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INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA DO TRATADO DO DESPRENDIMENTO

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Academic year: 2021

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INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA DO

TRATADO “DO DESPRENDIMENTO”

Jônata Godoy

Filosofia CCHSA

jonatagodoii@hotmail.com

Prof. Dr. Renato Kirchner Ética, Epistemologia e Religião

CCHSA

renatokirchner@puc-campinas.edu.br

Resumo: O presente trabalho tem por

obje-tivo a interpretação fenomenológica do tra-tado Do desprendimento, de Mestre Ec-khart, filósofo, teólogo e místico medieval. Este tratado possui peculiar relevância em seu pensamento, pois Eckhart é um místico. O tratado revela-se como fundamento pri-meiro de sua mística e posicionamento filo-sófico. Eckhart busca por meio do despren-dimento o contato com o absoluto, Uno e imutável.

Palavras-chave: Mística, Desprendimento,

Mestre Eckhart.

Área do Conhecimento: Fenômeno

Religi-oso: Dimensões Epistemológicas – Ética, Epistemologia e Religião – PIBIC/CNPq.

1. INTRODUÇÃO

Mestre Eckhart nasceu em Hochheim, pró-ximo a Gota, na Turíngia, por volta de 1260.

Ingressando no convento dos dominicanos de Erfurt, estudou depois em Estrasburgo e Colônia. Tornou-se professor de teologia em 1302. Ensinou em Paris de 1302 a 1304. Exerceu cargos na ordem dominica-na. De 131 1 a 13 14, morou novamente em Paris. Em 1314, foi para Estrasburgo, onde se dedicou à pregação. A partir de 1320, estabeleceu-se novamente em Colônia, como mestre no Studium geral dos domini-canos, tendo entre seus discípulos Henri-que Suso. Eckhart é autor de um Opus tri-partitum: Quaestiones, Sermões e Tratados, textos escritos em alemão e latim. Morreu pelo ano de 1327.

2. A MÍSTICA ECKHARTIANA

Mestre Eckhart é classificado, muitas vezes, por diversos historiadores da filosofia, como um pensador neoplatônico. Isso deve-se ao fato de sua ruptura com a sistematicidade e rigor lógico-silogístico predominantes na

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es-colástica e por assumir a posição platônica de que somos provenientes do Uno, supre-mo bem e para ele necessitasupre-mos retornar; logo, nossa existência deve ser dedicada a este retorno. Com efeito, Eckhart não se de-tém em demasiado à função de demonstra-ção tanto a priori quanto a posteriori de suas reflexões. Então, pelo fato de tratar de Deus, da transcendência e da ontologia de maneira assistemática e não objetiva e pela concep-ção do retorno ao Uno, ele é classificado como neoplatônico.

Antes, porém, de atribuir qualquer predica-do à filosofia de Mestre Eckhart, é mister considerarmos o principal de seus aspec-tos: Eckhart era um místico e, como tal, não busca abordar em seus escritos problemáti-cas de caráter epistemológicos, lógicos ou metafísicos enquanto tais. Mas busca, por meio da linguagem descritiva, e muitas ve-zes poética, expor a experiência mística. Contudo, há algumas questões de cunho prático que interferem numa interpretação clara logo de imediato.

A experiência mística, de acordo com os pró-prios místicos, é algo pessoal, intransferível e incompreensível racionalmente. Logo, não é possível compreendê-la de maneira objetiva, tampouco descrevê-la de maneira formal ou científica (no sentido aristotélico do termo).

Aparece, então, a primeira das aparentes contradições: se a mística é uma experiência subjetiva e não racional, como pode ser es-crito algum tratado a respeito da mesma? A resposta é que a intenção de um místico ao escrever sobre a temática consiste em não explicar de maneira descritiva a experiência mística, mas, sim, gerar um “vislumbre” no espírito de quem lê para que este obtenha, a partir da sensação espiritual e não intelectu-al, uma noção do que é a mística (ainda que sem poder explicar) e, portanto, seja induzi-do a buscá-la por si só e, assim, realizar sua própria experiência pessoal e compreendê-la. É como, por exemplo, tentar transmitir a sensação de beleza. O belo só pode ser compreendido pela experiência direta com o mesmo. Contudo, convertendo em verbo a sensação que nos proporciona e transfor-mando em adjetivos suas características ob-temos uma noção do que este representa. Devido a isso, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, ao comentar introdutoriamente alguns sermões e tratados de Eckhart, declara que a linguagem do místico será constantemen-te repleta de hipérboles e paradoxos (ECKHART, 1991, p. 18-23). Com a primei-ra, utiliza-se de exageros linguísticos e com a segunda a síntese de significados com-pletamente opostos numa mesma

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termino-logia. Desta maneira, ambas transmitem que o real significado está muito além da descrição que as palavras empregadas e o aparente conflito racional que estes recur-sos de linguagem proporcional demonstram e como a mística está acima do fator racio-nal, de maneira que não pode ser explica-da, mas apenas compreendida espiritual-mente. A esse último fator Martin Heidegger em sua Fenomenologia da vida religiosa denomina de aspecto irracional da mística, não porque é contra a razão, mas porque a transcende (HEIDEGGER, 2010, p. 300-303).

3. O TRATADO ECKHARTIANO VON

ABGESCHIEDENHEIT

O tratado Do desprendimento (Von Abges-chiedenheit), de Mestre Eckhart, é um texto relativamente curto, porém, muito denso. Nele encontra-se o que podemos classificar como o fundamento de toda a sua mística: o desprendimento.

Eckhart expõe que realizou profundo estudo em mestres cristãos e pagãos com a reta intenção de atingir o conhecimento da con-dição necessária para a superação da hori-zontalidade e da multiplicidade das criaturas para a verticalidade e unicidade com Deus. Ou seja, sendo Deus o Uno donde partiu

toda a existência e para onde toda a exis-tência converge, a contemplação mística consiste na experiência desse ser supremo, desse retorno. E, para atingir tal objetivo, acima de todas as virtudes, é preciso o desprendimento. Pois, se as virtudes são para as criaturas, o desprendimento, ao contrário, é a superação de todas as criatu-ras para Deus.

Os mestres exaltam a caridade, no entanto, Mestre Eckhart classifica o desprendimento acima da caridade, pois Deus é semelhante penas ao que é indivisível, idêntico e Uno, sendo que só o desprendimento a tudo dife-rente quanto a isso e nos aproxima ao má-ximo de Deus. A caridade é para as criatu-ras e faz com que o indivíduo suporte tudo por Deus, levando-nos a Deus. Já o des-prendimento “obriga Deus” a vir a nós, pois esvaziando-se de tudo, só resta Deus. A caridade, por mais nobre que seja é desejo, o desprendimento é desejar nada, é sim-plesmente ser em Deus.

O desprendimento está acima da humilda-de, pois o humilde se submete à outra cria-tura, já o desprendimento mantém-se em si mesmo sem desejo algum de ser, apenas “sendo”. Portanto, não pretende ser maior ou menor que nada, pois vive a verdade de sua condição em plenitude.

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Nossa Senhora, sendo plena em virtudes, se gloria de sua humildade e não de seu desprendimento, pois para cumprir a vonta-de vonta-de Deus, seu projeto vonta-de amor para a humanidade, rogava por sua humildade de submeter-se à vontade de Deus (ECKHART, 1991, p. 150). Do mesmo mo-do, quando Deus se faz homem na pessoa de Jesus Cristo, usa de sua humildade, sem, porém, interromper seu perfeito des-prendimento em si mesmo.

O desprendimento está acima da misericór-dia, pois a misericórdia consiste na aflição humana pelo sofrimento alheio; no entanto, aquele que possui o desprendimento não é afligido por mal algum.

Diz Avicena que o ser desprendido “obriga” Deus a vir ao seu encontro, pois aquele que está livre de toda a extensão dos acidentes e paixões subsequentes não encontra nada além do Ser supremo, da verdade em si (ECKHART, 1991, p. 151). Logo, poderia mesmo assumir o ser de Deus, no entanto, Deus não pode conferir este ser a não ser a si mesmo, portanto, Deus vem a seu encon-tro e este não se prende a qualquer fenô-meno ou coisa terrena, pois nada o envolve a não ser Deus.

Mas que é desprendimento? É tamanha in-sensibilidade por parte do espírito a

qual-quer coisa do mundo criado como uma montanha de chumbo é insensível à brisa. Assim sendo, assemelha-se a Deus, pois este só é Deus por seu imutável despren-dimento. O desprendimento conduz o ho-mem à pureza, e da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Entretan-to, esse desprendimento só é possível pela graça de Deus, é ela que o desprende e o purifica, por isso, afirma Eckhart: “Estar va-zio de toda criatura é estar cheio de Deus, e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus” (ECKHART, 1991, p. 152).

Deus sempre se manteve imutável em seu eterno desprendimento, pois não vive no tempo, não possui vontade nova, mesmo antes da criação todas as criaturas já eram em seu ser e sua razão, e ele já as conhe-cia e as amava, não exista nada exceto a si mesmo e sua consciência é idêntica a si mesmo.

Acerca dos aparentes momentos de fraque-za e dor do Cristo e de Maria, Eckhart en-tende que todos possuímos dois homens diferentes em nosso ser: o exterior e o inte-rior. O exterior se vale da inteligência, dos cinco sentidos e das paixões, é o que atua neste mundo; já o interior é sua essência, seu eu verdadeiro intimamente semelhante a Deus em substância. Quando Jesus

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as-sim diz, é seu homem exterior em resposta aos estímulos da ação no mundo e não o interior que se mantém inabalável em seu desprendimento; assim também é Maria. O problema dos homens é que em sua maio-ria não despertam seu eu interior e focam as potencialidades da alma somente no eu exterior e, assim, não amando a Deus, mantêm-se infelizes.

O objetivo do desprendimento é simples-mente o nada, não o nada absoluto que im-plica no não-ser, mas o nada relativo a des-peito das criaturas, a contingência, ou seja, abster-se de toda a criatura sem qualquer configuração em seu ser para que Deus aja e molde seu ser.

Qual a oração do coração desprendido? Nenhuma, afirma o místico renano (ECKHART, 1991, p. 155-156). Quem é desprendido não pode orar, pois quem ora espera, deseja algo. O desprendido deseja nada, espera por nada, simplesmente é. Seu ser, sua vontade, sua ação identifica-se com a de Deus de modo a não exercer juízo sobre nada. É isso que Paulo quer dizer ao “Revestir-se de Cristo” (Ef 4,20-24). Por isso diz Jesus no evangelho de João: é melhor que eu me vá, para que o Espírito Santo venha (Jo 16,7). Pois os discípulos ainda estavam presos em sua figura terrena e

palpável, ou seja, no desejo. Portanto, é preciso o desprendimento ao impessoal, sem-forma para configurar-se plenamente em Cristo.

Assim, não há homem mais plenamente fe-liz que o desprendido, pois não há consola-ção terrena que não seja nociva ao espírito; somente o desprendimento a todo desejo nos separa de todas as criaturas e nos une a Deus.

Por fim, não há meio mais rápido para o encontro com Deus que o sofrimento, pois este anula as paixões terrenas e nos con-duz ao amor e à glória de Deus, facilitando o desprendimento.

Portanto, entendemos que, para o místico alemão, o desprendimento é simultanea-mente tanto a mais alta virtude que um ser humano pode atingir, sendo, ao mesmo tempo, uma meta tanto bastante laboriosa de se atingir, quanto é o pressuposto mais básico para a verdadeira experiência místi-ca, pois ela só é possível por meio do total desprendimento. Sem esquecer que, se-gundo Eckhart, a mística é a verdadeira re-ligiosidade e intimidade com Deus, logo, o desprendimento é de suma importância pa-ra o cristão, de modo que toda e qualquer prática fora deste será apenas uma pana-ceia.

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Eckhart cita ainda Paulo de Tarso como au-ge do desprendimento. Em sua famosa fra-se: “Já não sou eu quem vivo, mas Cristo que vive em mim” (Gl 2,20), Paulo teria da-do o maior exemplo de como superar e desprender-se de tudo e preencher-se do absoluto (ECKHART, 1991, p. 151).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eckhart possui um pensamento original iné-dito para sua época, uma vez que o rigor sistemático e lógico da escolástica era he-gemônico. Eckhart também busca divulgar seu pensamento ao povo e não apenas ao círculo de intelectuais das universidades. Suas afirmações e posicionamentos o leva-ram a ser considerado controverso e enig-mático. Seu tratado Do desprendimento re-vela-se como a coluna vertebral de um pen-samento místico próprio que prega pela via do desapego às paixões e às ilusões da a-leatoriedade do mundo e, em contrapartida, o contato direto e imediato com o absoluto para, assim, atingir a felicidade suprema ansiada por todos os seres humanos.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de Campinas por proporcionar e incentivar

aos estudantes de graduação a realização da Iniciação Científica e, particularmente, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI), por conceder-me a bolsa de estudos. Agradeço, igualmente, ao Prof. Dr. Renato Kirchner, pela disposição em orientar-me no período de Iniciação Científica.

REFERÊNCIAS

[1] ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Tradu-ção de Raimundo Vier, Fidelis Vering, Leo-nardo Boff, Emmanuel Carneiro Leão e Gil-berto Gonçalves Garcia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

[2] ECKHART, Mestre. Sermões alemães, vol. 1 e 2. Bragança Paulista: Editora Uni-versitária São Francisco. Petrópolis: Vozes, 2006 e 2008.

[3] ECKHART, Mestre. Sobre o desprendi-mento e outros textos. Tradução de Alfred J. Keller e introdução de Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière. São Pau-lo: Martins Fontes, 2004.

[4] HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Tradução de Enio Paulo Gia-chini, Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Pe-trópolis: Vozes, 2010.

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