O CONHECIMENTO DE SI MESMO
Paulo Luccas
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Resumo
O conhecimento de si mesmo, ou ao menos, de quem é o homem em sua dimensão antropológica, é hoje um das mais urgentes e graves questões com que se defronta a humanidade. Uma questão que não permite o automatismo ou o superficialismo a que se acostumou a sociedade moderna em sua norma do mínimo esforço. Mesmo que de difícil resposta, esta reflexão se faz urgente pelo alto grau de insatisfação encontrado no trabalho, nas famílias e em cada indivíduo que compõe a sociedade moderna.
O crescimento nas virtudes implica numa disposição positiva e comprometida, só possível a quem tenha consciência de sua grandeza e de suas debilidades. O conhecimento de si mesmo, ou ao menos, de quem é o homem em sua dimensão antropológica, é hoje um das mais urgentes e graves questões com que se defronta a humanidade. Uma questão que não permite o automatismo ou o superficialismo a que se acostumou a sociedade moderna em sua norma do mínimo esforço. Mesmo que de difícil resposta, esta reflexão se faz urgente pelo alto grau de insatisfação encontrado no trabalho, nas famílias e em cada indivíduo que compõe a sociedade moderna. Martin Heidegger, expoente máximo do existencialismo, exprime assim a atualidade e complexidade deste problema:
Nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente.(HEIDEGGER, 1989, p.37).
Um problema atual tratado já desde os clássicos gregos. Para Platão o homem é essencialmente uma alma e seu único verdadeiro problema está em libertar esta alma do corpo. Para Aristóteles o homem é constituído de corpo e alma, mas mesmo não entendendo a alma como prisioneira do corpo, reconhece sua sujeição à corrupção do corpo. Com a sua visão teocêntrica, o pensamento cristão desvincula-se da antropologia cósmica grega para estabelecer uma relação entre Deus e o homem, onde na proposta de Tomás de Aquino, o homem é composto essencialmente por corpo e alma, havendo uma unidade profunda e substancial entre ambos, porque único é o seu ato de ser. Diferencia, no entanto, o caráter prioritário da alma, já que a morte do corpo não pode implicar na morte da alma.
Com o inicio do modernismo a visão cosmocêntrica grega e a teocêntrica cristã, perdem espaço para a visão antropocêntrica, onde o homem é o centro de tudo. Nomes como Descartes, Spinoza, Hume, Conte, Marx e Freud entre outros, destacam-se no esforço de polarizar na ciência a compreensão do que seja o homem. O resultado deste esforço modernista foi a fragmentação do conhecimento sobre o homem, tomando uma parte como se fosse o todo.
Stork e Echevarria destacam que o personalismo se distancia destas propostas positivistas em uso na sociologia e nas ciências experimentais:
A intenção é a de aproximar-se ao homem e ao mundo não como a algo que há de ser dominado, mas de algo que pode ser compreendido.(...) Ao juízo de Yepes, uma das conseqüências mais relevantes da proposta personalista é a importância que nela adquire o caráter dialógico da pessoa.(...) A antropologia dialógica abandona a solidão metódica do pensador racionalista. Precisamente por isso a perspectiva clássica é outra das fontes de inspiração do que se trata aqui. Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino são talvez, os autores que mais tenham contribuído para a elaboração desta obra: subir aos ombros de gingantes dá a possibilidade de olhar mais longe. Uma das conseqüências desta inspiração clássica é o desejo de situar-se em uma órbita antropológica não dualista. Esta separação entre natureza e liberdade é a chave predominante que se adota para interpretar a modernidade e para ressaltar a mudança de paradigma que introduziu o século XX ao superar essa dicotomia, tanto no terreno do pensamento como na própria dinâmica da cultura.(...) Também
é importante observar a relação entre esta obra e a ética. Para ter um conhecimento cabal do humano, é necessário mostrar o que é o homem à luz do que pode chegar a ser. Em nossos dias, a vigência do fim na visão do mundo se debilitou ao extremo. É urgente recuperá-la, pois sem fim não há sentido. O homem sempre anda em busca do sentido, pois não cessa de fazer-se perguntas e sua felicidade depende das respostas que consiga. Perguntar-se é fazê-lo pelo fim, e o fim nos indica para onde devemos dirigir nossa ação prática, nossa vida. Não pode ficar quieto, conformar-se com o ser. O dever ser é uma exigência de todo homem. Essa á a resposta que deve oferecer a ética. A antropologia necessita dela para saber de si, porém a ética tem a exigência de saber quem somos. (STORK e ECHEVARRIA, 2001, p. 17-18).
Algumas destas respostas sobre quem é o homem serão tratadas a seguir segundo a proposta personalista de Stork e Echevarria, para então tratar-se do sentido de vida deste mesmo homem.
Todo ser vivo se diferencia dos inertes por cinco características: movimento, unidade, imanência, desenvolvimento e ritmo cíclico. Pelo movimento é capaz de mover-se sem necessidade de um agente externo que o impulsione. Pela unidade não pode ser dividido sem que morra. Pela imanência é capaz de guardar dentro de si, em sua interioridade, o fruto de suas atividades. Pelo desenvolvimento protagoniza um processo, já que nenhum ser vivo nasce pronto, acabado. E por fim, obedece a um ritmo cíclico e harmônico, onde o movimento se repete e as partes se unem para formar um todo unitário num verdadeiro ciclo vital que permite entender a totalidade do universo.
Entre os seres vivos e considerando estas características, há uma graduação conforme sua perfeição. Esta graduação é de acordo com a capacidade imanente, e distingues três graus: a vida vegetativa, sensitiva e intelectiva. A vida vegetativa é própria das plantas e de todos os animais, possuindo três funções principais: nutrição, crescimento e reprodução. A vida sensitiva distingue os animais das plantas e consiste em ter um sistema perceptivo que ajuda a realizar as funções vegetativas mediante a captação de diversos estímulos. O conhecimento sensível do animal intervém na conduta, mas não o origina. A vida intelectiva é a própria do homem. Nela se rompe a necessidade do circuito estímulo-resposta, sendo capaz de mover-se em função de um fim que ele mesmo se proponha.
O homem é o único animal capaz de fazer fracassar sua vida voluntariamente, do mesmo modo que só a leva a seu melhor fim se quiser. O propriamente humano é a capacidade de dar-se a si mesmo fins e de eleger os meios para levá-los a cabo. Isto é a liberdade: o homem é dono de seus fins. E, enquanto é dono de si, é pessoa. (STORK e ECHEVARRIA, 2001, p. 25).
O homem possui um corpo e uma alma, que estão interligados e formam uma só unidade, separá-los é morrer. O corpo tem um caráter sistêmico, porque todos os seus elementos estão funcionalmente interligados. É um erro converter esta dualidade corpo e alma num dualismo ao entendê-los como duas realidades separadas. A alma não se opõe ao corpo, mas dele precisa para manifestar-se no tempo e no espaço. A alma é, portanto, o princípio vital dos seres vivos, a forma do corpo, a sua essência. O corpo é a matéria através da qual a alma se manifesta no mundo.
O homem como um ser vivo animal possui apetites, ou tendência que o move à auto-realização e crescimento. Essas inclinações podem ser sensíveis ou intelectuais dependendo do bem a que se refere a ação. A tendência sensível se realiza mediante a estimação, e a intelectual mediante a razão prática e a vontade. Estas tendências sensíveis se dividem em desejos e impulsos. O desejo se dirige ao bem presente, e o impulso ao bem que está no passado ou no futuro.
A alma possui faculdades intelectivas e de sensibilidade. É pelo estímulo das sensações, ou sentidos externos, que as faculdades sensíveis da percepção, imaginação, estimação e memória atuam. As faculdades intelectivas da inteligência e da vontade se expressam pelo pensamento e pela linguagem. A vontade é considerada por Aristóteles como o apetite da inteligência pelo qual nos inclinamos ao bem conhecido intelectualmente.
O que os desejos e impulsos são para a sensibilidade, é a vontade para a vida intelectual: querer é seu ato próprio. A vontade está tão aberta como o pensamento: pode querer qualquer coisa, não está predeterminada para um bem ou outro, se encontra aberta ao bem em geral: a vontade é a inclinação racional ao bem, sendo o bem aquilo que nos convém. Segundo esta definição, a vontade não atua à margem da razão, mas simultaneamente com ela: se quer o que se conhece, se conhece a fundo aquilo que se quer. Amor e conhecimento se relacionam estreitamente. A vontade se
plasma na conduta; dando origem às ações voluntárias. A vontade aparece na ação, se faz presente ao atuar. Uma ação voluntária é uma ação conscientemente originada por mim, ou seja, uma ação minha. (...) O fato de ter vontade implica a responsabilidade: ao homem se lhe pode pedir contas do que faz porque o faz querendo. O homem é responsável de suas ações ante os demais, ante a lei, ante a comunidade. (STORK e ECHEVARRIA, 2001, p. 44-45).
Além dos apetites naturais sensíveis e da razão, o homem possui uma afetividade que o distingue entre todos os seres vivos.
A afetividade humana é tão importante que os clássicos a tinham por uma parte da alma, distinta da sensibilidade e da razão. É uma zona intermediária na qual se unem o sensível e o intelectual e na qual se comprova que o homem é verdadeiramente unidade de corpo e alma. Na afetividade habitam os sentimentos, os afetos, as emoções e as paixões. (STORK e ECHEVARRIA, 2001, p. 45).
Stork e Echevarria propõem uma classificação meramente orientativa pela qual se pode caracterizar a ação humana conforme a figura abaixo:
Inclinação Se não o temos Se o temos Bem Amor: princípio Desejo Gozo: fim Presente
(Concupiscível) Mal Ódio Fuga Dor, tristeza, angustia
Bem Esperança: possível Valentia, audácia,
ação Gozo: fim
Futuro, Árduo (Irascível)
Mal Desespero:
impossível Temor, paralisação Ira, vingança FIGURA – Plano da ação humana.
Segundo este plano da ação humana, os sentimentos positivos precedem sempre os negativos, e mais ainda, se aparecem é porque o homem tem certa experiência do que deveria ser por estar aberto ao bem. O fim é o modo como se cumpre a atividade sentimental: alcançado o fim dá-se o gozo, a plenitude. Se o fim fracassa fica a dor, a tristeza, a vingança. Sem um fim há a tragédia pelo claro motivo de que todo homem deseja a felicidade, é o fim da ação, da existência humana já a partir do âmbito sensível.
Se a função do homem é uma atividade da alma por via da razão conforme a ela, o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência, e se há mais de uma excelência, de conformidade com a melhor e mais completa delas. Mas devemos acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida, pois um dia só não faz um homem feliz. (ARISTÓTELES, 1996, p. 126-127).
A felicidade é aquilo que todo homem aspira, mesmo sem o saber pelo simples fato de existir. É a maior e mais completa das excelências a que se refere Aristóteles, é o bem pelo qual deve conduzir sua vida e que lhe dará sentido a cada um de seus dias.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Cidade do México: J. Gaos, 1989.
STORK, R. Y.; ECHEVARRIA, J. A. Fundamentos de antropologia. 5. ed. Pamplona: Eunsa, 2001.