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Desenhos e instrumentos de medida no processo de transmissão e de apropriação do conhecimento geométrico 1

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Desenhos e instrumentos de medida no processo de transmissão e de

apropriação do conhecimento geométrico

1

Fumikazu Saito

PEPG em História da Ciência/CESIMA/PUCSP PEPG em Educação Matemática/HEEMa/PUCSP

fsaito@pucsp.br http://fumikazusaito.com

Introdução

A geometria euclidiana não seguiu uma única via de transmissão desde a antiguidade clássica até o século XVI. Nesse percurso, diferentes setores da sociedade se apropriaram de conhecimentos geométricos específicos, que eram úteis para suas respectivas atividades, garantindo a sua transmissão a gerações futuras. Um dos indícios a esse respeito são as diferentes obras que abordaram o conhecimento geométrico euclidiano em meados do século XVI. Além das diferentes edições e traduções de Elementos de Euclides, foram publicados naquela época muitas outras obras dedicadas à geometria prática que, por um lado, deram seguimento à tradição medieval da practica geometriae, em estreita conexão com a arte da agrimensura e, por outro, disseminou-se por meio da “geometria das construções”, encontrada nos cadernos de desenhos em que arquitetos e "mestres de obras" (carpinteiros e pedreiros) esboçavam genuínas "construções geométricas".2 ]

Neste trabalho, discorremos sobre uma dessas vias de transmissão, tendo por foco alguns desenhos do portifólio de Villard de Honnecourt (século XIII).3 Apresentamos aqui alguns desenhos que nos remetem a um conjunto de soluções em que conhecimentos geométricos bem elementares eram mobilizados pelos mestres pedreiros medievais por meio

1 CNPq (484784/2013-7).

2 Sobre a tradição de tradução e da disseminação de Elementos de Euclides no ocidente latino, vide: Clagett

(1953), Murdoch (1968), Schönbeck (1992), Stevens (2004); sobre a practica geometriae e a tradição da geometria prática, cf.: Hugh of Saint Victor (1956, 1961, 1991), Homann (1991), Bennett (1991, 1998), L’Huillier (1992); sobre a geometria nos tratados de arquitetura medievais, vide: Shelby (1972), Zenner (2002).

3 Para este trabalho consultamos o códice depositado na Biblioteca Nacional de Paris, Villard de Honnecourt

(1893), que foi cotejado com a tradução brasileira, Villard de Honnecourt (1997) e outra edição fac-similar, Villard de Honnecourt (1858).

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do emprego de compasso, régua, fio de prumo entre outros instrumentos. Para tanto, organizamos este trabalho de tal modo a discorrer, inicialmente, sobre a “geometria das construções” e, em seguida, sobre alguns instrumentos apresentados no portifólio. Concluímos este trabalho observando que o estudo sobre o processo de disseminação da geometria euclidiana no ocidente latino a partir do século XVI deve também considerar os suportes e as diferentes práticas que preservaram conhecimentos geométricos bastante específicos, bem como os diversos segmentos do saber que deles se apropriaram para transmiti-los a gerações futuras.

A “geometria das construções” no portifólio de Villard de Honnecourt

A geometria chegou ao ocidente latino medieval não apenas por meio dos fragmentos de Elementos de Euclides.4 Parte dela foi também transmitida por diferentes segmentos de conhecimento que a aplicava para resolver questões de ordem prática. Muitos estudiosos medievais consultaram não só fragmentos de Elementos, mas também tratados que foram escritos por agrimensores romanos, tais como Frontino, Hygino, Balbo, Nipso, Epaphrodito, Vitrúvio Rugo, entre outros.5

Em linhas gerais, estudiosos medievais não eram ainda capazes de compreender o legado euclidiano para então sistematizá-lo num grande tratado de modo que a geometria euclidiana não era ainda abordada em sua forma estritamente matemática, tal como hoje compreendemos. Estudos em história da ciência têm trazido indícios de que os estudiosos medievais passaram a abordá-la nesse sentido apenas a partir do século X nas universidades, onde se dedicavam ao estudo dos fragmentos de Elementos. Mas, em contrapartida, a geometria prática era bastante estimada não só pelos eruditos, mas também pelos artesãos

4 No início da Idade Média, circularam algumas traduções de fragmentos de Elementos que foram compilados

por Boécio, Marciano Capella, Cassiodoro e Isidoro de Sevilla. Estes fragmentos traziam apenas algumas proposições, definições, axiomas e postulados, porém nenhuma demonstração. Foi somente no século XII que a obra foi totalmente traduzida a partir das diversas versões em árabe para a língua latina. Vide a esse respeito em: Clagett (1953), Murdoch (1968).

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que professavam diferentes ofícios e muitos deles compilaram tratados tanto em latim, quanto em vernáculo, até o século XVII.

É nesse sentido que devemos compreender a geometria que encontramos no documento que aqui apresentamos. O portifólio de Villard de Honnecourt é composto basicamente de um conjunto de desenhos, rascunhos de figuras e de problemas gerais ligados à arquitetura, incluindo aí diversos temas referentes à pintura, à estatuária, à mecânica, à iconografia entre outras formulações e desenvolvimentos geométricos comuns ao ofício de mestre pedreiro naquela época.6

Este manuscrito, que parece mais um caderno de desenho, foi inicialmente compilado por Villard em suas viagens e é composto de trinta e três fólios de pergaminho (todos irregulares). Entretanto, a sequência desses fólios, provavelmente, não corresponde à estrutura original. Como bem observa Carreira (1977), constitui ainda problema não resolvido saber o que é precisamente de Villard e o que foi agregado, visto que o manuscrito recebera muitos acréscimos de outros proprietários.

A série de desenhos, figuras e outros rascunhos e esquemas tinha por objetivo servir de exemplum, ou seja, de protótipo para a construção de composições iconográficas. Ela proporcionava modelos para o pintor e o escultor por meio dos quais aprendiam a executar composições mais complexas. Isso estava de acordo com o processo de transmissão de conhecimentos que se realizava na relação entre mestres e aprendizes. O conhecimento do ofício era passado ao aprendiz oralmente e não por meio de uma tradição literária.

Cabe aqui observar que, por volta do século XIII, ainda eram muitos os analfabetos e, embora haja evidências de que alguns mestres e pedreiros soubessem ler e escrever, era muito raro transmitir conhecimentos deste gênero por meio da escrita.7 Desse modo, os

6 Algumas notas do próprio manuscrito identificam Villard como natural de Honnecourt-sur-Escaut, localizado

próximo à Cambrai, e que trabalhara e visitara obras bem conhecidas daquela região. Além disso, embora não haja evidências positivas a respeito, parece ter viajado intensamente, realizando encargos na Suiça e na Hungria. Vide: Carreira (1997).

7 Vide a esse respeito em Shelby (1972). Sobre a educação dos mestres pedreiros medievais, vide: Shelby

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desenhos no portifólio de Villard devem ser entendidos como “lembretes” de procedimentos que deveriam ser considerados pelos mestres pedreiros.8

Contudo, é preciso também considerar que tais desenhos e figuras, embora fossem utilizados para instruir o aprendiz, os procedimentos para a construção das diversas composições iconográficas tratadas pelo portifólio não estão explícitos nas lâminas. Assim, no que diz respeito ao conhecimento geométrico, essas lâminas não fornecem instruções explícitas, mas apenas imagens de procedimentos para realizar construções geométricas.

Por exceder os objetivos deste trabalho, não vamos tratar das questões de ordem prática e artística ligadas à iconografia, à retratística, às máquinas, às plantas, às edificações e a outras formulações ligadas à arquitetura medieval em geral. Interessa-nos aqui alguns conhecimentos de geometria euclidiana que estão implícitos no processo de construção e de desenvolvimento dos inúmeros desenhos, figuras e esquemas, particularmente, aqueles que serviam de “lembrete” de propriedades geométricas específicas, compartilhadas apenas por arquitetos e mestres de obras.

O tema da geometria é apresentado basicamente nas lâminas 18r, 18v, 19r, 19v, 20r, 20v, 21r. As lâminas 18r, 18v, 19r e 19v tratam da retratística e dos traços geométricos que construtor deveria ter em consideração. Na lâmina 18v, Villard (1997, p. 88) introduz a matéria anunciando: “Aqui começa a força do traço de desenhos assim como a arte da

geometria o ensina para levemente trabalhar”. As lâminas que se seguem (19r e 19v),

incluindo a 18v, apresentam diversos exemplos em que esquemas geométricos são sobrepostos a figuras humanas e animais. Tais esquemas geométricos tinham funções mnemotécnicas e eram utilizadas para fixar as formas e facilitar sua cópia pelos aprendizes. Nos diversos exempla, é notório um estudo consciente das proporções das partes dos desenhos das figuras por meio do traçado geométrico, além do uso de quadrículas para ampliação e redução de figuras.

Na lâmina 20r, o caderno apresenta 19 problemas de ordem prática, enfrentados cotidianamente pelos mestres pedreiros, aos quais são fornecidas soluções bastante concretas

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que mobilizam conhecimentos geométricos bastante elementares. Dentre eles, destacamos o conhecimento de propriedades da circunferência e de retas perpendiculares, bem como das dos triângulos, notoriamente, a semelhança e a congruência, que faziam parte do repertório da geometria prática medieval.9 Cabe ainda observar que todas as soluções apontadas pelo caderno de desenho exigem conhecimentos geométricos bem específicos que são aplicados adequadamente a cada situação. Assim, por exemplo, a solução apresentada para o corte das pedras traz indícios de conhecimentos relativos à proporcionalidade de arcos e seus raios e o problema da duplicação da capacidade de um recipiente parece se apoiar em propriedades relativas à medida do círculo e do teorema de Pitágoras.

Para termos uma ideia de como tais conhecimentos eram ensinados aos aprendizes, discorremos sobre três dessas soluções: 1) a determinação do centro de uma circunferência que passa por três pontos dados; 2) o procedimento para se construir a passagem de um claustro para monges; e 3) a obtenção da medida da largura de um rio.

A primeira solução é dada pelas duas primeiras figuras (Figura 1) que se refere ao procedimento da seguinte forma: “Assim, toma-se a grossura de uma coluna que não se vê

totalmente” e “Assim encontra-se o ponto ao meio. Se procede a compasso”.

Figura 1 – Determinação do centro de uma circunferência

Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20r)

Notemos que Villard não fornece nenhuma instrução além das figuras. O procedimento era passado oralmente ao aprendiz que era instruído a manusear o compasso e a régua (e outros instrumentos como abordamos mais adiante). Como observa Bechmann

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(2004), esses conhecimentos geométricos bastante elementares faziam parte do rol de saberes que se constituíam como segredos de ofício e eram compartilhados apenas pelos aprendizes iniciados à corporação de mestres e pedreiros.

Do mesmo modo, o procedimento para a construção da passagem de um claustro é dado por uma única figura (Figura 2), observando: “Assim faz-se um claustro e também as

vias para o pátio”.

Figura 2 – A construção da passagem de um claustro para monges

Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20r)

Esta figura apresenta implicitamente diversos passos que o aprendiz deveria executar. Segundo Beffeyte (2004), reconhece-se aqui cinco procedimentos que, provavelmente, Villard teria registrado para dimensionar a construção de um claustro. Os passos sugeridos por esta figura são: 1) desenhar um quadrado (ABCD, que representaria o pátio interno do claustro); 2) traçar suas diagonais (AC e BD) de modo a localizar o centro O do quadrado; 3) traçar uma cruz a partir do centro da figura com linhas paralelas (r e s) aos lados do quadrado; 4) marcar os braços dessa cruz (E, F, G, H), utilizando um compasso com a abertura (OA) correspondente ao raio do quadrado; 5) unir os pontos marcados nos braços da cruz por linhas paralelas aos lados do quadrado, formando outra figura IJKL (Figura 3).

Notemos que o procedimento aqui apresentado procura determinar as proporções da passagem do claustro, que deve ter a mesma medida de área da superfície do pátio interno, sem realizar quaisquer cálculos aritméticos, mas servindo-se apenas de régua e de compasso.10 Esse procedimento, caracteristicamente geométrico, entretanto, tinha apelo

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empírico na medida em que se realizava por meio da manipulação física de formas geométricas bastante elementares, como triângulos, quadrados, alguns polígonos e círculos. Diferentemente das duas anteriores, a terceira solução recorre a procedimentos que aproximam o ofício do mestre pedreiro ao do gromaticus.11 Embora a agrimensura e a arquitetura fossem dois segmentos diferenciados de saber, correspondendo a diferentes tradições de ofício, ambas compartilhavam conhecimentos próprios da geometria prática.12

Assim, algumas soluções encontradas nessas duas lâminas (20r e 20v) pertencem ao

corpus gromático, tradição textual e prática que se dedicava aos “problemas de medida”,

indispensáveis para os mestres pedreiros na elaboração de projetos e sua construção. Isso é ilustrado, por exemplo, pelo procedimento para se obter a medida da largura de um rio sem necessariamente ter que atravessá-lo (Figura 4): “Assim toma-se a largura de um curso

d’água sem atravessá-lo” (VILLARD DE HONNECOURT, 1977, p. 94).

Figura 3 – Os passos para a construção da passagem de um claustro

11 Sobre a gromática, vide: Lewis (2001), Thulin (1913)

12 Nesse contexto, o próprio termo geometria foi definido etimologicamente e traduzido para a língua latina

como agrimensura, ou seja, “medida da terra” (mensuratio terrae). Vide a esse respeito em: Zaitsev (1999), Saito (2015, p. 126-141).

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Fonte: figura nossa

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Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20r)

A medida da largura do rio é obtida por meio da semelhança de triângulos formados pela disposição conveniente as duas hastes AB e CD (Figura 5). Esse tipo de solução fazia parte dos problemas relacionados à longimetria e à altimetria, tema explorado pela practica

geometriae medieval, notoriamente, pela tradição que remonta a Hugo de São Vitor.13

Entretanto, diferentemente das situações apresentadas pela tradição dos agrimensores, o portifolio de Villard refere-se a problemas de medida que empregam instrumentos bastante simples.

Figura 5 – A medida da largura de um rio

Fonte: figura nossa

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Assim como a agrimensura, o ofício do mestre pedreiro também era definido pelo uso de instrumentos de medida. Beffeyte (2004) observa que o portifólio de Villard apresenta o mestre pedreiro portando dois instrumentos, o pige e o canne no fólio 2r (Figura 7). O

canne, uma espécie de “vara”, que era utilizado para medir distâncias, simbolizava o poder

do qual estava investido o mestre pedreiro, em analogia ao bastão episcopal ilustrado na lâmina 1r (Figura 6). E o pige, que está suspenso no braço do mestre, que porta um escudo, bem como encontra-se trajado como se fosse um soldado, era outro instrumento de medida muito utilizado pelos arquitetos medievais.

Figura 6 – O mestre pedreiro e seus instrumentos

Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 2r e 1r)

Nas lâminas 20r e 20v, o portifólio apresenta alguns instrumentos que o mestre pedreiro basicamente utilizava. Além do compasso e da régua, que já mencionamos, encontram-se ilustrados alguns tipos de esquadros, réguas graduadas e uma espécie de “quadrante” (Figura 7).

Figura 7 – esquadro com nível, esquadro com prumo, régua com escala

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Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20r)

Em diferentes situações, o caderno refere-se a soluções que procuram “talhar” arcos e curvas, sempre apresentando ranhuras que lembram escalas. Por exemplo, na lâmina 20r (Figura 8), encontra-se a inscrição: “Assim talha-se o modelo de um grande arco interior

com três pés de terra” (VILLARD DE HONNECOURT, 1997, p. 94). Outro exemplo

interessante encontra-se na lâmina 20v (Figura 9) em que está inscrito, em referência à divisão angular: “Assim talham-se curvas por uma escala de graus” (VILLARD DE HONNECOURT, 1997, p. 96).

Figura 8 – arco interior

Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20r)

Figura 9 – Escalas graduadas

Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20v)

Convém observar que o caderno não menciona os procedimentos de divisão das escalas, nem explicita sobre as unidades de medida – procedimentos esses que que faziam parte da atividade do agrimensor. O emprego desses instrumentos não fazia da arquitetura uma arte da medida, uma vez que o mestre pedreiro bastava apenas ter acesso a alguns recursos simples para obter a medida desejada, indispensável para construir. Um exemplo disso é o “quadrante”, ilustrado na lâmina 20v (Figura 10). Villard (1997, p. 96) se refere a esse instrumento, que na realidade é um triângulo isósceles retângulo, da seguinte maneira: “Assim toma-se a altura de uma torre”.

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Figura 10 – o quadrante

Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20v)

Figura 11 – A medida da altura da torre

Fonte: figura nossa

O procedimento para se obter a medida é bastante simples, uma vez que basta alinhar a hipotenusa do triângulo retângulo isósceles à altura da torre para obter a sua medida, que corresponde a distância do observador até a base da torre (Figura 11). Nesse caso em particular, Shelby observa que o procedimento parece ser muito mais empírico e físico do que geométrico, sugerindo que os mestres pedreiros (e talvez o próprio Villard) desconhecessem os princípios geométricos que estavam na base do processo. Contudo, se considerarmos a solução dada pelo portifólio para medir a largura de um rio, como vimos anteriormente, é bem provável que os mestres pedreiros conhecessem as propriedades de semelhança de triângulos. Além disso, estudos de outras partes do caderno têm revelado outros conhecimentos geométricos, tal como o emprego da proposição I, do livro I, de

Elementos14 (Figura 12) e outras construções geométricas, tais como pentágonos e hexágonos, que estavam na base dos desenhos de alguns animais bem como de abóbodas e vitrais15.

Figura 12 – Detalhes de dois flamingos e a correspondência com a proposição I,

Livro I, de Elementos.

14 A esse respeito, cf. estudo de Zenner (2002) e Beffeyte (2004). 15 Vide estudo de Hiscock (2004).

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Fonte: Villard de Honnecourt (1893, p. 20v).

Entretanto, não há evidências de que os mestres pedreiros empregassem outros instrumentos de medida mais complexos próprios da tradição dos agrimensores. Os instrumentos basicamente são aqueles empregados para desenhar e calcular proporções entre as partes e, aqueles que são comuns à agrimensura, são aqueles que permitem nivelar e planificar. Assim, além do compasso, do esquadro e da régua (próprios da arte da carpintaria), encontramos também indícios do emprego do nivelador e de outros instrumentos que combinavam, por exemplo, o esquadro e o fio de prumo.16

Considerações finais

Podemos dizer que as lâminas do manuscrito de Villard trazem indícios de que a “geometria das construções” não só preservou, mas também ajudou a disseminar o legado euclidiano no ocidente latino medieval. No conjunto, os procedimentos presentes nas duas lâminas (20r e 20v), que aqui apresentamos, compunham o repertório do “saber-fazer” geométrico do construtor. Mas as propriedades geométricas aqui ilustradas eram mobilizadas pelos construtores sem a necessidade de estudá-las ou explorá-las, tal como divisamos em

Elementos de Euclides. Nos séculos seguintes, muito desses conhecimentos que nos remetem

a construções geométricas seriam recolhidos e organizados, compondo um corpus de conhecimento geométrico que passaria a dialogar com aqueles que encontrados em

Elementos de Euclides. Estudiosos de geometria, tais como Charles de Bovelles (1479-1566),

16 Vide, além da lâmina 20r em Villard de Honnecourt (1893, 1997), Vitruvio (1999) e estudos de Thulin (1913),

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Jacques Peletier (1517-1583), Robert Recorde (1510-1558), Leonard Digges (1515-1559), Pierre de la Ramée (1515-1572), John Babington (fl. 1635), Rudd Thomas (1583[?]-1656), entre outros, incluíram em seus tratados sobre geometria prática, tópicos e outros aspectos relativos não só à practica geometriae, mas também da geometria das construções.17 Essas e outras considerações conduzem-nos a concluir que a transmissão do saber euclidiano no ocidente latino dependeu em grande parte de sua aplicação prática, encontrando-se relativamente disseminado em diferentes ofícios que preservaram e transmitiram o legado euclidiano aos estudiosos de geometria do século XVI.

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17 Vide: Bouelles (1551, 1557), Digges (1571), Peletier (1573), Recorde (1574), Ramus (1590, 1636),

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