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DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E MACHADO DE ASSIS EM A CENA DO CEMITÉRIO : IRONIA E PARÓDIA

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DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E MACHADO DE ASSIS EM “A

CENA DO CEMITÉRIO”: IRONIA E PARÓDIA

Adriana Silene Vieira Resumo: Esta é uma breve uma análise comparativa entre a crônica de Machado de Assis e um trecho da peça Hamlet, de W. Shakespeare. Damos ênfase à forma como o autor brasileiro parodia o bardo nesse texto, aproximando assuntos opostos, misturando discussões filosóficas com assuntos quotidianos.

Palavras-chave: Machado de Assis. Crônica. William Shakespeare. Paródia. Comparação. Leitura. Abstract: This is a concise comparative analysis carried out on Machado de Assis’ chronicle and some part of Shakespeare’s Hamlet. We focus how Machado de Assis makes parodies the bard in this text by putting opposite subjects together, and jointing philosophical arguments to quotidian matters.

Keywords: Machado de Assis. Chronicle. William Shakespeare. Parody. Comparison. Reading.

INTRODUÇÃO

“Não ajunteis para vós tesouros na terra onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões cavam e roubam. Acumulai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem, e onde os ladrões não cavem nem roubem. Porque, onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração.” (Mateus. 6,19-21)

Faremos uma breve apresentação e análise da crônica “A cena do cemitério”, de Machado de Assis, publicada em junho de 1894 em A Semana, Gazeta de notícias, que apresenta um diálogo entre a obra de Machado e a de William Shakespeare. Seguiremos a linha de análise da chamada “poética das traduções”, processo que ocorre nos textos de Machado, nos quais se coloca um texto sublime da tradição em uma situação totalmente vulgar, como por exemplo a citação de Hamlet em “A cartomante”. Porém, enquanto aquele conto tratava do tema do amor e da traição e apresentava personagens do povo, este trata do tema da morte e faz uma paródia explícita à cena I do ato V de Hamlet. Escolhemos tal crônica por observarmos que é pouco conhecida, e também por não ter encontrado nenhuma referência a ela na fortuna crítica levantada. Pretendemos nos deter em sua análise textual e observar como se dá, nela, a paródia em relação ao texto shakespeariano.

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Pela forma como se apresenta, a crônica “A cena do cemitério” faz uma reescritura de caráter parodístico do trecho homônimo de Hamlet. Além disso, segundo o narrador deixa claro no início, o fato que irá narrar não passa de um sonho sucedido após a leitura de Hamlet e dos jornais do dia. A paródia feita por Machado tem um aspecto moderno, mostrando que, em sua época (1894) não haveria lugar para o sublime dos textos shakespearianos. É importante também lembrar o gênero desse texto, uma crônica, que tem um caráter de “quotidiano” e por isso mesmo “popular” e “imediato”.

Porém, pode-se perceber que, apesar de pouco conhecido, fazendo parte do volume Páginas

Recolhidas,1 não envelheceu, revelando-se surpreendentemente atual, como ocorre com toda a obra machadiana. Além disso, a idéia de exploração, descrença na humanidade e a paródia são motivos dos quais a arte moderna iria mais tarde usar e abusar. Vemos aí então mais uma antecipação do grande gênio machadiano.

Logo no início da crônica, nos deparamos com a frase “Não mistureis alhos com bugalhos” uma frase de cunho popular, que destoa da gravidade da escrita de Machado e também do tema que irá ser abordado, uma cena da tragédia Hamlet. Porém, perceberemos que ela vem muito a propósito, pois o que se quer fazer é justamente vulgarizar o texto de Shakespeare, apresentando

Hamlet em outro contexto, o da modernidade, do capitalismo, dos valores burgueses, em que não

existiria mais lugar para o sublime e o questionamento feito pelo Renascimento em relação à velha ordem medieval.

Depois do provérbio, o narrador entra no assunto e nos diz que vai narrar um sonho, fazendo assim uma exegese, ou seja, uma interpretação do sonho. Quanto a isso, é interessante ressaltar que Machado, mesmo sendo um autor realista, algumas vezes trata em seus textos de momentos nebulosos como os sonhos, as visões e os delírios. Um destes momentos é o capítulo VII das

Memórias Póstumas de Brás Cubas no qual a fantasia toma lugar.

Outra característica interessante neste texto é que ele trata de leitura. O narrador nos relata sua experiência, um sonho que teve início em suas leituras, as quais foram “um jornal do dia” e a cena I do ato V de Hamlet. Juntando a concepção da leitura à do sonho, (ou do delírio) podemos observar certa semelhança entre a situação do protagonista e a célebre personagem Don Quixote, na obra homônima de Cervantes. Isso porque a leitura parece ter influenciado a ambos, enquanto

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Don Quixote enlouquece a partir das leituras de histórias de cavalaria, o narrador-protagonista de “A cena do Cemitério” tem um pesadelo provocado por duas leituras muito diferentes entre si.

Porém quando narra, o protagonista está em um momento de lucidez, no qual pode refletir: Foi o caso que, como não tinha acabado de ler os jornaes de manhã, fi-lo à noite. Pouco já havia que ler, três noticias e a cotação da praça. Notícias da manhã, lidas à noite, produzem sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que aparecem. (...) Afinal pus os jornais de lado, e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou ser de Shakespeare. O drama era Hamlet. A página, aberta ao acaso, era a cena do cemitério, ato V. Não há que dizer ao livro nem à pagina; mas essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos. (Páginas recolhidas, p. 248)

No trecho destacado, percebe-se que o narrador faz uma série de trocadilhos, no mesmo estilo da frase com a qual abre seu texto. Esses trocadilhos serão feitos tendo por base a paronomásia das palavras “coveiros” e “caveiras”. Além disso, já aparece a ironia do narrador ao contrapor “gente morta” “dinheiro vivo” usando de antíteses e mostrando que seu sonho chegava ao absurdo de “misturar” as duas coisas. E são os trocadilhos dos coveiros o que o narrador observa: Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakespeare. Um deles, ouvindo apregoar sete ações do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto à reticência. (p. 250)

Tomemos agora a descrição do pesadelo feita pelo narrador, consequência de suas leituras: Succedeu o que era de esperar; tive um pesadelo (...) Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma cor. Tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. Até aí nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José. Achei natural: Ele não o achou menos. (p. 248)

O humor e a carnavalização aparecem no trecho a seguir:

(...) atravessamos uma rua que nos pareceu seu a Primeiro de Março e entramos em um espaço que era metade cemitério, metade sala. Nos sonhos há confusões dessas, imaginações duplas ou incompletas, mistura de coisas opostas, dilacerações, desdobramentos inexplicáveis; mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Horácio, tudo aquilo devia ser cemitério. (p. 249)

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Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve: chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

-Onde estamos?

- Já passamos do Éden. (Memórias Póstumas de Brás Cubas, p. 120)

Os trechos apresentam em comum o insólito e a figura do eu que se sente perdido em uma paisagem desconhecida, numa lógica do absurdo à qual precisa se adaptar. No episódio da cena do cemitério, a personagem consegue se localizar e perceber que em seu sonho desempenha uma espécie de papel. Enquanto isso, a personagem de Memórias Póstumas precisa perguntar à deusa Natura em que lugar se encontra. Todavia ambos os lugares, fazendo parte ou do mundo dos sonhos ou do mundo do delírio, têm a característica de estranhamento.

Na “Cena do cemitério”, sabemos que o narrador nos conta a respeito de seu sonho em um momento de lucidez, e que seu sonho termina justamente quando a narrativa toma uma sequência acelerada, isso também se dá no delírio de Brás Cubas. Mas enquanto aquela personagem é observada em seus últimos momentos por Virgília, o narrador da crônica afirma ser acordado por seu empregado José. Dessa forma, vemos que, apesar de o texto nos apresentar coisas inexplicáveis pela lógica, há a explicação racional do narrador, de que tudo não havia passado de sonho e que não se estava entrando no reino do fantástico.

O narrador-Hamlet, acompanhado de José-Horácio, ouve os trocadilhos dos coveiros que são outros, diferentes daqueles proferidos na tragédia original:

Entramos e escutamos. Como na tragédia, deixamos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ofélia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e papéis. (p. 249)

Já no Hamlet, um coveiro canta, propõe charadas ao companheiro e discute o fato de Ofélia ter ou não se suicidado e da impropriedade de ser enterrada em solo considerado sagrado.

Após a comparação feita entre as caveiras e as ações, vemos nomes muito interessantes que são dados a elas. Entre estes estão “Companhia Promotora das Batatas Econômicas”,

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Alívio”, etc. Quanto à citação da companhia das “Batatas Econômicas” é interessante o que o

narrador comenta:

A um deles ouvia bradar que tinha trinta ações da Companhia Promotora das Batatas Econômicas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil réis por elas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horácio, que me respondeu, pela bocca de José: ‘Meu senhor, as batatas desta companhia foram prósperas enquanto os portadores dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez que o plantassem era indício certo da decadência e da morte.’ ( p. 249)

Enquanto os outros nomes de ações e bancos têm relação com a morte, o primeiro se refere a batatas, as mesmas célebres batatas que fazem parte da filosofia de Quincas Borba. Sendo assim, as palavras de José poderiam ser comparadas à filosofia do “Humanitismo”, segundo a qual “não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum”.2 Essa idéia foi apresentada por Dirce Côrtes Riedel que

apresentou sua semelhança com o princípio de Lavoisier, segundo o qual “na natureza nada se

perde, nada se cria, tudo se transforma.”. Além disso, pode-se observar que esta exploração

justificada pode ser enquadrada na observação de Antonio Candido, sobre o tema da “transformação do homem em objeto do homem”.3

Porém, voltando ao trecho citado acima há uma tremenda ironia que é a volta ao tema da morte de uma forma que a frase destacada acima soa disparatada após a conversa sobre batatas. Soa estranha, assim como a frase de Jacobina no conto “O espelho” que diz: “o homem é, metafisicamente falando, uma laranja”4. Assim, em “A Cena do cemitério” Machado trata da alma

humana no mesmo sentido que usava naquele conto

Na referida cena de Hamlet o que o príncipe comenta com seu amigo Horácio é o fato de terem encontrado o crânio de Yorick e ele lamentar o fim que todos poderiam ter, afirmando que por mais que uma “a grande dama” se pinte ou se arrume, ela acabará da mesma forma que aquele crânio, e com o mesmo mau cheiro.

Porém o texto de Machado não discute o fim a que todos nos destinamos. O que ele apresenta é a completa vulgarização dos restos mortais, apresentados como batatas, títulos, dinheiro

2“Razão contra sandice”. In BOSI, A. Machado de Assis, antologia e estudos. 3 CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In Vários escritos. p. 28. 4 Os melhores contos de Machado de Assis. p. 32.

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e outras “coisas rentáveis”. Além disso, são ainda mais rebaixados quando comparados, segundo sua forma e cor e do fato de serem arrancados da terra, com as batatas.

No texto shakespeariano, após cada estrofe que canta, o coveiro “faz saltar uma caveira”, como uma coisa qualquer, pois está acostumado com seu ofício. Porém Hamlet protesta veementemente com o fato de os coveiros profanarem assim o cemitério. O príncipe da Dinamarca se encontrava naquele espaço justamente para falar a respeito da morte como uma passagem para o outro mundo e lamentar o triste fim daqueles a quem amara em vida. Porém o Hamlet machadiano contempla a cena como mero espectador e não se envolve com aquilo que vê. Ele apenas constata que aquilo lhe parece confuso, mas o que lhe cabe, e ele faz, é encenar o seu papel.

O cemitério é um espaço que, além de Memórias Póstumas de Brás Cubas, aparece também em Memorial de Aires, no qual o conselheiro Aires observa uma conversa entre coveiros:

“Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. (...) mas havia gente perto, sem contar dois coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: “Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como tu.” Tratavam de caixão pesado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viúva... (p.69)

Enquanto Hamlet se lamenta e se envolve, o conselheiro Aires apenas observa o fato e passa adiante. Da mesma forma, a morte, em “A cena do cemitério” não parece ter grande interesse para o narrador, a não ser para ser ironizada, comparada com a vida. Vejamos, por exemplo, o trecho da crônica “A cena do cemitério” no qual há uma conversa supostamente metafísica e materialista ao mesmo tempo:

Os primeiros títulos, em março de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível? Esta dúvida entrou no espírito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatlântico, para ir consultar um teólogo europeu, levando consigo tudo o que havia mais cognoscível entre os valores. (p. 251)

É bastante forte a ironia neste texto com a contradição entre incognoscível e cognoscível, referindo-se ao fato de, para entender a espiritualidade é preciso ter meios materiais em boa quantidade.

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Comparemos os trechos a seguir e vejamos o caráter corrosivo da paródia machadiana. No texto de Shakespeare, um dos mais representativos em termos gestuais, em que ele toma o crânio de Yorick na mão e se põe a refletir, com o seu contraponto machadiano:

Deixa-ma examinar (pega na caveira) Pobre Yorik! Conheci-o, Horácio. Era um rapaz com muita graça, duma alegria infinita e dum espírito vivíssimo: trouxe-me muitas vezes às cavaleiras. E agora, que horror causa à minha imaginação! O meu coração dilata-se! Aqui pendiam os lábios que eu beijei tanta vez! Que é feito neste momento dos trocadilhos? Das cabriolas? Das canções? Desses relâmpagos de gracejos que levantavam em toda a mesa uma tempestade de gargalhadas? Nem uma só facécia ficou para vos rirdes da vossa própria carantonha! A boca completamente fechada? Ide agora dizer ao gabinete da rainha que por mais caio que ponha no rosto há de ficar com uma cara assim. Fazei-a rir dizendo-lhe isso! (Hamlet, p. 214-5)

No texto de Machado, temos:

(...) Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia:

- Alas, poor Yorick! Eu a conheci, Horácio. Era um título magnifico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontório de marfim velho lavrado; eram de nácar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca saíam as mais sublimes promessas em estilo alevantado e nobre. Onde estão agora as belas palavras de outro tempo? Prosa eloquente e fecunda, onde param os longos períodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de cristal, as almofadas de cetim? (p. 251-2)

Podemos ver pelos trechos destacados que, enquanto o texto de Shakespeare apresenta os nobres sentimentos de Hamlet em relação ao antigo clown chamado Yorick, o texto de Machado, repetindo a frase em inglês, é irônica, e a fala do narrador é recheada de vocábulos monetários e, quando trata da palavras do morto, mostra que este seria alguém de muito boa retórica, com grande poder de persuasão, semelhante ao dos grandes medalhões, que são tema do conto “Teoria do Medalhão”.

Tomemos mais dois trechos, primeiramente o de Shakespeare e depois do de Machado. O texto de Shakespeare diz:

(Hamlet - Acreditas que Alexandre tenha essa mesma cara na cova? (Horácio) - Exatamente a mesma...

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(Hamlet) - E que cheire assim? ... Fu! ... (pousa no chão a caveira). (Horácio) - Absolutamente, meu senhor.

(Hamlet) - A que grosseiras aplicações podemos descer, Horácio! A nossa imaginação não conseguirá facilmente seguir a viagem das nobres cinzas de Alexandre, até vê-las a tapar o buraco dum tonel! (p. 215)

E o narrador machadiano:

- Crês que uma letra de Sócrates esteja hoje no mesmo estado que este papel? - Seguramente.

- Assim que, uma promessa de dívida do nobre Sócrates não será hoje mais que uma debênture escangalhada?

- A mesma cousa.

- Até onde podemos descer, Horácio! Uma letra de Sócrates pode vir a ter os mais tristes empregos deste mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda valha menos que esta debênture.

- Saberá Vossa Senhoria que eu não dava nada por ela.

- Nada? Pobre Sócrates! Mas espera, calemo-nos, aí vem um enterro. (p. 252)

A alteração do nome de Alexandre por Sócrates no texto machadiano já seria motivo de indagações a respeito de seus propósitos. Porém o narrador vai além, na corrosão do texto original, pois mostra que sua preocupação em relação ao grande filósofo grego era apenas com suas letras, ou seja, suas promessas de dívidas, o que mostra mais uma vez os valores mundanos e monetários, deturpando o texto original com a ironia.

Agora vejamos o seguinte trecho de Memórias Póstumas no qual o narrador-protagonista trata da decadência de seu amigo Quincas Borba:

Recuei espantado... Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e abastado. Quincas Borba! Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhantado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. (Memórias Póstumas, p. 199).

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Os trechos apresentados mostram que a crônica “Cena do Cemitério”, além de ser um exemplo de “poética das traduções” na obra de Machado de Assis, apresenta processos que ocorrem em vários momentos da obra machadiana. Vemos que o narrador, ao apresentar-nos uma tragédia shakespeariana e colocá-la no mesmo nível de uma notícia de jornal está, através do rebaixamento, fazendo uma reescritura corrosiva da obra literária. A este respeito podemos ver também a visão da morte apresentada por Machado como diversa da de Shakespeare logo no início de Memórias

Póstumas:

(...) E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, as pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. (...) Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. (Memórias Póstumas, p. 112-113)

O processo de paródia na obra de Machado apresenta-se como uma ironia à tragédia, à idéia da morte e todos os valores altos. É como se, ao dizer: “mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível” estivesse não só parodiando a tragédia de Shakespeare, mas também a Bíblia, quando esta fala da necessidade de opção entre os bens da terra e os do céu, afirmando que os tesouros do céu são mais seguros, pois a estes “nem a traça e a ferrugem consomem” e “os ladrões não cavam nem roubam. No texto de Machado não há preocupações metafísicas e tudo é colocado no mesmo nível - o material. Machado está, assim, vulgarizando e materializando a própria idéia da morte, mostrando as caveiras sendo exploradas, em seu aspecto material através das companhias “Batatas econômicas” “Balsâmica” e também no aspecto espiritual, pelas companhias “Salvadora” e “Pronto alívio”. Isso porque, para o próprio narrador, essas não eram “bem títulos nem caveiras; eram as duas cousas juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos nos olhos, dentes por assinaturas”.

Dessa forma, podemos ver o texto “A cena do cemitério” não só como antecipador de processos modernos de ficção, mas como uma paródia com um toque a mais – o humor de Machado de Assis. Este, ao apresentar o sublime e o grotesco em um mesmo patamar e ao apresentar sua crônica, gênero ainda novo que tentava ganhar um lugar entre as várias notícias do jornal diário, soube ironizar o próprio fato colocando um jornal diário em sua crônica apresentando o nonsense da mistura do sublime - a grande arte do gênero dramático - com o vulgar - a notícia de jornal. Dessa forma, parece que mais uma vez - e com muito requinte - o grande gênio dava um piparote em seu leitor.

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REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. “A cena do Cemitério” In: Páginas Recolhidas. Rio de Janeiro, Garnier. 1900. ________________. Quincas Borba. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1977.

________________. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1960. ________________. Memorial de Aires. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1977.

BOSI, Alfredo. Machado de Assis: antologia e estudos. São Paulo, Ática, 1982.

BRAYNER, Sônia. “O conto de Machado de Assis”. In. O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro, Civ. Bras./ INL, 1980.

CÂNDIDO, Antônio. “Esquema de machado de Assis”. In: Vários escritos. São Paulo. Duas Cidades. 1977.

MEYER, Augusto. Machado de Assis 1935-1958. Rio de Janeiro, S. José, 1958.

MIGUEL PEREIRA, Lúcia. “Machado de Assis” In: História da Literatura Brasileira - Prosa de Ficção (1870-1920). Rio de Janeiro, José Olympio, 1950.

PROENÇA FILHO, Domício. Os melhores contos de Machado de Assis (org) por São Paulo, Global. 1988. SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Lisboa, Porto. s. d.

TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Recebido em: 19/9/2016 Aprovado em: 13/01/2017

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