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O videogame e as complexidades possíveis : processos de criação, emergência e fruição

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes

JULIA STATERI

O VIDEOGAME E AS COMPLEXIDADES POSSÍVEIS: PROCESSOS DE CRIAÇÃO, EMERGÊNCIA E FRUIÇÃO

CAMPINAS 2016

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JULIA STATERI

O VIDEOGAME E AS COMPLEXIDADES POSSÍVEIS: PROCESSOS DE CRIAÇÃO, EMERGÊNCIA E FRUIÇÃO

Tese apresentada ao Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora, na Àrea de Artes Visuais.

Orientador: PROF. DR. EDSON DO PRADO PFUTZENREUTER ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA, E ORIENTADA PELO PROF. DR. EDSON DO PRADO PFUTZENREUTER

CAMPINAS 2016

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos mestres e amigos que se foram tão cedo, deixando um vazio material, ainda que nos iluminando com as recordações de nossas conversas regadas a café.

À minha querida amiga e mentora Célia Maria Escanfella, quem me motivou através do exemplo.

Ao grande artista e ser humano Wilton Luiz de Azevedo, por ver em seus alunos algo que eles costumavam falhar em reconhecer.

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AGRADECIMENTOS

Deixo a minha mais profunda gratidão ao meu orientador, professor doutor Edson do Prado Pfutzenreuter, pelo voto de confiança depositado na minha figura acadêmica. Este tornou-se o primeiro passo desta árdua jornada de quase quatro anos, entre a introspecção da leitura e a busca de informações pertinentes, dispersas no cenário mercadológico.

Agradeço a atenção desinteressada e os conselhos edificantes do professor, filósofo e escritor, professor doutor Paulo Roberto Monteiro de Araújo. Seus pareceres pontuais ofereceram um norte no momento do desespero.

Em especial, expresso meu reconhecimento pela dedicação incansável dos meus pais, também professores, – os meus primeiros – enquanto procurei dar sentido à minha pesquisa e carreira docente.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é relacionar as decisões criativas tomadas pelos desenvolvedores de games à reação expressa pelo seu público consumidor. Com isto, pretende-se provar a tepretende-se de que os videogames são meios capazes de tornar mais estreita a relação entre o público geral e a arte. Para tal, serão contextualizados alguns dos conceitos relativos à própria arte, aos games e à complexidade. Finalmente, serão analisados processos de desenvolvimento de games, segundo a narrativa de profissionais da área, o que se dará a partir de uma generalização proposta pela descrição de uma metodologia especifica e do estudo de três produtos distintos presentes no mercado.

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ABSTRACT

The purpose of this work is to relate the projectual decisions made by game developers to the reaction expressed by its consumers. With this, it’s intended to prove the thesis that videogames are mediuns able to bring the relationship between general public and art closer. This will be done by contextualizing some of the concepts of art itself, games and complexity. Finally, game development processes will be analyzed, according to the narrative of professionals, which will take place from a generalization proposed by the description of a specific methodology and a study of three different products that can be found on the market.

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SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO ... 11

II. ARTE ... 13

1. Três paradigmas da arte ... 14

a) O paradigma da funcionalidade... 16

b) O paradigma da arte para poucos ... 24

c) O paradigma da exibição ... 29

III. GAME ... 47

1. Três paradigmas dos videogames ... 60

a) O paradigma da diversão ... 60

b) O paradigma do sucesso ... 63

c) O paradigma da originalidade ... 66

II. PROBLEMA - O videogame enquanto meio artístico ... 75

III. HIPÓTESE - O videogame como arte pautada pela complexidade ... 78

1. Complexidade ... 79

2. Emergência ... 86

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a) A complexidade pela Estética ... 96

b) A complexidade pela Dinâmica... 99

c) A complexidade pela Mecânica... 101

IV. PROCESSO DE CRIAÇÃO ... 104

1. Conceituação ... 115

2. Pré-produção ... 121

3. Produção ... 132

4. Pós-produção ... 143

V. ANÁLISE – O processo de projetar experiências ... 152

1. Castlevania Lords of Shadow ... 153

2. Sunset ... 170

3. Shiny ... 186

VI. CONCLUSÃO ... 193

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I. INTRODUÇÃO

O estudo da arte, no campo científico-acadêmico, quase sempre se apresenta como um desafio que não pode ser aceito sem alguma gravidade. Enquanto sabemos que a elaboração de uma tese de doutorado implica na adoção das especificidades metodológicas que orientam o raciocínio científico, – o que é necessário, diga-se de passagem, para conferir densidade e estrutura aos estudos realizados – por outro lado, paira sobre o pesquisador da área de humanas a sombra da redução do significado em função da compreensão técnica. Algo inaceitável para os que têm por seu objeto de pesquisa o imaterial, do qual se faz a arte.

Neste trabalho, pretende-se provar a tese de que os videogames são meios capazes de tornar mais estreita a relação entre o público geral e as diversas formas de arte encontradas no contexto contemporâneo. Esta tese, se comprovada, tem por objetivo principal fomentar o discurso da aceitação artística dos videogames enquanto meio (em lugar de defende-lo enquanto suporte determinante para existência ou não de uma artisticidade), haja visto que estes solapam a própria concepção do que é defendido qualitativamente como arte por determinados grupos formados, principalmente, por acadêmicos e críticos especializados. Ainda, pretende-se relacionar as decisões criativas tomadas pelos desenvolvedores de games à reação expressa pelo seu público consumidor.

Para tal, a partir de uma metodologia que converge os pensamentos Karl R. Popper e Thomas Kuhn, inicialmente será trabalhada uma abordagem hipotético-dedutiva respaldada por um processo de desconstrução paradigmática. Partindo de um levantamento bibliográfico, serão contextualizados paradigmas relativos aos campos das artes e dos videogames. Estes modelos podem representar o pensamento de uma época ou a expressão do conhecimento popular, o que nos é relevante se pensarmos no papel do consumidor como fruidor pertencente a ambas as situações. Tais paradigmas serão levantados e rebatidos segundo o propósito desta tese, a qual será devidamente separada em segmentos pontuais que facilitarão o acompanhamento do raciocínio que será conduzido.

Em decorrência de trabalhos anteriores que vêm responder a esta questão dos jogos como arte, - embora não de maneira frequente e contundente no território nacional – se evitará discorrer sobre um assunto já debatido. Para que se mantenha o foco nas relações estabelecidas entre público, produtor e objeto produzido, parte-se da premissa que os videogames sejam

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considerados como expressões artísticas. Embora possa parecer óbvio, é válido o reforço no sentido de que, ainda que os videogames possam ser considerados como expressões artísticas, nem todos o serão apenas em decorrência de se constituírem enquanto este meio. Como, da mesma forma, pode-se afirmar que a escultura é uma forma de arte, embora nem todo mármore talhado o seja.

Apresentados os conhecimentos prévios acerca da temática que se desenrola, estabelecido o problema e a conjectura sob a forma da solução hipotética, veremos métodos particulares ao desenvolvimento de games – como é o caso do MDA Framework. Estabelecido este embasamento, será realizada a análise dos processos de desenvolvimento apresentados por produtores – através de documentações disponibilizadas ao público – em diferentes situações: Primeiramente, veremos o processo de desenvolvimento do título Castlevania: Lords of Shadow, desde o histórico da franquia até o lançamento deste que visava ser o produto que expandiria a abrangência do público ocidental. Em seguida veremos como se deu a criação de Sunset, um game produzido por dois artistas que pretendiam aplicar os preceitos de seu manifesto artístico à produção técnica. Por fim, conheceremos a trajetória de Shiny, um produto brasileiro de iniciativa independente e autofinanciada.

Entendemos que, segundo Lakatos e Marconi (2003) sobre o pensamento de Popper, a ‘confirmação’ de uma hipótese seja impossível de se atingir dado o fato de que seria necessário acumular, comparar e analisar todos os casos do presente, do passado e do futuro para que houvesse a certeza de uma única verdade. O uso do termo ‘corroboração’, parece-nos mais plausível e em concordância com o espírito da academia, pois este entende que – no momento da investigação científica – não foi descoberto um caso concreto negativo, embora tome conhecimento que, a qualquer momento, pode surgir um fato que invalide a hipótese apresentada. Assim tem ocorrido na história da ciência e assim se caracteriza o próprio ambiente acadêmico.

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II. ARTE

A subjetividade expressa um conceito que foge à interpretação. Como definir logicamente, algo que – mesmo que se paute pela técnica, ainda que subentenda um método - se constrói no campo do sensível?

O conceito de arte já foi exaustivamente debatido em diversos momentos, pelos mais variados ângulos: como parte de uma historiografia das obras, como uma extensão da vivência pessoal dos artistas ou mesmo por meio da chamada ‘sociologia da arte’. Existe, entretanto, um problema de compatibilidade dessas abordagens, pois a história das obras de arte não vem a explicar do que se trata a arte propriamente dita. Bem como a visão biográfica dos artistas, embora auxilie na compreensão da elaboração de suas respectivas obras, não define o que as torna, de fato, ‘arte’. Quanto à sociologia, buscando compreender os fenômenos sociais nos quais a arte se insere, delimita-os e formula questões que partem para uma solução quantitativa e impessoal. Ainda que tracem um panorama importante para a compreensão de contextos e reverberações interpretativas por parte do povo, estes esforços podem ser vistos como uma simplificação do real significado da ‘arte’.

Sabendo que não existe consenso nessa definição, foi selecionada para menção neste trabalho a visão – no campo da filosofia – de Jacques Rancière (2005), em especial no que diz respeito ao seu posicionamento na transcrição “Da partilha do sensível e das relações que estabelece entre política e estética”. O autor considera que:

A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. É a partir dessa estética primeira que se pode colocar a questão das “práticas estéticas”, no sentido em que entendemos, isto é, como formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que “fazem” no que diz respeito ao comum. (2005, p.17)

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Recorrendo à Platão para destacar três maneiras a partir das quais a arte pode ser praticada (signos mudos, superfície dos signos que seriam como pinturas e espaço do movimento dos corpos), Rancière nos conduz ao questionamento de como esta pode ser percebida no sentido comunitário. Estas formas definiriam, então, o modo como as obras fariam política independentemente das intenções ou ideologias que as regessem (2005). São paradigmas que, segundo o autor, postos no contexto do século XIX e início do XX se transformariam radicalmente, já que os signos sofreriam um entrelaçamento:

Pensemos, por exemplo, no papel assumido pelo paradigma da página sob suas diferentes formas que excedem a materialidade da folha escrita: temos a democracia romanesca, a democracia indiferente da escrita, simbolizada pelo romance e seu público. Mas temos também a cultura tipográfica e iconográfica, esse entrelaçamento dos poderes da letra e da imagem, que exerceu um papel tão importante no Renascimento e que vinhetas, fundos de lâmpada e inovações diversas da tipografia romântica ressuscitaram. (RANCIÈRE, 2005, p. 20)

O mesmo vale para a quebra com a bidimensionalidade (‘plano’) na intenção tridimensional das obras renascentistas, de certo modo corrompendo o preceito do ‘plano’ platônico como algo ‘não vivo’.

Recorrentes, as três formas apresentadas por Platão, não mais dariam conta de abranger todos os modos dos fazeres artísticos onde as figuras da comunidade se posicionariam esteticamente, entretanto estas importam para tornar visível a relação entre a política e a estética que nos interessa particularmente para a compreensão de nossa problemática.

1. Três paradigmas da arte

Para melhor compreender a natureza sensível e estabelecer a problemática do relacionamento existente entre esta e uma política, há que se apresentar os modelos que – num determinado tempo, senão num espaço próprio – cuidaram para que fosse preservada uma aura de misticismo, afastando do cotidiano e da intimidade este e outros saberes subjetivos.

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Antes de mais nada, todavia, há que se definir com clareza com que carga concreta estamos lidando ao falar dos ‘paradigmas’. Diria Thomas Kuhn (2006) que se deve considerar como a própria história descreve especificidades estabelecidas como regras consolidadas e aceitas num determinado momento. O público em geral possui uma visão, em geral adaptada de um paradigma que pode ser tido como global, sob a qual vive, trabalha e estabelece suas pesquisas.

Cientistas podem concordar que um Newton, um Maxwell ou um Einstein produziram uma solução aparentemente duradoura para um grupo de problemas especialmente importantes e mesmo assim discordar, algumas vezes sem estarem conscientes disso, a respeito das características abstratas específicas que tornam essas soluções permanentes. Isto é, podem concordar na identificação de um paradigma, sem entretanto entrar num acordo (ou mesmo tentar obtê-lo) quanto a uma interpretação ou racionalização completa a respeito daquele. (KUHN, 2006, p. 68-69)

Que a identificação de um problema e o estabelecimento de um paradigma são essenciais para a evolução da pesquisa, qualquer que seja sua área de desenvolvimento, não há dúvida. Existe, entretanto, uma diferenciação crucial quando abordamos paradigmas no âmbito das Ciências Humanas ou das Artes: Enquanto paradigmas de áreas como as da Física ou da Química se constroem por meio de um processo lógico de experimentação pautado por mecanismos de controle, que pode ser replicado para a confirmação do resultado esperado, – o que pode, inclusive, conferir este caráter de ‘permanência’ a que Kuhn se refere – no campo da subjetividade, a tentativa de estabelecer um método lógico, por si só, pode ser bastante ingrata. Mesmo nas Ciências Sociais, onde existe a generalização, é possível a realização de pesquisas de campo que trabalhem com a coleta de dados concretos, levando a resultados que – ao menos num primeiro momento – possam ser confirmados pela repetição de processos guiados pelos mesmos indicadores a serviço do pesquisador original, tais como os recortes por região, faixa etária, classe social, bem como a preocupação com a seleção de amostragem adequada.

Em se tratando da arte, são estabelecidos modelos teóricos que podem ser pautados pelo contexto histórico no qual estes se instituem, - motivo pelo qual vemos a tentativa de se explicar o que é arte com base numa historiografia das obras – e/ou pela linha ideológica de grupos que aceitam um determinado estilo como oficial – como ocorreu com a própria arte clássica e seu preceito da arte ‘Bela’ e ‘Moral’.

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Por se tratarem de produtos oriundos – principalmente, embora não exclusivamente – de uma elaboração subjetiva, tanto os jogos, quanto (ou enquanto) objetos estéticos de qualquer ordem, estão sujeitos ao julgamento do senso comum. O ‘juízo de gosto’ longe de ser visto como um problema, pode ser considerado, sim, como uma consequência natural diante de qualquer coisa, principalmente produtos artísticos. Não raro, porém, este juízo que foge às amarras do criticismo consciente, ganha força suficiente para se consolidar em um paradigma que pode vir carregado de pré-concepções ideológicas que devem ser problematizadas e, quase sempre, atualizadas em função do novo cenário vigente. Assim sendo, buscaremos a compreensão e a atualização dos paradigmas referentes àquilo que chamaremos de um modo abrangente – próprio do julgamento comunitário a que queremos aludir – ‘arte’ para, no capítulo posterior darmos lugar a semelhante indagação no terreno dos videogames.1

a) O paradigma da funcionalidade

Na tentativa de compreender e explicar a arte, uma das principais abordagens utilizada na historiografia da arte foi a associação entre as obras (em momentos históricos diversos) e alguma função específica para sua existência. Esta prática se mantém nos dias de hoje, em especial no ambiente da educação superior, sendo que um dos trabalhos mais respeitados foi o desenvolvido por Ernst Hans Josef Gombrich (1979). Neste compêndio sobre “A História da Arte”, Gombrich considera que o início da arte teria se estabelecido ainda na Pré-História, associado à necessidade humana de expressar sua religiosidade, enquanto desenvolve uma linha do tempo relacionando a história das obras e dos artistas à funcionalidade, explícita ou não, do processo de criação.

Se aceitarmos o significado de arte em função de atividades tais como a edificação de templos e casas, realização de pinturas e esculturas, ou tessitura de padrões, nenhum povo existe no mundo sem arte. Se, por outro lado, entendermos por arte alguma espécie de belo artigo de luxo,

1 Daqui por diante será referido como ‘videogame’ - ou simplesmente ‘game’ na abreviação comum à jogadores e desenvolvedores brasileiros - o jogo de entretenimento eletrônico, independentemente da plataforma de seu funcionamento (seja ela o computador pessoal, computador portátil, tablet, smartphone ou console de qualquer marca e origem). No que diz respeito à forma escrita, embora sejam corretas tanto a forma separada (vídeo game), quando a apresentação num único termo, parece mais coerente - em se tratando da nomenclatura que representa um meio muito maior que a mera soma de suas partes - a segunda utilização. Será tratado por ‘jogo’ quando se buscar um sentido mais abrangente, podendo se tratar de produtos analógicos ou digitais.

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algo para nos deleitar em museus e exposições, ou certa coisa especial para usar como preciosa decoração na sala de honra, cumpre-nos entender que esse uso da palavra constitui um desenvolvimento muito recente e que muitos dos maiores construtores, pintores ou escultores do passado nunca sonharam sequer com ele. [...] Todos sabemos que existem belos edifícios e que alguns deles são verdadeiras obras de arte. Mas dificilmente existirá uma construção no mundo inteiro que não fosse erigida para um fim particular. Aqueles que usam esses edifícios como lugares de culto ou de entretenimento, ou como residências, julgam-nos em primeiro lugar e acima de tudo por padrões de utilidade. (GOMBRICH, 1979, p. 19)

O autor não se refere apenas às obras da atualidade, mas faz referência a períodos anteriores da história: “No passado, a atitude para com pinturas e estátuas era frequentemente semelhante. Não eram consideradas meras obras de arte, mas objetos que tinham uma função definida.” (GOMBRICH, 1979, p. 20). Mostra preocupação detalhista em pormenorizar o contexto no qual o artista vive e constrói a obra de arte, dirigindo o entendimento do estudioso pelo cenário político e socioeconômico onde há idealização e apresentação.

Vemos que para entendimento da obra e seu processo de construção, a contextualização continua essencial. Preocupa-nos, todavia, o viés excessivamente pragmático que pode advir desta visão funcionalista, num momento em que a arte sofre com uma desvalorização perante outras importâncias que podem ser vistas como necessidades básicas inerentes ao ser humano. Existe, atualmente, uma crise global que é não apenas econômica, mas também política (obviamente) e que envolve questões fronteiriças urgentes, tanto no montante territorial, quanto no dos limites daquilo que nos faz humanos. Enquanto enfrentamos uma crise global que nos faz pesar o que nos une e o que nos separa de nossos vizinhos, repensando o caminho que estamos trilhando, parece tentador nos agarrarmos a uma explicação funcionalista da arte para mostrar a importância de sua presença. Porém, talvez seja justamente quando a humanidade parece falhar em sua lógica, que a arte surja para nos lembrar do que somos feitos. Em escalas de abstração e de absorção diversas, a arte está presente nas nossas vidas. Algumas vezes de maneira tão intrínseca que nós sequer paramos para refletir sobre ela. Podemos dizer que é justamente pelo fato de que os sentimentos a respeito de uma obra são desencadeados de maneira subjetiva, que parece-nos difícil racionalizar a arte. Ao tentarmos fazê-lo, – se este for mesmo o caso – devemos ter cautela, pois nos arriscamos a adotar uma postura reducionista que poderia ser danosa. É verdade que a arte provoca reações emocionais diversas que podem ir da apreciação à repulsa, entretanto, há muito mais por trás do

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planejamento e desenvolvimento de uma obra do que sensações puras. Qualquer musicista poderia descrever a complexa matemática presente na divisão métrica existente nos compassos, da mesma forma que um pintor dedica-se a exercícios não menos trabalhosos para compor uma tela com a sensação de profundidade oferecida pela perspectiva. A arte possui, sem sombra de dúvida, sua parcela técnica e racional.

Isto posto, não se pretende negar o caráter técnico e racional presente em algumas das formas de expressão artística, - como é o caso da música, cuja composição depende do conhecimento sobre métrica e harmonia - mas sim alertar para o uso da cautela ao se associar arte e função. Para isso, vamos recordar alguns dos pontos críticos tocados por Walter Benjamin a respeito da chamada ‘arte engajada’.

Cabe aqui um parêntese quanto à utilização, neste trabalho, do autor cuja tese referente às ‘artes mecânicas’ Rancière taxou de “duvidosa” (2005, p. 45). Enquanto Rancière afirma ter aproximado um paradigma científico do que chama de um ‘paradigma estético’, ao se referir à noção das artes mecânicas, Benjamin teria reduzido as

[...] propriedades estéticas e políticas de uma arte a partir de suas propriedades técnicas. As artes induziriam, enquanto artes mecânicas, uma modificação de paradigma artístico e uma nova relação da arte com seus temas. Essa proposição remete a uma das teses mestras do modernismo: a que vincula a diferença das artes à diferença de suas condições técnicas ou de seu suporte ou medium específico. (RANCIÈRE, 2005, p. 45-46)

Veremos, adiante, como Benjamin aponta para o entedimento do artista como sujeito presente numa estrutura política, social e econômica. Portador de ‘um certo nível’ de autonomia, mas não de liberdade total como podemos ser levados a crer em se tratando das expressões subjetivas. Quanto à constituição de um veículo através do qual a arte pode ser feita – e neste trabalho tratamos da relação direta entre arte e tecnologia – consideramos que Rancière teria ido além e revisto, ele próprio, o paradigma estabelecido por Benjamin. Como posto por Rancière:

É preciso, no meu entender, que se tome as coisas ao inverso. Para que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas ou antes, ao

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indivíduo anônimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto é, devem ser praticadas e reconhecidas como outra coisa, e não como técnicas de reprodução e difusão. (2005, p.46)

Tratamos da arte, acima de qualquer funcionalidade que lhe tenha sido imposta histórica ou politicamente. Interessa-nos dar, com Rancière, este passo a mais na estipulação da arte independente de seu suporte. Vejamos, porém, algumas das questões levantadas por Benjamin ao propor a compreensão do autor como produtor na conferência de 27 de abril de 1934 no Instituto para o Estudo do Fascismo.

Retomando a República de Platão, Benjamin nos lembra da exclusão dos poetas pelo bem da comunidade e do Estado. Numa comunidade “perfeita”, a presença e participação destes seres subjetivos, seria supérflua e até mesmo prejudicial. Partindo desta observação, Benjamin indaga sobre a autonomia do artista, sua liberdade de criação. Nos termos de hoje, podemos pensar que o artista teria liberdade ilimitada de expressão. Tal consideração seria errônea. Como na observação do autor, ainda hoje o artista sofre pressão social para decidir “a favor de que causa colocará sua atividade” (BENJAMIN: 2012). Por mais autônomo que se mostre este ser, o artista encontra-se caracterizado dentro de uma estrutura política, social e econômica que lhe cobra um posicionamento pessoal. Este posicionamento - por maior que seja o desejo de neutralidade do artista, com relação às suas obras – é transmitido ao produto final que entrará em contato com o fruidor. Para Benjamin, forma-se uma dicotomia entre tendência e qualidade. Existiria a suposição comum – refutada prontamente pelo autor – de que a tendência correta superaria a importância da qualidade. Todavia, a solução estaria no entendimento de que toda obra de tendência justa deve, necessariamente, ser portadora de todas as outras qualidades.

Para provar sua suposição, o autor parte do princípio que as relações sociais são pautadas pelas relações de produção. Se uma obra encontra-se de acordo com as relações produtivas estabelecidas pelo espírito de uma época, esta obra pode ser dita reacionária. Por sua vez, se uma obra é incompatível com estas relações e propõe algum tipo de transformação, ela é tida como revolucionária. Independentemente do posicionamento de uma obra quanto às relações produtivas de uma época, é preciso compreender – antes – como esta obra se situa dentro desta mesma relação. No que diz respeito às obras literárias, Benjamin faz uma análise materialista quanto à técnica adotada, em especial no jornalismo. A questão técnica abordada

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seria, segundo o autor, mais interessante do que o debate dito estéril da forma versus conteúdo, ao que se faz uma exemplificação com a obra dadaísta:

Pense-se no dadaísmo. A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova de autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura. (BENJAMIN, 128)

Para o autor, a técnica pode ser utilizada para produzir trabalhos que abasteceriam o aparelho produtivo vigente sem transformá-lo. Ainda que fossem produzidas obras de conteúdo político revolucionário, se estas obras não apresentarem qualidades técnicas que potencializem mudanças, estas mesmas obras apenas alimentariam as relações de produção. A técnica do dadaísmo revolucionou, por levantar o questionamento quanto à autenticidade de uma obra composta por elementos virtualmente sem valor dispostos num ambiente de reflexão. Por outro lado, a exemplo da fotografia que glamouriza o desolamento da miséria, se propõe a fruição do objeto que seria – por outras técnicas – de denúncia e demanda de mudanças sociais. A solução para este impasse, tanto na literatura, quanto na fotografia ou na música, seria a fusão entre técnica (ou forma produtiva) e conteúdo. O fim da dialética entre forma e conteúdo.

Para moldar uma nova maneira de produção, o autor deveria proporcionar a outros que se tornem também produtores. Benjamin vê, assim, a necessidade de colaboração por parte dos leitores de um texto literário ou os espectadores de uma obra. Ora, para nosso momento tecnológico isso não é nenhum mistério, – haja vista a configuração participativa amplamente presente desde a web 2.0, na qual o usuário torna-se também um autor de seus próprios conteúdos – entretanto, pode-se ver em Brecht um primeiro esboço, no campo do teatro, de semelhante gênero.

A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infraestrutura, necessitou de mais de meio século para tomar válida a alteração das condições de produção, em todos os domínios da cultura. Só hoje se pode indicar sob que forma isso sucedeu. A essas

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indicações colocam-se certas exigências de prognóstico. Mas estas exigências correspondem menos a teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de poder, para não falar da sociedade sem classes, do que a teses sobre as tendências de evolução da arte, sob as condições de produção actuais. (BENJAMIN, 1955)

Benjamin observa, na capacidade da reprodução de obras, o fenômeno que teria alterado as condições de produção e de consumo da própria arte. Para o autor, a reprodução, em si, nada tem de novo, já que – pelos mais diversos fins – as obras de arte vêm sendo reproduzidas desde o período clássico, como ocorreu com os gregos e seus processos de fundição do bronze e cunhagem de moedas. Entretanto, a produção de bens para o consumo massivo – ainda que este consumo em massa sequer pudesse ser comparado ao que hoje consideramos como tal – alterou, ao longo do curso da história, as relações entre produtores, obras de arte e consumidores.

A caráter de exemplo, ele cita as mudanças ocasionadas na literatura graças à evolução do processo de impressão. Acompanhando a impressão, as artes gráficas viriam “ilustrar o cotidiano”, para serem gradativamente substituídas pela fotografia, algum tempo depois. A fotografia – e o cinema – capturaria o olhar à velocidade de um clique, acompanhando a fala e o pensamento do artista com o domínio sobre esta nova técnica. As técnicas de reprodução, pouco a pouco, conquistariam uma vertente artística própria, como que incapazes de se relegarem unicamente a remontar a historiografia das obras de outros tempos. Perante as técnicas artísticas tradicionais, as técnicas de reprodução jamais deixariam de guardar características únicas que – ao contrário de servirem de justificativa para afastá-las do campo das artes – modificariam a definição de arte, na medida em que instituiriam uma nova linguagem artística.

Para Benjamin, o primeiro rompimento das obras de arte baseadas nas técnicas de reprodução, ocorreria com referência ao conceito de autenticidade tradicionalmente consolidado. Se antes era possível determinar a autenticidade de uma obra artística pela sua existência única, pela sua composição e até mesmo pela ação do tempo sobre o seu suporte, no que diz respeito à fotografia – por exemplo – pouco se pode dizer a esse respeito. Na fotografia a autenticidade não é aquela do objeto fotografado, do papel no qual é feita a revelação ou mesmo do tipo de câmera utilizada para captar a incidência de luz sobre o tema pretendido. A autenticidade estaria no olhar do artista, na escolha de determinado enquadramento, no

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momento capturado e congelado. Estaria na capacidade que a técnica traz de observar até mesmo aquilo que não pode ser observado a olho nu, de conferir ao objeto em cena propriedades que vão além do que ele é capaz de oferecer naturalmente.

Benjamin culminaria dizendo, então, que o que falta à obra de arte na era da reprodutibilidade técnica é o conceito de aura. A reprodução “libertaria” o objeto reproduzido do seu domínio tradicional ao trazê-lo para um “local de ocorrência em massa”. A reprodução atualizaria o objeto reproduzido, trazendo-o para um novo contexto – não sem produzir um abalo no conceito, até então tradicional, de arte – e para uma nova relação entre obra e fruidor. Neste momento, para Benjamin, a representação máxima destas mudanças seria o filme – com o potencial para mudanças sociais das mais significativas e, por outro lado, portador virtual da destruição de uma herança cultural tradicional. Tivesse o autor entrado em contato com os videogames, grande seria a possibilidade de considerá-los um passo adiante das potencialidades fílmicas (tanto criativas, quanto destrutivas).

Ora, nada de mais natural nesta evolução do conceito de arte, dado que o autor nos alerta para as mudanças na percepção sensorial em decorrência da existência coletiva da humanidade. Esta organização do meio graças à percepção sensorial seria condicionada tanto naturalmente, como historicamente. Não apenas a arte sofre alterações na sua constituição ao longo dos períodos históricos, mas também sua percepção. Para Benjamin, se pudermos compreender as alterações no meio – médium – com o qual atua nossa percepção, como indicadores da decadência do conceito aurático, seria possível entender também as condições sociais da decadência à qual somos contemporâneos. Se uma obra de arte surgiu – no período clássico, digamos – com propósitos ritualísticos, séculos mais tarde a interpretação feita desta mesma obra seria diferente do proposto na sua elaboração inicial. Não obstante, sua singularidade – ainda que passível de múltiplas interpretações – constitui sua aura. A fotografia seria, assim, o primeiro meio de reprodução realmente revolucionário, fazendo despontar questionamentos que seriam respondidos por uma nova postura doutrinária, uma teologia da arte pela arte, o ideal de que a arte deveria ser pura, sem função social ou qualquer outra função. Vale lembrar que, independente da opinião que possamos formar a respeito de uma “arte engajada”, ao longo da história, a arte teve diversas funções sociais, desde seu caráter – como anteriormente mencionado – ritualístico, até a busca de uma expressão individual e melhor compreensão do sujeito no momento atual. Dado que a função da arte pode ser intrínseca, seria questionável a própria doutrina de uma arte pura, que poderia ser vista como

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uma tentativa de responder de maneira segregadora à crise provocada pela inserção de novos processos tecnológicos no meio artístico. A reprodutibilidade técnica da obra de arte teria o poder de romper com a questão da autenticidade, de tal modo, que a função social da arte seria liberta de sua ritualística – ou mesmo da construção mítica do gênio artístico - para adentrar no terreno político, trazendo o poder e o papel de produtor um pouco mais próximos do público em geral. De outro lado, a facilidade na recepção das obras de arte a partir da reprodução também ajudou a desconstruir as características de culto das obras de arte mantidas ocultas, ou de exposição limitada. Onde o acesso se faz democrático, ocorre uma desmistificação no modo como é apreciada a obra de arte.

O autor observa que a controvérsia, ocorrida no século XIX, quanto ao valor artístico da fotografia em oposição à pintura, embora não fizesse mais sentido, pareceu se repetir no século XX quando se deu a exploração da linguagem cinematográfica. Eis que, em pleno século XXI, incorre-se no mesmo erro ao se falar do videogame. A cada ciclo, a cada nova tecnologia lançada ao campo das artes, é necessário compreender que o modo que definimos a arte também se atualiza.

Se as mudanças ocorridas entre a relação do artista com o público forem consideradas como a principal causa para a perda da aura do filme, em comparação à peça teatral, com os videogames esta relação é retorcida a ponto da quarta parede tornar-se extremamente fina e transparente. O ator foi substituído pelo avatar,2 – há casos, ainda, em que

o personagem do jogo não é visto, mas substituído por meras extensões de seu corpo a reagir em decorrência dos impulsos do jogador, como nos jogos em primeira pessoa - assim, enquanto ‘sujeito’, este não pode mais se adaptar às reações do seu público, tão pouco pode ignorar passivamente o distanciamento proporcionado pela tela impassível do cinema ou do televisor. Por mais que o avatar tome emprestadas as características físicas, os movimentos ou a voz de um ator, ele não reflete mais uma persona única, mas sim torna-se uma ferramenta para o desenrolar da história, onde o jogador torna-se também agente3. Já no âmbito da criação, somos

2 O avatar é a representação virtual do jogador no ambiente proporcionado pelo jogo.

Pode se tratar de uma imagem bi ou tridimensional, de uma presença em terceira ou primeira pessoa, personalizável ou não, representando as interações que o jogador realiza para com o jogo.

3 O conceito de “agência” no campo dos videogames é recorrente e tem se popularizado

nos últimos anos. Originalmente “player agency”, diz respeito à capacidade que o jogador tem de interagir de maneira significativa no ambiente oferecido pelo game.

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lembrados no texto de Benjamin que a situação da escrita sofreu mudanças com relação ao número de autores em comparação ao número de leitores. Com a popularização da leitura e expansão da imprensa, o número de escritores – ainda que informais – cresceu consideravelmente. A diferenciação entre autor e público tornou-se mais e mais difusa. Na realização dos filmes, o mesmo ocorreu. Agora observamos o mesmo fenômeno com os jogos de videogame e a cena independente de criadores, que assumem a autoria e desenvolvem produtos que exploram diferentes propostas de arte, narrativa e entretenimento.

Com esta amplificação na difusão da cultura e da arte, bem como a popularização de seus meios de produção, passamos ao segundo paradigma da arte que nos interessa abordar: o dar arte para poucos.

b) O paradigma da arte para poucos

Vimos como o conceito de arte se forma em decorrência do contexto. Para compreender a obra, parece óbvio dizer – a essa altura – quão importante é a necessidade de trazer uma contextualização social sobre os signos, discursos e linguagens característicos de sua elaboração. Por essa razão é importante compreender as raízes do mito sobre a existência de um ‘gênio artístico’, bem como a constituição do que pode ser entendido como o ‘gosto’.

Benjamin (1994), em observação da obra de Charles Baudelaire aponta para o tom crítico adotado no século XIX sobre a observação das multidões que se formavam nas mais novas metrópoles pós Revolução Industrial: o lírico, confrontado com a expressão máxima do capitalismo, teria se impressionado com a inquietação da massa, composta por indivíduos de costumes e fazeres diversos. A dinâmica de suas relações interpessoais se alterando em função das novidades tecnológicas e dos meios de transporte - que diria ele se nos visse tomando os metrôs, imersos em nossos smartphones? É no confinamento dos espaços abarrotados, na forçosa convivência e proximidade com o semelhante, que o indivíduo encontra-se diante de suas próprias fragilidades. Entre as observações de Baudelaire e Balzac, surge a figura do fisionomista. Aquele que seria capaz de identificar um gênio entre a multição.

É claro que, antes destas observações, a figura do gênio artístico vinha se construindo e se reforçando sobre os estereótipos da excentricidade e do comportamento retraído, em muito graças aos interesses da burguesia. Independentemente do trabalho de

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pesquisa, do esforço pelo domínio da técnica, ainda hoje, somos confrontados com a defesa ferrenha (em especial por parte do senso comum) acerca do ‘dom’. Daquilo que tornaria o gênio nascido como alguém especial, eliminando-se o seu contexto, a influência familiar e social de seu desenvolvimento pessoal, bem como sua diligência no trabalho. O que pode parecer uma ‘opinião’ inofensiva, é uma construção com um peso social que apóia algo de gravidade: ‘o gênio é nascido especial, diferente’. Sob esta premissa, ‘alguns nascem melhores que outros’. Alguns ‘nascem para ser mais do que outros’. Uma ideia que conduz ao conceito de superioridade de uns sobre outros que, infelizmente, já sabemos onde vai dar.

A defesa de uma ‘arte para poucos’ não passa apenas pela questão da genialidade na elaboração, mas também pela formação de um gosto que vem fundamentada ideologicamente por um acordo estético.

Para Luc Ferry (1994, p.22) o entendimento da estética passa pela compreensão do que poderia ser chamado simplesmente de “gosto”. O autor parte da tese de que as relações estabelecidas com as obras teriam sofrido, ao longo da passagem do tempo, um retraimento. Assim, a obra contemporânea seria aquela mais fortemente dependente da interpretação individual do fruidor:

[...] ao passo que, para os Antigos, a obra é entendida como um microcosmo – o que permite pensar que exista fora dela, no macrocosmo, um critério objetivo, ou melhor, substancial do Belo -, para os Modernos, a obra só ganha sentido em referência à subjetividade, vindo a se tornar, para os Contemporâneos, expressão pura e simples da individualidade: estilo absolutamente singular que não quer ser mais em nada um espelho do mundo, mas sim criação de um mundo, o mundo no interior do qual se move o artista e no qual temos, sem dúvida, permissão para ingressar, mas que de modo algum se impõe a nós como um universo a priori comum. (FERRY, p.23)

Atente-se para esta ideia da “criação de um mundo” pelo artista, quando o que se discute neste trabalho são especificamente obras que propõem a construção de espaços virtuais nos quais se propõem desafios para aqueles que se interessarem neste tipo de experiência. Assim, se o gosto na antiguidade socrática era baseado numa ideia do ‘Belo’ harmônico e

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ordenado, o que se apreende de boa parte das obras contemporâneas é que este conceito não mais se aplica. O conceito de ‘Belo’ tornou-se subjetivo, e a apreciação estética passou a se fundamentar muito mais na experiência proposta pela obra do que na perfeição de sua realização técnica.

Ainda, o autor vê a história da estética como a história da subjetividade, quando a visão e representação de um mundo divinal se retiram para dar lugar ao palpável e humano, ao multifacetado. Seria conquistada, então, uma autonomia do sensível, ao longo de cinco momentos.

Sob certos aspectos, tudo se passa como se a estética começasse onde a filosofia contemporânea parece encontrar seu ponto culminante: pela questão do relativismo. Graças às criticas marxiana e nietzscheana da metafísica, sob a influência – também -, das ciências sociais, habituamo-nos progressivamente com a ideia de que não existem valores em si, intemporais e eternos. Consideramos de bom grado toda norma, toda instituição intelectual, moral ou política, como o produto de uma história cujo sentido a reconstrução supostamente esgota. É pouco dizer que vivemos hoje uma “crise do universal”. (FERRY, p. 43-44)

O autor inicia propondo um momento ao qual chamou de “pré-história da estética”, delineada especialmente no período do século XVII pela oposição entre o classicismo, que atribui à arte a função de reproduzir com fidelidade a natureza, e a expressão do sentimento e das paixões humanas. Tal conflito perduraria ainda durante o século XVIII onde se enfrentariam as visões do cartesianismo (racionalista) e a pascaliana (ou sensualista). Seriam firmados os princípios do individualismo4, constituindo a primeira estética, através da qual se

daria o retraimento de uma visão pautada no divino para o campo do humano, numa autonomia da sensibilidade.

O segundo momento, então, consistiria no que foi chamado pelo autor de “momento kantiano”. Aquela recém-criada estética, estaria ainda ligada ao platonismo que atribui a

4 Anteriormente o autor deixa claro que, por “individualismo”, deve-se compreender um

conceito descritivo e sem juízo de valor que não se deve confundir com o “egoísmo”, mas sim diz respeito à relação dos indivíduos com o mundo.

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verdadeira beleza unicamente à verdade e ao bem, ao passo que Kant se libertaria do paradigma classicista que reduz o belo à ilustração desta verdade de temáticas enobrecidas. A beleza conquistaria, assim, substância própria, deixando de depender de representações externas à sua essência para buscar finalidade e autenticação.

Passa-se, em seguida, ao momento hegeliano. Neste, a autonomia conquistada pela sensibilidade em Kant, viria a sofrer, pois para Hegel o campo da estética voltaria a figurar como aquele no qual são elaboradas as ideias. Não se pode dizer que os ideiais do classicismo dos séculos XVII e XVIII tenham sido superados nessa releitura de uma arte voltada, uma vez mais, à manifestação da verdade, embora, para Hegel, seja caracterizada uma historicidade na construção artística, ainda que de consideração inferior perante os questionamentos ocorridos na filosofia. A construção do gênio cede lugar a um “sujeito absoluto” do qual apenas a própria filosofia poderia dar conta de compreender.

Paradoxalmente, o momento nietzscheano, tece relações com a proposição de Kant a respeito da autonomia do sensível. Reafirma-se a legitimidade da visão humana, contra o estabelecimento de uma divindade. Substitui-se o sujeito absoluto de Hegel pelo “sujeito cindido”, subjetivo, representativo do individualismo de Nietzsche. Este sujeito confronta o estabelecimento de uma verdade absoluta, pois apresenta a visão multifacetada das interpretações diversas. Nesse âmbito, nem mesmo o campo da filosofia poderia dar conta de captar tal realidade múltipla, sendo esta representação relegada à arte.

O momento a que chegamos seria, finalmente, o da “morte das vanguardas e advento da pós-modernidade”. Momento no qual deixa de existir a verdade por si mesma, para que se faça a construção de um mosaico de pontos de vista diversificados, antagonistas, característicos do sujeito cindido nietzscheano. No final do século XX, na política, na sociedade democrática e na arte, não há mais espaço para as vanguardas ou para as elites estéticas do século XIX, orientadas por uma linha ideológica estabelecida em consenso. O que passa a ter importância, nessa nova construção artística, é a figura do sujeito autêntico, muitas vezes contraditório, e sua relação com o mundo que o cerca – tal qual a maneira como aquele percebe e interpreta a este. Fecha-se o foco do retraimento temático no sujeito que, ao interpretar sua própria história e propagá-la para outrem, compreende melhor a si mesmo e ao seu papel social. Interessa-nos esta compreensão dos momentos definidos por Ferry, não para buscar um aprofundamento no terreno da historiografia e da filosofia da arte, mas sim para

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conhecermos as alterações propiciadas às relações entre a expressão artística e o sujeito. Do delineamento de uma estética, ainda que primordial, entre os séculos XVII e XVIII, à autonomia do sensível e centralização no sujeito cindido nietzscheano, a arte passou de representação do divino mediada pela verdade absoluta, a expressão e compartilhamento da visão de mundo pessoal. Partindo destas bases e complementado pelo apoio da tecnologia, temos o momento atual, com suas facilidades, tanto no que diz respeito aos saberes técnicos e ferramentais envolvidos na criação artística, quanto ao compartilhamento das obras.

Se na antiguidade, o ofício do artista era aprendido por meio de demoradas observações em meio a uma cadeia hierárquica que ia do pupilo ao mestre apadrinhado por mecenas da igreja ou da nobreza, atualmente a informação para formação do artista pode vir das mais diversas fontes. A experiência pessoal não pode ser mensurada. Embora a formação estrutural e acadêmica das artes ainda influencie o repertório artístico, bem como os conhecimentos a respeito de papéis sociais e históricos das artes, o artista pode se formar nas ruas, na indústria ou mesmo de modo autodidata. Nisto, não há novidade, porém nunca antes houve tamanha legitimidade nestes casos. Ainda, se a formação do artista clássico exigia conhecimentos sobre pigmentação, qualidade de materiais e suportes, bem como um investimento inicial no ferramental necessário para a realização de um trabalho adequado, atualmente a tecnologia fornece um ambiente de trabalho acessível a mínimo custo, ou mesmo sem custos, pelo recurso do software livre5.

Desnecessário seria dizer que esta democratização trouxe consigo o compromisso - praticamente obrigatório, diga-se de passagem – da inclusão digital do artista (como em qualquer outra categoria de profissão). É impossível desfrutar das informações ilimitadas, das

5 O movimento de software livre parte do princípio do compartilhamento de

conhecimento praticado pela inteligência coletiva que existe graças à conexão com a rede mundial de computadores. A proposta surgiu em meados da década de 80, quando Richard Stallman – então programador no laboratório de inteligência artificial do MIT (Massachusetts Institute of Technology) – tornou-se um ativista contra a proibição de acesso ao código fonte de softwares que, por sua vez, foram desenvolvidos graças ao conhecimento combinado de muitos programadores. O primeiro passo foi compilar e distribuir softwares livres, com o código-fonte aberto, para que os usuários pudessem acessar não apenas os programas gratuitamente, mas também os códigos que os compunham e – caso tivessem conhecimentos de programação – alterá-los conforme sua necessidade. Posteriormente, foi produzido um sistema operacional livre e desenvolvida uma Licença Pública Geral (GPL), também conhecida como copyleft, para garantir os direitos autorais de softwares, livros, músicas e imagens produzidas sob os preceitos do movimento, evitando a apropriação indevida por empreendedores oportunistas.

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redes profissionais e pessoais, das relações enriquecedoras para as quais a distância física não mais importa, sem antes dedicar parte de um tempo precioso na formação e “alfabetização” dentro deste mundo virtual. Um mundo onde forma e conteúdo dificilmente se distinguem e no qual se torna claro o dilema da complexidade abordado pelo pensamento de Edgar Morin e seus sucessores. No mais, um mundo onde o paradoxo entre coletividade e individualidade precisa encontrar um centro para existir harmonicamente.

c) O paradigma da exibição

Em seu trabalho “Cenário da Arquitetura da Arte”, a museógrafa Sonia Salcedo Del Castillo (2008) aborda, com desenvoltura crítica, o objeto de sua carreira. No prefácio do mesmo título, o professor doutor Agnaldo Farias, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, resume a construção do paradigma que nos interessa quando explica a transição que houve entre as paredes forradas de obras no século XIX e o padrão do “cubo branco” das décadas iniciais do século XX. Esta forma de exposição, supostamente neutra e acrítica, serviria à obra de arte no período modernista. Entretanto, com as mudanças na maneira como consumimos cultura, o espaço expositivo viu-se novamente diante de uma crise que demandava mudanças. A autora apresenta uma mudança de paradigmas da chamada “caixa branca” para uma “caixa preta”, o espaço expositivo visto como algo flexível, como ocorre na cena teatral. Apesar deste reconhecimento, a montagem de exposições, por vezes, – mais freqüentes do que gostaríamos - se sustenta com base num modelo ultrapassado, pautado quase que pela pura taxonomia. Aparentemente, com isso pretende-se demonstrar certo grau de legitimidade, ou seriedade, na transposição de obras e objetos para o ambiente museológico. Algo que já fora criticado no final da década de 60, como veremos no exemplo a seguir.

Com o propósito de questionar a institucionalização do sistema artístico, conta Castillo (2008) que Broodthaers teria criado uma obra de título Museu de Arte Moderna. Este museu sem visitantes, se dedicaria à categorização de objetos mundanos, sem valor real, organizados sistematicamente.

A proposta de Broodthaers revela-se como uma manifestação crítica a essa taxonomia a que todos os objetos são submetidos nos museus, uma

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vez que, em seu falso museu, ele incluíra toda sorte de objetos, artificialmente ordenados de forma semelhante à comumente adotada pelos museus. (CASTILLO, 2008, p. 208)

É interessante observar que o posicionamento criticado pelo artista continua sendo adotado, com sua sistematização a serviço da legitimação do que está dentro de um ambiente específico, entre paredes que separam supostas grandes obras das tais artes mundanas. A autora alerta:

Mas esse espaço tornou-se inadequado sobretudo para o conjunto de experiências artísticas que, justamente por questionarem esse espaço institucional da arte, criaram novos meios para sua veiculação, circulação e exibição pública. (CASTILLO, 2008, p. 209)

A ‘separação das obras selecionadas como dignas da exibição pública no espaço sacramental museológico’, o ‘direcionamento ao público seleto de freqüentadores destes espaços’. Já sabemos que, por mais que uma obra procure mostrar neutralidade, quando muito ela pode ser construída para acompanhar o contexto social e político no qual se insere, seguindo com seu fluxo. Já vimos com Benjamin que, se a obra não questiona o ambiente no qual surgiu, ela pode ser considerada como uma obra reacionária, enquanto, revolucionária é a obra que suscita mudanças que o artista julgue necessárias. A ideologia imagética de uma época seria, então, considerada positivista. A ideologia predominante de uma sociedade, representa como sua classe dominante vê o mundo. Portanto, a ideologia imagética subsequente deste posicionamento serve como modo de reafirmar esta visão de mundo positivamente. Diante deste panorama, temos que considerar que a maneira pela qual a obra é apresentada ao público também contribui com esse positivismo. Consequentemente, todo trabalho enaltecido como ‘obra prima’ por uma crítica que esteja a serviço da classe dominante nesse contexto, reafirma e está em comum acordo com a ideologia também em domínio. É somente quando de sua aceitação por esta classe, que cria-se o discurso justificador da sua diferenciação perante outras produções. Podemos ser tentados a acreditar que exista algum fator ligado ao ‘espírito’ de uma obra que o relacione àquele caráter eterno e atemporal ligado ao conceito das ‘Belas Artes’, porém, não nos deixemos enganar. Uma obra de arte é capaz de mudar sua natureza interpretativa com o passar do tempo – como já vimos, a obra perde seu papel como objeto de

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culto - tornando-se, deste modo, a representação de um conjunto de valores inteiramente novo. Clarificando, não é a obra propriamente dita que sobre alteração, mas o discurso que se cria sobre esta, a justificativa que a constrói e defende enquanto ‘obra prima’ se flexibiliza de maneira coerente com a política vigente.

Mesmo no caso dos videogames, com toda a polêmica envolvendo seu valor cultural e artístico, isto já ocorre. Observa-se, em particular, o reconhecimento inédito dos videogames como fenômeno cultural à parte, por meio das exposições que lhes são consagradas. Elas se multiplicaram nos últimos tempos, tanto na França – “MuseoGames”, no Conservatoire National des Arts ET Métiers (Cnam), “Game-Story”, no Grand Palais, “Joue le jeu”, na Gaîté Lyrique, “Jeux vidéo”, na Cité dês Sciences – quanto nas mais variadas localidades estrangeiras: “The Art of Video Games”, em Washington, o Computerspielmuseum, em Berlim, “Excellence in Design”, no Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York etc. (TRICLOT, 2014: p. 9)

Os videogames, vistos anteriormente como entretenimento vazio, são transpostos para o ambiente do museu onde ganhariam a categoria de ‘obras de arte’. Embora seja de extrema importância este reconhecimento dos videogames como parte de nossa cultura, bem como a abertura para discutir o valor artístico das obras surgidas neste meio, é preciso pensar criticamente este reposicionamento. Compreender o que ele nos diz. O videogame só pode ser analisado enquanto obra (artística ou não) quando posto em funcionamento, quando jogado. Ainda que estas exposições se utilizem, não raro, de recursos interativos para permitir aos visitantes uma breve experiência do jogo, este contato não substitui a relação construída entre jogo e jogador durante a fruição que ocorre no ambiente original para o qual este foi criado (seja no conforto do lar, ou nas casas de diversão – como é no caso dos arcades6.).

Estas exposições, organizadas para ascender os videogames à condição artística, também nos transmitem a mensagem de que seria necessário um aval da crítica especializada da área de artes para separar “o joio do trigo”, a ‘arte’ da ‘não arte’, estratificando as obras ‘maiores’ das que seriam menos significativas. Seria igualmente injusto selecionar, por exemplo, alguns entre os artistas populares, transpondo suas obras para o ambiente museológico para atribuir a elas mérito semelhante ao das obras clássicas, quando elas se opõem justamente

6 “Arcades” são máquinas de diversão encontradas em centros específicos para jogos de

entretenimento eletrônico. No Brasil, tanto estes centros quanto suas máquinas ficaram mais conhecidos pela denominação de “fliperama” ou “fliper”.

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a este posicionamento formalizador. Chega a ser doloroso observar como alguns dos defensores do videogame como arte pareceram respirar mais aliviados, se agarrando a esta justificativa engendrada no sistema de validação herdado do pensamento classicista para provar seu ponto de vista. É preciso compreender que os videogames transitam entre a indústria de massa e o campo da arte, se relacionando – no que diz respeito aos aspectos de consumo, mais do que de produção – até mesmo à cultura popular, independentemente de qualquer tentativa de legitimação que se procure impor a eles:

[...] os videogames passaram a constituir uma cultura, dividida como tantas outras entre produção industrial e criações populares. Tal acontecimento faz sentido do ponto de vista da história cultural e das culturas populares. Ele é testemunho da invenção de novas referências às imagens e às ficções e de uma inflexão considerável na evolução das maneiras de jogar. Entretanto, o significado dos videogames ultrapassa o fenômeno lúdico: eles constituem a única forma de cultura que se pratica, seja para o melhor ou para o pior, no coração da principal tecnologia de poder do mundo contemporâneo, a informática, e que acompanha a “digitalização” do mundo. Os próprios objetos do jogo são programas, bases de dados, sistemas simulados. (Idem, p. 8)

Diante do diferencial dos videogames, como cultura praticada, parece-nos tolo tentar realizar qualquer tipo de análise do valor artístico de uma destas obras em comparação às obras surgidas em outros períodos e outros contextos, na esperança de que uma estética imutável possa solucionar qualquer questão de incoerência. Como comparar valores de uma obra clássica com uma produção contemporânea? Porque tanto esforço para tratar destas nos mesmos termos?

Vemos em Canclini, teórico defensor da valorização de uma arte elaborada pelo povo e para o povo, a crítica da obra como objeto fetichizado, numa correlação com as questões da inspiração artística ou do gênio criativo. O autor nos diz:

Supõe-se que as obras de arte transcendem as transformações históricas e as diferenças culturais e, por isso, estão sempre disponíveis para serem desfrutadas – como ‘uma linguagem sem fronteiras’ – por homens de

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qualquer época, nação ou classe social: para receber sua ‘revelação’, segundo o vocabulário de filósofos como Juan Luis Guerrero, basta cultivar uma atitude de ‘contemplação’ e ‘acolhimento’. Essa aproximação irracional e passiva do público é o correlato da inspiração ou do gênio, atribuídos ao criador para justificar o caráter excepcional das obras. Com ele, a estética liberal não oferece explicações racionais acerca do processo de produção nem acerca do processo de recepção da arte; apenas se interessa pela obra como objeto fetichizado. (1980, p. 8)

O autor nos explica ainda que, graças aos novos meios de comunicação e à presença da criatividade estética dentro dos bens utilizados no nosso cotidiano, o acesso ao consumo de arte tornou-se maciço, propiciando a destituição do caráter de genialidade excepcional dos produtores de arte. Tal configuração dos fatos, em contrariedade com os ideais das classes dominantes, suscitou nestas a necessidade de reafirmar sua separação das culturas chamadas de “dependentes”. Assim surge a tentativa de legitimar um modo ‘puro’ de se conceber a ‘arte pela arte’.

A idéia da ‘arte pela arte’, ou da ‘forma’ superando a ‘função’ - graças à definição da estética – surge por meio de explicações arbitrárias, alimentadas de maneira impositiva num sistema conduzido pedagogicamente. É-nos ensinado ‘o que é a arte’ pela própria dignificação da ideia da ‘arte pela arte’. Entretanto, atualmente, tal definição encontra-se ainda mais desgastada perante os novos meios de comunicação e novas possibilidades de criação artística. Torna-se claro o quanto o gosto seria, então, algo produzido socialmente.

Não podemos nos esquecer, entretanto, que o exame da arte como mera ideologia faz esquecer que esta também tem participação nas relações materiais de produção, distribuição e venda. Pensar a arte puramente como ideologia, nos leva a separar o momento da criação - que ocorreria no campo das ideias e da subjetividade - do da produção. Sabemos que o fator econômico influi sobre a arte, pois, como já comentado, existe uma demanda por este tipo de produção diante da qual o artista pode ou não conservar determinado nível de autonomia. Ainda, essa separação conduz para uma dicotomia entre ‘forma’ e ‘conteúdo’, que reduz a variedade de linguagens artísticas à compreensão do conteúdo. Canclini nos diz:

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[...] fala-se de idéias musicais no mesmo sentido de idéias poéticas ou novelísticas, esquecendo-se as diferentes relações semânticas que cada arte estabelece com seus condicionamentos sociais, seus diversos sistemas de signos e técnicas de composição. (1980, p.22)

Para o problema desta cisão entre material e ‘espiritual’, encontraríamos a saída nas bases da teoria marxista onde (Canclini, 1980, p.23) “para estudar um fato social, não devemos partir do que os homens dizem ou imaginam a respeito dela (a superestrutura), mas do modo como produzem os bens materiais (a estrutura). ” Para compreender a arte, não podemos considerá-la como nos ensinou a escola burguesa, defensora ferrenha da estética imutável ao longo do tempo, mas devemos situá-la (a exemplo de Walter Benjamin) no tempo e espaço como parte das capacidades produtivas de uma época. A obra de arte não apenas se resignificaria dentro de diferentes épocas, como o próprio significado da arte mudaria em função das possibilidades produtivas destas.

Para Benjamin, dilemas como o da autenticidade artística não têm lugar quando se pensa na produção da arte na era da reprodutibilidade técnica. A obra deste tempo não se funda mais a partir do mito, da significação ritual, mas é erigida com base na política:

Os gregos eram obrigados, pelo estágio de sua técnica, a produzir na arte valores eternos. A essa circunstância devem seu valor eminente na história da arte, a partir do qual os que vieram depois puderam determinar o seu valor próprio. Não há dúvida de que o nosso lugar se encontra no pólo oposto ao dos gregos. Nunca antes as obras de arte foram tecnicamente reprodutíveis em escala tão elevada e extensão tão ampla como hoje. No cinema temos uma forma, cujo caráter de arte, pela primeira vez, é determinado de parte a parte por sua reprodutibilidade. (2012, p.49-51)

Ao longo de diversos períodos artísticos, é possível notar uma preocupação reincidente com o meio e com o processo através do qual a obra seria construída. Uma preocupação até mesmo superior àquela dispensada à obra em si. Confunde-se o meio e a linguagem com a própria obra, no questionamento de sua legitimidade enquanto arte. Ocorreu

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com o meio fotográfico, como bem relata Benjamin, quando se teria questionado mais sobre a fotografia ser ou não considerada como arte do que sobre as transformações que o uso deste invento, como um meio de produção, traria para a arte. O mesmo ocorreu com o cinema, ao passo que seus respectivos teóricos foram buscar elementos de culto, de mito e significação tradicionais para associar ao meio que defendiam. Não nos caberia aqui cometer o mesmo erro ao tentar estabelecer uma identificação no videogame com elementos de uma arte clássica, quando este faz parte de outra esfera. O videogame, bem como o cinema, é meio, e alguns de seus produtos podem ser artísticos, enquanto outros possuem diferente finalidade. Depois de algum tempo de contato com um meio podemos dizer, sem grande dificuldade, que alguns de seus produtos possuirão maior ou menor quantidade de características esteticamente voltadas à fruição, enquanto uma boa quantidade destes não possuirá valor subjetivo digno de nota.

Estamos acostumados a separar a cultura – tida sempre, na visão positivista, como a representação do que é bom e belo – dos novos meios. Marshall McLuhan diria:

Será precisamente em decorrência do fato de estabelecermos a mais ampla separação entre cultura e os novos meios que nos tornamos incapazes de encarar os novos meios como cultura séria? Será que quatro séculos de cultura de livro nos hipnotizaram numa tal concentração sobre o conteúdo dos livros e dos novos meios que não podemos reconhecer que a própria forma de qualquer meio de comunicação é tão importante quanto qualquer coisa que ele transmita? (2002, p. 153 – 154)

Para o autor, numa época em que a produção e distribuição de mercadorias só perde para o empacotamento de informações, é possível invadir culturas inteiras com ideais de conhecimento e diversão. Para ele “[...] a imprensa sobrepujou o livro no século XIX, porque o livro chegava tarde demais. A página do jornal não era uma mera ampliação da página do livro. Era, como o cinema, uma nova forma de arte coletiva. ” (2002, p. 155). Hoje a forma de arte coletiva a enfrentar a mesma desconfiança e resistência é o videogame.

É claro que Benjamin nos alerta para os perigos da tecnicização quando de sua permeabilidade entre as grandes massas, embora reconheça que esta teria criado os meios para tratar uma psicose existente em decorrência da repressão constante de emoções, necessária para

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a adequação à chamada civilização. Esta repressão naturalmente poderia ocasionar explosões de violência ou histeria que, através do cinema encontrariam uma expiação catártica. Mesmo a risada coletiva seria vista, segundo o autor, como uma erupção prematura e saudável para a psicose de massa. Não se pode negar, porém, que a quantidade de filmes (e também de videogames) voltados para o grotesco e escatológico, que é consumida de maneira acelerada, denota os perigos que rondam uma sociedade reprimida.

O desenvolvimento das tecnologias facilitou o acesso à arte para um maior número de pessoas, independentemente de sua classe social. Este rompimento da ‘arte pela arte’ assusta os defensores da dita “arte séria” e diferencial. Talvez poucos tenham expressado de maneira tão clara os perigos aos quais a defesa da ‘arte pela arte’ conduz quanto Benjamin, ao citar o manifesto de Marinetti:

‘Faça-se arte, pereça o mundo’ , diz o fascismo, e espera a satisfação artística da percepção sensorial transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a consumação da arte pela arte. A humanidade, que outrora, em Homero, foi um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte. (2002, p.123)

Assumir tal politização pode causar desconforto, principalmente para o artista, visto por Canclini como um produtor. Já compreendemos, no entanto, que, desejando ou não produzir uma obra de arte engajada, o artista se posiciona a partir do momento que produz e exibe sua obra. Este posicionamento pode ser revolucionário, ao se formular a partir de uma postura antagônica com a classe opressora, ou pode ajudar a reafirmar a ideologia dominante, caso o artista trabalhe conscientemente sob os preceitos políticos desta ou, ainda, se escuse de qualquer posicionamento. Pois, ao evitar se posicionar, afirma ainda o autor, o artista apenas ajuda na manutenção da supremacia de uma ideologia dominante.

Referências

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