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Respiração e pensamento : a abertura da escrita na obra de Jean-Luc Nancy

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

PAOLA SANGES GHETTI

RESPIRAÇÃO E PENSAMENTO – A ABERTURA DA

ESCRITA NA OBRA DE JEAN-LUC NANCY

CAMPINAS

2016

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RESPIRAÇÃO E PENSAMENTO – A ABERTURA DA ESCRITA NA

OBRA DE JEAN-LUC NANCY

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Teoria e História Literária, na área de Teoria e Crítica Literária.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Antonio Siscar

Este exemplar corresponde à versão

final da Tese defendida por Paola Sanges Ghetti e orientada pelo Prof. Dr. Marcos Antonio Siscar

CAMPINAS

2016

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Ghetti, Paola Sanges,

G343r GheRespiração e pensamento - a abertura da escrita na obra de Jean-Luc Nancy / Paola Sanges Ghetti. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

GheOrientador: Marcos Antonio Siscar.

GheTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Ghe1. Nancy, Jean-Luc, 1940- Crítica e interpretação. 2. Filosofia francesa. 3. Escrita na arte. 4. Escrita na literatura. 5. Pensamento. 6. Respiração. I. Siscar, Marcos,1964-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Respiration and thought - the opening of writing in the work of

Jean-Luc Nancy

Palavras-chave em inglês:

Nancy, Jean-Luc, 1940- Criticism and interpretation Philosophy, French

Writing in art Writing in literature Thinking

Respiration

Área de concentração: Teoria e Crítica Literária Titulação: Doutora em Teoria e História Literária Banca examinadora:

Marcos Antonio Siscar [Orientador] Mauricio Mendonça Cardozo Marcelo Jacques de Moraes Eduardo Sterzi

Tiago Guilherme Pinheiro

Data de defesa: 16-08-2016

Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária

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BANCA EXAMINADORA:

Marcos Antonio Siscar Mauricio Mendonça Cardozo Marcelo Jacques de Moraes Eduardo Sterzi

Tiago Guilherme Pinheiro

Pablo Simpson Kilzer Amorim Eduardo Horta Nassif Veras Marcos Piason Natali

IEL/UNICAMP 2016

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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Ao que no curso dessas páginas é deixado em abandono. Sentido, corpo, mundo que apenas existe ao partirmos.

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Agradecimentos

Se agradecer for possível, o gesto de saudação se dá numa falta de finalização. O suporte que recebi ao longo do doutorado dos que tão perto estiveram não se completa aqui. Agradeço-os agora com a licença da ingratidão, no desejo de saudar os encontros que tantas vezes a escrita dessas páginas foi a ressonância.

Ao Marcos Siscar, minha máxima gratidão por ter se interessado e acolhido meus estudos acerca de Jean-Luc Nancy; pela escuta precisa especialmente quando o murmúrio falava mais alto do que a própria viagem que é a escrita.

A Jean-Luc Nancy, pela generosidade e interesse pela pesquisa.

Ao professor Bruno Clément, pelo entusiasmo e acolhida em Paris VIII, Saint-Denis.

Aos professores Marcelo Jacques de Moraes, João Camillo Penna, Eduardo Sterzi, Marcos Natali, Pierre-Philippe Jandin e Laurens Ten Kate por suas sugestões e contribuições em diferentes momentos do processo do doutorado.

Aos funcionários da Universidade Estadual de Campinas, especialmente ao Cláudio Platero, por toda agilidade com os trâmites acadêmicos.

Ao meu pai, Angelo, pela compreensão tácita das dificuldades, e minha mãe, Angela, pelo empréstimo da obstinação com que caminha todos os dias.

Ao meu irmão, Pablo Ghetti, por poder contar com um diálogo tão preciso nos momentos mais urgentes. E também à Paula e aos meus três sobrinhos, Lucas, Heitor e Olívia.

À Maria Virgínia Claudino e Miriam Celeste Teixeira, pois de tantas maneiras a admiração se manifesta.

Ao Bruno Santos Augusto, que compartilhou a única vida possível, nunca estando longe.

À Érica Zíngano, por todo acolhimento e pela habilidade em despertar na língua os sons e os sinais.

À Paloma Roriz, pela revisão cuidadosa da tese e amizade que atravessa meu próprio reconhecimento.

À Julia Naidin, pois o caminho foi também nosso.

Aos que estiveram tão próximos das inquietações iniciais quando elas eram mais demandas do que questões, Cristiano de Abreu, Diana de Hollanda, Leinimar Pires, Marianna Poyares, Maria Continentino, Marília Garcia, Manuela Fantinato, Nathalia Calmon, Juliana Lugão e Lia Duarte Mota.

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À Luiza Telles, com quem compartilho relíquias e uma história de atravessamentos geográficos e afetivos.

À Barbara Marcel, Julia Braga e Mariana Maia Simoni, pelos imprescindíveis cafés na biblioteca e conversas itinerantes nos seus arredores, povoando a escrita de uma origem que felizmente não se acaba aqui.

À Rajani Kodyiat, na paciência e leveza do convívio diário.

Ao Heiner e Angela Illing, pela atenção e suporte no último ano da tese. Ao Rafael Viegas, pela habilidade com as técnicas e trâmites bibliotecários desde a Maison de France, no Rio de Janeiro, à Biblioteca Nacional, em Paris, possibilitando muitas vezes acesso a textos importantes.

À Lucía Tennina, por nossa resistência amorosa na distância e na aridez dos doutorados.

Ao Tiago Costa, por compartilharmos uma sensibilidade ainda indignada com o que nos aniquila.

Aos que tornaram o ano passado em Paris durante o período do doutorado-sanduíche uma aventura ao mesmo tempo sensível e inteligível: Laure Drouet, Diogo Oliveira, Marcelo Fontes, Maryia Nikiforova e David Georgelin, a quem agradeço especialmente por todo interesse e conselhos idiomáticos.

À Carolina Alfradique, com quem tantas vezes os diálogos foram uma experiência de pensamento insubstituível e orgânica.

Ao Richard Lambert, pelo encontro sem retorno e sem recursos, fazendo do final um recomeço sem fim.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES , pelas bolsas concedidas para a realização dessa pesquisa.

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Resumo

Esta tese se propõe a refletir sobre a abertura da escrita na obra de Jean-Luc Nancy como um modo de mobilizar o pensamento numa respiração, arriscando-se a si mesmo no contato com o outro. Esse contato é inseparável do batimento mesmo da língua, que prova a si mesma e a sua estrangeiridade ao tatear incansavelmente o limite de um contato a partir do qual o outro se ausenta. Partindo de uma reflexão sobre a necessidade de manter-se próximo às coisas - a despeito de um pensamento sobre elas - abordamos a inquietude de Nancy com a ideia de ter um

método. Tal necessidade do contato sensível é elaborada a partir de leituras que

levam o pensamento a um lugar trêmulo, que se dá na simultaneidade do que não se diz e o meio com o qual algo é dito. Furtando-se ao que seriam os mecanismos enclausuradores do discurso, a inquietude com a filosofia leva o autor a aproximar-se da experiência da literatura e da arte, o que aproximar-se expressa no caráter extremamente difuso da obra, composta da demanda em partilhar da produção artística contemporânea.

A mesma experiência de contato da língua é também vivida através de uma

dificuldade, como esforço em manter uma suspensão na tentativa de pontuar o

momento no qual o pensamento rumina sua existência compartilhada com o mundo na linguagem. O peso ou a gravidade do pensamento na escrita se dá no desejo de um sentido comum e, ao mesmo tempo, de uma demasiada cautela com relação aos riscos, homogêneos e definidores, de uma compreensão do comum como aquilo ao qual se retornaria, anulando assim o próprio peso.

A respiração é ainda tomada a partir da desconstrução da religião de Nancy, que acompanha o desenvolvimento de uma história do sentido. Com isso, o autor quer pôr em evidência o que desde as origens do monoteísmo se saberia e diria sem razão, numa linguagem que dá voz à ausência de uma finalidade. Nesta perspectiva, a linguagem operaria um sentido sem finalidade, se dando como um espaço através do qual homem e mundo se tocam e se tornam possíveis.

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Abstract

The present thesis considers the opening of writing in the work of Jean-Luc Nancy as a way of mobilising thinking in the form of respiration, which puts itself at risk in its contact with the other. This contact is inseparable from the beating of language itself, which experiences itself and its strangeness by ceaselessly touching the limit of a contact with the other, through which the latter becomes distant. Setting out from a consideration of the necessity of maintaining a proximity to things – rather than reflecting on things - we address Nancy's uneasiness with the idea of having a

method. This necessity of sensible contact is elaborated through a series of readings

that lead thinking into a trembling space, shaped by the simultaneity of what is not said and the manner in which it is nonetheless still said. In seeking to evade the enclosing mechanisms of discourse, Nancy's uneasiness with philosophy leads him to a sustained engagement with the experience of literature and art, which is reflected in the extremely diverse character of an oeuvre driven by a need to engage with contemporary artistic production.

This experience of contact in language is also experienced as a difficulty, as the effort of maintaining a suspension in pinpointing the precise moment at which thinking ruminates its shared existence with the world in language. The weight or the gravity of thinking in writing is manifested for Nancy in a desire for a common sense, and in an extreme cautiousness in the face of the risk of comprehending the common in a homogeneous and definitive manner as that which would return, thereby annulling the weight itself.

Respiration is then considered in relation to Nancy's deconstruction of religion,

which is rooted in a history of sense. In this way, Nancy seeks to make evident what since the dawn of monotheism would be known and said without reason, in a language that gives voice to the absence of finality. From this perspective, language would convey a sense without finality, offering itself as a space through which man and world make contact with one another and make themselves possible.

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Ce n'est pas une simple respiration dialectique du "même" à l'"autre", finissant par relever l'ordure, et par la sublimer ou par la recycler. Il y a dans ce monde et dans sa création quelque chose qui excède et qui tord les cycles.

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SUMÁRIO

Nota introdutória ...12

1. A respiração do pensamento...21

1.1 Alvéolos e vertigens do pensamento...21

1.1.1 Método e bricolagem...26

1.1.2 Método e meditação...32

1.1.3 Método e modo...40

1. 2. Estremecimentos sensíveis...48

2. Dificuldades e articulações da abertura...64

2.1 Sobre o masoquismo...64

2.2 O ser abandonado e a experiência do desabrigo no pensamento...66

2.3 Enfrentamentos ao irrespirável: de L’oublie de la philosophie a Le poids d’une pensée...78

2.4. Fragmento e fragilidade...91

2.5. A respiração hesitante de Être singulier pluriel...97

3. O sentido entre o sopro e o corpo...111

3.1 Inspiração e separação...111

3.2 A evidência da mitologia...119

3.3 Pecar contra o sopro ...126

3.4 O despertar do corpo...139

3.5 O sentido entre os nervos e a língua...153

3.6 Prece e fé do pensamento ...164

Considerações finais...171

Referências...176

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Nota introdutória

A tese propõe-se investigar a noção da respiração como um modo de compreensão da obra de Jean-Luc Nancy, considerando textos que compõem uma exposição e inclinação ao sensível no seu pensamento. O sensível, especialmente nos casos abordados, é dado a partir de um compartilhamento existencial com o outro e de um ser-em-comum que nasce ou ganha forma na linguagem através do contato com o outro, complexificando o próprio limite entre a linguagem e o outro. As formas experimentariam a aporia de um encontro entre a língua e as coisas, sendo a “inclinação sensível” do pensamento não uma opção deliberada ou derivação de uma fonte primeira, mas o modo através do qual o pensamento se dá, elegendo tanto a linguagem escrita quanto oral como meio de manifestação do sensível. A respiração nomearia um sistema de sentido em aberto, em um fluxo e refluxo constante do pensamento posto em uma circulação com o mundo, com as coisas e objetos desse pensamento, que apenas existem numa relação e na coragem da exposição.

A inclinação é, então, o que move a possibilidade e a singularidade da linguagem, uma vez que o pensamento e a linguagem existem, necessariamente, em correlação com o outro. Nossa primeira perspectiva não é senão a de acompanhar o movimento desse encontro de um pensamento e uma escrita sensíveis, que parece quebrar os discursos significativos em direção a uma demanda da existência, do corpo e da própria escrita1.

A experiência dessa correlação entre o sentido inteligível e o sentido sensível de um compartilhamento com o mundo leva a um impressionante vínculo entre os registros materiais na obra de Nancy, sendo esses a via da escrita, da sonoridade e da visualidade, que serão retomados no curso dessas páginas. Tal pluralidade se destaca na obra não apenas pela grande quantidade de trabalhos produzidos num tipo de comunicação entre eles, mas, sobretudo, pelo dispositivo que essa multiplicidade indica. O dispositivo de fazer de seu pensamento, seus livros, suas inquietações e sua própria biografia2, uma forma de mise-en-scène constante, atualizando seu pensamento através de mídias, meios, comunidades, sejam estes

1 A escrita, nesse caso, se coloca como a atividade de escrever o corpo mesmo, daquilo que se partilha na partida de um significado do corpo, tal como coloca em Corpus, (Nancy, 2000, p. 12).

2 Referência ao caso explícito do livro L’intrus, e dos dois trabalhos artísticos que foram produzidos em co-autoria a partir do livro, em que Nancy participou ativamente da elaboração.

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apresentados através de seus livros, de performances, conferências ou colaborações em diferentes projetos. Em suma, a relação entre os registros oral e escrito, assim como de uma forma de pensar que recebe sua pulsão de um compartilhamento existencial, se manifesta com impacto crescente ao longo da obra de Nancy, mostrando ser mesmo uma das condições a partir das quais seu pensamento é possível.

Tomemos em conta, na tentativa de compreender o sensível na escrita que parte de um contato existencial, duas premissas constituintes da demanda por uma

respiração no pensamento. A primeira, desenvolvida em Être singulier pluriel (1996),

sustenta que o “ser” existe sempre em relação. A elaboração de Nancy se baseia na ideia segundo a qual, em latim, a palavra singuli, singular, apenas pode ser dita no plural, designando o “cada” um que está entre todos os outros – o singular é um plural. O ser é, portanto, ao mesmo tempo, singular e plural, “singularmente plural e pluralmente singular” (Nancy, 1996, p. 48). Nancy exacerba, assim, a noção de

relação, chamando atenção para a afinação que faz a singularidade do ser, estando

imerso na pluralidade. A segunda premissa sustenta que o pensamento existe de modo intrínseco com o ser (considerando aqui uma dada ressonância pré-socrática na obra de Nancy3). Na sessão “Un corps est l’in-fini d’une pensée” no livro Corpus (2000), o autor comenta uma passagem de Parmênides, citando o enunciado “c’est même chose être et pensée” (Nancy, 2000, p. 98). Em seguida, desenvolve a enunciação enfatizando que o peso e a localidade teriam grande importância nesse pensamento que é a mesma coisa que o ser. Nancy explica que isso que constitui o próprio ser seria dado por uma vivência da linguagem, através dos sentidos, materiais, corporais, que dela surgem. Não de uma linguagem comunicativa, mas daquilo que está para além da comunicação, pois “il s’agit précisement de ce qui, du langage, n’intéresse plus le message, mais son excription” (Nancy, 2000, 99). O que interessa, mais do que a comunicação ou mensagem entre eles, é o que a linguagem expõe e “ex-creve”, no compartilhamento sensível dos corpos.

As formulações permitem compreender como o pensamento aqui é levado em direção a uma exterioridade – numa experiência de sentir seu peso e provar suas próprias bordas, seu limite com relação ao que o outro lhe apresenta e representa. Haveria, na economia da partilha da existência com o pensamento um tipo de

3 Nancy desenvolve mais sobre a questão nos textos: “L’être abandonée”, em L’imperatif catégorique (1983), e “La creation comme dénaturation”, em La création du monde (2002).

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ressonância, levando a escrita do autor a problematizar o limite do ser e ao mesmo

tempo, dela mesma enquanto ser e enquanto limite absoluto de si mesmo. Vivendo essa aporia sensível dos encontros entre a linguagem e o ato, a escrita, ao acolher o movimento de uma pulsação, direcionando-se ao fora de si mesma, não abandona o limite do próprio pensamento ou a reflexão dessa prática. Nem o “ato” (que considerado por si só não oferece atrito, contato) nem a conciliação significativa. O “sistema” de fluxo e refluxo de sentido, assim, permanece “errante”, em aberto, não se revertendo numa exemplificação das formas que nascem dessa relação. Por isso, se abordamos as eventuais formas nascidas a partir do pensamento de um

ser-em-comum, somos a todo tempo tomados pelo próprio pensamento dessa forma, numa

tentativa de manter em aberto a excription da linguagem, na possibilidade de atualizar um acontecimento.

O livro Adoration (2010) abre com uma epígrafe que Nancy toma de Wittgenstein, em Remarques sur “Le rameau d’or” de Frazer, mostrando parte desse delicado momento do dimensionamento das coisas que Nancy quer flagrar, na tentativa de remeter o pensamento a um estado de abertura e de compartilhamento: “L’état de l’esprit qui s’eveille est l’adoration” (NANCY, 2010, p.9). A adoração, termo que designaria uma relação não intencional com a linguagem (assim como uma relação à religião que nunca teria se fechado numa circularidade significativa), seria acessada por um estado de despertar ou nascer do sentido na linguagem. Tal despertar do espírito, explica Nancy na sequência inicial do livro, não é dado senão por aquele que experimenta um momento limite, no despertar do sono, surgindo de uma inexistência. A tentativa é a de sustentar um espaço de remissão de sentido, buscando formas de manter a fugacidade e a tenacidade disto que, não se fechando em uma estrutura significativa, mantém a abertura para o acontecimento do homem e do mundo que a linguagem dá lugar.

Seria importante precisar a diferença com relação àquele que já estaria desperto, acordado, ou do que espera para um despertar indeterminado, imerso em condições determinadas, explícitas. Tratar-se-ia, na perspectiva dada por Nancy, mais do que uma condição estabelecida, de um ponto sutil e específico de contato através do qual surgem as coisas e o próprio pensamento, numa ressonância que implica o refazimento constante de um limite. A precisão de um momento exatamente entre a inexistência e a existência, de encontro entre a língua, às coisas, tocando algo que é da ordem do sentido ou do espírito.

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Se a respiração, num primeiro olhar, passaria pela consideração do problema da espontaneidade no pensamento, ela não é aqui pensada senão a partir da estreiteza com a qual a existência é negociada com o pensamento no espaço articulador/desarticulador da linguagem. Esta respiraria na beira da irrespiração, ou da inexistência, sustentando-se entre a vida e a morte do sentido. A respiração da escrita põe radicalmente em questão a “autonomia” ou a verdade significativa do que é dito, contribuindo, com isso, para um jogo que se coloca entre o mundo e a atividade da linguagem.

Para tomar a aporia da respiração a partir de uma fonte razoavelmente difundida, olhemos, por exemplo, para o que consta no Littré. Respirar, segundo o dicionário, seria sinônimo de viver a partir do movimento de aspirar e exalar ar dos pulmões. Ainda, segundo a mesma fonte, a respiração seria etimologicamente ligada ao “sopro”, ao espírito e à presença. Nancy sustenta a aporia filosófica contida nessas duas acepções do termo no dicionário, ou seja, a aporia que se caracteriza como algo que se dá entre o ser e aquilo que extravasa o próprio ser na economia de seu pensamento – ou ainda, entre os corpos (comuns, banais) e aquilo que insufla “graça”, espírito, presença, nesses corpos.

O “pensamento”, palavra que seria tomada como melhor forma de designar o que está em questão na relação com o sentido, se situa no traço de separação do inteligível/sensível. Pensar e sentir (ou o pensamento e o sentido) são assim movimentos copertencentes, não excludentes. Juntos proclamam um encontro, uma partilha na linguagem que não se fecha com relação ao mundo. O sentido, para Nancy, sensível ou inteligível, é uma noção pautada por uma relação ao fora, no remetimento a um ou mais “outros” e a si mesmo enquanto outro. Por isso, a relação ao sentido passa pela própria condição do corpo, que, tal como Nancy coloca no artigo “Making sense”, “est ce dehors par lequel je peux me renvoyer une altération de moi-même, qui peut provenir aussi bien de mon corps que des autres corps qui l'entourent. Cela se nomme une sensation: telle est la première allure du sens”. (NANCY, 2011, p. 209). A sensação, proveniente da experiência do corpo e dos corpos, portanto, é tomada em Nancy como o primeiro olhar e perspectiva do sentido, sendo o pensamento operado numa estreita relação do corpo com o mundo e com si mesmo enquanto outro. O sensível não se configura numa determinação significativa ou num espaço de reconhecimento e comunidade do corpo, mas marca a possibilidade de se relacionar ao sentido, no “remetimento de uma alteração de si”. Neste particular, a

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respiração, na abertura infinita da finitude do corpo – heterogêneo no homogêneo - é radicalmente relacional, mas funciona a partir do limite e da impossibilidade de uma relação compreendida como comunitária ou fechada.

À propósito do ponto que aqui expomos, Jacques Derrida, em Le toucher,

Jean-Luc Nancy (2000), precisa que a obra de Nancy investe-se como algo que “nous

empêche de distinguer entre le sens thématique et la fonction opératoire, entre le sens propre ou littéral de ce sens et toutes ses tournures tropiques.” (DERRIDA, 2000, p. 303). A escrita que respira junto ao mundo, tocando-o simultaneamente no pensamento, produz e interrompe, ao mesmo tempo, ou ainda, como coloca Derrida mais adiante em seu texto, “le discours s’y étend à tous les registres, de façon

opératoire ou thématique. (DERRIDA, 2000, p. 306).

O espaço que compartilham “pensar” e “sentir”, na operação e na tematização que colocam em jogo, mostraria uma brutalidade e ao mesmo tempo, uma hesitação, tal como a frase de Patrice Loraux citada por Nancy em “Le coeur des choses”: “On aurait l’idée que c’est quelque chose comme ça, penser, une brutalité presumée sans identité, radicalement hesitante et qui se lance, perd le controle et se rattrape dans des phrases.” (LORAUX, 1990, p. 197). As “frases” seriam o lugar onde acontece tanto a hesitação radical, na cautela implicada pelo próprio pensamento que evita o retorno binário do significado, quanto o lançamento de um pensamento que perde controle de si. Lançar-se ao sensível é concomitante a essa falta de controle dos sentidos de si, dando-se a respiração, na escrita, a partir da exposição primeira a um movimento sem retorno e sem recursos a um sentido de si. O pensamento, deste modo, estaria constantemente num limite entre o dado e a alusão, entre a palavra e sua ressonância, numa origem intermitente que impulsiona a existência e sem a qual não poderia haver linguagem. Esta não deveria ser confundida com uma face escondida do mundo, ou uma “coisa em si”, mas indica o próprio fato de haver mundos. É a partir da linguagem, na emoção, na palavra e na sua ressonância que a existência se abre como possibilidade sensível e de sentido, sendo o que se respira, na relação entre o dentro e o fora do mundo, operado a partir dessa impossibilidade de síntese. Num pensamento que se constrói enquanto respiração, a linguagem se remete a essa cadência na qual o próprio mundo é possível, na marca mesma de um fora comunicativo, do heterogêneo no homogêneo, ou da morte que se traça na mesma borda em que a linguagem nasce.

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Nancy, no mesmo texto (“Le coeur des choses”), utiliza a palavra síncope para designar a injunção relativa ao problema do sentido, ao modo através do qual este se expõe, na existência, a uma separação que a ultrapassa. No texto, o coração é o que opera a síncope a partir de um lugar que não exclui nem o movimento da mobilização do pensamento, ali onde o coração é identicamente o coração das palavras, e ao mesmo tempo, o movimento que afasta, que retém a potência das coisas. Seria uma ilusão opor a inteligência à grande meditação das coisas, enfatizando que não se trata nem do mundo enquanto mundo nem da inteligência como lugar de separação de uma experiência existencial, mas da junção entre ambas.

A respiração, assim como o coração, não se fecha numa circularidade dos seres com relação a si mesmos ou tampouco com relação ao mundo. A inclinação de um pensamento do sensível se sustenta, no trabalho da linguagem, ali onde nada é seguro, nem o próprio corpo que se escreve, que se remete ao fora e interrompe simultaneamente o mesmo movimento. O não retorno do sentido sensível ou inteligível numa forma de circularidade originária – do mundo ou do texto – marca assim nossa leitura a respeito de Nancy como uma experiência filosófica pautada na força interruptiva.

A respiração do sentido, sendo baseada na força sincopada como coloca em Une pensée finie (1990) não é dialética, mas excede a clausura que a dialética dá lugar, tal como dez anos mais tarde o autor coloca de modo bastante sintético na seguinte passagem de Corpus (2000):

Ce n’est pas une simple respiration dialectique du “même” à l’autre, finissant par relever l’ordure, et par la sublimer ou par la recycler. Il y a dans ce monde et dans sa création quelque chose qui excède et qui tord les cycles (En général, les cercles, les sphères, leurs harmonies emboîtées: toutes les formes d’annulation de l’espace. Nos corps ni le monde ne sont circulaires, et c’est la loi la plus sérieuse de la création écotechnique que de ne pas tourner rond.) (NANCY, 2000, p. 90)

O trecho resume a entrada na questão que nos guia e que apresentamos aqui. A linguagem, engendrada por um sentido que não retorna enquanto significado ou sensibilidade, se faz a partir de um limite, assim como a própria filosofia ou a literatura se estas são enclausuradas num determinado efeito, num círculo fechado. Entre o sentido e significado, o dentro e o fora, a intimidade e a exposição, vida e morte, presença e ausência, corpo e espírito, o limite é retraçado e o corpo pontua a

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própria existência como origem compartilhada e não-idêntica. Respirar, então, no movimento desse pensamento e escrita, é engajar-se no risco e na abertura do não-encontro e não-retorno significativo, sendo o gesto da linguagem relacionado a essa impossibilidade. A respiração, no seu ponto sem retorno, caminha junto com aquilo que não se deve tocar do toque, se o toque é compreendido como contiguidade da pele e da matéria. Tocar apenas na partilha, na cisão do não-toque; respirar ali, na exatidão em que a respiração se torna irrespirável.

Pensar as relações entre o sentido sensível e inteligível implica num afastamento da escrita como o lugar de um pathos4 do sensível, expressão de uma paixão e um lugar circunscritos a uma determinada condição daquele que pensa. Tampouco a sustentação do sentido designaria algo intocável, místico ou não-corporal, num fetichismo do discurso ou da filosofia. A orientação dessa inclinação no pensamento partiria mais de uma exposição ao fora e da experiência de pesar-se junto a ele, compartilhando, mundo e linguagem, da mesma pulsão de um encontro.

Abrir-se ao sensível na linguagem, na escrita do autor, é também um movimento que, ao se furtar à ideia de finalidade, ao retorno que constituiria um sentido originário numa circularidade das coisas que são pensadas, demarca a finitude do ser na urgência de uma partilha existencial (não apreensível ou assimilável). O que se furta ao fim na linguagem sendo igualmente a experiência finita do homem com a morte. O deslocamento da finalidade tampouco opera uma abertura ao sentido na escrita como rejeição à filosofia ou à história ou apologia ao espaço da literatura como possibilidade de um sentido orgânico, mas busca mostrar o que, na história de tais palavras (bem como de outras tantas palavras expressivas no Ocidente, como Deus e homem), é deixado em abandono na tentativa nomeadora de um discurso, de uma síntese ou sintaxe. Sustentar o confronto vivido a partir do que se desloca da circularidade na linguagem é evidenciar que o sentido existe, que exige ser dito através de uma forma e uma maneira de acesso, pois a fragilidade do discurso apenas se deixaria ver através dele.

O que se determina no pensamento através da ideia de projeto, assim, é incompatível com a experiência da ruptura, do desconhecido, na dimensão do infinito

4No prefácio escrito para The gravity of thought (a ser comentado posteriormente aqui), escrito em inglês, Nancy escreve: “There is no pathos here: I certainly do not say that the condition of the ‘thinker’ is a heavy one, certainly not! And this for the simple reason that there is no ‘condition of the thinker’. On the contrary, thinking is the condition of everyone, the human condition (assuming that we know anything about other conditions). This said, we all carry this weight. Or, rather, we do not carry it: we are this weight.” (NANCY, 1997, p. 2)

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(seja ele compreendido pelo “outro”, o espírito, ou Deus) que a respiração, para acontecer, necessariamente precisa se confrontar. Neste sentido, compreendemos que Nancy se mantém num limite discursivo do registro do pensamento, que por si obedece a uma certa estrutura (ligada a uma relação com a verdade e com a linguagem), mas recusa estabelecer um programa filosófico. Por isso, os textos abordados configuram um quadro variado e poderíamos mesmo dizer, assistemático.

A experiência sensível da abertura (e da abertura ao sensível) demanda, não uma explicação do que ultrapassa nosso conhecimento das coisas ou do que a filosofia não cumpriu, mas no que ela não foi suficientemente longe para pensar o que seria parte de sua possibilidade mesma. Ou seja, a filosofia não teria investido suficientemente na sustentação da incerteza, do desconforto, da desrazão, que se dariam no seio da mobilidade da existência, ela mesma inacessível fora do movimento e da experiência de uma ruptura. O “esquecimento” da filosofia” abordado no livro de mesmo nome sendo no caso a experiência do que a filosofia, na claridade do dia e da obsessão da memória e do retorno, exclui ou esquece para poder prosseguir.

Ao mesmo tempo, o gesto se lança numa relação de vizinhança estreita entre a escrita filosófica e as artes, especialmente a literatura. Tendo ambas a linguagem como via de compartilhamento, o encontro entre filosofia e literatura indicaria a resistência à banalidade de um sentido enclausurado. A “demanda” de ambas, como diz Nancy em Demande (2015), é a da verdade, aquilo que estaria fora delas mesmas. Cada uma saberia igualmente que esse fora não se chama nem ciência nem religião. Ou ainda, poderíamos acrescentar, cada uma saberia que o fora não “se chama” ou se nomeia, mas impulsiona a própria atividade da linguagem, exigindo que esse fora esteja presente como tal.

As formas de se relacionar ao fora, à verdade ou ao como tal seriam diferentes, explica Nancy em Demande. A filosofia quer retirar o “ser coisa” das coisas, indicá-lo, marcá-lo, separando assim o “ser coisa” da visão da coisa e exigindo que a verdade se cumpra. A literatura estaria preocupada com a continuidade da narrativa, lançando-se ininterruptamente como figura, imagem – mito interrompido. A verdade se dá assim na projeção do nome e da história. No entanto, segundo Nancy, ce dehors silencieux, c'est ce que chacune des deux ne renonce pas à dire (NANCY, 2015, p. 9). Uma precisa da outra para continuar, e de acordo com a leitura de Nancy, não seriam possíveis sem o movimento duplo entre a perseguição das coisas enquanto coisas da filosofia, e o investimento da literatura em expor-se enquanto artifício.

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A “origem” da filosofia, assim, estaria próxima demais à literatura (mas igualmente às artes) para ser abordada fora do movimento sensível através do qual as coisas são e ao mesmo tempo são vistas, pensadas e elaboradas. Um gesto que portanto se localizaria entre mãos que abrem e manuseiam a linguagem, no corpo que se abre com a voz, e na disposição a partir do qual existem tanto as mãos, as cordas vocais, quanto o desejo de pensamento.

Ao mostrar que o retorno não comparece como origem, dado que o aqui do que se diz não retorna a um lugar originário, o autor confronta-se, no curso da nossa leitura, com a ideia de método, se distanciando de uma noção de projeto ou cartilha filosófica; com a experiência complexa de um ser-com, que parte também da preocupação da abertura, na medida em que o que se dá como comum não se distingue de uma praxis filosófica, e em seguida, com a experiência religiosa-secular. Nesta última, é exposto o modo como a religião (também atravessada pela arte) aponta, ela mesma, para uma impossibilidade de retorno “mítico” ou “religioso”, redefinindo, mais uma vez, a interrupção entre corpo e pensamento, existência e linguagem como força rítmica, na possibilidade mesma do próprio sentido se fazer e refazer. Desta vez, partindo de uma atenção ao que a crença na verdade teria implicado.

A verdade não comparece como origem, como elo religioso ou comunitário, mas a constatação insere o homem na possibilidade de acesso ao sentido. A insistência na possibilidade de um acesso marca a importância de um gesto que, estando entre a abertura e o fechamento - na inseparabilidade entre inspiração e expiração, vida e morte – busca um limite pontual, singular e plural, onde os corpos hesitantemente começam a existir e a linguagem, a recomeçar. A inclinação sensível, neste caso, vem de uma necessidade de evidenciar a dificuldade de uma experiência existencial.

A respiração assim não apenas interrompe, mas viaja, parte constantemente, nessa inclinação que abala a estrutura cíclica do sentido e da verdade numa forma elíptica, no deslocamento do círculo. Na partida essa forma ressoa, sem retorno visível, mas despertando um novo acesso ao corpo e ao sentido na vivência do não-retorno. A urgência do sentido como sensível, na exposição do pensamento ao fora, acentua, modula o inapreensível de uma experiência concreta do mundo mobilizando o próprio corpo a um tipo de experiência de si. O inteligível é então inseparável do sensível. Por estar mais interessado nos modos de manter essa

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pulsão em aberto do que em definir respectivos usos linguageiros, Nancy não define um conceito de corpo, de pensamento, de escrita, ou dispõe de uma sistematicidade filosófica. Tais noções, para ele, não poderiam ser alcançadas e tocadas senão no destacamento - na complexidade pontual entre a junção e a separação da qual a palavra é a expressão – entre a exalação e a exaltação com a qual se apresentam na linguagem. Em outras palavras, a inclinação sincopada leva, não contraditoriamente, a uma escrita de base afirmativa, na possibilidade de acolher a fragilidade desse mesmo sistema que nos teria fundado, baseado na crença nas palavras e no poder nomeador da linguagem. A respiração na escrita seria a própria crença sincopada, o que abriria para um ato de fé e determinação, na medida em que esta se lança sem a expectativa do retorno.

1. A respiração do pensamento

1.1 Alvéolos e vertigens do pensamento

Errance et méthode, méthode d'errance, errance méthodique, voie qui n'est pas tracée mais qui est la trace elle-même d'un pas en train d'avancer, en train de passer, juste en train d'éveiller pour lui-même la possibilité d'une direction, d'une destination, d'un désir. (NANCY, 2015, p. 12)

Comme si l'impossibilité de régler la pensée était également un élément constitutif de la philosophie, comme si maintenir en suspens telle autre lancée, revenir sur tel autre argument, faire écho par telle autre réflexion à tel autre problème ne dépendait ni d'un hasard ni d'un système, mais du besoin d'écrire et par l'écriture de respirer. (NICOLAO, 2012, p. 329)

Na ocasião de um evento acadêmico organizado pela European Graduate

School, intitulado “Love and community: A round-table discussion with Jean-Luc

Nancy, Avital Ronell and Wolfgang Schirmacher5” (2001), um dos professores

presentes na ocasião, Gregory Ulmer6, faz uma pergunta a Nancy, que por sua vez

5NANCY, J-L. Love and community: A round-table discussion with Jean-Luc Nancy, Avital Ronnel and Wolfgang

Schirmacher. (European Graduate School EGS, Suíça, 2001). A citação que transcrevemos permanece em língua inglesa, como consta originalmente no site. A transcrição do evento está disponível no site: http://www.egs.edu/faculty/jean-luc-nancy/articles/love-and-community/. Acessado em 10.08.2015. Notamos, no entanto, depois de escrito este texto, que o Link da EGS foi desativado, restando o registro do vídeo correspondente ao encontro disponível no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=JfEwSrU84rY. Acessado em 18.06.2016.

6Gregory Ulmer é tanto professor do departamento de inglês da Universidade da Flórida quanto professor de linguagens eletrônicas e cybermedia na European Graduate School.

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não responde de imediato, dando prioridade às outras perguntas feitas pelo público. No final do encontro, Nancy retoma a pergunta de Ulmer e a comenta com ênfase particular.

É interessante notar como a resposta de Nancy desloca o eixo teórico da pergunta, trazendo um outro olhar para a questão do método quando este é, inicialmente, apresentado através da ideia de uma forma ou origem que determinaria o pensamento (antes de provar as dificuldades de um “objeto”). Assim, se coloca em jogo a ideia de um pensamento que se constitui com autonomia diante de uma coisa em si, destacando o objeto de seu “ser objeto”. Ao se deslocar da ideia de um pensamento substancial e original, detentor de consequências e coincidências do mundo com relação ao mundo, o autor estaria desenhando um pensamento que existe em uma forma de “respirar” com o mundo e através dele. O movimento se dá como uma exposição constante de si e através dessa exposição, de contágio com outros discursos.

Reproduzimos a pergunta de Ulmer seguida do trecho que corresponde à resposta de Nancy dada alguns instantes antes de terminar o encontro, tal como mostra a transcrição do evento na página da European Graduate School. A pausa entre as falas fica inevitavelmente suprimida na forma aqui transcrita.

Gregory Ulmer: The room here is full of critics, learners, beginning scholars, people who have to face Wolfgang7 with their dissertation ideas. I wonder if you could in your response provide some meta-commentary on your thinking process, how you can start talking about the love the way you do, it can seem perhaps magical or mysterious for those who aren’t intimately aware of the philosophical tradition.

Nancy: No, no I did not answer to Greg – his question is so different, so original that I am a little paralyzed by it, but I understand very well why you pose it. Do I have a method? I don’t know. But simply, I think I was educated and more than educated, I was brainwashed, and touched by a certain number of persons because it was the first time that I heard somebody teaching about Hegel in a certain way. That touched me, even if I did not understand very much at the time. I was also affected by all those people, people like Ricoeur, Derrida, Canguilhem, and other people who are not known and I would say came from outside. This is perhaps now why I am always thinking by the outside. Of course I speak of living people, because when I am speaking of touching, first I think through those who are living. What I mean is that they all gave me a quantity of imposed ideas and then I tried to work with that. This is why I don’t think I have so much in proper philosophy with me, and that is why I have difficulty answering when I am asked about my concept of something.

7Ulmer refere-se aqui a Wolfgang Schirmacher, organizador do evento produzido pela European Graduate

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But I think that I have no one concept8. What is present in contemporary thinking is all of our common problem. You are exposed to that, you take one part, another and so this is a little bricolage there. But in accordance with Lévi– Strauss, bricolage is as rational as the scientific method.9

O silêncio que marca a pausa entre a pergunta de Ulmer e a resposta de Nancy parece tão logo indicar como uma questão a respeito da linha filosófica que marcaria o seu pensamento, ao mesmo tempo inquietaria profundamente o autor10. Infelizmente a resposta de Nancy não provoca um prosseguimento do debate na ocasião. Contudo, ela servirá aqui tanto para desdobrar outras leituras quanto para seguir a pista de um dado “lugar”, que, insistindo a não se apresentar de forma impositiva ou determinante, ofereceria uma compreensão sobre a própria máquina do pensamento de Nancy. Esse “lugar” não impositivo e determinante e, por sua vez, móvel na sua maneira de se construir enquanto pensamento, se remeteria diretamente à relação entre a sua escrita e o movimento sensível entre os corpos.

Com a sua pergunta, Ulmer explicita que para ele seria importante prover, a um público não familiarizado com a obra de Nancy, um maior esclarecimento a propósito de uma fala que se apresentaria (o seminário trata do tema do amor, porém o trecho em questão parece se estender para além de uma temática específica), de modo “mágico” ou “misterioso”, ainda que a compreenda dentro de uma determinada “tradição”, que a princípio não pertenceria ao domínio do místico ou inexplicável, mas a uma história filosófica. Ulmer estaria, desta forma, pedindo uma chave de acesso a algo que percebe como fascinante, mas inacessível ao público que não conhece as bases filosóficas do autor, supondo, assim, uma centralidade a partir da qual seja possível uma descrição se orientar. Uma explicação sobre o método, para Ulmer, adentraria o elemento “misterioso” que teria percebido na obra de Nancy, que não seria, como supõe sua pergunta, um modo (pouco claro, confuso), dentre outros possíveis, de apresentação das coisas. Em última instância, o que é mágico ou

8Seria possível ter ocorrido aqui um erro de digitação com relação à mais provável forma “not one concept”, mas transcrevemos tal como consta no site.

9 (NANCY, Suiça, 2001). Disponível no site: http://www.egs.edu/faculty/jean-luc-nancy/articles/love-and-community/. Acesso em 10.08.2015 10Na longa entrevista concedida a Philippe Choulet e publicada na revista Animal, Nancy fala novamente sobre esse desconforto, enfatizando que isto possa ocorrer por não ter uma “veia sistêmica”: “oui, il est vrai que je n’ai pas du tout la veine fondatrice, ni systémique; ni la veine, ni la force. D’ailleurs je suis très mal à l’aise lorsqu’on me dit “votre pensée”. Or j’ai parfois, il y a déjà longtemps maintenant, vaguement rêvé d’un “système” (et je sais que je ne suis pas le seul)” (CHOULET, 2003, p. 107). Na sequência da resposta, Nancy comenta ainda que teria sido severamente julgado por esse motivo, pois sua maneira de trabalho seria “muito dispersa para fazer um bom diretor de pesquisa” (CHOULET, 2003, p. 108).

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misterioso, se remete a algo que foi velado pela sua apresentação, pela Darstellung filosófica11. Então se trataria, de acordo com a especulação da pergunta, de algo que não se faria claro por esse meio, por essa apresentação.

Na verdade, Ulmer parece estar interessado em uma revelação do que considera uma estrutura ou razão “implícita” no próprio processo de se relacionar com o mundo, ressaltando que o não oferecimento dessa possibilidade se configuraria como um problema. Nancy também não descarta a estrutura da pergunta na medida em que indica que noção de bricolagem, ela mesma constituindo uma racionalidade, de Lévi-Strauss, poderia ser uma forma de compreender o que faz no pensamento. Compreendemos, no entanto, que tal aparente “inconsistência”, (palavra nossa, adicionada ao que inferimos da pergunta de Ulmer), ou seja, isso que é formulado como falta de exposição da substância ou forma do pensamento, estaria de certo modo previsto naquilo que o pensamento de Nancy problematiza.

Pois bem, o método, na proposta abarcada pela pergunta, pertenceria ao domínio de uma linguagem ao mesmo tempo representativa e transparente, de uma lógica que leva a uma tradução de uma origem do sentido e do pensamento em palavras que correspondam a essa origem12. É inevitável perceber a pergunta imbricada em precondições conceituais que levam em conta padrões bem ou mal impostos pelo pensamento científico, reconhecidamente produzido a partir do século XIX. Nancy, entretanto, parece não entrar no registro de Ulmer com muito conforto. Na resposta, não se opõe com especial contundência, nem tampouco apazigua o questionamento, se abstendo de uma resposta “direta” sobre o método ou processo de pensamento.

O autor apresenta então um breve questionamento sobre certa dinâmica implicada em seu trabalho. Distanciando-se da ideia de um método “próprio”, construído a partir de um “conceito definido sobre alguma coisa”, seu trabalho se aproxima da dimensão sensível ou mesmo material do pensamento naquilo que diria respeito a uma partilha da existência. Em outras palavras, num primeiro momento da resposta, tanto a ideia de prover um conceito próprio/autoral quanto a de dispor de um

11 Reproduzimos o que Nancy compreende por Darstellung, em Le discours de la syncope: “Darstellung, position-là, au-devant, exhibition, exposition, monstration, mise en présence, mise en scène, genre ou style“ (NANCY, 1976, p. 26). 12Tal dificuldade de representar essa origem é, por exemplo, tematizada por Nancy em Le discours de la syncope: Logodaedalos (NANCY, 1976), ao problematizar os problemas que Kant teria tido com a escrita, na dificuldade de encontrar um estilo que melhor se adeque à escrita filosófica.

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único conceito como marca de seu pensamento, são colocadas em questão em detrimento de um pensamento que participa ativamente dos caminhos tomados, no que arriscamos dizer ser um chamado do mundo, das coisas, e dos seres, ainda que esse chamado não possa ser definido, apenas experimentado, como um tipo de “transe filosófico” com relação ao mundo.

Neste ponto, se daria então uma linha entre a negação do “método” enquanto um meio definidor de seu trabalho visando um determinado fim (tal como o define no artigo “Meditação de método” que retomaremos adiante) e a ênfase no que seria a bricolagem como sinônimo de uma existência ou obra compartilhada. O que haveria de mais “próprio”, ou “originário” no seu processo de pensamento, portanto, com o risco do essencialismo da formulação, seria justamente esse compartilhamento primeiro da existência. Contudo, é preciso adentrar um pouco mais essa ideia.

Levando em conta as premissas teóricas da pergunta, Nancy, a princípio, estaria inclinado, ainda que sem o formular explicitamente, a considerar a validade do elemento “mágico” nela contida ‒ na importância do espaço para o imprevisível, para o acaso, para um tipo de espontaneidade da experiência do pensamento, ou, ao menos, uma abertura a ela. Tenderia, ao longo da resposta, ao que pode ser entendido como uma imediaticidade da experiência do pensamento, mantendo-se, neste caso, o véu do elemento “misterioso”, daquilo que não tem nome, referido na pergunta, sem oferecer o “cerne” de referencialidade requerido a princípio ou ainda, contestando mesmo a possibilidade desse cerne. Mas em seguida, na consideração de que a bricolagem pode também ser tomada como um meio (meio, neste sentido, como método ou forma) para alcançar um determinado fim, essa dicotomia se desfaz criando uma tensão em sua declaração.

Na resposta, Nancy opera uma tensão na medida em que põe em questão a própria ideia de autonomia do pensamento filosófico. A ênfase passa da noção de “poucos recursos oferecidos para compreender um método” para algo como o intervalo incessante através do qual uma forma, uma substância, um método, é, igualmente, dispersão ‒ na retenção e no fluxo entre aquilo que se denominaria a vontade de autonomia e a inevitabilidade do provisório.

A resposta de Nancy é tateante. Seria árduo delimitar a previsibilidade dessa oscilação para o próprio autor, ou em que medida a dispersão oferecida pela bricolagem é capaz de ser mensurada. O que se dá como um limite entre a espontaneidade e a intencionalidade é o foco do problema. Afinal, a explicação sobre

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um “processo de pensamento” constitui um tema delicado na obra de Nancy. No entanto, podemos adentrar o espaço dessa dificuldade compreendendo este

tateamento como o foco de nosso interesse.

1.1.1 Método e bricolagem

O filósofo parece testar uma hipótese, construindo uma ideia e em seguida lançando uma dúvida sobre parte dela, pois cogita outra possibilidade de aproximação tanto da bricolagem quanto do método. Se o modo pelo qual se refere à bricolagem serve de suporte para um pensamento que se quer desprovido de método e orientado ao seu modo pela força da experiência de um comum, ao mesmo tempo, observa que, para Lévi-Strauss, tal técnica seria “tão racional quanto o método científico”. Ao fim, Nancy acaba fazendo uma aproximação entre a bricolagem ‒ instintiva, livre e eventual ‒ e a noção de método, fixa e determinante. Haveria uma relação intrínseca entre ambas, seja ela provocada conscientemente ou não pelo autor. Se a bricolagem aponta para uma liberdade, esta não se daria senão a partir de um tipo de determinação ou demanda do método. A hesitação da declaração, ao desfazer a dualidade, não perde sua complexidade, assim como não deixa de indicar alguma ambiguidade.

Em síntese, o ruído interno relativo a esse trecho se dá sobretudo no que se refere à ideia de que seu pensamento seja algo a ser revelado ou acessado (consequentemente à ideia de que esteja procurando esse acesso como forma de “propriedade” nos seus objetos), negando tanto o método científico quanto a bricolagem como lugares privilegiados pelo pensamento e como pensamento no sentido de alcançar ou definir alguma coisa, compreendendo as coisas tanto em si como para si. A relação entre o mundo e o pensamento é então tomada como uma prática em aberto, mantida entre a atividade ou a experiência do pensamento e o fato de que, ao dizê-lo, já se está construindo um discurso sobre ele.

Porém, como se ainda não fossem suficientes as palavras esboçadas até aqui a partir da resposta de Nancy, nos perguntamos novamente: em que consiste o método, em que consiste esse elemento que Ulmer chamou de “místico”, na reversibilidade constante entre mundo e escrita, coisas e pensamento, na obra de Nancy? Não parece haver resposta direta, transparente ou pronta na obra que ofereça propriamente um caminho, um meio – finalidade ou intencionalidade através da qual

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os “objetos” são pensados. E também, se a princípio, formulamos a procura de uma resposta evitando um mimetismo interpretativo ao modo de uma bricolagem de fragmentos (o que retornaria ao “opaco” do pensamento), a intenção de uma resposta adequada ao método denunciaria o problema inicial. Problema, este, contido na obra de Nancy mas que se remete, a princípio, a toda uma “tradição filosófica”, para lembrar a resposta de Ulmer, indicando referir-se, mais do que a uma tradição, a uma geração da filosofia francesa que, reunindo nomes como Derrida, Lacoue-Labarthe e Nancy, faz da escrita um lugar de acontecimento das próprias “questões” debatidas.

A linha interpretativa possível a nós, nesse momento, parece ser a de adentrar uma resposta através de partes dessa obra, em geral exercícios de evocação da palavra método (assim como a errância do próprio método, seu entorno, as comparações que a tocam e fazem margem, tornando-a, deste modo, ela mesma). Embora o que se possa talvez desejar, no sentido dos recortes de perspectivas e da evocação de uma palavra em uma obra, seja fazê-lo trazendo nesse movimento alguma distância ‒ a difícil distância que faz com que, possivelmente por isso, o autor se diga “paralisado” pela pergunta que o induz a responder sobre um método, fixo, imóvel. Afinal, a paralisia é justamente o problema da imobilidade, da falta de espaço para que algo possa respirar, circular, existir. É preciso, afinal, um meio de acesso às coisas, mas um meio que não seja um método, ao menos não o método que se oponha a um certo movimento da vida.

***

Método e bricolagem. Tomemos adiante a particularidade dessa primeira

ressonância de duas palavras oferecidas pela fala de Nancy13. Formulando novamente a provocação de Nancy, o autor estaria nesta declaração aproximando radicalmente o método da bricolagem – o previsível do imprevisível ‒ na medida em que, ou ambas seriam pensadas ao mesmo tempo, ou não seriam de todo pensadas. Com isso, em nossa leitura, pensamos a relação provocada por estas palavras como

13Nesse sentido, talvez pudéssemos dizer que a palavra método seria mais provocada pela resposta de Nancy do que pela pergunta de Ulmer, que não menciona a palavra propriamente, mas o que seria entendido como um “processo de pensamento”, este provavelmente um termo menos polarizado, ou mesmo polêmico, do que “método”, como acaba por formular Nancy. Assim, ainda que insira com mais evidência a polarização, Nancy, aos poucos, irá desfazê-la, criando uma suspensão do que seria uma dicotomia entre método e bricolagem, que significaria, inclusive, a suspensão mesma do pensamento, como desenvolve em outros textos.

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um primeiro alvéolo, uma primeira cavidade com a qual o pensamento de Nancy, ao se abrir à sua insustentabilidade, à impossibilidade constitutiva de se cumprir enquanto método, busca uma outra forma de “alcançar” sentido.

O método, palavra característica da consistência, da consequência e da autonomia que requer o discurso filosófico, sofrendo assim a demanda dessa outra palavra14, que de acordo com sua carga semântica, representa o imprevisível dos acontecimentos, aquilo que é caseiro, improvisado e manual, em detrimento de uma atividade profissional, especializada. Bricolagem, que aqui mais seria um termo assimilado como prática de pensamento aberta aos encontros imprevistos, aquilo que se faz repentinamente disponível, em detrimento do que se requer de antemão e exige para isso uma previsibilidade. A bricolagem como possível palavra para método se daria, assim, enquanto prática em aberto, em resposta à autonomia deste último, operando, na narrativa do autor, sob o registro da pluralidade – na descrição das figuras que lhe inspiraram ‒ e moldando, a seu modo, um tipo de orientação específica no seu pensamento.

O “meta-comentário” que constitui a resposta de Nancy, ao negar a ideia de algo que se aproxime tanto da ideia de método quanto de finalidade, se reverte em um entrelaçamento entre aquilo que se escreve e o mundo ‒ não para criar uma filosofia própria, mas para trabalhar junto ao mundo que se impõe, através das pessoas encontradas e do modo de apresentação de sua vida de pensamento, como descreve a forma como se interessou pela filosofia de Hegel15 na resposta a Gregory

14Tomamos como referência a definição encontrada no Larousse do termo bricolage: “1. Activité manuelle non professionnelle consistant en travaux de réparation, d'installation ou de fabrication effectués dans la maison. 2. Travail peu sérieux, grossier ; rafistolage.” Disponível em http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/bricolage/11132. Acessado em 10.12.2015.

15 Em La possibilite d’un monde, livro de entrevistas feitas por Pierre-Philippe Jandin, Nancy, ao comentar sobre autores que influenciaram seu percurso. diz: “j’ai eu le sentiment que Hegel était celui qui avait été le premier à être allé aussi loin que possible pour sensibiliser l’intelligible, par le mouvement dialectique qui l’anime justement” (NANCY, 2013, 26). À Nancy, igualmente na conferência de encerramento no congresso sobre sua obra (NANCY, Être/ intime/ politique 2015, Atenas), interessaram considerações sobre como equalizar a práxis filosófica, que ora se dá como uma atividade “pesada”, faltando “vida”, “toque” e ora como algo que “sensibiliza”, que “toca”15 (Disponível em http://jeanlucnancy.gr/. Acessado em 15.08.2015). “É preciso fazer filosofia de dentro” diz o autor na conferência, como uma forma de trazer para o discurso filosófico a vitalidade de uma praxis sensível. Nancy discutiu sobre o modo como filósofos percebiam sua escrita, comentando particularmente sobre Hegel, citando uma passagem no prefácio de Filosofia do direito onde o filósofo estabelece uma relação entre a filosofia e o pássaro de Minerva, ou seja, a coruja (pássaro da inteligência) que voa no cair da noite, quando o mundo está cinza, descolorido. Hegel compara a atividade filosófica com a cor “cinza”, em contraste com o mundo, que é colorido. O cinza seria a cor do conceito (a não-cor); ali onde se teriam perdido as cores da vida e a coruja representa a possibilidade vislumbrada de reverter esse quadro descolorido por meio de um voo do pensamento. A filosofia, na perspectiva de Nancy a partir de Hegel, começa num dado momento a perceber-se pálida, sem cor, cinza, faltando beleza. Neste ambiente é que voa a coruja, no “gris sur

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Ulmer. A avaliação do autor a respeito do que o move, nesta resposta, se baseia na eventualidade de ser tocado pelas pessoas que conhece e que de algum modo compartilham com ele ou através dele a existência, mais do que qualquer finalidade estabelecida ‒ não no sentido dos indivíduos que ali estão, mas da pulsão e do movimento de pensamento que os atravessa.

Os encontros, sejam eles quais forem, segundo a resposta citada, o teriam afetado diretamente. Nancy então menciona uma sequência de autores, cujo contato (no caso, exemplos de pessoas que de fato conheceu) teria moldado, cada um ao seu modo, seu percurso, seus centros de interesse, vindo a modalizar sua própria trajetória intelectual. Nancy cita Jacques Derrida, Paul Ricoeur e Georges Canguilhem, com quem teve importante relação de troca intelectual, durante períodos da sua vida. São pensadores cujas aulas frequentou16, construiu parcerias, ouviu seus

discursos, suas vozes, seus modos de expressão. É interessante notar, neste sentido, que a primeira coisa comentada por Nancy sobre o modo como é afetado por outros autores, ao explicar de que forma prescindiria de uma ideia de método, é uma certa leitura de Hegel por parte de alguém que conheceu “pessoalmente”: “I heard somebody teaching about Hegel in a certain way17. That touched me, even if I did not understand very much at the time”. A afirmação opera como se, para que se

le gris” – pois sabe que não é senão discurso e representação. É assim que, tecendo essas considerações, Nancy termina sua conferência em Atenas, dizendo que gostaria que a sua própria atividade, a dele, Jean-Luc Nancy, se assemelhasse à da coruja de Minerva. Ou ao menos, de uma pequena coruja de Minerva. Pássaro cujo voo se justificaria a despeito de um mundo descolorido e ao mesmo tempo, por este mundo, como uma necessidade de fazer mundo neste mundo. Neste sentido, Nancy parece buscar na linguagem a pulsão de um acesso ao sentido, tal como a preparação do deslocamento diante de um mundo cinza, poluído. A cor cinza e a insuficiência da linguagem em dizer o comum indicam, neste caso, um modo de respirar e acessar o comum na escrita, um modo que se abre quando não há nada a esperar, nenhuma “cor” para alcançar. Não importaria em qual ponto se está neste voo, e sim a busca dessa pulsação e de uma pontuação constante através da qual o mundo se apresenta. 16Nancy foi orientando de Paul Ricoeur, que dirigiu seu trabalho de maitrise sobre a quesão da religião em Hegel. Tanto Ricoeur quanto Canguilhem lhe deram aulas na Sorbonne no início dos anos sessenta, marcando o início de seu trajeto na filosofia. Com relação a Derrida, com quem Nancy teve contato pela primeira vez ainda jovem, quando Derrida escreve em resposta a um de seus artigos, segue-se uma grande quantidade de trocas intelectuais (e necessariamente “pessoais”) mantida, neste plano que aqui debatemos, até a morte de Derrida, em 2001.

17À guisa de de curiosidade, a partir do que a declaração desperta, poderíamos aventar se tratar aqui do filósofo jesuíta Georges Morel (1921-1989). Nancy conta a respeito das primeiras pessoas que influenciaram seus interesses filosóficos na seguinte entrevista publicada em Libération em fevereiro de 2000: http://next.liberation.fr/livres/2000/02/17/le-partage-l-infini-et-le-jardin_318046 (NANCY, Libération, 2000. Acessado em 12.07. 2015). Para mais informações a esse respeito, um plano geral onde o autor descreve relações pessoais importantes (referindo-se a Lucien Braun, Daniel Joubert e Henri Levrèvre, tendo este último sido como um elo entre ele e Lacoue-Labarthe) que colaboraram para um tipo de panorama ainda mais inicial de seu pensamento, pode igualmente ser lido no livro de entrevistas Proprement dit. Entretien sur le mythe (NANCY, 2015).

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despertem certos interesses de pesquisa, importasse um tipo de relação “direta” entre corpos. E os corpos, no caso, estariam justamente no cerne do funcionamento do pensamento.

A abertura proposta pela bricolagem, então, é dada a partir de um contato simultâneo com o outro através do compartilhamento sensível da existência. Seria preciso ressaltar, porém, que esse aspecto de uma “relação direta” e atravessamento da vida na obra se tornaria complexo em outros momentos da obra, trazendo não apenas a obviedade de um presente acessível, mas aquilo que se experimenta como presente, tal como, por exemplo, o autor coloca a partir de seu estudo sobre a escrita de Kant, em Le discours de la syncope: “(...) ‘Kant’ n’intervient pas ici comme un objet passé – au titre de l’érudition, de l’histoire de la philosophie, ou d’on ne sait quel impayable ‘retour à Kant’...” (NANCY, 1976, p. 16-17).

O aspecto da simultaneidade que implica a experiência do contato com o corpo vivo, considerando a voz emitida por esse corpo ‒ seu ritmo; seu modo e gestual ‒ assim como o modo de apresentação de um pensamento, parece então constituir uma dinâmica própria do trabalho de Nancy. É através do contato com os corpos que se dá a engrenagem de seu trabalho, como revela na resposta dada a Ulmer. Como se o corpo e seus sinais, seus modos de apresentação, se destacassem com relação ao signo de um corpo. Afinal, Nancy revela que não entendia muita coisa sobre Hegel naquele momento, indicando que o entusiasmo parte quase exclusivamente do contágio com este alguém que lhe mostrou Hegel.

Sabemos que Nancy leu Hegel “diretamente” e minuciosamente, filósofo sobre o qual escreveu dois livros, La remarque spéculative (NANCY, 1975) e

L’inquietude du négatif (NANCY, 1997), e comentou em outros textos diversos ao

longo de sua obra. Sabe-se, igualmente, que Nancy não deixa de considerar uma leitura interpretativa de Hegel e muito menos que se oporia à importância da interpretação como ato reflexivo. Mas aqui as oposições parecem pouco ajudar a compreender o que se passa.

A ênfase dada à importância de um primeiro contato que teve com determinada leitura de alguém que conheceu parece dizer algo além de um interesse pela experiência da vida versus um interesse filosófico. Ou seja, a ênfase apontaria para a necessidade e a disponibilidade em ser tocado pelos vivos, sensivelmente e simbolicamente, por pessoas que estão pensando e produzindo em um dado momento. Assim, seria através do contato originado por uma relação que se dá no

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plano sensível, corporal e direto com as pessoas, seus modos de produção de conhecimento, que o autor teria construído seu trajeto na filosofia. A abertura em direção a outros discursos, outros trabalhos de pensamento, mais do que um desejo de transformação epistemológica no sentido cognitivo, corresponderia, segundo o meta-comentário do autor sobre sua obra em agosto de 2001, a um movimento de engajamento do corpo e suas percepções. Deste modo, o processo que Nancy aponta se dá através de um contato com as sinalizações do corpo, deixando-se influenciar por elas ao mesmo tempo em que produz possíveis sentidos interpretativos a partir de tais encontros.

Se pudermos abrir um breve parêntesis a respeito da aproximação que traz Nancy entre o seu trabalho e a bricolagem, merece ser lembrado que Lévi-Strauss relaciona o seu esforço de pesquisa em La pensée sauvage (1962) a uma compreensão sobre o “pensamento mágico” ou “selvagem” (tendo claros ecos em sua extensa investigação sobre a relação entre o homem contemporâneo e o mito). O termo bricolagem estaria, para Lévi-Strauss, relacionado ao “mágico” e ao “selvagem” através do que hoje se compreende por intuição. Em outras palavras, a bricolagem seria um método racional de interagir com o mundo provocado por esta intuição. Entre o homem neolítico e o homem da ciência contemporânea haveria a diferença das formas de se aproximar do que compreendemos por “pensamento científico”, que se dividiria, portanto, em dois modos diferentes, segundo Lévi-Strauss:

um aproximadamente ajustado ao da percepção e à imaginação, e outro deslocado; como se as relações necessárias, objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes, um muito próximo da intuição sensível, o outro mais distanciado. (Lévi-Strauss, 2005, p. 30)

O modo ou a técnica mais próxima da intuição sensível seria, no trabalho de Lévi-Strauss, uma maneira de se expor, de tomar “uma parte aqui, outra ali, e formar uma outra coisa em outro lugar”, à qual Nancy se refere na sua resposta.

A referência trazida do trabalho de Claude Lévi-Strauss, ao mesmo tempo que menciona o caráter racional dessa pesquisa, ocorre como se Nancy estivesse dando eco à própria pergunta de Ulmer a respeito da relação entre um pensamento mágico e racional, mas mantendo-a (propositalmente ou não) em suspenso. A referência surge introduzindo uma dúvida no argumento da bricolagem como alternativa ao método, pois afinal, também ela é racional, ela também faz parte de

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