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3. O sentido entre o sopro e o corpo

3.2 A evidência da mitologia

Nancy, no seu projeto de descontrução do cristianismo, parte de uma análise que evidencia o problema da alusão a um mito sem logos, uma alusão que no entanto se faz a partir do logos, ou seja, da própria linguagem, que põe em jogo a distância da verdade. Na perspectiva secular, o mito como possibilidade efetiva de acesso à verdade é intocável, inacessível, não havendo comunidade que se faça a partir da ideia de uma relação comum, dada, à verdade. Em outras palavras, uma relação que se supõe inspirada é imediatamente atravessada pela falta de recursos, sensíveis e verbais (duas possibilidades que estariam dentro do mesmo campo de articulação), do homem em se inserir, hoje, no que se supõe de uma configuração

mítica do mundo. A palavra, o logos, dá a vida na própria falta de recursos de si mesma. Quebra-se a irreversibilidade da relação do homem ao mito e à verdade, mas na medida em que é trazida a incerteza, a insegurança da expectativa do retorno significativo, daquilo que irremediavelmente está interdito pela palavra. O pensamento da significação, neste sentido, nasce junto com a incerteza e hesitação na falta de um movimento de retorno. Com a palavra, o retorno não se dá senão como expectativa de seu próprio acesso, inserindo-se a reversibilidade a partir de um limite. Na medida em que a linguagem é operada, na impossibilidade de retorno, coloca-se em jogo o desejo de verdade e acesso ao divino.

O monoteísmo, assim como o pensamento ateu (ambos portadores do

logos), segundo Nancy, traria a evidência de que a relação ao outro (que por sua vez

seria a relação ao comum), hoje, é quebrada e parcial. Ambos sustentariam um elo conector, a crença na possibilidade de religação que apenas se dá na impossibilidade apropriativa. A verdade, nesta perspectiva, sendo aquilo que o logos não pronuncia, mas resta em silêncio, fora do mundo e fora da linguagem. É importante, para Nancy, no projeto da desconstrução do cristianismo, tornar visível essa configuração incerta, entre o silêncio e o verbo, na inspiração quebrada da modernidade. Tornar visível tal impropriedade seria um modo de recusar os termos da lógica dialética (na religiosidade ou no ateísmo da relação ao sentido) e abrir-se para um movimento do sentido que tem lugar no corpo ‒ na pele e na linguagem.

O sopro é hoje inseparável do movimento do logos. Assim, o sopro cristão, como ainda será detalhado, se coloca a partir de uma reversibilidade, dado que com o monoteísmo é trazida a ideia de princípio, de deslocamento da ordem mítica presencial. A reversibilidade, então, passa a se dar não como retorno, mas como expectativa de acesso a um lugar inicial, ainda que o retorno ao mito seja impossível fundamentalmente com o advento de um pensamento sobre o mito. O homem, enquanto homem, e separado do mito, teria se dado a partir da separação constante (no abandono ou abandonar das palavras, retomando o vocabulário que apresentamos no segundo capítulo) na falta de recursos da própria condição dos seres.

O mundo que se abre com o advento da representação é a evidência de tal separação mítica ou presencial, mas de uma separação de algo que nunca teria se apresentado como unidade, dado que sua lógica (que se insere fundamentalmente na “mitologia”) é a própria estrutura na qual o homem se conhece. A relação ao sopro

passa a ser sempre mediada e o mundo se configura de modo dicotômico, entre o mito e a sua representação. O que se supõe como intransitividade seria já uma alusão, palavra que interrompe, pela própria existência, o ser enquanto coisa que se estabelece. O homem é colocado numa expectativa ou alusão de acesso à verdade, dando à “alusão” e à “suposição” justamente a medida da suspensão que é exercida numa certa história do pensamento que se dá a partir do advento da mitologia como possibilidade referencial. O que passa pela palavra opera o distanciamento desse lugar alusivamente originário.

A cisão ou impossibilidade essencial como acesso imediato, inspirado, ou privilegiado à verdade seria um momento na história do Ocidente que se observa, segundo Nancy, antes mesmo de Platão (anterioridade que iremos comentar). Trata- se de uma experiência imprecisa da origem através da qual a verdade, ou mais especificamente, o sentido, hoje aconteceria, filosoficamente ou literariamente, sendo esse limite verificado tanto na palavra mitologia quanto no nascimento do monoteísmo. Pois o homem viveria hoje numa estrutura cindida – a ausência do mito é vista como ausência de fundamento, de preenchimento significativo. Não é possível senão de uma maneira transitiva se relacionar com o que se supõe uma intransitividade da verdade.

Por isso, a palavra “origem”, para designar a cisão de um mundo onde o sentido é “soprado”, “inspirado”, “dado”, apenas seria correta se ao mesmo tempo compreendemos que essa origem é, ela mesma, sem um centro efetivamente referencial ou organizador, pois a lógica, o evento da própria linguagem, depôs esse centro a partir do qual um fundamento seria possível. A deposição do “mito pelo mito”, de uma relação mítica a ele insere assim a relação com a verdade num campo de relação com a ausência, mas na medida em que a presença e a ausência passam a ser indissociáveis – a palavra nomeia o mito ausente.

A relação de inspiração, de transitividade mítica com relação à presença, seria interrompida pelo movimento corporal da respiração, pelo batimento, pela separação do sopro que indica uma inspiração plena – e, por sua vez, uma relação direta com a morte. Não porque o corpo denota a razão ou o logos, suprimindo o mito, mas porque o corpo que nasce na história ocidental do sentido será aquele que mantém uma relação limite com o mito, pois lhe falta o solo, ou o “fundo” marcado por uma tal relação com a presença.

surgem a filosofia e a literatura na relação à verdade ou mais especificamente, ao sentido. Ambas precisam desse mesmo limite para existir, sendo a questão mesma do surgimento do pensamento indissociável desse problema. Não problematizaremos, contudo, a relação entre o que hoje é concebido como o espaço dessas duas ciências (literatura e filosofia), mas o contexto filosófico e religioso do nascimento do monoteísmo no qual ambas “disciplinas” nascem.

A cisão através da qual a filosofia e a literatura seriam possíveis implica uma rearticulação complexa do homem com relação à presença e à verdade, trazendo nisso o componente da incerteza, que seria o “terreno” do homem cristão ou secular (que se basearia no mesmo princípio em que se funda o cristianismo, como iremos abordar). Se a tarefa da rearticulação puder ser tomada inteiramente, a incerteza dessa relação (à presença e à verdade) poderá repercutir no que Nancy chama de “sentido”, ou seja, abrir para uma possibilidade criativa. Tal possibilidade, no entanto, será abordada posteriormente.

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Como buscamos brevemente apresentar e iremos agora detalhar, o período referido pelos gregos como “mitológico”, suscita uma especulação complexa e fragmentada com relação à verdade. Tanto a alusão ao mito quanto a elaboração dessa alusão como mito implicam numa compreensão da intimidade da palavra mitologia que se abre a si mesma na alusão de si. Uma intimidade na qual o logos se separa de um poder mítico estruturante, e o mito não pode ser separado de sua grafia, num fardo retórico da linguagem. O que se supõe como “irreversível”, daquilo que é simplesmente “dado”, se inscreve no lugar que deseja o retorno, e o que se coloca como possibilidade de reversão o faz a cada momento como um murmúrio para fora do logos. “Mitologia” diria essa dificuldade e essa suspensão, designando a palavra, na obra de Nancy, a própria inseparabilidade na qual a verdade nos chega. Compreender a especificidade da palavra “mitologia”, neste caso, evidencia a própria ruptura da origem da possibilidade de transversalidade do sentido para que o próprio sentido seja possível. No surgimento dessa especulação, na vivência do mito e aquilo que se refere como mito, surgem tanto a literatura quanto a filosofia, num tipo de berço ou coração comum, dado que ambas precisam da cisão da contiguidade, e da relação uma à outra para se fazerem

enquanto discurso, na formação do pensamento. O que as marca como “conhecimento”, razão e ciência, carrega a técnica, a arte do distanciamento, ainda que suas formas de incisão na verdade sejam diferentes.

O termo “mitológico” teria sido assim utilizado para substituir, como explica Nancy em “Athéisme et monothéisme”, em La déclosion. Déconstruction du

christianisme I109 (2005), o que hoje é nomeado através da “fisiologia” e da

“cosmologia”. Os termos, segundo o autor, se referem a uma relação direta com a presença (cuja força seria proveniente da manifestação dos deuses), e a substituição marcaria o início do que seria a ficção, na representatividade e na especulação de uma relação imediata com o mundo.

Nancy coloca a questão a partir do theos110 de Platão, referindo-se a como

Deus já aí não seria responsável pelas escolhas humanas:

Dans le theos de Platon, il est permis de dire que les dieux disparaissent (même si Platon lui-même peut les nommer au pluriel à quelques lignes du theos singulier). C’est-à-dire que le paradigme de l’univers donné, ordonné et animé – cela qu’on va nommer une mythologie pour y substituer une physiologie et une cosmologie – a cessé de fonctionner, et que ces représentations et ses histoires fondatrices ne sont plus reconnues comme modelages plastiques du monde mais seulement comme fictions (NANCY, 2005, p. 28).

A passagem do texto traduz a relação do homem à presença dos deuses como fisiologia e cosmologia, tradução que marca com a “lógica” cada um dos nomes que designariam a princípio o domínio do corpo e da matéria. “Tradução” ainda que demonstra um marco no nascimento do próprio logos, que se resulta irremediavelmente dessa cisão de uma relação à presença. Num contexto não menos histórico-filosófico, a passagem representa igualmente o que neste tempo foi o nascimento da cidade, do direito e da razão e o desaparecimento de qualquer certeza relativa à fundação da existência. Tratar-se-ia, portanto, de compreender uma relação ao sentido que se tornou hoje111 impossível de ser formulada fora da lógica da ficção

109Nos interessa aqui, mais do que abordar os pormenores desse projeto de enormes proporções, adentrar alguns pontos de discussão para podermos compreender uma determinada relação, de presença e ausência, sopro e ausência de sopro, ao qual o jogo do sentido, seja ele através do pensamento ou da arte, estaria, segundo o autor, submetido. 110O autor está possivelmente se referindo ao livro Timeu, de Platão, sendo a psyché a gênese o princípio do movimento e do conhecimento. 111Teria acontecido de modo diferente? Seria uma outra possível questão para futuro desenvolvimento cujos riscos de abordagem seriam provavelmente, também, os da reverência ou da ficção.

e da representação, que instalam cisões num modelo mítico no qual a relação imediata com a natureza era o único imperativo (ainda que este mesmo imperativo seja também ao seu modo especulativo).

Não menos fundamental no detalhamento da questão, aspecto este que aqui nos acompanhará, seria o da mudança que o monoteísmo insere com a questão do nome, que substitui um mundo onde os deuses não o tinham. Não havia a separação que o nome divino inaugura. O Deus monoteísta é aquele que tem um nome, ainda que não possa ser pronunciado. Na mesma conferência publicada em

Au ciel et sur la terre (2004) explica que “on disait ‘les dieux’, mais aucun dieu ne

s’appelait dieu. Par exemple, Zeus est un dieu. Même avant la Grèce, en Egypte, Osiris est un dieu, Isis est une déesse. Mais aucun dieu ne s’appelle dieu” (NANCY, 2004, p. 25). A cisão à qual nos referimos quebra a estrutura da presença e instala um nome que já não se presentifica. Na medida em que a razão substitui esse Deus, ausente, impronunciável, ela desloca o eixo da ausência mantendo a estrutura desfalecente. A razão tem a mesma lógica que a crença, o que seria diferente da fé, mas ainda não entraremos nesse ponto.

Em La communauté désœuvrée (1986) o autor já havia desenvolvido a questão da relação intrinsecamente cindida do homem ao sentido, pensando, de forma similar à La déclosion (2005), o modo como, para a época moderna, os gregos teriam sido aqueles que viveram a intimidade da palavra mitologia: “la grandeur des Grecs – dirá l’âge moderne de la mytho-logie – est d’avoir vécu dans l’intimité d’une telle parole, et d’y avoir fondé leur logos même: ils sont ceux pour qui muthos et logos ‘sont le même’” (NANCY, 2004112, p. 123). O que se entende, deste modo, por mitológico, é algo que reúne logos e muthos. O mundo se “estrutura” com o logos. Da “intimidade” à cisão irreparável em mito-logia, a história é conhecida, não deixando, no entanto, de ser tateada na construção sempre inédita do pensamento que se confronta com a cisão interna a partir da qual ele mesmo nasce. No caminho entre os mitos como modelos plásticos de mundo às histórias como ficções, se daria hoje o fenômeno de uma vida onde os deuses desapareceram, e a experiência possível com relação ao sentido se daria através da “ficção”, no distanciamento que ela oferece.

A referência da cosmologia que nos traz o comentário de Nancy trata então da relação à presença dos deuses num tempo mítico em que o homem mantinha com

os deuses ‒ que habitam uma instância superior no mesmo mundo dos homens – um tipo específico de recebimento, uma forma de atravessamento direto da presença, sendo a estrutura na qual se vive a da physis, conceito diversamente elaborado na história da filosofia em torno do que seria uma relação intrínseca, imanente, com a natureza. O que se pronunciaria, a palavra falada, no contexto da mitologia politeísta, é dotado de significado, assegurando uma organização comunitária. Trata-se de um atravessamento, portanto, que jogaria o homem diretamente em direção ao que seria seu exterior (numa formulação posterior), imerso na potência e na verdade dos deuses. Um movimento que não apenas se dava à revelia do homem (porém, frisemos, não estamos num campo filosófico de especulação do sujeito como categoria), mas sobretudo, implicava uma relação de fatalidade com relação à morte, à finitude irremediável da condição do homem mortal.

Os deuses do mundo antigo, presentes seja no mundo mineral ou vegetal, habitariam o mesmo mundo dos homens, mas a comunicação destes mundos apenas se daria sob o custo da morte. O mundo da mitologia, acessado ele também hoje pela especulação da lógica, seria, assim, aquele em que a morte seria irreparável, tal como explica Nancy em “Au milieu du monde”, texto que constitui a segunda parte de

L’Adoration (2010):

Le monde gréco-romain a été celui de l’homme mortel. La mort y était irréparable, et même si on pouvait chercher à la penser tantôt comme gloire, tantôt comme délivrance, elle restait l’autre inconciliable de la vie (NANCY, 2010, p. 36).

A “inspiração”, o que se tece como tendo “sentido”, ou seja, o atravessamento que acontece na relação à presença, neste contexto, constituiria uma ameaça direta da própria morte, dado que entre a vida e a morte, entre a respiração e a inspiração, não haveria canal de comunicação que não seja ameaçador e fatal.

Teríamos cessado de reconhecer as histórias, narrativas do mito, como “modelos plásticos” do mundo, como Nancy explica no trecho de La déclosion (2010). Elas teriam se tornado ficção para o homem de hoje, o que seria igualmente uma forma de desmitologização. O monoteísmo entraria nesse mesmo lugar que retira o mito e insere a lógica do princípio, que seria a lógica do próprio verbo, como nome de Deus. O livro de Nancy é em grande parte influenciado por outro trabalho, Le

Gauchet, cuja ideia é a de que assistimos o fim do poder instituinte da religião, que se dissolve diante do próprio modo de organização das instituições humanas. Haveria, para Gauchet, uma relação intrínseca entre o cristianismo e a secularização.

O sentido nunca está dado como algo que simplesmente se acessa: eis o que a lógica do monoteísmo nos apresenta. Restaria, ao homem hoje, se relacionar com a “fisio” e o “cosmo” a partir dessa cisão inconciliável. Os sentimentos vividos pelo corpo, nos seus aspectos locais, materiais, seriam eles mesmos as medidas dessa cisão, dado que seriam experiências do extravasamento, da incompletude, num processo onde os deuses teriam se despedido da estrutura sensível do mundo.

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