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A palavra que humaniza o desejo

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Academic year: 2021

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A palavra que humaniza o desejo

Cristina Drummond

Palavras-chave: pai, desejo, criança, Gide.

Proponho tomarmos o caso Amâncio como um paradigma da função do romance familiar para a amarração de um sujeito. Isso porque, ao acompanharmos o que ele pôde construir no tratamento analítico, à luz do ensino de Lacan, poderemos nos dar conta da função do romance familiar para recobrir, sob a forma de uma ficção, algo do que sempre falha para um sujeito.

No momento em que Amâncio é encaminhado ao tratamento, as queixas diziam respeito a sua falta de limites, suas atitudes agressivas, sua baixa concentração e seu desejo de destruição com características perversas. Encontramos, pois, um sujeito que se debate porque o limite, ou seja, o falo como a medida simbólica pela qual todo sujeito pode dar significação ao mundo, lhe falta. É um sujeito que está então às voltas com essa falta de medida. E é essa falta que dá a seu comportamento um traço de perversão.

Lacan nos ensinou que a criança inicialmente se coloca, na relação com sua mãe, na posição de falo imaginário. Essa tríade, mãe-criança-falo necessitará um quarto termo que a abarque vinculando os três termos numa relação simbólica e que é o pai. O falo circula nesse triângulo imaginário e é essa circulação que nos descreve a clínica dos traços de perversão na criança. A criança aparenta oferecer à mãe o que falta a ela, se posiciona na realidade para oferecer a ilusão do falo materno. No caso de Amâncio podemos verificar que ele se posiciona na realidade como “um pintão”. Neste jogo, o limite falta porque não se sabe exatamente onde o falo está. Tal como Miller nos diz, a identificação da criança com o falo imaginário é algo de que o sujeito terá que se desfazer1, mas, vemos aqui que sair dessa identificação não é nada simples para a criança.

Muitas vezes o sujeito permanece nessa tríade imaginária usando de estratégias para sustentá-la. Lacan nos dá como exemplo no Seminário IV o caso de Leonardo da Vinci, caso no qual Freud construiu uma primeira tese sobre a homossexualidade masculina. Para ele, um sujeito que foi extremamente fixado à mãe na puberdade se identifica com ela e busca um objeto de amor para amar, tal como a mãe o amou. A tese de Lacan se baseia na lógica fálica:

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ao identificar-se com a mãe a criança realiza em seu lugar sua orientação para o falo, já que o que busca no parceiro é o falo.

No Seminário V Lacan retoma essa questão com o caso de Gide, onde também encontramos, tal como no caso de Leonardo, a função materna duplicada. É justamente no escrito que dedica a Gide que Lacan nos mostra que para ele o desejo e o amor estavam vinculados por duas mulheres, mas que faltou a palavra paterna que humanizaria a relação de seu desejo com o amor.

Na verdade, o pai de Gide foi um pai presente até os seus onze anos de idade, quando morre. Entretanto, a função do Nome-do-Pai foi escrita, como diz Lacan, num tom pastel porque esse pai não regulou o desejo da mãe. Assim, a mãe deixou seu filho numa posição que Lacan diz ser totalmente não situada2. Nesse caso, o desejo da mãe fez vacilar o Nome-do-Pai no interior da própria metáfora.

A mãe de Gide buscou encarnar os ideais mais elevados da civilização, se tornando para seu filho a porta-voz exigente dos mandamentos religiosos e da filantropia, numa espécie de sublimação moral. Dessa forma ela reduziu o pai, como apontou Miller3, a ser uma espécie de companheiro de jogo, inteiramente absorvido por seu ofício de professor de direito. O efeito dessa mãe do dever sobre o menino Gide foi o de uma eviração, diz Miller tomando o termo forte de Lacan, que o levou desde muito jovem a manter uma masturbação compulsiva e quase pública.

Essa mãe, portadora dos ideais que Freud considera como masculinos e que identificava, de acordo com Lacan, o amor com os mandamentos do dever4, obtém de seu filho o sacrifício de seu interesse erótico pelas mulheres. Sabemos que nesse sujeito a porta para o Outro sexo foi estreita. O desejo de Gide fica confinado no clandestino, já que ele só tem do amor a palavra que protege e a que interdita.

Essa operação da tríade imaginária marca o primeiro tempo do Édipo. O segundo tempo é o tempo no qual o pai intervém privando a mãe do falo. E o terceiro tempo, pelo qual Lacan teria, de acordo com Miller, mais simpatia, é o tempo em que o pai tem e dá, põe à prova a sua potência e promete em relação ao futuro. É o tempo em que as relações do pai com a mãe voltam a passar ao plano do real.

A função paterna preserva a criança de ser tudo para a mãe porque ela a divide. Num primeiro tempo o pai intervém lembrando à criança que sua mãe não é toda mãe, isto é, é

2 J.Lacan, O Seminário, livro V, Zahar Ed., pág. 269.

3 J A Miller, De mujeres y semblantes, cuadernos Del Pasador, p.80. 4 J. Lacan, A Juventude de Gide, in Escritos, Zahar Ed., p.760.

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toda no registro fálico, já que também é sua mulher. Por outro lado, a mãe também tem que consentir em orientar o desejo do pai, fazendo-se o objeto que causa seu desejo para que a função fálica tenha valor para a criança. Quando o pai não provoca a divisão na mãe, cabe apenas ao filho fazê-lo, e essa parece ser uma condição que favorece a perversão na criança.

A agressividade de Amâncio é um traço dessa tentativa de dividir a mãe, de sua dificuldade de separação da posição de falo imaginário e, portanto, de localização do falo simbólico. A separação é buscada no real, subindo na janela e pulando, correndo risco de vida, batendo no colega rival, jogando xixi nos colegas e buscando assim a sua expulsão.

Em seu Seminário IV5, Lacan introduz uma distinção entre o falo metafórico e o falo metonímico que é fundamental para articularmos essa questão. Ele diz que é preciso saber qual é a função da criança para a mãe em relação a esse falo que é o objeto de seu desejo, que é preciso saber se ele é uma metáfora ou uma metonímia. Não é a mesma coisa se a criança está na posição de metáfora do amor da mãe pelo pai ou se ela é a metonímia do desejo da mãe do falo que ela não tem e não terá nunca. Em todas essas atuações de Amâncio, vemos um sujeito se debatendo com sua posição de metonímia do falo da mãe.

A analista intervém logo em relação à escola tomando a sério a palavra do sujeito que propõe que seja castigado na escola. É sua demanda pela intervenção de alguma lei como medida de separação que está aqui em questão. Amâncio é então tomado como um sujeito, um sujeito que pode se responsabilizar por seus atos. O fato de esse pedido ser ouvido permite ao sujeito uma inclusão na instituição escolar como um espaço só dele, fora do âmbito familiar.

As dificuldades de Amâncio para se separar dessa posição de falo imaginário remontam à sua história familiar onde já podemos perceber uma grande dificuldade por parte de seus pais em fazer um laço simbólico.

A mãe de Amâncio escolhe o marido porque ele era um bom filho, um filho não só dedicado à mãe como um filho que mantinha a mãe toda, sem faltas. Sua posição de marido é deduzida de sua posição de filiação e podemos ver aqui que essa mulher em absoluto se coloca na posição de objeto de desejo para esse homem. Ela queria apenas fazer tudo direitinho.

Já o pai de Amâncio ficara órfão de pai aos dois anos de idade e se dedicou aos afazeres domésticos e a cuidar de sua própria mãe como um cachorro. Buscou permanecer em sua família na mesma posição, fazendo a função de mãe, já que a função paterna parece ser algo

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enigmático para esse sujeito. De fato, o pai de Amâncio nos dá, através de suas enunciações, elementos suficientes para dizer que não dispõe do significante fálico.

Se, por um lado, ele desempenha bem as funções femininas da casa imaginariamente identificado à sua própria mãe e é um pai provedor, por outro lado, não pode, pela falta do significante que permite ao sujeito se situar na partilha dos sexos, se posicionar como marido para essa mulher. Ele não pode acolhê-la nesse lugar. Se ele fica maravilhado com sua esposa grávida, quando o filho nasce ela passa à posição degradada de “enrugada e prostituta”, difamações que nos mostram a tentativa desse sujeito de nomear a mulher. De fato, se a mãe é uma função pacificadora para esse sujeito, a mulher se apresenta a ele como um gozo invasivo que ele só consegue insultar.

Os dois então se encontram numa situação de disputa e agressividade e vemos o pai de Amâncio tendo inúmeras dificuldades para responder do lugar viril diante de uma mulher. Além da difamação, suas respostas diante da mulher são de impotência, seja defecando na porta do banheiro, seja imitando os sons de excitação sexual para os meninos ouvirem quando ela se recusa a ter relações sexuais com ele. Além disso, ele a interpreta como supondo que ele é bicha e é exibindo suas fezes que ele pretende dar uma resposta ao que, por estrutura, ele não tem como responder.

Em seu Seminário V6, Lacan nos lembra que se faz um erro ao confundir duas coisas que estão relacionadas, mas que não se confundem: o pai como normativo e o pai como normal. O pai, diz ele, pode ser muito desnormatizador, na medida em que ele mesmo não seja normal, mas isso seria enviar a questão para o nível da estrutura neurótica ou psicótica do pai. Para ele a normalidade do pai é uma questão e a de sua posição normal na família é outra. Por trás do horizonte da norma o que a psicanálise situa como fundamento que articula o sujeito ao vivo é o gozo. O pai, apesar de ser sempre falho para responder por um gozo que o ultrapassa, tem como função ligar o desejo à lei, e transmitir algo de particular ao filho, algo da sua maneira de enfrentar uma mulher.

Se a estrutura do pai não é tão determinante para o sujeito, no entanto é desse pai encarnado que o sujeito vai buscar se servir. Não podemos, portanto, pensar que a posição do pai de Amâncio em sua família não lhe traga conseqüências. O menino desafia a mãe se valendo do recurso de seu pai, isto é, a agressividade, urinando no chão, já que o falo aqui está rebaixado ao órgão. Amâncio tem dificuldades de inscrever seu órgão como um atributo viril, já que ele está sob o domínio do falo materno. Quando o pai briga com a mãe ele pede

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que ele dê porrada, ele lhe pede, tal como o pequeno Hans, que intervenha diante dessa mãe toda e a interdite de alguma forma.

A palavra do pai é depreciada e invalidada por toda a família. Falta aqui a palavra que humaniza o desejo. Em diferentes momentos de seu ensino, Lacan menciona que o respeito que o pai pode ter diante de seus filhos depende da demonstração que ele soube transmitir de que tomou a mãe destes como causa de seu desejo e que dessa forma faria dessa mulher não-toda mãe.

Identificar-se com o pai é um viés difícil para esse menino. Além desse traço da agressividade o pai o nomeia como “exu caveira, maldito e desgraçado”. Esses significantes que não o ajudam a localizar o desejo do Outro, também o empurram para uma posição de atuação que, apesar de trazer problemas na relação com os outros, não deixa de ser uma posição de tratamento, por parte do sujeito, do gozo que ele pode localizar nesse Outro.

É no tratamento analítico que podemos ver que o sujeito teve uma chance de construir uma barreira ao gozo da mãe toda. Na transferência ele interroga a analista. Suas perguntas giram em torno da lei. Logo se interessa em saber se por trás da analista há um homem, se ele é da polícia e se poderia ser mais forte que seu pai. Isso porque ele sabe e o diz, que seu pai não gosta de sua mãe, e entre eles há um gozo desregrado.

Ele pode ainda na transferência interrogar o desejo do Outro e fazer vacilar sua convicção de que ninguém gosta dele. Agora, ele quer seduzir e não mais ser expulso. Com sua demanda de amor ele busca um novo lugar de ancoragem no Outro. Faz circular objetos entre ele e seu Outro e com isso a falta também entra em jogo.

Essa falta podendo operar traz o silêncio do que acontece no encontro com o Outro sexo. E Amâncio fala então de medo, sinal de que a posição de falo imaginário vacilou para esse sujeito.

Foi nesse momento lógico de sua análise que Amâncio pôde privilegiar um traço de seu romance familiar para construir algo que sustentasse para ele a função paterna e que recobrisse esse ponto de silêncio. Um pai de quem ele pudesse se servir, uma outra versão do pai que a do pai degradado, do “homem problema” descrito nas palavras da esposa. Lacan nos ensinou que esse ponto de silêncio é um ponto estrutural, e onde Freud afirmava que o pai existe, ele avança formulando o axioma de que a relação sexual não existe.

E Amâncio constrói sua ficção a partir de seu nome. Ele lhe tinha sido dado porque era o nome de seu avô, um português. Dele, ele sabe que já havia ameaçado matar alguém para defender sua mulher. É, pois, em sua linhagem paterna que Amâncio vai buscar elementos

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para construir uma ficção onde a agressividade toma o sentido de um desejo endereçado a uma mulher. E nessa ficção Amâncio, a partir de uma versão de um homem enfrentando o gozo de uma mulher, constrói um desejo não anônimo que lhe foi transmitido. Essa figura paterna, como Freud nos mostrou, é idealizada e visa recobrir tudo o que seu silêncio presentificara: há uma falta, a castração é da ordem da linguagem e cada um precisa recobrir essa falta a partir do que dispõe.

Aqui entra a escrita. Amâncio escreve seu nome, dando-lhe diferentes e novas significações: amante, amor, amódio. Um nome articulado a uma nova série, para além da série anterior vinda dos pais. De qualquer forma ele quer agora se inscrever no Outro como objeto precioso, não mais disposto a ser maldito. Não existem édipos típicos. Existe uma lei universal, mas com valores que são absolutamente particulares a cada sujeito e que cada um deve inventar. E Amâncio inventa. Com essa ficção ele agora abre a possibilidade de abordar a mulher de uma outra posição. Ele lhe endereça cartas de amor...

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