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Métodos Quantitativos e Qualitativos: uma proposta de integração

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Academic year: 2021

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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

Área Temática: Ensino e Pesquisa em Ciência Política e Relações Internacionais

Métodos Quantitativos e Qualitativos: uma proposta de integração

Murilo de Oliveira Junqueira Universidade Federal do Pará http://lattes.cnpq.br/2764182741921334

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Resumo

Este é um artigo teórico que pretende discorrer sobre a já muito discutida disputa entre métodos quantitativos e qualitativos nas ciências sociais. Meu ponto principal é mostrar que essa disputa entre os adeptos de um método e de outro não diz respeito tanto aos métodos em si, mas sim às abordagens epistemológicas normalmente usadas pelos usuários de cada método. Os quantitativistas normalmente utilizam uma abordagem que vou chamar de “objetivista” enquanto os qualitativistas, em geral, preferem a abordagem “interpretativista”. É a disputa entre o “objetivismo” e “interpretativismo”, e os pontos de partida filosóficos diferentes que essas abordagens partem, que gera a disputa entre esses dois times. Porém, essa disputa é em grande parte gerada por incompreensão de um lado a outro. Ambos os lados teriam muito a ganhar se passassem a colaborar mais, construindo um ciclo de pesquisa que envolvesse, coletivamente, todas as abordagens, cada uma colaborando à sua maneira para o progresso da ciência. Até mesmo ao nível do pesquisador individual, seria proveitoso ele utilizar hora uma abordagem, hora outra, dependendo da fase de sua pesquisa.

Palavras-chave: epistemologia, desenho de pesquisa, métodos quantitativos, métodos

qualitativos

Abstract

This is a theoretical paper that aims to debate the already discussed dispute between quantitative and qualitative methods in the social sciences. My main point is to demonstrate that this dispute between the adepts of each method is not so much about the methods themselves, but about the epistemological approaches normally used by the users of each method. Quantitativists usually use an approach that I will call "objectivist" while qualitativists, in general, prefer the "interpretive" approach. It is the dispute between "objectivism" and "interpretativism", and the different philosophical starting points that these approaches depart from, that generates the dispute between these two teams. However, this dispute is largely generated by misunderstanding from side to side. Both sides would have a lot to gain if they started to collaborate more, building a research cycle that collectively involved all approaches, each collaborating in its own way for the progress of science. Even at the level of the individual researcher, it would be beneficial for him to use one approach, another time, depending on the stage of his research.

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2 Nesse artigo irei discorrer sobre a já muito discutida disputa entre métodos quantitativos e qualitativos nas ciências sociais. Meu ponto principal é mostrar que essa disputa entre os adeptos de um método e de outro não diz respeito tanto aos métodos em si, mas sim às abordagens epistemológicas normalmente usadas pelos usuários de cada método. Os quantitativistas normalmente utilizam uma abordagem que vou chamar de “objetivista” (para evitar o termo “positivismo”, que gera muita confusão e normalmente é empregado de forma historicamente errada) enquanto os qualitativistas, em geral, preferem a abordagem “interpretativista”, que muitos também chamam de “construtivista” ou “não-positivista”. Contudo, abordagens e métodos não estão necessariamente ligados um ao outro, existindo métodos quantitativos interpretativistas e métodos qualitativos objetivistas. É a diferença entre os pressupostos epistemológicos do objetivismo e do interpretativismo que é a principal fonte das divergências. Porém, essa disputa é em grande parte gerada por incompreensão de um lado a outro. Todos os lados teriam muito a ganhar se passassem a colaborar mais, construindo um ciclo de pesquisa que envolvesse, coletivamente, todas as abordagens, cada uma colaborando à sua maneira para o progresso da ciência. Até mesmo ao nível do pesquisador individual, seria proveitoso ele utilizar hora uma abordagem, hora outra, dependendo da fase de sua pesquisa.

Esse artigo se estrutura da seguinte forma: na seção a seguir, “Dois métodos, duas epistemologias”, faço as distinções conceituais e estabeleço o ponto fundamental do artigo – a ideia de que a disputa entre os métodos quantitativo e qualitativo muitas vezes mascara a disputa entre epistemologias diferentes. Na sessão seguinte, intitulada “Uma proposta de integração metodológica”, mostro como diferentes métodos e epistemologias podem ser integradas em um único ciclo de pesquisa onde cada abordagem contribui de uma forma para o progresso científico. Em seguida, faço uma revisão bibliográfica sobre o tema, com maior ênfase na ciência política1, mostrando que a visão colocada nesse artigo é sempre sugerida, mas nunca claramente mostrada nos manuais de metodologia; o que explica algumas incongruências e inconsistências na literatura. A sessão “A importância de uma boa hipótese” desenvolve o argumento principal. Por fim, há uma breve conclusão.

Dois métodos, duas epistemologias.

Para poder delimitar mais precisamente o objeto de debate, gostaria de deixar claro que estou falando apenas das pesquisas empíricas em ciências sociais. Portanto, não estou falando de trabalhos não empíricos, como aqueles de cunho normativo, que visam argumentar sobre os princípios de justiça ou injustiça ou qualquer “dever ser”. Apenas estou falando

1 Como a área de formação do autor é ciência política, esse campo de estudo acaba tendo uma atenção privilegiada

(embora autores da sociologia e antropologia também são citados). Contudo, os argumentos aqui não se restringem à ciência política e são válidos para todas as ciências sociais.

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2 daqueles trabalhos que visam descrever e explicar a realidade social: que visam falar “o que é” e não “o que deveria ser”, ou seja, as teorias positivas (não confundir com “positivismo”). Também não estou discorrendo sobre os estudos puramente teóricos, que visam analisar o caráter, os pressupostos e a qualidade de conceitos. Isso não é uma tentativa de desqualificar os trabalhos de cunho filosófico, que tem sua relevância teórica própria. Para deixar claro, creio firmemente que qualquer tentativa de fazer ciência sem sólida base filosófica é completamente vã. Além disso, sempre é possível aprender e aprimorar a ciência utilizando a filosofia. Isso é verdade para qualquer ciência, mas é ainda mais importante para as ciências sociais, dado que grande parte dos nossos objetos de pesquisa são construções do pensamento; como opiniões, ideologias, leis e instituições. Aliás, esse próprio artigo pode ser perfeitamente classificado como um estudo de “filosofia das ciências sociais empíricas”. Dito isso, quero deixar claro que as reflexões abaixo dizem respeito APENAS aos trabalhos empíricos.

Feita essa delimitação inicial, gostaria de colocar mais algumas diferenciações. A primeira diferenciação fundamental é entre métodos quantitativos e qualitativos. O que diferencia ambos? A meu ver, a principal diferença entre ambas as abordagens é que os estudos quantitativos utilizam a matemática (notadamente a probabilidade e a estatística) para produzir inferências. Para que a matemática seja aplicável à análise, necessariamente se deve ter muitas unidades de observação2, dado que os teoremas estatísticos não funcionam abaixo de certo número3. Os estudos qualitativos, por contraste, visam o estudo intensivo de uma ou poucas unidades de observação, o que inviabiliza o uso da matemática, mas permite o uso da lógica e da teoria dos conjuntos4. Então, em grande parte, tudo se resumiria ao uso ou não da matemática; o que leva, consequentemente, à questão de poucas ou muitas unidades de observação5. Muitos poderiam contestar essa definição, dizendo que o que define

2 Uso aqui o termo “unidades de observação” para designar os objetos ou eventos (pessoas, leis, acidentes, crimes,

votos, etc) que podem ser colocados como registros (linhas) em um banco de dados tabular, sendo as variáveis as características desses registros (as colunas do banco). É importante não confundir as unidades de observação com os “casos” ou “unidades de análise”, que são agregações maiores de relevância teórica. Por exemplo, podemos fazer um estudo de caso de uma determinada comunidade entrevistando vários de seus membros. O “caso” é a comunidade, cada entrevistado é uma unidade de observação. A condição para haver uma pesquisa quantitativa é haver muitas unidades de observação, mas não necessariamente muitos casos.

3 Um número frequentemente citado é 30 unidades, embora esse número seja mais uma convenção que uma regra

(TRIOLA, 2017).

4 Para um demonstração entre lógica formal e métodos qualitativos, ver Goertz e Mahoney (2012, p. 16–40). 5 A rigor, outra questão fundamental é o número de variáveis por unidade observada. Os teoremas da estatística

mostram que a análise quantitativa requer, por princípio, que o número de variáveis seja menor que o número de unidades de observação. Na prática, é extremamente desejável que o número de unidades seja bem maior que o número de variáveis, de modo a permitir um número confortável de “graus de liberdade” (ANGRIST; PISCHKE, 2009). Os estudos qualitativos, ao contrário, rotineiramente possuem um número grande de variáveis por unidade observada; frequentemente mais variáveis que unidades de observação. “Número grande de variáveis por unidade de observação” é a tradução estatística daquilo que os qualitativistas chamam de “descrição densa” ou “estudo intensivo do caso”. No mundo quantitativo, isso é visto como uma desvantagem, mas no mundo qualitativo isso é o que os pesquisadores veem como o ponto mais importante de sua abordagem.

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2 um método é o material analisado ou as técnicas de coleta dos dados. Mas eu discordo. Qualquer material, independentemente da técnica de coleta, pode ser analisado quantitativamente a partir de um certo número de unidades. Vamos pensar no caso clássico de entrevistas semi-estruturadas ou não estruturadas. Se tivermos um grande número de entrevistas, podemos categorizar essas entrevistas (por exemplo, avaliando se o entrevistado demonstrou preferência por um candidato ou não), transformar essas categorias em variáveis estruturadas, inseri-las em uma matriz de dados e rodar modelos estatísticos. Evidentemente isso não será possível se tivermos apenas uma (ou bem poucas) entrevistas, independentemente se elas foram de tipos estruturado ou não estruturado. O mesmo poderia ser feito com pesquisas de campo. Poderíamos categorizar as viagens a campo e criar variáveis. Aliás, é possível criar variáveis com dados produzidos por não pesquisadores, como análise de conteúdo de cartas, notícias de jornal ou post em redes sociais. Em todos os casos temos os mesmos princípios: quando existem muitas unidades de observação, podemos usar esses casos para análises comparativas utilizando a matemática, mas quando temos poucos casos, temos que analisar a relação entre os dados de um mesmo caso utilizando apenas a lógica6. É importante considerar que o número de unidades muitas vezes não é escolha do pesquisador. Existem eventos raros ou únicos (a revolução francesa, o golpe de 1964) quem não podem ser adequadamente comparados com outros, obrigando os analistas a fazerem uma análise intensiva de poucos casos.

Uma segunda diferenciação, essa mais profunda e impactante que a diferença entre métodos quantitativos e qualitativos, é a diferença entre a perspectiva epistemológica “objetivista” e “interpretativista”. Usarei essas duas palavras para evitar chamar essas duas abordagens de “positivista” e “não-positivista”, respectivamente, pois esses termos são sujeitos a grande confusão. O positivismo teve dois grandes sentidos históricos: em sua versão original, tal como elaborada por August Comte (1978), ela era uma teoria política normativa, que buscava reformular a sociedade criando uma espécie de “absolutismo científico”, onde os cientistas e técnicos seriam uma casta dominante, tal como os “reis filósofos” de Platão (“aristocracia” ou “o governos dos melhores”), e a essa casta caberia criar uma sociedade harmônica e próspera. O Brasil foi um dos países em que o positivismo político foi mais influente, principalmente pela sua influência sobre os militares e sobre os governos de Getúlio Vargas, que era um positivista ideológico (FAUSTO, 2019). Mas além desse sentido político, o positivismo também existiu como uma filosofia da ciência, principalmente a partir do chamado “círculo de Viena”, cujo foco principal eram questões acadêmicas e não questões políticas (PLASTINO, 1989). Quando falamos de positivismo, não sabemos se

6 Evidentemente podemos analisar qualitativamente, ou seja, sem a ajuda da estatística, um grande número de

observações. Apesar de essa ser uma possibilidade teórica, raramente vemos isso na prática. Em termos práticos, todos os estudos de “grande n” não quantitativos e todos os estudos de “pequeno n” são qualitativos.

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2 estamos falando do sentido político ou do sentido epistemológico, que, a meu ver, não estão necessariamente ligados um ao outro. Contudo, quando falamos de ciência “objetivista”, não estamos falando da visão positivista em termos históricos, nem de sua versão política nem da sua versão epistemológica. A visão moderna de ciência, tal como sistematizada nos trabalhos de Karl Popper (2004a) e outros é muito distante da visão, que os positivistas tinham de ciência. Inclusive, é um grande erro teórico e histórico chamar o próprio Popper de positivista, título que ele sempre recusou (2004b, p. 35–50). Não é objetivo desse texto explicar por que a ciência objetivista não é necessariamente positivista (o que envolveria explicar as bases epistemológicas do positivismo). Por enquanto, o exposto acima basta para explicar por que não usamos o termo “positivismo” para designar a abordagem “objetivista”.

Voltemos agora a diferenciação entre ciência “objetivista” e “interpretativista” e como essas abordagens são vistas pelas ciências sociais. A abordagem “objetivista” se propõe a ser uma ciência “dura”, que faz afirmações com grande robustez. Entre seus valores, está “somente fazer afirmações empiricamente corretas”. Quando não for possível fazer afirmações seguras, melhor não afirmar nada e admitir o desconhecimento. Seu lema é “falar bem, ainda que seja para falar pouco”. Obviamente, dado que o conhecimento científico é cumulativo, a somatória de pequenas afirmações robustas pode gerar análises amplas e completas no longo prazo. Contudo, a ciência objetivista prefere percorrer um passo seguro de cada vez. Segundo a ciência objetivista, a melhor forma de obter robustez é a “reprodutibilidade” das pesquisas (KING, 2015). Cada pesquisa deve poder ser checada e, no limite, refeita por outros pesquisadores, para verificar que os dados foram obtidos de forma correta, as relações causais realmente existem e a interpretação dos dados foi adequada. A abordagem objetivista, modernamente, se utiliza do método hipotético-dedutivo, teorizado justamente por Popper (2004a)7, onde primeiro se elabora uma hipótese dedutiva, em seguida se realiza testes para se verificar se não existem evidências empíricas que falseiem a hipótese e, caso não houver tais evidências, a hipótese ganha o status de verdade provisória ou “melhor explicação disponível”. No entanto, as teorias científicas, nessa visão, sempre podem ser falseadas com novas evidências ou teorias melhores, que, uma vez estabelecidas, também ganham o status provisório de teoria aceita pela comunidade científica.

É importante considerar que no método hipotético-dedutivo a origem das hipóteses e das teorias é exógena. As hipóteses não surgem dos dados. Tão pouco existe um método de se criar hipóteses. As hipóteses podem vir da análise da literatura, da percepção de alguma incongruência entre teoria e observação, de uma conversa casual ou qualquer coisa que atice a intuição do analista. A origem das hipóteses é sempre a imaginação dos cientistas.

7 Popper não inventou o método hipotético-dedutivo, ele apenas descreveu algo que, em sua visão, já existia na

ciência prática. Sua contribuição teórica foi principalmente combater a visão filosófica que enxergava a ciência como empírico-indutiva, visão defendida justamente pelos positivistas.

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2 Já a abordagem interpretativista não busca necessariamente falsear ou corroborar teorias previamente formuladas, mas sim fazer afirmações significativas sobre determinado fenômeno. Aqui, o princípio mais importante não é fazer afirmações “robustas”, mas fazer muitas afirmações. Se quer ter uma visão global dos fenômenos, ainda que a segurança de cada informação seja relativamente baixa e tenhamos que, em muitos casos, confiar no “faro” do analista, ou seja, em sua intuição. Nesse tipo de abordagem, a reprodutibilidade das pesquisas não é um valor tão importante. Em verdade, a reprodução é muitas vezes impossível, como ocorre, por exemplo, em observações de campos ou entrevista “em off”, onde a única fonte de informação é o relato do analista. Nesse caso, não há como outro pesquisador refazer a pesquisa para checar se a intepretação dos fatos foi correta. Grande parte dos analistas tem a consciência de que aqueles relatos é a “sua interpretação dos fatos”, que é mediada e influenciada pela sua posição social, sua cultura e todas as dificuldades do diálogo intercultural e interpessoal. Obviamente, essa interação entre pesquisador e pesquisados não é transferível entre pesquisadores. Esse “subjetivismo” interpretacionista gera uma ciência “soft”, onde as visões dos fenômenos são construídas através de testemunhos dos pesquisadores, com todas as limitações que qualquer testemunho pode ter. Ao contrário do método hipotético-dedutivo, a perspectiva interpretativista prefere a grounded

theory (teoria fundamentada) (LAPERRIÈRE, 2008), onde o pesquisador vai a campo sem

necessariamente ter hipóteses prévias e fica muito atento ao que os próprios atores sociais estão dizendo. A partir das observações é que os analistas constroem suas teorias e explicações. Muitas vezes, para isso ser possível, o pesquisador precisa fazer uma série de treinamentos de alteridade, para aprender a ver o outro através de seu ponto de vista e não do ponto de vista do pesquisador. A ideia é que as técnicas de pesquisa evoluam para que os pesquisadores interpretativistas se tornassem em “testemunhas qualificadas” dos fenômenos sociais, com uma grande capacidade de empatia a percepção da realidade social.

Quais seriam as vantagens e desvantagens de uma abordagem objetivista e interpretativista, no sentido aqui traçado. No lado objetivista, as principais vantagens seriam a robustez, possibilidade de análises causais e a representatividade (generalização) dos dados. Com as pesquisas objetivista, fazemos afirmações sólidas, não apenas descritivas, mas também explicativas causais. Também podemos generalizar os dados a partir de uma amostra para uma população maior mais facilmente. Por outro lado, esse tipo de estudo tem uma evolução lenta e custosa. Infelizmente, muitos casos não podem ser checados, os dados necessários para se fazer certos tipos de análise não são possíveis de se obter. Principalmente, nas ciências sociais, somos privados do principal instrumento de análise que as ciências naturais possuem: a possibilidade de realizar experimentos. Os experimentos são o instrumento de pesquisa mais poderoso para estabelecer relações causais (ANGRIST;

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2 PISCHKE, 2009). Contudo, em muitos objetos de pesquisa, os experimentos em ciências sociais são custosos, antiéticos ou impossíveis; como é o caso do estabelecimento da relação entre sistemas de governo e estabilidade política (não podemos atribuir aleatoriamente sistemas de governo aos países). Quanto aos estudos interpretativistas, eles não podem (e nem se propõem) a fazer afirmações robustas para além da interpretação do analista. Por outro lado, eles estão livres para fazer afirmações mais abrangentes sobre os fenômenos em análise. Essa abordagem permite fazer descrições detalhadas do seu objeto de pesquisa, dando uma imagem muito ilustrativa e significativa aos leitores. Não raro, essas descrições são excelentes fontes de novas hipóteses que podem ser mais bem trabalhadas por métodos mais robustos. Além disso, o fato de não serem descrições ou explicações sustentadas por evidências sólidas e replicáveis não significa que sejam explicações erradas. Ao contrário, muitas das explicações que foram obtidas apenas com o “faro” ou a “intuição” do analista se mostram completamente corretas quando são checadas por métodos mais robustos. Aliás, até há algumas décadas, os métodos e técnicas da análise “robustos” (econometria, experimentos sociais) não existiam ou não eram acessíveis e TODAS as teorias foram criadas a partir de alguma variação da abordagem que eu chamei aqui de “interpretativista”. Nem por isso as teorias criadas por Karl Marx, Max Weber, Sigmund Freud, Karl Polany, Claude Levi-Strauss ou a economia clássica foram refutadas. Esses autores, a partir de evidências parciais e o uso aguçado da intuição e da reflexão, conseguira criar teorias muito boas sobre como a realidade realmente funciona.

O meu ponto principal é que a divergência entre métodos quantitativos e qualitativos ocorre não por causa dos métodos em si, mas sim porque os pesquisadores quantitativos em geral usam a abordagem “objetivista” e os pesquisadores qualitativos em grande parte usam a abordagem “interpretativista”. Contudo, isso não é uma regra. Pode existir (e de fato existem) estudos qualitativos objetivistas e estudos quantitativos interpretativistas. A abordagem epistemológica não determina a escolha de métodos. A tabela 1 mostra exemplos de técnicas de análise com as quatro abordagens discutidas aqui.

Tabela 1 – Quatro tipos de abordagens em ciências sociais Epistemologia/

Método Interpretativismo Objetivismo

Qualitativo Etnografia,

Observação participante

Process-tracing, comparações

sistemáticas

Quantitativo Análise exploratória de dados,

modelos heurísticos

Desenhos experimentais, análise

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Fonte: elaboração própria.

Métodos como etnografia e observação participantes são os métodos qualitativos interpretativistas por excelência, pois eles são baseados prioritariamente na empatia e observação humana (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2008; GROULX, 2008; PIRES, 2008b). No entanto, podemos colocar nessa categoria todas as técnicas de “imersão nos dados”, inclusive em documentos, cujo objetivo é conhecer o objeto de pesquisa, sem uma hipótese prévia formulada ou até mesmo sem uma questão específica formulada. Entrevistas e análises de documentos podem tanto serem métodos qualitativos interpretativistas quanto métodos qualitativos objetivistas, a depender de como são tratados. Se o objetivo do analista for fazer uma afirmação robusta, esses métodos podem ser usados como pesquisa qualitativa objetivista. Se o objetivo é só conhecer o objeto de pesquisa, então são métodos interpretativos. Metodologias como “process-tracing” (BEACH; PEDERSEN, 2019), política comparada ou qualquer comparação sistemática claramente buscam fazer afirmações robustas sobre a realidade, por isso são métodos objetivistas.

No mundo quantitativo, a análise exploratória de dados se adequa perfeitamente ao que definimos aqui como epistemologia interpretativista. Por análise exploratória, estou me referindo a estatísticas descritivas ou correlações simples, como gráficos e tabelas. Esse tipo de abordagem, extremamente útil para qualquer um que já trabalhou com métodos quantitativos, visa “conhecer os dados”, dar ao analista (e seus leitores) as noções de grandeza, proporção e distribuição dos dados. Novamente, esse tipo de abordagem é importante para criar hipóteses ou, estabelecer fatos básicos sobre o objeto de pesquisa. Um campo em grande crescimento, principalmente devido à crescente disponibilidade de grandes volumes de dados (big data), é o da inteligência artificial para encontrar correlações nos dados sem o estabelecimento de hipóteses prévias (modelos de data mining, machine learning etc). Chamei esses modelos aqui de “modelos heurísticos”, pois eles, sozinhos, não são capazes de criar teorias (pelo menos não no atual estágio de desenvolvimento tecnológico), mas eles podem dar insights sobre correlações não obvias nos dados, podendo, assim, gerar hipóteses testáveis8.

Já os métodos quantitativos objetivistas são aqueles que visam fazer um teste robusto de hipóteses. O modelo experimental é o método quantitativo objetivista por excelência. Análise de correlação com dados observacionais também entra nessa categoria, mesmo que as dificuldades para gerar inferências causais válidas sejam bem maiores aqui9. É importante considerar que o que diferencia as epistemologias objetivista e interpretativista é mais a

8 Esses modelos também são úteis para automatizar alguns processos descritivos, como classificações.

9 Para uma crítica ao poder do modelo de regressão para inferências causais, ver Brady, Collier & Seawright (2010)

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2 intenção que o resultado. Um analista que utiliza um método com a intensão de fazer uma afirmação robusta sobre determinado fenômeno é um objetivista, mesmo que mais tarde se chegue à conclusão de que o referido método é, em última instância, incapaz de chegar a esse objetivo.

Uma proposta de integração metodológica

As abordagens objetivista e interpretativista não apenas não estão umbilicalmente ligadas aos métodos quantitativos e qualitativos, como também não são uma divergência irreconciliável. Ao contrário, é perfeitamente possível haver uma integração entre ambas. Para demostrar esse ponto, vou contar um caso pessoal. Em 2017, a pedido da Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado de São Paulo, onde eu trabalhava à época, fui fazer um curso de “avaliação de políticas públicas”. Esse curso, realizado pela Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, era comandado por um grupo de pesquisadores que usavam uma abordagem experimental de avaliação de políticas públicas, portanto, utilizava o mais alto grau de rigor científico na perspectiva chamada aqui de “objetivista”. A técnica de análise era, simplificadamente, sortear as pessoas que deveriam receber determinada política pública e sortear um grupo de controle equivalente. Depois de um tempo, se recolheria informações entre o grupo controle e o grupo de tratamento para avaliar o efeito causal da política, um modelo de análise muito parecido com as pesquisas da área médica. Esses pesquisadores contaram um caso onde determinado curso de qualificação profissional, realizado na periferia de uma grande metrópole brasileira, foi avaliado como tendo efeito nulo. Ou seja, os grupos de tratamento e controle tinham os mesmos valores nas variáveis relevantes (renda, empregabilidade, etc), levando à conclusão de que o curso de qualificação não impactou o público-alvo. Obviamente era um resultado não esperado e contra intuitivo, pois o curso consumiu muitos recursos e foi planejado com grande cuidado pelos policy

makers. Mais ainda, ninguém teve nenhuma ideia sobre o que estava gerando o “fracasso”

do curso, pois, segundo os atores envolvidos, eles estavam fazendo tudo certo, em sua própria perspectiva. Quem então foi chamado para resolver esse “enigma”? Os antropólogos! Os gestores chegaram à conclusão de que era necessário haver pesquisadores de fora, sem os vieses do pessoal de dentro da política, que fosse a campo falar com os formuladores, executores e usuários do programa, para poder compreender o que estava ocorrendo. Os etnógrafos, então, passaram alguns meses em campo recolhendo informações para permitir aos gestores uma compreensão mais ampla dos problemas que a implementação dessa política envolveu. É importante considerar que, para os gestores de alto nível, muitas vezes é difícil saber o que está ocorrendo no “chão de fábrica”, dado que os fluxos de informação estão sujeitos a muitos bloqueios e ruídos, inclusive cognitivos. Os antropólogos, então,

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2 chegaram com relatórios sobre o que acreditavam que estava ocorrendo. Essas informações puderam, então, se transformar em hipóteses testáveis por métodos mais robustos. Caso a interpretação dos etnógrafos não tivesse sido confirmada nesses testes, uma possibilidade seria contratar outros pesquisadores para voltar com novas hipóteses que, por sua vez, também poderiam ser testadas. Confesso que não sei exatamente que fim teve essa pesquisa específica, mas o que quero mostrar aqui é que nesse caso, pesquisadores quantitativistas “positivistas” e etnógrafos “construtivistas” tiveram que trabalhar em conjunto, apesar das divergências epistemológicas entre ambos, dado que havia um problema prático que precisava ser resolvido.

O ponto mais importante a se reter desse exemplo é que boas hipóteses nem sempre são obvias para um analista externo (e muitas vezes para um analista interno). Porém, a “imersão nos dados”, ou “imersão no campo”, como os etnógrafos fazem, pode ajudar os analistas a entender o que de fato está acontecendo, ainda que intuitivamente. A intuição, longe de ser um componente pré-científico, é, em verdade, uma ferramenta científica. É dela, e não de qualquer outro lugar, que surgem as hipóteses. Podemos estender o exemplo acima e pensar um ciclo ideal de pesquisa onde todos as quatro abordagens de pesquisa são usadas, como na figura 1.

Figura 1 – Ciclo de pesquisa

Fonte: elaboração própria

Para um assunto completamente novo, a melhor “porta de entrada” é a pesquisa qualitativa interpretativista. Com ela podemos descrever os “fatos básicos” do assunto: informações cuja existência é evidente e há pouca contestação. Por exemplo, podemos estabelecer os atores e instituições envolvidas, a preferências explícita dos atores, sequências históricas bem documentadas etc. Inclusive, esse tipo de pesquisa é uma ótima forma de encontrar hipóteses relevantes sobre o assunto. Muitos estudos quantitativos perseguem hipóteses pobres, que somente podem gerar conclusões pobres. Em minha experiência com métodos quantitativos vi muitos casos (inclusive em minhas próprias pesquisas) de grande esforço metodológico na construção de dados e uso de metodologias inovadoras para chegar a conclusões óbvias ou pouco relevantes. Ou ainda pior, muitas análises quantitativas geram conclusões sem sentido por ignorar fatos básicos do campo, que

Metodologia qualitativa interpretativa Metodologia quantitativa interpretativa Metodologia quantitativa objetivista. Metodologia qualitativa objetivista

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2 poderiam ser facilmente ser obtidos se os analistas tivessem conversado com os atores ao invés de ter feito a pesquisa do início ao fim em frente a um computador. Desenvolvo melhor esse raciocínio na sessão “A importância das boas hipóteses”, abaixo.

Um segundo passo, que se efetiva quando existe a possibilidade de gerar análises quantitativas, dado o número de observações, é realizar uma pesquisa quantitativa interpretativista (análise exploratória de dados ou modelos heurísticos). Esse tipo de pesquisa realiza a análise descritiva dos fenômenos, analisando variáveis relacionadas à distribuição (variância, mínimos e máximos), tendência central (média, mediana, moda) e correlações. É o primeiro teste para ver se as hipóteses “fazem sentido”.

Em seguida, realizamos uma pesquisa objetivista quantitativa. Esse é o “teste duro” sobre as hipóteses, onde se pode inferir relações de causalidade. Nessa fase se cumpre (ou se espera cumprir) a promessa da ciência objetivista de se fazer inferências robustas sobre a realidade, inclusive corroborando ou refutando as hipóteses elaboradas nas etapas anteriores.

Por fim, existe a abordagem qualitativa objetivista. Por um lado, esse tipo de pesquisa estuda poucos casos em profundidade, daí seu caráter qualitativo. Por outro lado, essa abordagem compartilha os princípios da ciência objetivista, e procura realizar afirmações robustas e reprodutíveis. Do ponto de vista da teoria geral, ela pode ser usada para testar uma teoria através de um “caso crucial” (aquele que pode obrigar uma teoria a ser reformulada) (ROGOWSKI, 2010) ou então refinar uma teoria através de um “caso desviante”, para situações onde a teoria é boa para explicar a média, mas ruim em alguns casos (PIRES, 2008a). Esse estudo pode ainda servir para descrever os mecanismos de uma relação causal bem estabelecida (GOERTZ; MAHONEY, 2012, p. 100–114). Em geral, se faz isso em “casos típicos”. Podemos pensar o exemplo de uma cidade hipotética onde houve uma lei que obrigava os bares e restaurantes a fecharem mais cedo e isso teve um efeito de redução de criminalidade. Vamos pressupor que essa é uma relação causal já estabelecida por um estudo quantitativo objetivista. Mesmo que houvesse uma relação causal clara, ainda não é claro os mecanismos causais pelos quais isso ocorre. A relação causal seria explicada por menor consumo alcoólico? Por obrigar os boêmios a irem para casa em um momento em que as ruas ainda estão cheias? Por colocar um freio a aqueles indivíduos com tendência a excessos? Por esvaziar as ruas em um momento em que existem mais policiais trabalhando? Etc. Por mecanismos causais, entendo os microprocessos sociais que levam a variável independente (nesse exemplo, o fechamento mais cedo dos bares) à variável dependente (nesse caso, a criminalidade) (HEDSTRÖM; YLIKOSKI, 2010). A elucidação dos mecanismos causais é a etapa mais elevada da teoria objetivista, pois permite compreender o fenômeno em detalhes e também saber quando uma relação causal pode ser replicada em outro

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2 contexto e em outro momento. Por isso, o uso da pesquisa qualitativa objetivista é de fundamental importância.

A pesquisa qualitativa objetivista se utiliza do método hipotético-dedutivo, mas não da probabilidade e estatística. Suas afirmações são determinísticas e não probabilísticas. Por exemplo, imagine que um analista faça a seguinte afirmação empírica: “em determinada reunião, a bancada evangélica convenceu o presidente da comissão a retirar o projeto de lei da pauta”. Isso não é uma afirmação probabilística, no sentido de “pode ter ocorrido com dada probabilidade”, mas uma afirmação de algo que de fato ocorreu. Para defender o seu ponto, o analista não utiliza os padrões estatísticos de teste de hipóteses, ou compara casos semelhantes, mas utiliza evidências que reforçam seu ponto. Em tese, poderiam ser evidências da afirmação acima (1) uma gravação em vídeo de uma fala incisiva de um parlamentar da bancada evangélica defendendo a retirada do projeto e o presidente da comissão concordando com a cabeça, (2) documentos da bancada evangélica comemorando a retirada do projeto e se atribuindo a responsabilidade, ou ainda (3) uma declaração do próprio presidente da comissão. (4) Pode ser que o próprio pesquisador tenha entrevistado um funcionário da comissão que tenham relatado toda a discussão. Pode ainda ser todos esses fatores somados. No entanto, essa afirmação ainda é uma hipótese (não no sentido estatístico, mas no sentido epistemológico) e, como tal, pode ser refutada com a inclusão de novas informações. No exemplo acima, pode existir uma nova entrevista em que um informante argumente que o presidente da comissão apenas tenha fingido ter sido influenciado pela bancada evangélica, mas que ele teria retirado o projeto de pauta de toda forma. E como evidência adicional, o informante tenha mostrado que o presidente da comissão não tenha atendido nenhum pedido da bancada evangélica além desse. Esse fato novo muda o significado das evidências anteriores.

Podemos ver que a pesquisa qualitativa objetivista pode apresentar grande robustez empírica para fazer afirmações para os casos de análise, provavelmente uma robustez maior que a pesquisa quantitativa, dado que nela cada unidade de observação não é analisada com tanto detalhe. Também se deve ressaltar que a pesquisa qualitativa pode analisar hipóteses tanto descritivas quanto causais. No exemplo acima, a bancada evangélica (variável independente) causou a retirada do projeto de lei (variável dependente)10. Porém, um ponto fundamental para garantir os princípios objetivistas de uma pesquisa qualitativa, tal como nas

10 O que a pesquisa qualitativa não consegue fazer, pelo menos não sem o apoio da pesquisa quantitativa, é estimar

um valor populacional com base em uma amostra. Ela não consegue estimar a probabilidade média da bancada evangélica conseguir retirar um projeto de pauta, por exemplo. Outra distinção útil para entender a diferença entre as proposições causais feitas pelos métodos quantitativos e qualitativos é a utilizada por Goertz e Mahoney (2012, p. 41–51) entre “efeitos das causas” e “causa dos efeitos”. As abordagens quantitativas buscam os “efeitos das causas”. No exemplo acima, seria algo como tentar entender “qual o efeito médio que a bancada evangélica tem sobre a retirada dos projetos?”. Já as abordagens qualitativas estudam a “causa dos efeitos”, ou algo como “quais são todos os fatores que explicam a retirada desse projeto da pauta da comissão?”.

(14)

2 pesquisas quantitativas, é a possibilidade de replicação da pesquisa. No exemplo dado, o que garantiria robustez e credibilidade para os achados é que o pesquisador tenha cópias de todo o material de pesquisa (vídeos, gravações, documentos, etc), bem como que o modelo de análise esteja explícito. Isso permite que a comunidade científica tenha a possibilidade de checar a pesquisa e verificar os procedimentos utilizados. Se não houver a disponibilização desse material, a pesquisa vai depender fundamentalmente do testemunho do pesquisador e passará para o campo da epistemologia interpretativista.

Discussão bibliográfica

Existe uma vivida discussão se existem duas ou uma epistemologia das ciências sociais. King, Keohane e Verba (1994), em Design Social Inquiry: scientific inference in qualitative

research, defendem a tese que existe apenas uma epistemologia. No primeiro capítulo de seu

livro, KKV são claros em dizer:

“Our main goal is to connect the traditions of what are conventionally denoted ‘quantitative’ and ‘qualitative’ research by applying a unified logic of inference to both. The two traditions appear quite different; indeed they sometimes seem to be at war. Our view is that these differences are mainly ones of style and specific technique. The same underlying logic provides the framework for each

research approach.” (KING; KEOHANE; VERBA, 1994, p. 3) (grifos nossos.)

Essa lógica seria, grosso modo, o método hipotético-dedutivo e, logo, a perspectiva objetivista. Portanto, esse importante manual metodológico faz parte de uma longa lista de trabalhos que invisibiliza a perspectiva interpretativista. Deve-se ressaltar que a abordagem de KKV foi além de defender que existe apenas uma epistemologia (ou lógica de inferência), eles advogaram que o modelo de pesquisa quantitativa, o “quantitative template”11, deveria ser transposto para os métodos qualitativos, ou seja, defendendo não apenas que existe uma única epistemologia, mas quase um único método12.

A resposta a essa proposta veio principalmente a partir do livro Rethinking Social

Inquiry: Diverse Tools, Shared Standards (BRADY; COLLIER, 2010), uma crítica direta a KKV.

Nesse livro, os autores procuram tecer críticas às visões que colocam o “quantitative template” como a única forma válida de inferência científica, procurando, assim, uma visão mais compreensiva e generosa dos métodos qualitativos. Contudo, no que diz respeito à

11 Termo usado por Brandy, Collier e Seawright (2010) para designar a abordagem de KKV.

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2 epistemologia das ciências sociais, os autores do livro continuam, em grande parte, seguindo a ideia de “dois métodos de pesquisa, uma epistemologia”, que pode ser vista na seguinte passagem.

We want to be clear about what these criticisms do and do not amount to. They do not amount to a rejection of the basic enterprise of striving for a shared vocabulary and framework for both quantitative and qualitative research. Indeed, we are strongly committed to the quest for a common framework. While we have great respect for scholars who explore epistemological issues, we worry that such concerns may sometimes unnecessarily lead researchers and students to take sides and to engage in polemics. Thus, we share KKV’s (4–5) view that

quantitative and qualitative methods are founded on essentially similar epistemologies. (BRADY; COLLIER; SEAWRIGHT, 2010, p. 19) (grifos nossos)

Ou seja, desse ponto de vista, a visão de Brady, Collier & Seawright (2010) apresenta mais continuidades que descontinuidades com KKV. Isso se deve ao fato dos autores, estarem profundamente comprometidos com a epistemologia objetivista e a busca por uma ciência “robusta”. Ao final, o livro Rethinking Social Inquiry busca, uma melhor compreensão dos métodos qualitativos naquilo que eles têm de específico e apontam os limites do “imperialismo quantitativista”, mas reserva pouco espaço para uma epistemologia não objetivista.

O livro A Tale of Two Cultures: qualitative and quantitative research in the social

sciences (GOERTZ; MAHONEY, 2012) é uma tentativa deliberada de criar pontes entre os

mundos dos métodos quantitativos e qualitativos. Os autores tratam os métodos como duas “culturas”, cada uma com suas tradições, normas, valores e práticas próprias. Segundo os autores:

Communication within a given culture tends to be fluid and productive. Communication across cultures, however, tends to be difficult and marked by misunderstanding. When scholars from one tradition offer their insights to members of the other tradition, the advice is often viewed as unhelpful and inappropriate. The dissonance between the alternative cultures is seen with the miscommunication, skepticism, and frustration that sometimes mark encounters between quantitative and qualitative researchers. At its core, we suggest, the quantitative-qualitative disputation in the social sciences is really a clash of cultures. (GOERTZ; MAHONEY, 2012, p. 1)

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2 Essa inquietação é a mesma que inspira esse artigo e certamente Goertz e Mahoney fizeram um brilhante trabalho em desvendar as diferenças entre as lógicas de inferência dos métodos quantitativo e qualitativo, bem como possibilidades de integração e sinergia entre as abordagens. Contudo, sem abordar as diferenças entre as epistemologias (e não apenas entre os métodos), a tentativa de criar pontes de diálogo entre as duas culturas estará incompleta. Goertz e Mahoney se esquivam de discutir esse assunto em seu livro, por também estarem profundamente comprometidos com a epistemologia objetivista, tal como KKV e Brady, Collier & Seawright (2010). Podemos ver isso na seguinte passagem:

Our two cultures approach shares certain similarities with King, Keohane, and Verba's one culture approach, especially in that we focus on research that is centrally oriented toward causal inference and generalization. The methods and techniques that we discuss are all intended to be used to make valid scientific inferences (…). One consequence of our focus on causal inference is that important currents within the qualitative paradigm drop out of the analysis. In particular, interpretive approaches are not featured in our two cultures

argument. These approaches are usually less centrally concerned with causal

analysis; they focus more heavily on other research goals, such as elucidating the meaning of behavior or critiquing the use of power. The interpretive tradition has its own leading norms and practices, which differ in basic ways from the quantitative and qualitative paradigms that we study in this book. One could certainly write another book focusing on the ways in which the interpretive culture contrasts with the "causal inference" cultures that we discuss. (BRADY; COLLIER;

SEAWRIGHT, 2010, p. 3–4).

Nessa passagem, vemos que os autores estão conscientes da existência da epistemologia interpretativista, mas não chegam a ver como ela pode ser integrada à perspectiva objetivista, tanto nos métodos quantitativos, quanto nos métodos qualitativos. Igualmente, o que distingue a perspectiva intepretativista da objetivista não é claro. Na passagem acima, Goertz e Mahoney afirmam que o que distingue a pesquisa objetivista é a preocupação com a inferência causal. Mas essa também é uma questão que interessa à abordagem interpretativista, como quanto os analistas procuram descobrir por que os indivíduos agiram do modo que agiram, por exemplo13. Da mesma forma, a ciência objetivista

13 A questões que usam “por que” são sempre causais, enquanto as questões que usam “o que”, “quanto” ou “como”

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2 procura tanto inferências causais quanto inferências descritivas. O que realmente distingue a epistemologia objetivista é o uso do “teste de hipóteses” e da “inferência robusta”, que as perspectivas interpretacionistas não comportam. Podemos ver isso quando analisamos um metodólogo da tradição qualitativa interpretativista, como Álvaro Pires:

“Por exemplo, no plano epistemológico, alguns filósofos contestam o interesse

mesmo em atribuir á ciência o objetivo de descobrir a verdade sobre o mundo empírico. Segundo um certo ponto de vista, dever-se-ia até abandonar esse debate que visa determinar se nossa maneira de pensar ‘entra ou não, em contato’ com a realidade objetiva. Em outras palavras, argumenta-se que a ciência não deveria confrontar o mundo do conhecimento que temos dele; mas ela deveria sim, perguntar se a imagem que temos dele é útil para resistir ao meio, porém de uma maneira que nos faça ganhar também no sentido intersubjetivo, em criatividade, solidariedade e capacidade de escuta em relação a todos aqueles e

aquelas que sofrem. Defende-se que o ‘desejo de objetividade’ deve ceder seu

lugar ao ‘desejo de solidariedade’” (PIRES, 2008b, p. 43) (grifos do autor).

Pires (2008b), no entanto, modera essa posição inicial ao longo do artigo, de modo a evitar o argumento do “tudo vale” em metodologia (pag. 57), mas claramente os objetivos dessa epistemologia são diferentes dos objetivos dos manuais acima. Pela proposta do “ciclo metodológico”, acima, competências como “criatividade, solidariedade e capacidade de escuta” podem ser perfeitamente incorporados ao método científico; como ferramentas de pesquisa.

Os manuais da epistemologia objetivista reconhecem, que o uso de técnicas típicas da epistemologia interpretativista pode ser úteis. KKV afirma “Without deep immersion in a

situation, we might not even think of the right theories to evaluate” (KING; KEOHANE; VERBA,

1994, p. 39). Brady, Collier & Seawright (2010, p. 25) também reconhecem que “Inductive

analysis can play a major role in achieving valid inference and generating new ideas. Induction is important in both qualitative and quantitative research”. Porém, nesses autores, a relação

entre as epistemologias, métodos e a possibilidades de integração entre ambas é pouco clara. Larry M. Bartels (2010), em seu artigo no livro Rethingink Social Inquiry, argumenta “There is

more going on here than a simple-minded distinction between (qualitative) hypothesis generation and (quantitative) hypothesis testing, or a simple-minded faith that two kinds of evidence are better than one. Qualitative evidence does more than suggest hypotheses, and analyses combining quantitative and qualitative evidence can and sometimes do amount to more than the sum of their parts”. A proposta é boa e muito coerente com o proposto aqui,

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2 mas o autor não vai mais a fundo nas possibilidades de integração. Como a discussão acima já deve ter demonstrado, o elo perdido para essa integração entre epistemologias é o processo de “geração de hipóteses”, que foi de certa forma desvalorizado por Bartels na passagem acima, mas em termos práticos, é um dos pontos mais fundamentais do processo científico14. Desenvolvo melhor esse raciocínio na sessão abaixo.

A importância das boas hipóteses

Kellstedt & Whitthen (2015, p. 81) argumentam em seu livro de metodologia que um critério fundamental para uma boa hipótese causal é que “exista um mecanismo crível que conecte X a Y”. Obviamente, estamos falando de um manual que segue a linha “objetivista”. Segundo recomendam, esse critério é uma condição sine qua non para o prosseguimento da análise: se ela não for atendida, o analista deve reformular a hipótese ou encontrar uma nova hipótese para só então seguir a análise. Dado que o objetivo da análise é sempre desenvolver a teoria, a recomendação faz todo sentido. Porém, acredito que não basta formular uma hipótese “com um mecanismo crível”, mas se deve procurar sempre uma “boa hipótese”: aquela que se aproxima ao máximo do que realmente ocorre. Afinal, ninguém quer perder tempo e recursos testando hipóteses ruins para, ao final do processo, chegar a “não conclusões”. Essa recomendação, aparentemente trivial, é, em termos práticos, extremamente difícil de se obter. Proponho aqui fazer uma classificação das hipóteses ruins, ilustradas por alguns exemplos, para poder compreender melhor a importância que das boas hipóteses. As hipóteses ruins, pode ser classificadas em quatro tipos:

• Hipótese ausente. Não ter hipótese nenhuma, em um estudo objetivista, é uma má hipótese. Isso ocorre quanto o analista fica “empacado”, sem saber como explicar determinado fenômeno15. Apesar de frustrante, esse fenômeno pode indicar que a pesquisa está sendo levada com seriedade, pois são os analistas mais rigorosos que ficam travados mais frequentemente. Esses pesquisadores preferem reconhecer a ignorância (o que muitas vezes é um processo doloroso) a defender uma explicação fraca. Tive essa sensação em minha dissertação de mestrado (JUNQUEIRA, 2010),

14 Uma analogia comum em cursos metodologia é entre pesquisa científica e investigação policial. Seguindo essa

metáfora, a epistemologia objetivista é boa em “provar” que determinada pessoa é culpada ou inocente (o teste de hipóteses). Já a epistemologia interpretativista é boa “meramente” para descobrir quem é o culpado (definir a hipótese), ou seja, fazer o trabalho de investigação policial. Vendo por esse lado, não faz sentido em adotar um “meramente” para esse trabalho fundamental.

15 Os projetos de pesquisa em ciências sociais podem ser “centrados na questão” ou “centrados na hipótese”. Os

desenhos de pesquisa centrados na questão tem uma pergunta a responder e estão abertos a qualquer hipótese que responda a essa questão. Já o desenho centrado na hipótese tem uma explicação para o fenômeno e a análise busca verificar se a hipótese corresponde ou não aos dados. Ambos os desenhos são válidos e podem ser usados nas perspectivas objetivista e interpretativista. É mais comum os pesquisadores ficarem “travados” nos desenhos de pesquisa centrados na questão. Nos desenhos centrados na hipótese, o estudo sempre pode chegar a uma conclusão “sim ou não” sobre a hipótese.

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2 onde analisei as causas do fracasso da reforma tributária no Brasil. Em certo momento, pode refutar todas as explicações correntes da literatura sobre o fenômeno, mas não tinha nenhuma boa hipótese para explicar porque as reformas tributárias nunca são aprovadas. O insight para a hipótese que guiou o trabalho final me surgiu após escutar mais de 50 horas de gravações de debates parlamentares das comissões do Congresso. Pude perceber que os parlamentares e debatedores convidados frequentemente se referiam à reforma como “muito complexa”. Então tive a ideia de transformar a complexidade da proposta em uma hipótese sobre seu fracasso (JUNQUEIRA, 2010). As gravações das comissões não entraram diretamente na análise. Não fiz, por exemplo, uma análise de conteúdo formal das opiniões parlamentares. Porém, esse longo período escutando os debates me ajudou a escrever a parte teórica e descritiva da análise, além de ter servido como base para minha hipótese e modelo de análise. Vendo em retrospectiva, esse período foi uma espécie de etnografia com base em documentos. A meu ver, foi fundamental para o sucesso daquela pesquisa.

• Hipóteses óbvias. Algumas hipóteses são por demais óbvias que mal merecem a análise. Durante meus estudos de pós-graduação, tive um colega, exímio conhecedor de métodos quantitativos, que construiu um complexo teorema matemático formal durante uma tentativa dos coordenadores do curso de impor a presença obrigatória dos alunos durante os seminários de pesquisa. A conclusão dele, após longa argumentação, é que se os alunos forem obrigados a participar do seminário teriam menos tempo para estudar para as disciplinas, fazer pesquisa e outras atividades. Outro colega então concluiu “então, sua conclusão é que se tivermos que gastar tempo nos seminários teríamos menos tempo para o resto das atividades?”. Todos rimos ao perceber que muito esforço teórico foi gasto para chegar a uma conclusão tão óbvia. Tive a impressão de que o próprio autor do argumento somente percebeu a obviedade de suas conclusões depois de ter recebido essa crítica. O exemplo, apesar de anedótico, mostra uma situação comum, especialmente entre os adeptos dos métodos quantitativos: muito esforço no uso de métodos sofisticados, para testar hipótese teoricamente pobres. Rogowski (2010) também critica KKV pelo mesmo motivo “KKV

(127), in contrast, frequently chooses as examples hypotheses that seem obvious or that lack deductive fertility. To prove, for example, that declining Communist societies were more likely to spawn mass movements of opposition the less repressive the old regime was neither contravenes received wisdom nor carries broader implications for other cases.” (pag 95-96). Provavelmente esse problema é causado por um

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2 desequilíbrio entre o longo tempo que muitos estudantes do mundo quantitativo gastam estudando metodologia e o tempo relativamente breve estudando teoricamente a questão substantiva. Novamente, aqui, a “imersão nos dados” antes de formular as hipóteses permite encontrar as relações mais interessantes e contraintuitivas dos casos de análise.

• Hipóteses simplesmente erradas. Goertz e Mahoney (2012, p. 106) citam o exemplo do estudo de Acemoglu & Robinson (2006) onde eles usam um modelo altamente complexo, baseado em teoria dos jogos, que relaciona alta desigualdade de renda e instabilidade da democracia. Basicamente, os autores argumentam que em sociedades desiguais, a elite econômica tem maiores incentivos para apoiar golpes militares, dado o temor de políticas redistribuitivas sob democracias. A correlação entre maior desigualdade e golpes militares é estatisticamente significativa. Porém, Slater & Smith (2014), com base em estudos sobre golpes militares no sudeste da Ásia, criticam esse mecanismo causal, argumentando “there appears to be little

support for the notion that armies serve as economic agents of the upper class” (pag

364) e que os golpes militares ocorrem por razões que pouco tem haver com o interesse econômico específico das elites. De fato, a realidade empírica é de tal modo complexa que é frequente que mais de um modelo “funcione” para um mesmo conjunto de dados, no sentido de encontrar correlações significativas do ponto de vista estatístico, mas espúrias. Para evitar encontrar essas hipóteses enganosas, duas coisas são importantes: (1) uma boa aderência entre o modelo de análise proposto e a teoria16 e (2) o acúmulo de evidências a favor da hipótese, o que provavelmente vai ocorrer não apenas através de uma única abordagem e sim através de evidências que misturam métodos quantitativos e qualitativos, bem como abordagens objetivistas e interpretativistas.

• Uso equivocado dos dados. Sanders ett alli (1987), publicaram um provocante artigo em 1987, mostrando que, ao contrário de o que a imprensa e o senso comum acreditavam, a guerra das Malvinas não provocou um aumento súbito de popularidade para o governo de Margareth Thatcher no Reino Unido. Sua análise, utilizando a estatística de séries temporais, mostrou que não havia uma correlação significativa entre a guerra e a popularidade de Thatcher. Porém, esse achado era mero fruto de um uso equivocado dos dados. Em resposta direta ao artigo Clarke, Mishler & Whiteley

16 Ver uma argumentação competente a favor de um maior cuidado na construção teórica como chave para eliminar

vieses das análises quantitativas em Rogowski (2010). Para uma argumentação a favor de métodos mistos para checar achados oriundos do mundo quanti, ver Goerts & Mahoney (2012, p. 100–115) e Seawright (2016).

(21)

2 (1990) mostraram que o modelo de Sanders e colegas simplesmente tinha categorizado erradamente a data da guerra. Dia 2 de abril de 1982, a Argentina envia forças navais às ilhas, tendo começando as tensões. Porém, até o dia 22 de abril, a resposta do governo britânico foi basicamente diplomática. O primeiro ataque de fato, sem resistência britânica, somente ocorreu dia 25 de abril, quando os argentinos recapturaram a ilha de Georgia do Sul. O primeiro combate efetivo entre tropas somente aconteceu 2 de maio. Os combates foram intensos em maio e em junho o conflito já havia terminado. Assim, o conflito somente eclodiu de fato no final de abril e começo de maio. Porém, dada a data de realização de pesquisas de popularidade na época, o efeito da guerra somente apareceria na popularidade da primeira-ministra em meados de maio. O modelo de Sanders ett ali simplesmente tomou que a guerra começou a partir de abril, mês onde a popularidade de Thatcher estava em seu mínimo histórico. Como consequência, o modelo de análise não mostrou correlação entre guerra e aumento de popularidade. Além disso, Sanders ett alli (1987), usaram a estratégia de inserir todas as variáveis que tinham no modelo (cerca de 266 variáveis) e ir retirando-as, uma a uma, quando o impacto da retirada no R2 do modelo não tenha sido substancial, um procedimento chamado de stepwise regression17. Como mostram Clarke, Mishler & Whiteley (1990), esse procedimento, basicamente ateórico, acabou inserindo no modelo variáveis que não fazem sentido: “To influence individual political

attitudes or behaviour, aggregate indicators of economic performance should be both visible and salient to the everyday lives of the electorate. It is now well established that inflation and unemployment are both visible, in the sense of being highlighted by the media, and salient to the voters. In contrast, there is no evidence of which we are aware that these conditions are met in the case of the Public Sector Borrowing Requirement, the exchange rate or even tax rates which SWM include in their final model” (pag 66).

O interessante é que todos esses insignts de Clarke, Mishler & Whiteley, como “o impacto político da guerra foi a partir de maio e não de abril” ou “o público inglês não se importa com padrões de crédito público, taxa de câmbio e impostos” foram obtidos por mecanismos qualitativos e não sistemáticos. Por exemplo, não creio que seja possível afirmar que a taxa de câmbio seja irrelevante para a popularidade do presidente do Brasil ou da Argentina na política recente, mas, dado o conhecimento dos autores sobre a política britânica da época, essa pareceu ser a hipótese mais plausível. De toda forma, essas percepções qualitativas de caráter interpretativista foram fundamentais para a construção do modelo, fortemente quantitativo, do artigo de Clarke, Mishler & Whiteley (1990). Esse exemplo ajuda a ilustrar que as variáveis

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2 não são “colhidas”, mas sim “construídas”. Mesmo uma mudança sutil como “a guerra começou em maio e não abril”, pode ter um impacto relevante na análise. A variação possível na definição e operacionalização de conceitos teóricos é enorme (GOERTZ, 2005). Podemos pensar na grande quantidade de classificações de “democracia” ou “participação social”, por exemplo. Da mesma forma, existe um número infinito de formas de construir modelos empíricos, ou seja, organizar as variáveis, para testar hipóteses teóricas. Se pensarmos em um modelo quantitativo, existem variações quanto à forma funcional (variáveis em quadrado ou interação), importância do passado (lagged dependent variables), problemas relacionados a dados faltantes (missing data) e dados anômalos (outliers), adição ou omissão de variáveis de controle etc. Essa grande quantidade de escolhas pode fazer com que as conclusões do estudo se tornem altamente dependentes das escolhas do pesquisador. Escolher o melhor modelo é um desafio sobretudo teórico, e não metodológico. É preciso constantemente verificar se o valor das variáveis no banco de dados “fazem sentido” na observação (muitas vezes pouco sistemática e intuitiva) do mundo empírico. Assim, vivência no campo e familiariedade com os dados, na linha da abordagem interpretativista, costuma ser bem útil.

Os analistas quantitativos costumam falar que, em estatística, “se lixo entra, lixo sai” (trash-in, trash-out), ou seja, se os dados utilizados no modelo forem “lixo”, o resultado do modelo será também “lixo”. Podemos usar o mesmo raciocínio para as hipóteses: se elas forem “lixo”, o resultado da análise será também “lixo”. Por outro lado, boas hipóteses tendem a gerar analyses frutíferas, mesmo com metodologias mais simples. Como afirmou Rogowski (2010, p. 90), “hypotheses that challenge no deeper theory or that themselves lack deductive

implications is an inefficient route of scientific inference, while theories that are precise and deductively fertile enough can often be sustained or refuted by surprisingly unelaborate tests”.

A grande força dos estudos interpretativistas é que eles reduzem a chance, embora não garantem, que as hipóteses utilizadas na análise hipotético-dedutiva serão boas hipóteses, ou seja, não terão as doenças das hipóteses ruins esboçadas acima.

Conclusão

Nesse artigo, demonstro que grande parte das divergências entre os métodos quantitativo e qualitativo são divergências entre as epistemologias objetivista e interpretativista. Porém, nem a divergência entre os métodos é irreconciliável, nem é a divergência entre as epistemologias. Todas as abordagens podem contribuir para a empreitada científica, sendo que as metodologias interpretativistas são melhores em criar

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2 hipóteses e as metodologias objetivistas são melhores em testar hipóteses. As quatro abordagens (qualitativa interpretativista, quantitativa interpretativista, quantitativa objetivista e qualitativa objetivista) podem examinar o mesmo tema, e cada abordagem pode ganhar em receber informações das outras três; bem como dar sua parcela de contribuição. O ciclo metodológico sugerido aqui pode ser realizado tanto por grupos, onde cada pesquisador se especializa em um tipo de abordagem, ou então por pesquisadores individuais que podem usar mais de uma abordagem em sua pesquisa. Não defendo que todo projeto tenha que necessariamente passar pelas quatro abordagens. É perfeitamente possível utilizar apenas uma ou duas abordagens, como qualitativa interpretativista e qualitativa objetivista ou então quantitativa objetivista e qualitativa objetivista – que é uma escolha frequente dos adeptos dos “métodos mistos” (SEAWRIGHT, 2016). Como recomendação geral, diria que é importante para os pesquisadores lerem trabalhos de outras abordagens sem julgá-los segundo os princípios da sua abordagem, mas tentando verificar o que a outra abordagem pode contribuir; pois todas as abordagens podem contribuir. Também diria para todos os estudantes ou pesquisadores que estão iniciando os estudos em um novo objeto para utilizarem, ainda que brevemente, as abordagens interpretativistas, especialmente a qualitativa interpretativista. Certamente será de grande ajuda.

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