dúvida, interferiu no modo de lembrar. As rememorações acerca dos sentimentos e as representações sobre o passado, construídas em uma etapa temporal na qual os narradores já haviam chegado à maturidade certamente sofreram distorções, tendo em vista a impossibilidade das experiências do passado serem memorizadas e recuperadas na sua integridade.

Contudo, não se pode esquecer que no fluxo inexorável do tempo, a busca memorial emergiu nestas narrativas como um elemento chave na dialética entre memória e identidade, tendo em vista que “a memória, como lembra Candau (2012, p.16) ao mesmo tempo que nos modela, é também por nós modelada”. Ou seja, “se a memória é “geradora” de identidade, no sentido que participa de sua construção essa identidade, por outro lado, molda predisposições que vão levar o indivíduo a “incorporar” certos aspectos particulares do passado, a fazer escolhas memoriais” (CANDAU, 2012, p.16).

Nessa perspectiva, ao explorarmos os relatos autobiográficos de Francisco e Bolka, mesmo sabendo que suas narrativas contêm distorções próprias da ilusão biográfica, nosso propósito foi conciliar a subjetividade do sujeito ao seu modo de ver o mundo, à luz das representações que estes constroem a partir de sua própria memória.

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Cicatrizes e memórias: as marcas da violência em The Dew

Breaker, de Edwidge Danticat

Leila Assumpção Harris (UERJ – FAPERJ) Priscilla da Silva Figueiredo (UERJ – CNPq) Uma das muitas maneiras de se descrever um escultor no Egito Antigo era „alguém que mantém as coisas vivas‟. Antes de quadros serem desenhador e amuletos serem esculpidos para as tumbas egípcias, homens e mulheres ricos tinham seus escravos enterrados consigo para que lhes fizessem companhia na próxima vida. Os artistas que criaram esses outros tipos de arte memorial, a arte que poderia substituir os corpos mortos, talvez também quisessem salvar vidas. Diante da destruição tanto externa quanto

interna, ainda estamos tentando criar perigosamente como eles, como se cada obra de arte fosse um substituto para uma vida, uma alma, um futuro.

Como os escultores do Egito antigo talvez tenham desconfiado, [...], não temos outra escolha (Edwidge Danticat, nossa ênfase).

Pense no Haiti/ Reze pelo Haiti/ O Haiti é aqui/ O Haiti não é aqui (Caetano Veloso e Gilberto Gil)

De acordo com Aníbal Quijano, o projeto colonial, que se inicia com a criação da América e culmina com a globalização, tem como alicerce principal a classificação social a partir de uma ideia de raça (QUIJANO, 2005, p. 17). A criação das raças serviu para alimentar o sistema laboral inaugurado com o colonialismo e pressupõe uma série de apagamentos das identidades étnico-culturais anteriores. Tal apagamento atingiu, sobretudo, os povos de origem africana e os povos originários, no esforço para que se tornassem “negros” e “indígenas”. Desta forma, pode-se afirmar que o par memória/amnésia está presente desde o começo da colonização do continente americano e faz parte da luta que se inicia com o colonialismo e se estende até os dias de hoje: a luta anti/decolonial. Sobre memória, ou antes, atos de memória, em seu livro Reading Autobiography: a guide for

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interpreting life narratives (2001), as críticas estadunidenses Sidonie Smith e Júlia

Watson comentam: "se pensarmos nos atos de memória não como uma atividade que pertença inteiramente ao âmbito privado, mas como uma atividade situada nas políticas de cultura, podemos reconhecer em que grau a memória é uma atividade

coletiva" (SMITH; WATSON, 2010, p. 25)9. A memória anticolonial, ou seja, a que

resiste ao apagamento colonial/imperialista, é antes de tudo coletiva porque está engajada no projeto de resistência do qual fazem parte as práticas decoloniais.

Uma das principais ferramentas utilizadas como local de memória decolonial pelos povos latinoamericano e caribenho é a ficção. Apesar de não ser aceito a priori como lugar de lembrança, mas de invenção, a ficção se tornou uma das maneiras pelas quais a memória da violência colonial sofrida e das lutas por resistência dos povos americanizados encontrou meio de expressão. Beatriz Sarlo, professora, crítica literária e cultural argentina, que passou anos debruçada sobre os testemunhos e autobiografias daqueles que sobreviveram às atrocidades da ditadura argentina, reflete sobre a possibilidade de obras ficcionais ocuparem papel de importância nas políticas de rememoração. Em seu livro Tempo passado: cultura da

memória e guinada subjetiva (2005), Sarlo declara: "se tivesse que falar por mim, diria

que encontrei na literatura (tão hostil a que se estabeleçam sobre ela limites de verdade) as imagens mais exatas do horror do passado recente e de sua textura de ideias e experiências" (SARLO, 2007, p. 117). Sendo assim, o objetivo do presente artigo é analisar como a autora Edwidge Danticat, nascida no Haiti e residente nos EUA, faz de suas obras ficcionais instrumentos de resistência à violência colonial/imperialista e de recuperação da memória. Aqui, a obra The Dew Breaker (2004) será apresentada como exemplo de prática decolonial na qual a autora se mostra engajada.

9 A não ser pelas traduções identificadas nas referências bibliográficas, todas as outras são de

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No ensaio “Daughters of Memory”, que faz parte do livro Create Dangerously, publicado em 2010, Danticat afirma:

Travar lutas com a memória é, acredito, uma das obsessões complicadas do povo haitiano. Parece que temos um acordo coletivo de lembrar nossos triunfos e passar por cima dos nossos fracassos. Assim, falamos sobre a Revolução do Haiti, como se tivesse acontecido ontem, mas raramente mencionamos a escravidão que a provocou. Nossos quadros retratam a selva africana, gloriosa e edênica, mas nunca a travessia dos navios negreiros. Para proteger a psique coletiva, estilhaçada por uma longa história de retrocessos e desilusões, pela nossa trajetória de altos e baixos, entre libertadores e ditadores, opressão interna e tirania estrangeira, cultivamos uma amnésia coletiva e histórica, continuamente reproduzindo ciclos, sem nos darmos conta de que estão se repetindo até estarmos revivendo horrores semelhantes [aos que vivemos no passado] (DANTICAT: 2010a, p. 63-64)

Esquecer acontecimentos traumáticos é um mecanismo de defesa que nossas

mentes muitas vezes acionam automaticamente, mas de acordo com Danticat, todo escritor tem medo de esquecer e “para escritores migrantes, longe da terra natal, a

memória se transforma em um abismo ainda mais profundo” (2010b)10. Sua

preocupação em preservar a memória e a história do Haiti e seu povo ressoa com o pensamento de Wilson Laleau. Em um artigo publicado no The New York Times em 2008, o então vice-presidente de assuntos acadêmicos da Universidade do Haiti também lamenta a amnésia e falta de perspectiva histórica vigentes no Haiti. “Nós não fazemos uso da história e da memória para entender o presente e construir o

futuro” (LALEAU, 2008)11.

A problematização da amnésia que afeta não só o Haiti, mas outras nações caribenhas que emergem a partir de processos de colonização também é abordada por Myriam Chancy em seu livro From Sugar to Revolution: Women’s Visions of Haiti,

Cuba, and the Dominican Republic (2012). Escritora e acadêmica, Chancy avalia a

10http://www.substantivoplural.com.br/entrevista-com-a-escritora-edwidgedanticat/

Acesso em 04 de outubro de 2010.

11 https://www.nytimes.com/2008/03/23/world/americas/23haiti.html Acesso em 30 de junho

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relevância de autoras caribenhas contemporâneas tais como Julia Alvarez, Achy Obejas, Edwidge Danticat, entre outras, refletindo sobre o papel que elas exercem como

as novas arqueólogas de um sítio histórico ao qual daríamos o nome de "amnésia". Porta-vozes de uma maioria que é, todavia marginalizada em culturas ultrapassadas, patriarcalmente regulamentadas, elas buscam elucidar as variadas vidas de mulheres que se passam entre as paredes confinantes de suas identidades nacionais, identidades nacionais que são, atualmente, inteiramente definidas como masculinas (CHANCY, 2012, xxii)

As palavras de Chancy ecoam as de Walter Benjamin, quando argumenta que a tarefa do materialista histórico seria "de escovar a história a contrapelo" (BENJAMIN, 2012, p.13). Os papéis de arqueólogas e porta-vozes assumidos por aquelas artistas caribenhas precisam ser trazidos à tona. Arqueólogos são profissionais que, por meio da escavação, entram em contato com culturas, línguas, resíduos, características físicas, etc. de povos ao redor do mundo e tentam recriar os mundos supracitados por meio dos resíduos que encontram. Porta-vozes, por sua vez, são aqueles que falam em nome de alguém. Ambas as ocupações oferecem riscos, já que podem substituir uma forma opressiva de viver por outra. Questões de representação, autorrepresentação, representação de Outros são extremamente complexas, como adverte Gayatri Spivak, e requerem um auto-questionamento constante dos objetivos de tal empreendimento (SPIVAK, 1990, p. 63). No entanto, Chancy defende que as artistas incluídas em sua discussão não buscam suplantar um regime antigo com um novo que idealmente atenderia às suas próprias agendas. Ao invés disso, acrescenta,

elas se veem como participantes ativas em uma crítica da história e da cultura dos dias atuais, ao mesmo tempo em que oferecem alternativas plausíveis para as construções estáticas de nação, metrópole, poderes dominantes versus subordinados, e identidade, conforme cada uma foi historicamente determinada dentro do ethos caribenho. Assim fazem, muitas vezes, por meio da exploração de raça e de classe,

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problematizando noções de identidade nacional e às vezes produzindo versões problemáticas de tais identidades variadas (CHANCY, 20012, xxxiii).

O engajamento e participação crítica fazem parte da trajetória de Edwige Danticat. Desde a publicaçãode seu primeiro romance, Breath, Eyes, Memory (2004), aos 25 anos, ou seja, 13 anos após migrar para os Estados Unidos, Danticat se propõe a resgatar a memória e a história de seus familiares e do Haiti tanto em seus escritos não ficcionais como em seus romances. Na obra de Danticat, de acordo com Carol Boyce Davies, migração e nação fazem parte de um encontro perpétuo com a história, um passado de dor e de opressão presentes de formas variadas na

história do Caribe(DAVIES, 2010, p. 752). Em outra ocasião, Davies argumenta

que no contexto das Américas uma visão do Caribe que incorpore uma história de genocídio, escravidão, e brutalidade física requer uma definição de cultura que inclua oposição, resistência e transformação (DAVIES, 1994, p. 12). Igualmente relevante é o uso estratégico da memória e a problematização do passado para que se possa recuperar o que foi esquecido ou omitido e alcançar a justiça social (HUA, 2008, p. 198). Em seus romances, Danticat dramatiza através de seus personagens o papel da memória, individual e coletiva, levando em conta não só o contexto diaspórico, mas também a perspectiva dos que permanecem na terra natal.

The Dew Breaker, publicado em 2004, é composto de nove contos

aparentemente independentes que desafiam qualquer tentativa de simplificar o complexo entrelaçamento dos filamentos narrativos. A leitura progressiva do texto revela, no entanto, que os personagens das diferentes histórias fazem parte da diáspora haitiana nos Estados Unidos, mais especificamente em Brooklyn, Nova Iorque. A maioria foi afetada, direta ou indiretamente, pela violência do Estado e em muitos casos estão ligados por incidentes do passado. O título do romance em inglês é uma tradução da expressão crioula choukèt laroze, também usada para se

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escolhido por Duvalier (Papa Doc) para designar a milícia voluntária que aterrorizou o Haiti durante a ditatura de trinta anos, liderada por ele e emais tarde seu filho (Baby Doc). Comentando sua escolha do título, Danticat fala do seu fascínio pelo uso de uma expressão tão poética, chouket laroze, para descrever uma figura tão desprezível, e de sua decisão de buscar a expressão mais serena possível

ao traduzi-la para o inglês. 12 Em portugês,o significado da expressão (literalmente

aquele que quebra o orvalho) torna-se mais claro através da fala de uma das personagens da obra. Beatrice Saint Fort, uma das vítimas de tortura, ao relembrar as figuras sinistras: “Eles invadiam sua casa. Quase sempre durante a noite. Mas muitas vezes também chegavam pouco antes do amanhecer, conforme o orvalho cobria as folhas, e eles levavam você” (DANTICAT, 2004, p.131).

A narrativa não linear da obra e a aparente independência entre as histórias, cada uma com seu próprio título, faz com que alguns críticos usem o termo “ciclo de contos” para caracterizar a obra. Em “Postcolonial Trauma Theory and the Short Story Cycle: Edwidge Danticat‟s The Dew Breaker”, Silvia Martínez Falquina justifica sua preferência pelo termo:

A definição mais apropriada de um ciclo de contos envolve o caso peculiar de simultaneidade de encerramento/ closure e abertura, tanto formalmente como em termos de significado. No processo de leitura de um ciclo de contos, cada encerramento é seguido por novas aberturas, tornando-o necessariamente temporário/provisório. Portanto, o texto em sua totalidade é caracterizado pela abertura criada a partir do caráter provisório de qualquer impulso na direção de encerramento (FALQUINA, 2014, p. 180, minha ênfase).

Por sua vez, Aitor Ibarrola Armendariz mantém que a principal característica de The Dew Breaker é “a disjunção e fragmentação da obra, que força quem lê a mergulhar mais profundamente nos dilemas enfrentados pelas vítimas”

12https://www.bookbrowse.com/author_interviews/full/index.cfm/author_number/1022/edwi

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