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Corpos e memória: um lugar para chamar de seu

No documento Memórias do corpo (páginas 189-200)

Tânia Regina de Oliveira Ramos (UFSC)

Meu texto quer aqui ser um lugar de fala, ser um salutar exercício de descontinuidades, de acúmulo de coisas já ditas e tornadas públicas agora fora de uma cronologia e de uma hierarquia, escrito a partir das palavras-chave, deste evento: memórias e corpo. Do meu corpo, por exemplo. Qual é o destino de minha produção? Periódicos nacionais, publicações online, eventos nacionais e internacionais no Brasil, livros organizados e capítulos de livro. Retomo a minha biblioteca particular, constituída nos últimos anos, enquanto professora de Literatura Brasileira, vejo livros traduzidos, muitos solitários, muitos solidários e cooperativos. Lanço mais uma vez o olhar em direção às prateleiras, de minha casa e na UFSC, procurando entender, acima de tudo, o que ficou desses livros, enquanto memórias de leituras (e não apenas da literatura), da escrita feminina, da relação literatura e ensino, de arquivos e memórias, de narrativas apontadas como cânone contemporâneo e das teorias que estão literalmente (ou simbolicamente) situadas na fila da frente, mais perto dos olhos e das mãos. Norberto Bobbio, no

livro que faz um balanço de sua vida73, dizia que a biblioteca de um professor é

como um bazar: há brinquedos de luxo e há quinquilharias. Que disposição eu dei aos livros adquiridos? Aos documentos por mim guardados? Encontro, com facilidade, a minha produção em anais, periódicos e livros, dispostos separadamente dos demais. Por que não junto e misturado? Quais de meus livros e de minhas publicações foram, são ou serão fundamentais para releituras? Há quanto tempo não abro alguns livros e pastas de documentos reais e virtuais, que foram

73 BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória. De Senectude e outros escritos biográficos.

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referências imprescindíveis na compreensão da história da literatura, história que me apontava caminhos para a inserção de textos em uma tradição; ou onde estão os livros que possibilitaram a construção de um discurso efetivamente crítico naquilo que a crítica contém em seu radical enquanto mudança, crise e criatividade?

Um dos meus professores de Doutorado, convidado por um período como visitante na PUC RJ, pregava a importância do ensaio, como o melhor caminho para se pensar a literatura. Não só o ensaio, como forma, como teorizou Adorno, mas o ensaio como ventura e como aventura. Recordo de suas palavras: “Com o ensaio, se sabe aonde se quer ir, mas nunca se sabe aonde poderá chegar. Por isso o

ensaio é venturoso e aventuroso”74. Escrevi ensaios, publiquei ensaios, li ensaios,

muitos ensaios. E gosto de ler o ensaio em romances, onde as ideias valem tanto quanto a ação narrativa. A leitura e a escrita de ensaios, por exemplo, sobre a série de narrativas ficcionais, autores e temas da produção literária e crítica mais contemporânea, das escritas femininas, dos acervos pessoais, da literatura e ensino, dos livros org., foram o que me moveram, mesmo sem uma orientação analítica precisa, a encontrar respostas nesse movimento de constante interrogação. Não tive as certezas das análises estruturais, formalistas e das abordagens sociológicas. Nunca consegui fazer uma leitura de um livro sustentada por uma teoria que calasse a narrativa. Desaprendi, como toda a minha geração, a análise literária. Causa e consequência. Por que, tal como aconteceu comigo, desapareceu dos anais, dos livros organizados, dos suplementos literários, das revistas, dos periódicos, a análise literária em si. Muitos caminhos de leitura hoje obrigatoriamente passam por teorias críticas e pela engrenagem do campo literário. Encontrei algumas respostas para as muitas interrogações – seria mais prudente continuar inventando perguntas do que dar respostas, nas viagens das teorias, internacionalizadas, que ocupam parte de minha estante, e nos livros de literatura, ficção, romance, poesia, histórias,

74 Falo do professor Eduardo Prado Coelho que esteve na PUC RJ em 1983.2 como professor

visitante no Programa de Pós-Graduação em Literaturas Expressão Portuguesa, oferecendo um curso sobre Pós-Modernidade.

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biografias, periódicos, e em muitos livros org. Que livros, meus pares e eu, temos em comum? O que compartilhar neste esforço de memória literária e cultural do corpo enquanto matéria?

A UFSC sempre se mostrou para mim, o lugar onde se vive plenamente a contradição entre crítica e ação. Ao mesmo tempo em que estou integrada ao Instituto de Estudos de Gênero e à editoria da Revista Estudos Feministas, ao mesmo tempo em que extensão e pesquisa sempre me levaram para fora da UFSC, em trabalhos individuais, integrados e coletivos, meu cotidiano se deu, além das salas de aula, em oscilantes espaços físicos, sonhado, desejado, e posteriormente denominado nuLIME, núcleo Literatura e Memória, e se fez a partir de uma cotidiana interação de jovens orientandas e orientandos, muitos bolsistas nos bons tempos da Universidade pública gratuita e de qualidade, lidando com a materialidade da literatura ou a materialidade da vida literária. Tradição e modernidade. Papeis e virtualidades. Pesquisamos e encaixotamos para (o) presente, digitalizamos e democratizamos a história e a literatura.

A luta pela criação e a consolidação do nuLIME, a garantia de um espaço físico, onde literatura e memória pudessem ser um espaço de aprendizagem e troca entre bolsistas de graduação, mestrandos e doutorandos, motivou a minha permanência na Universidade. Guardamos ali a memória física do Seminário Internacional Fazendo Gênero, publicações, cartazes, camisetas, cadernos de resumos; parte da materialidade do Portal Catarina e o Acervo Jorge Amado dos anos 1941 e 1942. A imersão no nuLIME, o contato direto com acervos e arquivos

pessoais75 de intelectuais, escritoras e escritores, permitiram e permitem

cotidianamente trabalhar especialmente com o esquecimento. Do que fazer ao que

fazer de Paulo Freire: a prática que pensa a prática. No nosso caso, a prática que

pensa o esquecimento. A saudosa presença de uma visita de Antonio Candido na

75 Uso como suporte a publicação da Fundação Getúlio Vargas. TRAVANCAS, Isabel et alii.

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UFSC, nos anos 80, registrada em fotos foi a semente, a criação institucional do nuLIME pelo politizado professor intelectual do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas, Dr. João Hernesto Weber e pela guardiã da memória das mulheres e da literatura catarinense, Dra. Zahidé Lupinacci Muzart e por mim. Dos corpos ausentes, das memórias presentes.

O trabalho que temos feito nos últimos anos tem a ver em certa parte com a recuperação, digitalização e a disponibilização na internet, de obras e acervos de autoras e autores, junto ao NUPILL, coordenado pelo professor Dr. Alckmar Luiz dos Santos. Partiu-se da hipótese da urgência da superposição de temporalidades, numa tensão entre passado, presente e futuro. Com esse esforço se quis e se quer não apenas permitir o acesso digital, mas democratizar a utilização de informações, autores e obras para pesquisas futuras de acervos que se encontravam inacessíveis, armazenados em condições precárias, caixas familiares, armários assistemáticos, sob a guarda algumas vezes desinteressada, por contingências governamentais, da Academia Catarinense de Letras. Ou acervos esquecidos e impossibilitados da guarda em espólio familiar.

Parece-nos relevante o que já conseguimos para pesquisas nunca ou pouco realizadas como, por exemplo, o acesso online do acervo do poeta Cruz e Sousa agora disponível a todos o que antes só era possível no Rio de Janeiro, de forma presencial na Casa de Rui Barbosa; os poemas originais e manuscritos organizados em plaquetes do poeta Ernani Rosas e os cadernos da cronista, poetisa e professora Delminda Silveira. Recuperou-se o importante acervo de Maura de Senna Pereira – hoje já conservado, acondicionado, digitalizado e cadastrado no Banco de Dados do Portal Catarina, www.portalcatarina.ufsc.br, em um total de mais de 6000 páginas de documentos, hoje esquecido e recusado na sua materialidade pela Academia Catarinense de Letras; o Acervo do escritor e crítico de arte catarinense Harry Laus, cuja materialidade foi doada pelo próprio autor à Profa. Dra. Zahidé Muzart e que se encontra guardado no espaço do nuLIME.

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Nesse contexto descritivo, num evento que pretende falar de memórias do corpo, fiz questão de trazer corpos invisíveis numa mesa marcada pela diferença e assim encontrar um ponto de fuga, uma possibilidade de desterritorializar nomes próprios e de se fazer conhecer. Por que a invisibilidade de acervos, manuscritos e datislocritos da literatura e da cultura catarinense, por exemplo? Como temos descoberto mulheres ou a participação poética e política de muitas delas nas ruínas dos acervos dos escritores homens? Qual o papel da Instituição como um todo diante da guarda de pesquisas e de acervos documentais?

Um professor, colega de Departamento, disse certa vez que se não se impusesse os autores, obras e conteúdos canônicos os alunos estariam só lendo literatura de mulher, negro, índio e paraplégico. Não entro no mérito de sua classificação que carrega certos pré-conceitos. Quero, porém, chegar mais perto de onde preciso estar. Mesmo não acreditando na obrigatoriedade curricular de uma fragmentação geográfica e identitária da cultura brasileira, a história da literatura precisa da inclusão de biografias e da ideia do menor, não no sentido do ínfimo, mas do peculiar, do diferente, do tão pouco conhecido ou do ainda não conhecido. A dedicação ao Portal Catarina conseguiu nos levar a um novo momento: promover mecanismos para divulgar pelas redes e portais, por eventos e publicações, a importância literária das margens que esses acervos digitais nos apresentam: centenas de poemas que Ernani Rosas, o filho do poeta Oscar Rosas, um simbolista à sombra de Cruz e Souza, que deixou manuscritos, agrupados em plaquetes, alguns publicados e estudados por orientandas da professora Zahidé Muzart, e agora disponibilizados em rede; dar a conhecer os cadernos da professora Delminda Silveira, escritos nos anos 20, seus contos, suas crônicas, seus poemas, escritora também incluída no primeiro volume da importante pesquisa coordenada pela professora Zahidé Muzart, sobre escritoras brasileiras do século XIX; entender, por exemplo, a assumida homossexualidade nos diários de Harry Laus, o corajoso e ousado intelectual catarinense e a intervenção de sua irmã Ruth

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Laus sobre seus ditos e interditos. O que pudemos fazer para não nos transformarmos apenas em acumuladores da materialidade física e digital de espólios familiares, mesmo que os democratizemos virtualmente?

Quero deixar mais claro ainda o que aqui apresento:

Tomo como exemplo a vida e a obra de Maura de Senna Pereira. Cronista, poetisa, jornalista, professora, contista, ao longo dos 88 anos viveu uma vida intelectualmente intensa entre Florianópolis e Rio de Janeiro em quase a totalidade do século XX, século de contradições e de grandes mudanças na história das mulheres. Em 1931, por exemplo, publica seu primeiro livro, intitulado Cântaro da

Ternura. O sucesso desse livro fez, no entanto, que ficasse conhecida como a Princesinha das Letras Catarinenses, no contexto masculino em que vivia e

possivelmente pela sua beleza física76. Mulher e intelectual esta é a Maura dos anos

cinquenta. Um aspecto interessante no acervo de Maura, que se encontra no nuLIME, recusado, depois de organizado pela Academia Catarinense de Letras, são os textos guardados por ela sobre Anita Garibaldi, personagem que teve grande influência na sua obra somados com convites para lançamentos, exposições, festas e bailes e uma ampla epistolografia. E muitas fotografias. Aliás, fotografias estão entre os mais valiosos documentos no Acervo de Maura. De corpo presente, rostos, faces, coletivos etc. Lamentavelmente só algumas das fotos nos dão a possibilidade de reconhecimento de pessoas, datas e locais, mas seriam importantes documentos para a história de Santa Catarina e do Rio de Janeiro dos anos 50. Fizemos a nossa parte. Corpos invisíveis nas prateleiras das memórias imperfeitas. Abandono.

Temos o armário de Harry Laus (1922-1992), que lutou por tantos anos para sair do armário. Escritor e crítico de arte catarinense, deixou seus documentos, separados em pastas, álbuns, diários, envelopes, além de parte de sua biblioteca.

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Encontramos fotografias, recortes de jornais, documentos pessoais, manuscritos, tratativas editoriais, correspondência pessoal e as várias versões dos datislocritos de seus romances, agora digitalizados. E por laços de sobrenome ou por obra e arte de Zahidé Muzart, que recebeu como herança essa materialidade de Harry, encontramos no material pesquisado, uma pasta da professora e escritora Lausimar Laus. A escritora catarinense nasceu em 1916, em Itajaí. Nos anos trinta, veio estudar em Florianópolis e em 1936 terminou seu Curso Normal. Como Maura de Senna Pereira, como Ruth Laus, e outras jovens catarinenses, muda-se para o Rio de Janeiro.

No microacervo de Lausimar Laus, foram encontrados textos de Carlos Drummond de Andrade e Rachel de Queiroz publicados na imprensa após sua morte, conferências, composições musicais, fotografias dela quando jovem, texto da comemoração de aniversário de cinquenta anos, poemas, correspondências, registros de prêmios e de publicações. A importância dessa pasta, porém, se dá especialmente por nela estar guardada parte de sua biografia intelectual tão pouco conhecida: a de sua experiência como professora universitária na UFF através de parte de seu curriculum vitae. No setor acadêmico, Lausimar se licenciou em letras clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade Santa Úrsula. Titulou-se mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora pela Faculdade de Letras da Universidade de Madri. Exerceu por muitos anos o magistério superior na Universidade Federal Fluminense, como professora de literatura alemã. Temos isso comprovado materialmente. O que a motivou a entregar a alguém essa pasta com sua imagem pública da mulher de letras, que pelas letras se tornou visível, identificável? Procuraria ela outro emprego, novo trabalho no seu estado natal?

Para além de seu O Guarda Roupa Alemão77 precisamos ainda ousadamente entender

como se imbricam em Lausimar vida obra vida. O que se pode adiantar é que nós professoras e professores universitários não nos instrumentalizamos, como o fez

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Nádia Battela Gotlib, com Clarice Lispector78, para escrever biografias (e reinventar

acervos) de um número significativo de escritoras brasileiras, mesmo as de fora dos grandes centros, que parecem sempre estar em um processo de hibernação em pastas e caixas. Encaixotadas para (o) presente.

O armário de Harry Laus, repleto de indícios da importância intelectual sua e de suas duas irmãs, Celeste e Ruth Laus; a pasta de Lausimar Laus; os cadernos de Delminda Silveira; a mala de Jorge Amado e as caixas desordenadas que recebemos de Maura de Senna Pereira nos trazem questões: do primeiro uma história pessoal; da segunda uma história acadêmica; da terceira uma história de desejos; de Jorge Amado, uma história privada e política querendo ser esquecida e da última um vasto espólio de uma Academia de Letras. Buscamos autoridade para ordenamentos, inclusões e de certa forma exercer censuras? Será que não demos ao arquivo desordenado de Maura mudanças em seu conteúdo? E os segredos revelados de Harry?

José Lins do Rêgo, no início de Gregos e Troianos79, adverte o leitor “não se

tratar de um livro de viagens”, mas antes do livro “de um míope que precisa fixar- se mais nas coisas para senti-las melhor”. E complementava, “o míope não olha os homens e os fatos com rapidez. Pelo contrário, procura o mais que pode demorar a vista, ajudada pelas lentes, no que corre a sua frente”. Se os olhos míopes da academia e das instâncias culturais não permitem, que se veja dentro de caixas um projeto estético, desencaixotar seu conteúdo foi um desejado projeto político: o de se desvendar a vida literária, as complexas margens do cânone e do centro. E descobrir que a instituição chamada UFSC, sintomaticamente situada numa ilha, pode deixar o que a imprensa chamou de “arrogante posição” de sequer cogitar a possibilidade de rever a reabilitação da Literatura de SC. De Santa Catarina. Em Santa Catarina. Catarinense. Em outras palavras: uma literatura antes disciplinar e

78 Gotlib, Nádia Batella. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. 79 REGO, José Lins do. Gregos e Troianos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.

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obrigatória, para uma minoria, passou a ser uma literatura acolhida em um portal

catarina, em um espaço digital, democraticamente disponível, a quem interessar

possa. Se interessar possa. Do espólio ao legado. E ainda temos a valiosa mala do

baiano Jorge Amado.

Transponho assim esse raciocínio para o esforço de pesquisa que temos feito no acervo de Jorge Amado nos seus dois anos no exílio em Buenos Aires e Montevidéu (1941-1942) para escrever a biografia de Luiz Carlos Prestes. Um acervo masculino e plural. Predominantemente. Mas como não mencionar que ele só foi preservado porque uma mulher assim o desejou e o guardou por tantos anos? Como não ler nas entrelinhas e em muitas linhas nomes como Maria Borges, militante da ALN; Matilde Garcia Rosa, sua primeira esposa; a atuação no Brasil de Bluma Wainer, esposa de Samuel Wainer; Carmen Somosa, da Editoral Claridad as cartas minuciosas de Lygia Prestes dando notícias do irmão, da mãe e da pequena Anita Leocádia? A carta de Gabriela Mistral para Jorge Amado dando notícias da América? As referências às esposas e namoradas, porque ainda jovens, deixadas para trás em favor da militância? Como não ler as cartas ousadas e apaixonadas de Ruth e Zilah e suas paixões por padres pecadores nos anos 30, guardadas, pelo escritor baiano como se com elas quisesse fazer um romance? Corpos ardentes:

Padre Francisco, ainda sinto o calor do teu corpo...

Nictheroy 30 de maio de 1938

Padre Francisco

Padre Francisco tenho feito todas as vontades ao senhor apezar de estar longe não vê mas ando de meias que o frio aqui tem çido muito, o senhor manda me perguntar se eu aceito um radio? Do senhor aceitarei tudo menos pancada, carinho muito, Não quero que aranjas ou se agrade de outra moça sou muito ciumenta o senhor longe de mim nem sei o que será. As vezes pode ir celebrar a missa e ter alguma mas emgraçadinha mais pintada e mas rica e esqueçer de mim.

Pesquisar arquivos pessoais não é apenas investigar sobre esse arquivo. Mas sim produzir dados biográficos a partir de indícios de corpos que se nos oferecem.

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Entender, por exemplo, o que mereceria ser investigado por uma nova história literária, política e cultural do Brasil e perceber que o arquivo pessoal é ele mesmo um filtro entre o que se desejou público – a obra e o que se desejou privado – a vida. Além disso, ao verificarmos, por exemplo, os inúmeros ensaios, versões, manuscritos e datislocritos de Jorge Amado, concluímos que todo livro e todas as vidas nascem de acúmulos. Há registros materiais desse processo, retidos em pastas, cadernos, livros, recortes. Antes da obra existe o caos. Antes do caos existem os corpos. O século XX nos habita. O século XXI nos inquieta. Corpos fragmentados, corpos abandonados numa multiplicação de fragmentos. O corpo da glória e dos esquecimentos têm no nuLIME uma longa e variada história e não só representam os corpos por si mesmos, mas a ideia que deles formamos. O cânone Jorge Amado, por exemplo, não é só o homem representado, mas a representação que se fez do homem Jorge Amado. Toda figuração que dele fazemos, na realidade, é alegórica, essa persona da Mala é irrepresentável. Que corpos encaixotados para o presente são esses? Dissertações e teses restituem a esses corpos seu próprio cuidado, como desejava Foucault?

Corpos presentes e corpos ausentes, memórias imperfeitas transitam na pequena e repleta sala 507 do Centro de Comunicação e Expressão com um artesanal nuLIME na porta. Por lá transitam a saudade de Zahidé e Weber, historiadores da literatura, como assim eram chamados, professores, de saudosa memória; ressurgem os áureos anos 50 – 60 – 70 de Maura de Sena Pereira; ressoam os tambores dos anos de chumbo de Harry Laus; repercutem as cores da memória física do Seminário Internacional Fazendo Gênero, que em 2021 terá a sua décima segunda edição; nos computadores estão guardados os acervos digitais do portal Catarina e a sete chaves a materialidade da Coluna Prestes, do ideário do

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