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Espaço, objetos e afetos: uma fenomenologia das coisas

No documento Memórias do corpo (páginas 88-112)

José Cláudio S. Castanheira (UFSC)

Introdução

Este texto se propõe a fazer uma breve reflexão sobre as imagens (em

específico, o cinema) como forma de reconhecimento do mundo e das coisas do mundo e, ao mesmo tempo, como maneira de expressar ambos. E se, em uma atitude reflexiva, mundo e coisas também pudessem se manifestar acerca de nós, aqueles que os observam e filmam? Não falamos aqui do tipo de manifestação mediada que é um filme (de um observador qualquer) discorrendo sobre um fato, um objeto, sobre situações da vida. Mesmo porque essa será sempre uma manifestação humana sobre as coisas. O filme expressa a fala que atribuímos a ele de alguma maneira. Pensamos em algo menos evidente e, diriam os humanistas, mais extravagante. Pensamos sobre a vontade consciente das coisas, e aqui tratamos mais especificamente das imagens, de falar sobre o mundo (incluindo os humanos). Essa é uma provocação, claro. Mas trata-se de uma provocação que toca em pontos que julgamos importantes em nossa relação com objetos, com máquinas, com um ambiente modificado e atravessado por camadas e camadas de ações que não são nossas (embora, em algum ponto tenham de nós partido), mas que modificam profundamente nossa relação com tudo o que nos cerca.

Algumas direções devem ser clareadas para que esta reflexão produza um mínimo de sentido e para que possamos, ao menos, entrever as novas relações entre humanos, tecnologias e imagens. Primeiramente, como mencionamos a vontade consciente das imagens, devemos discorrer um pouco sobre o caráter fenomenológico da percepção do mundo. Sem isto, dificilmente compreenderemos

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a proposição que se fará, ao final do texto, de uma fenomenologia das coisas. Como toda descrição fenomenológica, lidamos aqui com uma tentativa de entendimento do processo de apreensão das imagens e como estas podem gerar um sentido que, se não universal, afeta a todos nós que nos expomos diariamente, de diferentes formas, às mesmas.

Ao entender a experiência das imagens como uma afetação física, podemos atribuir a elas também uma capacidade de atuar sobre outros corpos: os corpos humanos e os das demais coisas do mundo – inclusive o das próprias imagens. Isso significa atribuir um corpo material a elas, ainda que não análogo ao corpo humano, mas que pode guardar algumas similaridades. Como todo corpo ocupa um espaço e como todo espaço pressupõe um possível contato entre os seres que nele habitam, devemos entender a experiência fílmica (ou de qualquer outra imagem, como queiram) como uma experiência física, como um contato – às vezes violento – entre corpos. Diferente dos afetos que comumente relacionamos a sentimentos, os efeitos das imagens são traduzidos de forma material sobre corpos e mentes, como estados momentâneos – são afecções (DELEUZE, 2009).

À experiência física, historicamente, contrapomos uma leitura racional das imagens. Essa racionalidade está intimamente ligada à modelos interpretativos em que buscamos um sentido para tudo. Um sentido que talvez esteja mais naquele que procura do que nos objetos em si. Daí, através de uma crítica à relação sujeito- objeto que pauta, na maioria das vezes, nossos modelos de produção de conhecimento, gostaríamos de propor uma radical fragmentação da subjetividade responsável pelo olhar sobre o mundo. Gostaríamos de pensar que, à nossa revelia, as coisas também modelam, cada vez mais, esse olhar.

90 A tarefa fenomenológica

Pensar a tarefa fenomenológica como um endereçamento da experiência material significa avançar na ideia de que há uma distância intransponível entre os objetos e nós, observadores de tais objetos. Nesse sentido, assim como as demais vertentes do pensamento ocidental nos últimos séculos, a fenomenologia constitui um sujeito e um objeto do conhecimento, sendo que apenas à relação entre os dois é que podemos ter acesso. Quentin Meillasoux (2008) nomeia esse fenômeno de “correlacionismo”, base de praticamente todo processo hermenêutico de contato com o mundo. Assim como a psicanálise, a fenomenologia tende a colocar qualquer hipótese a respeito das coisas fora destas, através de estruturas mentais.

A investigação fenomenológica proposta por Edmund Husserl no início do século XX é considerada por alguns autores como um possível fim do paradigma sujeito/objeto tão determinante para a filosofia desde Descartes. Talvez, por isso mesmo, Husserl considere a si mesmo como o último pensador cartesiano. O fato é que, embora em alguns aspectos a fenomenologia de Husserl se aproxime da dúvida sistemática sugerida por Descartes, ela tenta repensar a metafísica e o campo hermenêutico em que estava imerso o pensamento moderno.

Em contraste com a superioridade da mente (res cogitans) em relação ao corpo (res extensae), Husserl considerava essencial um retorno “às coisas mesmas”. Contudo, tais “coisas mesmas” eram assim consideradas como apresentadas à consciência, fora de um universo tangível. O mundo exterior seria inacessível e qualquer tentativa de aproximação deste, em uma concepção naturalista, deveria ser tomada como ingênua. Sua fenomenologia se ocupa, portanto, de mapear os mecanismos de produção do mundo exterior. Essa é uma postura idealista que não nega a existência do mundo real, mas baseia-se em formulações mentais sobre esse mundo. O mundo constitui-se no sujeito (em sua consciência), através da reflexão, e isso garantiria o caráter apodídictico dessas constatações. Toda afirmação é passível de demonstração e constatação através de um modelo racional, sendo, portanto,

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irrefutável. O sujeito, da mesma forma, também se constitui pela reflexão. O Ego Transcendental deve se afastar do objeto para ter uma ideia clara e estar livre de pressuposições, mas também deve se afastar de sua própria existência irrefletida. Husserl parte da experiência imediata da consciência, que está sempre consciente de algo. “Consciência é um fluxo entre dois pólos: sujeito e objeto. Consciência é um vetor que realiza uma síntese organizacional.” (KOESTENBAUM, 1998, p. xxvii).

A intencionalidade da consciência é, portanto, um fator essencial para a fenomenologia. Sua natureza é logicamente transcendental, afinal fala ao que não é a própria consciência. Esta última consiste em ações como percepção, paixão, força de vontade, imaginação, etc., que são elementos subjetivos da experiência. A tarefa fenomenológica evita construções interpretativas. Em vez disso, ela deseja descrever em detalhes todos os aspectos da experiência.

Era fundamental para o filósofo chegar ao fenômeno puro e suspender o julgamento em relação ao mundo exterior. Husserl nomeou essa suspensão do mundo, também chamada de “colocar entre parênteses”, de epoché. O fenômeno seria o mundo “colocado entre parênteses” pela redução fenomenológica. Husserl ainda defende a necessidade de uma redução eidética, uma busca pela essência (eidos) do fenômeno. Por fim, a redução transcendental seria o método pelo qual tomamos conhecimento das noesis (ações que dão significado aos objetos), noemas (objetos que precisam ser conhecidos) e hylé (conjunto de dados perceptivos). Na redução transcendental, na qual o Ego Transcendental – testemunho original de todas as experiências – aparece, podemos alcançar a experiência pura, o modelo através do qual compreendermos o mundo.

Para Peter Koestenbaum, ao comentar o pensamento de Husserl, este deve ser entendido como um pensador que lida com a linguagem do pensamento como um reflexo da experiência, ou mesmo esta última como independente da primeira. Para ele fenomenologia

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estabelece a primazia lógica e ontológica da experiência sobre a linguagem. O método fenomenológico é a análise descritiva da experiência. A pressuposição necessária, portanto, é que a linguagem corporifica a experiência, isto é, que as estruturas da linguagem são paralelas e representativas da experiência (KOESTENBAUM, 1998, p. xii).

Propõe-se, então, a organização de uma epistemologia de caráter científico acerca das experiências subjetivas. O projeto de sintetizar o objeto (cogitatum) a partir de um ato intencional (cogito) forma, juntamente com o Ego Transcendental, a base dessa filosofia: o ego cogito cogitatum. O Ego Transcendental, que se posiciona criticamente fora de si, seria autônomo em relação ao processo de percepção do sujeito.

Dessa maneira, ainda existe um caráter dualista de sua filosofia, no qual podemos distinguir dois tipos de separação. Há uma diferença de natureza quanto ao interno e ao externo. Tudo na esfera da consciência é imanente, temos acesso direto e transparente aos nossos pensamentos e experiências. Por outro lado, tudo o que tem a ver com o mundo exterior, todo corpo físico no mundo, é transcendente. Ele também diferencia entre o concreto e o abstrato, coisas reais e essências ideais. Apesar de sua busca pelas “coisas mesmas”, Husserl ainda coloca o mundo como distante das construções idealistas da consciência. Para ele, a intencionalidade é baseada na distinção entre realidade e consciência.

Com essas dicotomias colocadas, o corpo aparece inevitavelmente como um tipo de anomalia fenomenológica, colocando questões embaraçosas para as diferenças metafísicas e epistemológicas que Husserl, apesar de seus inegáveis avanços sobre a epistemologia tradicional, ainda toma como certas (CARMAN, 1999, p. 206).

Com essas sucessivas reduções, os sentidos não desempenhariam um papel importante na constituição de nossa corporeidade. Eles trabalhariam em um nível mais psicológico de nossa experiência e, portanto, não teriam uma idealidade intencional. Para Husserl, a incapacidade de o sujeito de ver ou ouvir a si mesmo, a

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incapacidade de dar um passo atrás e retratar objetivamente a ação sensível tornaria o corpo apenas um portador de sensações. “Um olho não se mostra para a própria visão de alguém” (HUSSERL, 1989, p. 155). Quando usamos os sentidos, abandonamos a intencionalidade da mente e navegamos em uma espécie de “automático” corporal.

No entanto, o tato teria uma qualidade para o filósofo que lhe daria supremacia sobre outros sentidos. Seu duplo aspecto, a capacidade de tocar sendo tocado, confere a esse sentido um lugar privilegiado na esfera da consciência. O corpo sente e é sentido, ao contrário do que ocorre com a visão. “O Corpo como tal pode ser constituído originalmente apenas na tatilidade e em tudo que é localizado com as sensações do tato” (Ibid., p. 158). De qualquer forma, o corpo não é interno à consciência ou externo ao sujeito no mundo. Encontra-se entre um campo subjetivo e um campo material.

As sensações primárias são submetidas a apreensões, são tomadas em percepções, sobre as quais, então, os julgamentos perceptuais são construídos, etc. Dessa maneira, a consciência total de um ser humano é em um

certo sentido, através de seu substrato hilético, destinado ao Corpo, apesar de, por

certo, as experiências vividas intencionalmente elas mesmas não serem

mais direta e propriamente localizadas; elas não formam mais uma camada

no Corpo. Percepção, como a apreensão tátil da forma, não tem seu lugar no dedo que toca, no qual a sensação de tato é localizada (Ibid., p. 160-161).

Mais uma vez, é clara a distinção entre a ideia de experiência abstrata que podemos alcançar na consciência e os limites da sensualidade real que está presente no corpo. “Os conteúdos co-entrelaçados das sensações têm uma localização que é dada intuitivamente, mas as intencionalidades não, e elas são tidas como relacionadas ao Corpo ou presentes no Corpo apenas metaforicamente” (Ibid., p. 161).

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Em seus últimos escritos, Husserl tenta recuperar um mundo histórico- cultural concreto que precederia qualquer conceitualização metafísica e científica. O “mundo da vida”, ou Lebenswelt, está conectado ao Ego, em uma relação entre consciência e mundo, na qual o foco é um a priori pré-categórico, que cria novas abordagens para conceitos como intencionalidade e intersubjetividade. A ideia de um mundo que precede toda experiência é encontrada posteriormente em pensadores como Heidegger e Merleau-Ponty.

O filme como corpo

Podemos criticar a fenomenologia transcendental de Husserl considerando- se a impossibilidade de o sujeito descrever o mundo a partir de um ponto externo a si mesmo. Como dar um passo atrás do mundo em que vivemos e que constitui, ao final, nosso horizonte de possibilidades? A noção de Lebenswelt husserliana não vê como problemática essa distância entre mente e mundo, forçando toda e qualquer explicação deste por algum tipo de reflexão.

Merleau-Ponty sustenta que, apesar da participação de processos mentais na apreensão do mundo, tanto pensamento quanto sensações apenas existem em decorrência de uma atividade perceptiva. Esta é, sempre, corporificada. A consciência não pode ser vista como transparente, assim como a realidade concreta também não deve ser colocada como opaca. Essas oposições não descrevem satisfatoriamente a relação entre corpo e mundo, sendo que nenhum dos dois pode ser abstraído. A tarefa de redução é inócua, na medida em que nem uma forma ideal pode se apresentar à consciência sem a mediação do corpo e nem a própria consciência pode se desvincular de sua base corpórea. “O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 10).

O sensível é a dimensão que define tanto o “eu” quanto o “outro”. Nesse sentido, as diferenças entre sujeito e objeto são embaralhadas no próprio corpo.

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Sujeito e objeto não estão submetidos a um Cogito que só enxerga a si mesmo. Se corpo e mundo partilham da mesma natureza, torna-se possível atribuir a este último um caráter reflexionante, ou seja, de ente que pode produzir efeitos sobre os demais corpos, inclusive o nosso. O mundo abrange as cogitações dos dois elementos.

Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em realidade (Ibid., 2006, p. 269).

O corpo é a base de nossa consciência e dos processos perceptivos que alimentam essa consciência. Pensar o corpo como apenas um suporte de sensações é minimizar o papel que essas sensações (apenas possibilitadas pelo corpo) têm na constituição de nossa existência no mundo. Portanto, não é possível falar de uma relação externa com nossos corpos. O Ego não é capaz de transcender esse limite, que é a barreira física da matéria. Toda comunicação entre corpos se dá dentro de um mundo concreto ao qual temos acesso: nós e as demais coisas. Esse mundo comum não pode ser expresso como experiência única ou verdadeira, deixando espaço para uma comunicação entre corpos que se dá de maneira intersubjetiva, por observação. A comunicação entre “mundos privados” permite que fragmentos de mundo em comum surjam a cada experiência, mas não de forma assertiva. Há uma distância tanto entre a consciência de cada um sobre as coisas quanto entre o mundo sensível e entre o mundo do pensamento: um visível e contínuo, o outro invisível e lacunar. Ambos interdependentes.

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O corpo se coloca como condição de existência não apenas do meu pensamento, mas também do mundo concreto. “O corpo é nada mais, nada menos, a condição da possibilidade da coisa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 202). O outro é constituído a partir dos estímulos como eu os recebo e a partir dos pensamentos como eles se organizam em minha consciência. “Pelo menos, meu mundo privado deixou de ser apenas meu; é, agora, instrumento manejado pelo outro, dimensão de uma vida generalizada que se enxertou na minha” (Id., 2007, p. 22).

A partir de Merleau-Ponty e de sua fenomenologia existencial, Vivian Sobchak (1992) compara a experiência cinematográfica ao ato de perceber o mundo. Da mesma forma como Husserl já propunha, delineia-se uma relação entre o ato (cogito) e o objeto (cogitatum), este último definido a partir do primeiro. Sobchack abandona o caráter transcendental em sua análise, visto por ela como um apelo quase “religioso” que, em autores como Bazin (2014), por exemplo, procuraria descrever ou revelar o mundo “real” a partir de certo tipo de imagens. Mesmo que a fenomenologia husserliana afirme que não existe acesso direto ao real pela consciência, Bazin manifesta sua crença de que o cinema deve servir a uma imanência do mundo, desvelada pelo filme. A representação, em suas diferentes formas, afastaria o cinema de seu potencial de perceber o mundo e seus objetos. Para Bazin, o cinema e o mundo fazem parte de um mesmo espaço ideal.

Para Sobchack, corpos que habitam um mesmo espaço constituem-se mutuamente. Tanto o filme quanto o espectador são dois sujeitos-corpos que mantém uma relação dialógica e dialética, construída em um nível perceptivo. A experiência sensória define nossa relação com o filme e vice-versa. Existe, pois, uma reversibilidade entre a subjetividade corporificada e a condição objetiva de participar do mundo em cada um deles.

Merleau-Ponty (2006) chama tal reversibilidade de quiasma. Percepção e expressão estão ligadas, mas não se misturam. As duas instâncias existem na

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experiência cinematográfica de forma distinta daquela dos atos de consciência ou do pensamento. Existe um corpo do filme, constituído por trechos filmados separadamente, por tempos e espaços descontínuos, mas que garantem, internamente, uma coerência espaço-temporal – ainda que essa coerência não seja plenamente compreendida de imediato. Esse corpo-vivo possui seus próprios órgãos perceptivo e expressivo. No caso do filme clássico, atribuiríamos à câmera e ao projetor esses papeis. A tela funcionaria como o centro da experiência significativa. Contemporaneamente, esse sistema perceptivo-expressivo tornou-se mais complexo, exigindo uma maior sutileza nas descrições tanto do dispositivo quanto dos efeitos da experiência sobre a consciência.

Os atos executados por realizadores e por espectadores constituem, reflexivamente e refletidamente, a percepção da expressão e a expressão da percepção. O próprio filme é o terceiro elemento dessa relação intersubjetiva, que assegura a produção de algum sentido na comunicação cinematográfica para aqueles que tenham, de alguma maneira, adquirido competências prévias em relação às imagens. Note-se que aqui não tratamos de competências racionais, dependentes de processos intelectuais anteriormente desenvolvidos. Não negando a dimensão hermenêutica do cinema, quereremos afirmar aqui que o filme comunica mesmo quando não há tal conhecimento prévio, apenas pelo fato de ser um corpo-vivo em contato com outros corpos-vivos. O filme possui, apenas por isso, inteligibilidade (muito embora, não necessariamente a possibilidade de interpretação). Processos de interpretação dependeriam, então, do desenvolvimento de um sistema de códigos e de uma semiótica aplicada à descrição e compreensão das estruturas de comunicação.

Para Sobchack, filme e espectador partilham espaços e modos de existência que independem de códigos previamente aprendidos. Por essa razão, a experiência cinematográfica tende a ser múltipla e nunca completamente adestrada por quaisquer modelos histórica ou culturalmente estabelecidos.

98 Espaços como condição de existência

As tentativas de domesticação da imagem passam, no cinema, pelo atrelamento da forma-filme a dimensões familiares e previsíveis. Não apenas na caracterização de um dispositivo básico, padronizado em termos de duração, configuração de espaços e finalidades, mas também dos sentidos que a partir dessa experiência possam ser formulados.

Antes de entrarmos em maiores detalhes sobre a padronização dos espaços e seu papel na constituição de um modelo único de espectatorialidade, façamos algumas observações sobre o repertório de sentidos possíveis do filme atribuídos pela análise clássica.

Como devedor da literatura em muitos aspectos, o filme narrativo dificilmente escapa de trabalhar com estruturas dramáticas canônicas que, em síntese, buscam algum sentido oculto sob a forma. Esse sentido pode tanto ser, em um primeiro nível, a própria história sendo contada objetivamente, quanto, de forma mais sofisticada, ilações morais ou filosóficas sobre a mencionada história. Mecanismos narrativos, no cinema, desenvolveram-se a partir das práticas literárias já estabelecidas e distanciaram-se até configurar o que, por um viés estruturalista, passamos a chamar de “linguagem cinematográfica”.

A referida “linguagem”, quer próxima ou nem tanto assim das linguagens naturais, propõe-se a descrever o sistema de códigos aperfeiçoado ao longo dos anos para que um filme pudesse produzir sentido a partir de sua própria matéria, menos vinculado ao texto escrito (como era o caso dos primeiros intertítulos). Pode-se mesmo dizer que o cinema só passa a ser cinema quando aprimora os mecanismos internos mais particulares de significar sem a necessidade de explicadores ou demais ferramentas de exegese. Tais processos de interpretação são agora incorporados pela plateia que procede a “leitura” do filme em dois níveis: A) o nível narrativo, com seus possíveis desdobramentos morais; B) o nível estrutural,

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tratando de um outro tipo de significado, derivado da forma, e totalmente codificado. Nos dois casos, os sentidos do filme são partilhados, de maneira mais ou menos homogênea, por diferentes plateias. Se não há um perfeito entendimento por algum grupo, é porque não há o compartilhamento integral de um determinado sistema de códigos comum. O cinema clássico-narrativo, que em sua própria denominação já se propõe como universal, depende da padronização de tais

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