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O preparador corporal e o trânsito da concepção para o corpo em cena

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Academic year: 2021

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DANIEL SILVA LEUBACK LOPES

O PREPARADOR CORPORAL E O TRÂNSITO DA

CONCEPÇÃO PARA O CORPO EM CENA

Campinas 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

DANIEL SILVA LEUBACK LOPES

O PREPARADOR CORPORAL E O TRÂNSITO DA

CONCEPÇÃO PARA O CORPO EM CENA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Artes da Cena na área de concentração Teatro, Dança e Performance. Orientador: Veronica Fabrini Machado de Almeida

Campinas 2016

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RESUMO

A presente pesquisa tem como foco central identificar a figura do preparador corporal enquanto uma função técnica e artística ascendente no cenário teatral contemporâneo brasileiro. Identifica as acepções e usos do termo “preparação corporal de atores” no país e aborda ainda, como estudo de caso, o processo de substituição de atores na obra Irmãos de Sangue, da companhia franco-brasileira Dos à Deux. Por fim, almeja elucidar as implicações do trabalho do preparador corporal no pensamento teatral contemporâneo brasileiro.

Palavras-Chave: preparador corporal; treinamento de atores; ficha técnica;

Klauss Vianna; Cia. Dos à Deux

ABSTRACT

The current research focuses in identifying a new professional known as preparador corporal (body preparer) as an ascending both artistic and technical function in contemporary Brazilian theater. It identifies the meanings of the term "body preparation of actors" in the theater plays performed in Brazil. This research also discusses, as a case study, the replacement of actors in the show Blood Brothers, performed by the French-Brazilian company Dos à Deux. Finally, it aims to elucidate the implications of the body preparer’s work in Brazilian theater’s contemporary thought.

Key Words: body preparer; actor’s training; theater credits; Klauss Vianna; Dos

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AGRADECIMENTOS

Faço questão de deixar aqui registrado meus mais sinceros agradecimentos a alguns, dos muitos, sem os quais esse trabalho não teria sido possível. À todos, minha gratidão, por tornar mais suave a árdua tarefa de transformar em palavras aquilo que nos move mais profundamente.

Agradeço, em especial, aos meus pais, Carlos Leuback e Nádia Filomena, por sempre me apoiarem incondicionalmente. Por sempre não somente acreditarem, mas por me incentivarem nesse caminho da Arte, da vida que eu escolhi e acreditei. Pai, seu sorriso e orgulho a cada conquista minha nessa “vida de artista” sempre me dizem mais que mil palavras. Mãe, pode contar que sempre vou catar conchinhas na areia. Você me ensinou muito mais do que imagina. Já vim ao mundo com muita sorte, por ter vocês dois como as minhas primeiras referências.

Seus atuais companheiros, que nesse processo, além da imensa paz que há em saber que os nossos mais caros estão acolhidos e bem acompanhados por pessoas especiais e “do bem”, nesse processo em especial, me deram auxílios essenciais aos quais sempre serei grato. À Bety, por me acolher durante alguns meses em que dividia a escrita da dissertação com a temporada no Rio de Janeiro. Sempre solícita, dando todo o suporte para que pudesse, mesmo fora de casa, me dedicar a essa escrita. E ao Prof. Dr. Carlos Tourinho, ou pra mim, só o Pito, além de todo o incentivo, agradeço pela revisão atenta e minuciosa desse texto, pelos conselhos e ajudas sem tamanho, um exemplo de entrega e uma verdadeira aula de dedicação à vida acadêmica. Obrigado aos dois, por serem também meus amigos queridos com quem posso contar.

Ao Fran, mais que meu irmão, um companheiro de jornada, parceiro, amigo pra todas as horas. O seu espírito jovem, inquieto e contestador me faz abrir os olhos para aquelas coisas que vamos deixando pelo caminho. Obrigado por me fazer lembrar quem eu quero ser e ao mesmo tempo deixar viva a criança em mim.

À vó Therezinha, o mais puro amor em forma de gente. Agradeço por todas as acolhidas. Por todos os carinhos. Obrigado vó, por ser e estar sempre presente. Obrigado por aguentar a saudade e ainda assim me incentivar a continuar nesse meu voo.

Aos queridos Artur Luanda Ribeiro e André Curti, agradeço muito pela oportunidade de dividir o palco com vocês e pela confiança que depositaram em mim. Sem dúvida aprendi muito além do que imaginam sobre a arte do ator, a entrega e a

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responsabilidade de ser um artista da cena. E estendo minha gratidão à minha companheira de cena (e de viagens) Raquel Iantas e toda a equipe: Jessé, Hugo, Luciano, Luana, Willy, PH, Augusto, Thaís, Neila, Marcelle e Sérgio. Sem vocês realmente essa pesquisa não seria como foi. E esse caminho não teria tido tanta graça.

Aos meus queridos amigos no Rio, na distância da mudança de cidade para realizar esse curso, vocês fazem com que sempre haja uma sensação de que sempre haverá uma casa para voltar. Ao ficar longe, me aproximei de muitos. Em especial, à Erika, Ana Paula, Dani e Helena, Amanda e bebê, Ruy e Helena, Stela.

Aos amigos em São Paulo, que fizeram essa mudança também ter o seu gosto especial. Em especial a Márcia Alves, obrigado por me receber e aguentar todas as presenças e ausências nessa nossa casinha no meio da selva de pedra; ao Vini Piedade, “primo”, incentivador, introdutor aos círculos artísticos paulistanos e, no futuro, certamente ainda um parceiro de cena; à Cecília, que veio também do Rio, matamos saudades de casa no sotaque um do outro; e à ‘família’ do JP, por fazer haver um porto seguro (e sempre divertido) por aqui.

Em especial, ao Fabiano Lodi, companheiro, parceiro. Sem você, essa jornada não teria sequer começado. Obrigado por me puxar para esse mergulho no escuro. Nesse mestrado, agradeço muito pelos insights e incentivos nessa pesquisa, pelas trocas e pela dedicação nos retornos sobre tudo que lhe mostrava. E lhe agradeço ainda mais pelos momentos que precisei de fugas e respiros no turbilhão das escritas e trabalhos. Sua porta e seu coração abertos pra mim, fizeram (e fazem) toda a diferença.

Na Unicamp, agradeço a todxs xs companheirxs de jornada nesse mestrado. Em especial, a Michelle Gonçalves e a Flora Gussonato, pela recepção na universidade, pelas trocas, pelas inúmeras caronas e a ajuda em me adaptar a nova cidade, inclusive indicando a casa onde vim morar.

Agradeço às grandes mulheres que curiosamente sempre surgem em minha trajetória na academia, como mestras que me inspiraram e guiam nesse caminho. Márcia Strazzacappa, Júlia Ziviani, Sayonara Pereira, Dani Gatti, Joana Ribeiro, Angel Vianna e outras, colaboram profundamente seja como professoras em disciplinas, como membros na banca da qualificação, ou simplesmente como referencias (bibliográficas ou de vida). Entre elas, agradeço especialmente, à Profa. Dra. Veronica Fabrini, pesquisadora e Artista (faço questão do ‘A’ maiúsculo), que nessa jornada de mestrado tive o prazer de ter como orientadora. Com sua escuta delicada e dedicada, uma abertura

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rara nos dias de hoje, sempre disposta, em nossas correrias (sempre), a contribuir verdadeiramente com a pesquisa e uma visão maior de Arte e Vida.

À coordenação do programa, exercida pelos professores Matteo Bonfito e Mariana Baruco, e aos funcionários da secretaria da pós-graduação do Instituto de Artes, sempre empenhados em fazer a ponte entre as altas e complicadas burocracias da universidade, e nós, desesperados com prazos, relatórios e assinaturas e tudo mais...

Por fim, agradeço à CAPES e ao CNPq, por financiarem essa pesquisa e outras mais em todo país. Por entenderem a especificidade do estudo da Arte na academia e viabilizarem nosso prosseguir. Mais do que nunca, esse tipo de revisão do mundo que só a Arte é capaz de fazer se faz absolutamente necessária.

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LISTA DE IMAGENS

Quadro 1 - Panorama histórico do trabalho sobre o ator... p.47

Quadro 2 - Tabela comparativa: preparação, treinamento e formação... p. 63

Figura 1 - Cena do espetáculo Saudade em Terras D’Água. Foto: Alain Chambaretaud

Fonte: arquivo publicado em site oficial da companhia...p.99

Figura 2 - Ficha técnica no Programa do espetáculo Ausência. SESC São Paulo, 2013

Fonte: acervo pessoal do pesquisador...p.102

Figura 3 - Imagem de divulgação da temporada em São Paulo, SESC Belenzinho

(outubro-novembro/2014)

Fonte: arquivo pessoal do pesquisador...p.105

Figura 4 - Imagem de divulgação da temporada em Brasília, Caixa Cultural Brasília

(julho/22015)

Fonte: arquivo pessoal do pesquisador...p.105

Figura 5 - Foto de cena do espetáculo Irmãos de Sangue.

Destaque para o cenário e seus movimentos. Foto: Renato Mangolin

Fonte: arquivo pessoal do pesquisador e da companhia...p.107

Figura 6 - “Deriva”. Cena do espetáculo Irmãos de Sangue. Foto: Lenise Pinheiro.

Fonte: arquivo do Jornal Folha de São Paulo. Outubro de 2014...p.109

Figura 7 - “Aniversário”. Cena do espetáculo. Foto: Renato Mangolin

Fonte: acervo pessoal do pesquisador e da companhia...p.111

Figura 8 - “Jantar”. Cena do espetáculo. Foto: Renato Mangolin

Fonte: acervo pessoal do pesquisador e da companhia...p.113

Figura 9 - “Teatrinho”. Cena do espetáculo. Foto: Renato Mangolin

Fonte: acervo pessoal do pesquisador e da companhia. ...p.117

Figura 10 - Cena do espetáculo. Foto: Renato Mangolin

Fonte: acervo pessoal do pesquisador e da companhia...p.146

Figura 11 - A Mãe fica gigante. Cena do espetáculo. Foto: Renato Mangolin

Fonte: acervo pessoal do pesquisador e da companhia...p.151

Figura 12 - “Jantar”. Foto do espetáculo. Foto: Renato Mangolin

Fonte: acervo pessoal do pesquisador e da companhia...p.154 .

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 12

PARTE I 1 Introduzindo uma nova função: o que é “preparação corporal”?... 22

2. Preparações e mais preparações: nomeando práticas corporais em fichas técnicas... 36

3 Transformações no trabalho do ator: do treinamento à preparação corporal... 46

3.1 A virada de século e as primeiras transformações... 49

3.2 A sistematização do trabalho do ator... 51

3.3 O treinamento como prática do ator... 57

3.4 Fronteiras com a dança e a performatividade... 65

4 Transformações do trabalho do ator no Brasil... 70

4.1 Entra em cena Klauss Vianna... 72

4.2 Trajetória – Um homem e suas cidades... 75

4.3 Herdeiros e fim da vida em São Paulo... 81

5 A preparação nas novas gerações... 84

5.1 Em um novo panorama global... 86

PARTE II 1. Em busca de uma preparação corporal – Estudo de caso de um “preparador” implícito... 89 1.1 A Cia. Dos à Deux – Histórico e pesquisa de linguagem... 95

1.2 Primeiros contatos... 99

2. Irmãos de Sangue... 105

2.1 Audições ... 106

2.2 O processo de substituição – em busca dos indícios de preparação corporal... 116

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2.3 Preparação para o espetáculo ... 119

2.3.1) Aquecimentos – preparação corporal x preparação física... 122

2.3.2) Exercícios Técnicos – preparação x treinamento... 126

2.3.2.a) Modos de trabalho e influências – a técnica da companhia... 130

2.3.2.b) A técnica em nosso processo... 133

2.3.2.c) Os exercícios técnicos... 135

2.3.2.d) Do treinamento à preparação... 139

2.3.3) Cenas – o diretor x o preparador corporal... 148

2.3.3.a) Exemplo 1) A gigante... 151

2.3.3.b) Exemplo 2) O jantar... 153

2.3.3.c) De diretores à potência de preparadores corporais... 156

2.3.4) Notas – um olhar também dentro de cena... 159

3. Últimas considerações sobre o processo... 162

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 166

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INTRODUÇÃO

A principal contribuição para o campo das Artes Cênicas a que se pretende essa dissertação é a de fundamentar um corpo conceitual para uma discussão acerca do preparador corporal no teatro, diretamente relacionado à prática dos profissionais dedicados a essa emergente especificidade do processo cênico no contexto brasileiro contemporâneo.

Essa pesquisa encontra suas raízes no momento em que ainda era aluno do Curso de Pós Graduação Lato Sensu Preparação Corporal nas Artes Cênicas1 da Escola e Faculdade de Dança Angel Vianna, realizado no período de agosto de 2011 a dezembro de 2012. Através das disciplinas oferecidas na grade curricular, foram introduzidas diversas técnicas, sistemas, métodos e treinamentos relacionados a práticas corporais focadas no trabalho do ator/bailarino/performer. Ao lado da técnica de “consciência pelo movimento”, elaborada pela própria Angel Vianna2

, fundadora da referida escola, o Sistema Laban, a Técnica de Alexander, os Rasaboxes, os Viewpoints, entre outros procedimentos, foram apresentados aos discentes como possíveis ferramentas para enriquecer e desenvolver procedimentos de preparação corporal para atores, explorando de diferentes maneiras as possibilidades expressivas físicas e vocais dos artistas da cena. A partir de um determinado ponto, no entanto, ocorreu-me a questão de como abordar essas práticas corporais em trabalhos específicos, durante o curto tempo da montagem de um espetáculo, uma vez que tais técnicas são complexas e demandam empenho para que sejam apreendidas e trabalhadas de maneira significativa. Como deveriam os preparadores corporais fazer uso direto dos métodos, sistemas e/ou técnicas de treinamento de ator em sua prática, em salas de ensaio? Como poderiam ser adotadas em um processo específico, com tempo limitado, sem que se perdesse o essencial de suas concepções? Seria isso possível, ou demandaria uma adaptação (e por vezes uma sacrílega reinvenção) desses procedimentos sistematizados? Bastaria que o olhar do preparador estivesse apurado e fosse imbuído do conhecimento aprofundado de uma técnica para que pudesse despertar no ator/performer um resultado almejado? Como podem e devem ser empregadas e adaptadas essas diferentes práticas em diferentes

1 Intitulado Formação do Preparador Corporal nas Artes Cênicas à época do ingresso na mesma

instituição, em agosto de 2011.

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Bailarina e coreógrafa, ex-mulher de Klauss Vianna. O casal Vianna foi responsável por difundir uma revolução no pensamento sobre o corpo no meio teatral brasileiro desde a década de 1970.

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processos? Apenas o preparador deve dominar uma determinada técnica ou é necessário que os atores saibam, a todo o momento, a partir de quais referências o preparador corporal está trabalhando? E o que fazer quando os atores já se submetem a outros treinamentos que podem entrar em conflito com uma proposta abordada em sua preparação? O que se pode extrair de determinadas técnicas visando um aproveitamento contundente, e não apenas superficial, dos princípios desenvolvidos nos treinamentos específicos?

Em meio a tantas questões, foi proposto à época, como pesquisa central da monografia de conclusão desenvolvido no referido curso, o aprofundamento teórico e prático sobre uma técnica em particular, o Método Suzuki de Treinamento de Atores3, e sua aplicabilidade em um processo de preparação corporal de atores. Visou-se ali identificar princípios e fundamentos do método, e refletir acerca de como seus procedimentos singulares poderiam ser abordados de maneira mais imediata no restrito período de trabalho de uma preparação corporal para um espetáculo. A técnica, no entanto, se mostrava ampla e rigorosa, o que requeria um considerável tempo de dedicação à mesma para que se pudesse obter um aproveitamento satisfatório. Ficou evidente, a partir de tal experiência, que deveria haver uma distinção entre as metodologias e as sistematizações, e propriamente os processos a que denominamos como “preparação corporal”.

No estabelecimento e discussão dessas relações durante o desenvolvimento da referida monografia, buscando investigar essa passagem de um momento do trabalho com o ator a outro, revelou-se ainda uma dificuldade teórica referencial de balizar o que cabia exatamente a cada campo, da “preparação corporal” e do “treinamento de atores”. Tal impasse era fruto de um uso frequentemente indistinto dos dois termos, por vezes, dentro de uma mesma obra, e de certa escassez de um suporte conceitual que delimitasse, principalmente, a terminologia “preparação corporal”. Ambos os termos,

3 O Método Suzuki de Treinamento de Atores foi concebido pelo diretor e pensador teatral japonês

Tadashi Suzuki e os membros de sua companhia, a Suzuki Company of Toga, a partir de influências diversas, tais como o balé clássico, as artes marciais de origem japonesa e o teatro tradicional grego e japonês (mais especificamente noh e kabuki). Como proposta de treinamento de atores, o Método Suzuki pretende aumentar a capacidade física e vocal do ator, em um esforço para lapidar a percepção do próprio corpo e de suas capacidades como ferramentas expressivas (SUZUKI, 1986). Em termos práticos, o método é composto por uma variedade de exercícios que trabalham o centro de gravidade do corpo, a partir da imposição de uma série de desafios físicos, levando o ator a invocar sua capacidade criativa dentro de uma determinada estrutura. A atenção recai principalmente sobre a parte inferior do corpo, construindo um vocabulário de passos (desde simples caminhadas até potentes batidas com os pés no chão) e posturas, aguçando o controle da respiração e a concentração, constituindo uma gramática específica de movimentos que, ao ser executada com regularidade, visa o restabelecimento da potência física e vocal do ator.

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por vezes, apresentavam-se inclusive indissociáveis dos procedimentos introdutórios à arte de interpretar. Empregavam-se como sinônimos termos como ensinar, preparar e treinar. Nesse sentido, no que diz respeito ao tempo de trabalho para um determinado procedimento “tomar corpo”, seria preciso ainda considerar, antes do treinamento, também as implicações da formação do artista da cena.

À época, pudemos constatar que a noção de “treinamento de atores” era conceitualmente mais consolidada e historicamente estabelecida. Refletia um fenômeno característico do século XX, onde diversos diretores e pensadores do teatro se dedicaram à atividade de estabelecer parâmetros para o trabalho de ator. Segundo Hodge (2000), isso repercutiu sobremaneira no âmbito institucional, nas escolas de formação de atores, e por meio de uma atividade desenvolvida continuamente pelo ator, sem um obrigatório compromisso estético relativo ao seu conteúdo apreendido. A noção de “treinamento de atores” se consolida como um espaço para o trabalho do ator sobre si mesmo, diferindo, em termos de objetivos específicos, de ensaios ou demais práticas diretamente ligadas à construção de um espetáculo em particular. Cabe ressaltar que existem diversas correntes e entendimentos de propostas de treinamento para o ator, sendo esse termo, inclusive, contestado como o mais adequado em diversos casos, na possível implicação de um formalismo ou repetição irrefletida de práticas que um treinamento (no sentido de adestramento / condicionamento) pode assumir.

Para efeito de discussões na pesquisa que ora relatamos, e igualmente na que desenvolvemos na presente dissertação, partimos do pressuposto que deva haver uma atenção, por parte daqueles que participam desse tipo de atividade, para diferenciar um treinamento como espaço de experimentação, com objetivos artísticos e criativos, de uma mera repetição de exercícios e procedimentos sistematizados. Em Artes, seguir fórmulas, pode representar uma armadilha e assim, essa ressalva se faz necessária.

Sobretudo pelo fato de que em diversas práticas sistematizadas como treinamento de atores, não raro se constatam propostas pormenorizadas para que essa seja uma atividade dedicada a uma tomada de consciência – por parte do ator – sobre os fenômenos do corpo, sobre seu aparato físico e seu potencial expressivo, coincidindo com os objetivos últimos de uma preparação corporal de atores.

Aqui atentamos para a terminologia preparação corporal, que não correspondia a uma definição tão delimitada e, com frequência, era adotada sem uma reflexão mais cautelosa acerca de suas implicações. Ainda hoje, tanto na prática quanto em um contexto teórico-conceitual, esse termo apresenta um entendimento ainda amplo. Em

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busca de balizas para fundamentar o começo das discussões sobre essa terminologia, buscamos como ponto de referencia o local em que foi possível primeiramente identificá-la: nas fichas técnicas do teatro brasileiro das últimas quatro décadas. Tomamos como base de entendimento de preparação corporal, o trabalho realizado por aqueles intitulados preparadores corporais, no momento do exercício dessa função. Embora pareça óbvio, tal consideração se fez necessária para que pudéssemos encontrar um fio condutor que nos orientasse em meio aos diversos usos da expressão, como veremos ao longo dessa dissertação. Nesse caminho pudemos tentar abordar uma visão global da preparação corporal, para além da especificidade de cada prática isolada, e discutir sua interferência no fazer teatral.

Partindo desses pressupostos, no que se refere à discussão em torno dos termos “preparação” e “preparador corporal”, buscamos uma interlocução com as pesquisas empreendidas por Joana Ribeiro Tavares, fortuitamente orientadora da monografia de conclusão do referido curso de especialização.

O trabalho empreendido por Tavares (2007) em sua tese de doutoramento, e em diversos outros artigos e materiais subsequentes, compreende um rico levantamento histórico e reflexivo acerca das raízes da ideia de preparação corporal. Ela destaca essa atividade sobremaneira como um fenômeno que remonta no Brasil, ao século passado, em especial, à década de 1970, se referindo ao desdobramento de uma variedade de denominações assinadas, principalmente, por Klauss Vianna, ao longo de sua transição de bailarino e coreógrafo a colaborador em espetáculos teatrais durante o referido período.

Klauss Vianna é uma referência a qual consideramos fundamental para a compreensão da terminologia pesquisada, reconhecido como o pioneiro da “preparação corporal de atores” no Brasil. Sua influência, na verdade, afeta grande parte do atual entendimento de corpo no trabalho cênico brasileiro. Vianna atuava originalmente na área da dança, mas, a partir de meados dos anos 1960, começou a coreografar espetáculos teatrais e, posteriormente, lecionar para atores. Nesse percurso, ao invés da rigidez codificada de técnicas de dança com as quais os atores não estavam familiarizados, ele foi dando lugar a processos de sensibilização corporal (NEVES, 2008). De acordo com essas necessidades, ele desenvolveu seus trabalhos a partir da conscientização, por parte dos intérpretes, de elementos que fundamentavam o movimento como o fluxo e a percepção óssea e muscular.

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Nesse contexto, Tavares (2007; 2008) parte da visão do preparador corporal como “coreógrafo transposto” e da preparação corporal como um “quiasma”4

entre teatro e dança. Buscamos, em nossa contribuição, ir além dessa relação de intercessão entre a preparação corporal e a dança, procurando investigar as influências e raízes da preparação corporal no próprio teatro. Visamos, com isso, expandir esse horizonte e reconhecer tanto as condições que criaram essa abertura à corporalidade no fazer teatral, bem como as novas influencias que marcaram e remodelaram o trabalho do ator na contemporaneidade.

Vianna contribuiu para que houvesse uma mudança de perspectiva sobre a importância do trabalho corporal no teatro brasileiro. Hoje, tais princípios foram, em grande parte, incorporados a processos de formação de atores, sendo assimilados ao ofício de interpretar, em maior ou menor grau, desde a sua iniciação. Assim sendo, em um contexto contemporâneo, espera-se que os preparadores venham a desenvolver seu trabalho com atores já instrumentalizados e minimamente familiarizados com sua própria corporalidade, alterando as funções originalmente desempenhadas por Klauss Vianna. O que leva a uma crucial questão da formação do ator contemporâneo versus a crescente recorrência de um profissional dedicado a intervir em sua fisicalidade. Klauss Vianna (2005) já afirmava que muito se falava sobre o corpo, mas que havia pouca conscientização em torno do mesmo. Se a instrução deveria caracterizar um espaço maior para investigação do ator, o que poderia a ascensão da figura do “preparador corporal” representar na passagem da formação dos artistas da cena às necessidades objetivas da construção de um espetáculo?

Voltando à noção de “treinamento de atores”, essa certamente contribuiu com o estudo sobre a fundamentação do preparador corporal, apontando ainda importantes semelhanças e dissonâncias conceituais entre essas distintas alçadas. A reflexão acerca das relações entre os domínios do treinamento e da preparação podem nos fornecer importantes chaves de leitura ao entendimento de suas implicações na formação do preparador corporal, bem como em sua esfera de ação.

Surgiu, desse modo, por uma necessidade teórico reflexiva, o embrião da presente dissertação e o desejo de aprofundar esta discussão. Enquanto desdobramentos

4 “Quiasma — Reversibilidade ou entrelaçamento. Conceito cunhado por Ponty in:

Merleau-Ponty. “L’Entrelacs – Le Chiasme”. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1978. pp. 172-204. Acredita-se aqui, que o entrelaçamento que Klauss Vianna promoveu entre as áreas da dança e do teatro, ao trazer para o teatro os fundamentos do movimento pesquisados, até então, no corpo do bailarino possibilitou que ambas as áreas fossem afetadas, num processo de reversibilidade, uma vez que o coreógrafo sempre transitou entre os dois terrenos.” (TAVARES, 2008, p. 19).

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da pesquisa original, pretendemos aqui organizar e aprofundar levantamentos anteriores, deixando a especificidade da técnica anteriormente estudada, de todas as perguntas que apontamos como ponto de partida da pesquisa inicial, sobressai-se, nesse momento, um questionamento em busca de um entendimento mais amplo das implicações e relações que pode estabelecer um preparador corporal de atores.

Naquele primeiro momento, para poder identificar o preparador e preparação corporal, tivemos de recorrer às fichas técnicas de espetáculos teatrais. Dessa relação dicotômica entre uma inegável assimilação pelo meio teatral brasileiro da atualidade e compreensão ainda difusa dessas terminologias, surgiu a questão que move a presente pesquisa: o que podemos dizer do preparador corporal para além dessas fichas técnicas? Em que implica sua presença no atual panorama teatral brasileiro?

Assim, buscamos compreender o preparador corporal realmente com uma nova função e o quanto isso altera/afeta paradigmas historicamente estabelecidos no fazer teatral. Passa a haver uma possibilidade da relação diretor-ator ser intermediada por um outro profissional. Empenhamo-nos, assim, em compreender quais as repercussões desse movimento, e também o quanto de um ideal de preparação corporal está difundido a ponto de ser notório mesmo quando não declarado.

O estudo aqui empreendido apresenta uma elaboração teórica a partir da observação da inserção contextual dessas práticas. Nesse sentido, não prevê a elaboração de um procedimento específico de preparação corporal para atores, tampouco um treinamento ou qualquer outra manifestação artística diretamente gerada como resultado direto da pesquisa. A intenção foi fundamentar um corpo conceitual para discussão sobre o oficio de preparador corporal no teatro, com um intuito de preencher certa lacuna referencial para esse artista, articulando o material bibliográfico levantado em diálogo com a realidade de profissionais correntemente atuantes sob a denominação em discussão.

A convivência com profissionais experientes e atuantes como preparadores corporais já consagrados instigou – e hoje viabiliza em grande parte – a reflexão proposta. Essa proximidade se deu, principalmente, através de contatos estabelecidos ao longo do referido curso de especialização em Preparação Corporal nas Artes Cênicas, pela Faculdade Angel Vianna. Uma vez que os preparadores envolvidos no curso também se colocam enquanto formadores e formuladores de procedimentos de instrução da instância profissional / artística em questão, a discussão com estes artistas está aberta e se faz necessária. O que não exclui, de maneira alguma, outros profissionais cujo

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trabalho se destaque e represente, de certo modo, uma referência neste campo. Neste aspecto, pesquisador e pesquisados podem se fundir sob a égide de uma designação como preparadores corporais, em vistas a dar voz a um corpus emergente de artistas. A presença de preparadores corporais no campo profissional vem se consolidando, mas seu reconhecimento como uma função ainda é jovem, comparando sua ascensão nas últimas décadas aos séculos de história da arte teatral. Consideramos uma função nova no sentido dessa recente articulação propriamente como preparação corporal e daí se reflete a necessidade de nossa busca por um suporte e discussão sobre sua atuação.

Nesse intuito, entendemos que primeiro seria necessário melhor compreender e elucidar o que caracteriza preparador e preparação corporal enquanto função específica de um modo outro de fazer teatro no Brasil, para posteriormente discutir as suas implicações de maneira contextualizada, partindo de uma vivência experimentada enquanto artista-pesquisador.

Desse modo, em termos estruturais, a pesquisa se organiza a partir de dois grandes eixos. Primeiramente, na PARTE I, nos debruçamos sobre as raízes e implicações historiográficas referentes ao trabalho sobre o corpo em cena até chegar à própria genealogia do termo preparador corporal. Nesse percurso, perpassamos por uma breve rememoração das principais transformações das tradições teatrais empreendidas ao longo do século XX, desde as reformulações acerca do trabalho do ator no Ocidente, até à ascensão do coreógrafo brasileiro Klauss Vianna e seu legado.

Buscamos estabelecer uma trajetória que recupera uma corrente de práticas e pensamentos, bem como um contexto que criou demandas e condições para permitir o surgimento deste tipo de trabalho. Servem como um eixo histórico e ponto de partida para a pesquisa. Não pretendemos nos debruçar profundamente sobre cada um dos momentos elencados, isso já posto em outras obras de diversos pesquisadores de reconhecida relevância. Dos referidos dados, pretende-se explicitar os procedimentos e filosofia por detrás da história do emprego da ideia de preparação corporal, a ser confrontada às propostas dos preparadores de hoje. Representa uma base comparativa para contrastar e analisar como e o quanto o preparador corporal sofreu – e ainda sofre – influências artísticas e de pensamento sobre a arte teatral ao longo dos quase cinquenta anos nos quais a referida função é encontrada nas fichas técnicas no nosso país.

Tanto o contexto quanto a demanda do trabalho dos atores se transformaram, até chegar ao ponto de ser possível reivindicar um preparador corporal na equipe de criação de um espetáculo. É nessa revisão que a pesquisa pretende prestar uma de suas mais

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importantes contribuições. Chegamos até a versão original do preparador, encarnada na figura do próprio Klauss Vianna, compreendendo, a partir daí, o preparador corporal na atualidade. Em contato próximo a profissionais que atuam sobre a designação em questão, poderemos mapear o entendimento que os mesmos têm de sua ocupação e de como essa se articula em um contexto maior e integrado. Buscamos, dessa maneira, articular um levantamento teórico que possa servir futuramente como um contraponto estruturante à observação das práticas correntes.

Buscamos levantar uma compreensão do próprio preparador corporal de atores, no sentido de reconhecer o que sabe e o que se diz sobre ele. Tanto em um contexto teórico-conceitual quanto no entendimento daqueles que se valem de sua colaboração na prática, tentamos elencar o que fundamenta o surgimento e a contínua ascensão da figura de preparador corporal, que vemos como deflagrador de importantes mudanças no fazer teatral em nosso país.

Em um segundo momento, na PARTE II, nos dedicamos a um estudo de caso, aprofundando-nos no trabalho empreendido pela companhia teatral franco-brasileira Dos à Deux. A princípio, pensou-se que um estudo de caso, do próprio autor ou mesmo de outro artista, poderia assumir uma perspectiva reduzida sobre o objeto em questão. Um caráter de transitoriedade que se pressupõe atrelado à figura do preparador corporal, que é chave central de leitura da pesquisa que vem se desenvolvendo, poderia ficar restrito aos princípios e/ou procedimentos de um único artista ou mesmo de um único processo. Porém, o acompanhamento do processo do espetáculo Irmãos de Sangue (2103), junto à Cia. Dos à Deux, revelou importantes pistas para o reconhecimento, em termos práticos, da presente investigação. Como não há um preparador corporal oficialmente declarado na maioria dos trabalhos com a companhia, pudemos reconhecer aspectos mais amplos de sua implicação no fazer artístico não só do grupo, mas estabelecer importantes correlações com os modos de se fazer teatro no contexto em que se insere.

A companhia foi escolhida por sua pesquisa continuada no que tange à corporalidade dos atores em cena, por meio de um teatro gestual. Possuem uma trajetória sólida de mais de dezesseis anos ininterruptos de trabalho e sua excelência é internacionalmente reconhecida.

Seus diretores, André Curti e Artur Luanda Ribeiro, também atuam nos espetáculos e, por vezes, como no caso do espetáculo Ausência (solo com o ator Luís Melo), exercem ainda a função de preparadores corporais. Por meio de cursos e

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oficinas, desenvolvem uma didática própria de treinamento corporal para atores, ministrando-os em diferentes países e variadas realidades socioculturais. Assim, eles transitam entre as funções chave para essa pesquisa e cobrem, sob um ponto de vista empírico e de maneira ampla, boa parte do espectro sobre o qual os estudos vêm se dedicando.

Meu contato com a Cia. se deu por meio da participação, como ator no espetáculo Irmãos de Sangue, que estreou originalmente em Paris, em março de 2013 e passei a integrar a partir de maio de 2014. Essa experiência aconteceu durante o desenvolvimento da presente dissertação e se deu de forma intensa. A partir das afinidades artísticas, a experiência ampliou determinadas perspectivas da pesquisa sob um ponto de vista prático e contextualizado, fornecendo um material concreto para identificar as elaborações conceituais deste estudo. Não foi pretendido elaborar um relatório ou um memorial da experiência, mas oferecer um suporte empírico para debater mais consistentemente a temática da presente pesquisa. Esse processo nos serviu como parâmetro para as reflexões anteriormente propostas em um aspecto intencionalmente mais amplo e genérico nos capítulos anteriores.

Sabemos que esse exemplo não esgota as possibilidades de discussão levantadas pela temática escolhida para a pesquisa e nosso objetivo maior foi levantar questionamentos e contrapô-los ao que observamos em uma realidade em processo de reconfiguração.

Com essse trabalho, pretendemos, parafraseando o precursor Klauss Vianna, “que espero, não busque nem estabeleça certezas, mas desperte o desejo permanente de investigação perante a dança e a arte – que, para mim, se confundem com a vida” (2005, p. 15).

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INTRODUZINDO UMA NOVA FUNÇÃO: O QUE É “PREPARAÇÃO CORPORAL”?

Se buscarmos por “preparador(a) corporal” ou “preparação corporal” nas fichas técnicas das produções teatrais, especialmente, no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, sua presença é exponencialmente crescente e notória. Nessa variada gama de espetáculos cênicos, é possível observar ainda a recorrente utilização de nomenclaturas correlatas, associadas ao trabalho de um mesmo tipo de profissional, ligado à corporalidade e à movimentação dos artistas em cena, como “diretores de movimento”, por exemplo.

No entanto, os referidos termos encontram acepções ainda plurais, tanto nos discursos e práticas dos profissionais das artes cênicas, quanto ao serem referenciados em literatura especializada. As possibilidades dos procedimentos adotados para desenvolver uma preparação corporal são igualmente, ou até mesmo, mais diversos que a variedade de vertentes da linguagem teatral. Porém, não é esse exatamente o aspecto que gera a falta de consenso em sua definição. Tal diversidade gera ruídos no entendimento da noção de preparação corporal, simultaneamente refletindo e sendo reflexo de uma oscilação no que tange às atribuições e fronteiras do trabalho de um preparador corporal.

É comum escutarmos, tanto de leigos como de pessoas do meio, que tal ator ou bailarino “tem uma preparação corporal muito interessante”, ou que outro “tem uma preparação corporal muito precária para executar determinado papel”, evocando um entendimento da preparação como algo inerente às particularidades de cada artista da cena.

Trata-se de uma ideia de preparação corporal como algo que se tem ou não tem. Desse modo, em um de seus usos mais recorrentes, preparação corporal faz referência à trajetória do ator ou do bailarino. Nesse ponto de vista, leva-se em conta sua formação, sua experiência no campo artístico, a qual se associa uma consciência de sua corporalidade e, por vezes, os processos de manutenção e aperfeiçoamento a que se submete. Uma interpretação ampla que denota uma condição do artista de acordo com os trabalhos realizados e com sua devida disponibilidade para trabalhos ainda em potencial.

Mas também é, em outros casos, apontado como algo que se aprende e ensina. Não é raro encontrarmos folhetos com ofertas de oficinas e workshops – ou até mesmo

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dedisciplinas em cursos de teatro e dança – sob a designação de preparação corporal. O termo é ocasionalmente adotado como sinônimo de “expressão corporal” ou “trabalho de corpo”, podendo até mesmo gerar conflitos se não houver atenção à distinção entre as definições e/ou implicações do uso de cada um dos enunciados. Frente à diversidade de abordagens e experimentos de linguagens no cenário teatral contemporâneo, pode referir-se ainda ao domínio de habilidades específicas, como acrobacia, mímica etc. Novamente, não é raro ouvir: “ele está fazendo uma preparação corporal em yoga” ou “faço minha preparação corporal com kung-fu”. Ou ainda, ouvimos comuns referências justamente a certa maleabilidade na capacidade dos artistas da cena de transitar entre as diversas possibilidades.

No âmbito da academia, com crescente frequência se encontram pesquisas e/ou publicações que trazem em seu título determinada técnica como preparação corporal. Entre os exemplos mais próximos e recorrentes, encontram-se a capoeira e demais artes marciais, a linguagem circense, yoga e outras atividades de origem oriental, técnicas de ginástica, danças populares brasileiras e práticas de educação somática, somente para citar alguns exemplos. E esta lista não exclui procedimentos originais, articulados por pesquisadores com base em suas próprias experimentações, sistematizados enquanto possíveis processos de preparação corporal.

Compreendemos, no entanto, que apenas descrever factíveis meios adotados para um exercício de preparação corporal não necessariamente qualifica um preparador corporal. Os estudos ancorados no uso de técnicas visam comprovar sua eficácia em resultados artísticos, o que leva seu foco a articulações metodológicas e não à reflexão da preparação corporal enquanto uma terminologia específica. Acreditamos que o campo de ação de um preparador corporal não esteja limitado à aplicabilidade de possíveis técnicas.

Dentro desse breve panorama inicial, mesmo com levantamentos ainda superficiais, podemos identificar o uso do termo em questão para designar uma diversidade de atribuições. Diante disso, compreendemos o preparador corporal como uma figura ainda em processo de reconhecimento de suas delimitações, tanto práticas quanto conceituais. Dada sua recente e crescente ascensão nos últimos quarenta anos, configurar qual seria a especificidade de sua atuação no panorama teatral contemporâneo se dá, de maneira tácita, mais por um entendimento implícito compartilhado por aqueles que praticam e solicitam esse novo profissional da cena, do que por teorias ou tentativas de conceituar o termo preparador corporal.

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Nesse sentido, não buscamos tampouco com esse trabalho de pesquisa reduzir as atribuições de um preparador corporal no teatro a formulações específicas e restritivas. Compreendemos que, antes de tudo, o seu campo de ação pode ser tão amplo quanto as possibilidades do próprio fazer teatral. Diante da diversidade de escolas, estéticas e correntes do teatro na contemporaneidade, não parece fazer sentido tentar categorizar rigidamente certa funcionalidade dessa ou de qualquer outro artista envolvido nos processos cênicos. Seria como reduzir a pluralidade do “ser ator” ou “diretor teatral”, no contexto da contemporaneidade: amplo e, como a Arte, sobretudo em nosso momento histórico, passível de reinvenção.

Na esteira deste pensamento, isso se intensifica ao tentar compreender este artista que nasce dentro de tal multiplicidade. Visamos aqui estudar este novo profissional, sobretudo, para discutir o quanto a sua presença altera certos modos de produção nas artes cênicas, quais marcas ele chega a imprimir, compreendendo, assim, as demandas que ele é capaz de atender ou mesmo gerar. Trata-se, então, não apenas de constatar sua presença mediante alguma técnica que torne seu praticante um "preparador corporal", seja de carreira, seja de ocasião.

Podemos afirmar que poucos estudos se prestaram a investigar o preparador corporal e suas atribuições enquanto um profissional específico. Poderíamos inclusive debater se a natureza dessa função corresponderia a um trabalho “técnico”, “artístico” ou ambos. Tavares (2007), uma das poucas pesquisadoras que se dedica a uma fundamentação dessa função, atribui a escassez de referências ao caráter híbrido do tema. Entre o teatro e a dança, o seu reconhecimento inicial era difícil mesmo nessas duas manifestações artísticas. Em sua gênese, o preparador corporal não se enquadrava nos padrões vigentes de trabalho com o ator, tampouco na categoria de coreografias ou mesmo obtinha um reconhecimento enquanto atividade autônoma. Nascia de uma “prática deslocada”, onde fundamentos voltados para o trabalho com bailarinos era redescoberto à luz das necessidades de atores.

Como uma função inicialmente transposta da dança, hoje, ela transcende essa origem e se vale de variados procedimentos, inspirados também em práticas terapêuticas, esportivas ou ainda espiritualistas como a meditação, sem excluir, claro, as propriamente artísticas como teatro, circo, dança etc. Em geral, tais procedimentos são revisados com o objetivo de aperfeiçoar a consciência e a expressividade do corpo em cena. E tais escolhas já denotam, de acordo com a característica, uma concepção de corpo sobre a qual cada profissional se propõe trabalhar. Uma forte influência

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terapêutica poderia implicar no trabalho sobre si mesmo, de forte conscientização, ao passo que uma abordagem esportiva, poderia, por sua vez, recair sobre o corpo como máquina, em seu aspecto funcional, empreendendo um trabalho para adquirir habilidades e ampliação de limites. Já outras propostas se aprofundariam na própria poética da cena, ou ainda sobre um saber sensível e espiritual.

Sob este ponto de vista, o corpo é contemplado por uma diversidade de ideais e teorias para compreendê-lo, além de incontáveis práticas para investigá-lo artisticamente. Tudo isso, permite que a formação de um “preparador corporal” seja tão ampla quanto essas variáveis.

Reflexo, ou não, de tal diversidade, uma das principais marcas na lacuna de seu reconhecimento é que mesmo já constando há mais de quarenta anos em fichas técnicas no Brasil, a função de preparador corporal não figura entre aquelas listadas pelo Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão (SATED), instância que representa os interesses e direitos dos profissionais em exercício de funções artísticas, nos principais polos culturais do país. Os sindicatos do Rio de Janeiro e de São Paulo ainda se pautam igualmente pelo quadro anexo ao decreto nº 82.385, datado de 05 de outubro de 19785, para elencar as 64 designações que correspondem aos títulos e descrições das funções em que se desdobram as atividades de artistas e técnicos em espetáculos de diversões. À guisa de curiosidade, dentre todas as descrições de atribuições profissionais listadas e definidas no referido decreto, o termo “expressão corporal” é mencionado somente na descrição de um desses profissionais, que se dedica ao trabalho de Strip Tease.

Mesmo nos Sindicatos Estaduais da Dança (RJ e SP), tampouco encontramos o título em questão. Em suas listagens, figuram as funções de “Coreógrafos”, “Coreólogos de Dança”, “Maître de Ballet”, “Assistente de Coreógrafos” e “Ensaiador de Dança”, entre as mais próximas do que pode ser um preparador corporal. Mas, novamente, não encontramos exatamente essa especificidade.

Cabe ressaltar que tais instituições, mesmo com atualizações mais recentes não alteraram consistentemente suas listas desde o original e a disponibilidade de tais alterações é de difícil acesso, sem busca para o grande público, sobretudo online. Como

5 Decreto que regulamenta as práticas e os profissionais do campo artístico no Brasil. Disponível nos

websites dos Sindicatos de São Paulo http://www.satedsp.org.br/legislacao/78-quadro-anexo-ao-decreto-no-82385-de-05-de-outubro-de-1978.html e do Rio de Janeiro http://www.satedrj.org.br/ leis-e-convencoes/12-institucional/leis-e-convencoes/64-funcoes-em-que-se-desempenham-atividades-artisticas

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contraponto, importantes órgãos de pesquisa, como o CNPq, já apontam o “preparador corporal” como uma das funções artísticas a que reconhece.

Essa escassez de definições também vale para respeitados dicionários e obras enciclopédicas6 disponíveis na área. Eles trazem contundentes delineamentos das noções de “corpo”, “coreografia”, “ação”, “movimento” e, até mesmo, “treinamento”, mas “preparação” surge somente relacionada ao seu uso genérico, conforme viemos expondo desde o início desse texto. Não coube, aos conceitos de “preparador(a)” ou de “preparação corporal”, um verbete em particular preocupado em delimitar, mesmo que em linhas gerais, um conteúdo específico que lhe defina.

E o termo “preparador corporal”, como é utilizado no Brasil, não encontra um correspondente estritamente direto no cenário internacional. Nos países latino-americanos, como na Argentina7, trabalha-se expression corporal ou lenguaje del cuerpo, porém, não encontramos, com tanta frequência como no Brasil, um responsável assinando o trabalho corporal em suas fichas técnicas. Na Europa e nos Estados Unidos, predomina uma noção de “treinamento”, ou training. Mesmo em países de língua não inglesa, como ressalta Josette Ferál (2000), no caso da França, é por vezes adotado o termo em inglês. Actor’s training pode designar, igualmente, diversos aspectos da formação do ator, desde sua formação até os exercícios e procedimentos de aprimoramento do seu trabalho, podendo estar ou não atrelado à execução de uma obra em particular.

Porém, de acordo com uma tradição inaugurada por Jerzy Grotowski e perpetuada, principalmente, por Eugenio Barba, o training não tem uma aplicação direta ou qualquer outra relação obrigatória com a criação de um espetáculo. Treinar seria uma atividade independente. Em contraste a essa corrente, partimos de um entendimento de que só há preparador corporal quando há um espetáculo e um profissional que se disponha a empenhar essa função. Na busca por uma mínima delimitação conceitual, preparação corporal e treinamento se referem, desse modo, a momentos distintos de trabalho sobre os atores. Por mais que possam coincidir em termos de metodologia, suas finalidades lhes garantem características divergentes.

6 Tomamos como base as seguintes obras: “Dicionário de Teatro” de Patrice Pavis (1999), “A Arte

Secreta do Ator: Um Dicionário de Antropologia Teatral” de Barba e Savarese (2006), o “Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo” de Sarrazac (2012) e o “Dicionário do Teatro Brasileiro - Temas, Formas e Conceitos”, organizado por Guinsburg et alli (2006).

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Notoriamente, as artistas da dança, como Patricia Stokoe e Lola Brikman, são as responsáveis por desenvolver os referidos termos na Argentina.

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Não há aqui um juízo de valor. Cada qual cabe a um momento específico e com sua respectiva importância. As práticas referenciais e bases para articulação do trabalho com o ator podem coincidir uma vez que se estruturam enquanto propostas para balizar os processos de atuação. A formação do preparador, bem como o seu repertório técnico para trabalhar o corpo, se inspiram e se fundamentam nas mais variadas propostas e treinamentos para o ator. A principal diferença entre os momentos treinamento e preparação, como entendemos aqui, é que a técnica ou a prática pode ser a mesma, mas, o seu objetivo não. No ideal de treinamento, a metodologia prevalece. O resultado vem como consequência.

Na preparação de uma montagem teatral, nem sempre há tempo hábil para desenvolver com propriedade uma consciência sobre certos elementos da mecânica do corpo. Quando há um espetáculo e um objetivo específico – relembrando e considerando a subjetividade da obra de arte, e a abertura de resultados a que isso pode levar – um procedimento pode ser trocado em função da obtenção mais rápida ou efetiva de um efeito em cena.

A associação por meio de imagens, ou outras estratégias, podem auxiliar no reconhecimento e/ou servir instrução para resolver determinada demanda do espetáculo, sem requerer um conhecimento mais aprofundado de uma técnica específica por parte dos intérpretes. Como apontam Keiserman e Tavares (2013, p. 16), a “... ludicidade e a criatividade tornam-se, assim, fortes aliadas na aquisição de consciência corporal pelos artistas cênicos”. Na urgência das montagens, o preparador corporal é quem deve identificar (conscientizar a si e ao intérprete em questão) e agir (encaminhar o melhor procedimento) sobre a necessidade daquele corpo. Ele atua como um verdadeiro mediador entre três poéticas: 1) a do ator, derivada do trabalho do ator sobre si mesmo, oriunda das práticas, treinamentos, formação etc. que viveu; 2) a do diretor, nascida de uma visão singular sobre o material a ser trabalhado; 3) a da obra em questão, as inspirações e potencialidades do texto, pesquisa ou o que quer que sirva de suporte dramatúrgico/estrutural à criação.

Desse modo, podemos pressupor que a formação dos preparadores se torne, assim, múltipla, interdisciplinar e, possivelmente, tão ampla quando às variáveis da própria linguagem teatral. Desde os primeiros registros de atuação de preparadores corporais até hoje, não conseguimos identificar casos de profissionais que executem unicamente essa função. Suas formações são as mais diversas, dentre elas coreógrafos, atores, bailarinos, diretores, atletas, lutadores, professores de educação física ou artística

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e até terapeutas corporais. São profissionais que se dispõem a auxiliar, dentro de um processo criativo estipulado, o elenco a atingir, pelo viés de um melhor aproveitamento de sua corporalidade, algum objetivo de determinada proposta de construção de uma obra cênica.

Fora desse contexto, podem voltar a assumir suas funções originais. Na sala de aula, não responderia, neste momento, pela denominação de preparador e sim pela de professor. Coreografando, passaria a ser coreógrafo e assim por diante. Por mais que hoje existam artistas que indiquem, em seus currículos e cartas de apresentação, que atendam, igualmente, pela designação de preparador corporal. E, dificilmente, quando identificada como uma qualificação de determinado artista, a referida designação não vem acompanhada de outras funções, como uma ou duas das que foram citadas anteriormente. Essa função se legitima no momento de sua execução. Não identificamos, até esse ponto, uma formação direta e exclusiva para a formação de um preparador corporal. Essa é uma especialização8 de um trabalho com o ator, focando em sua corporalidade.

Questionamos ainda se por mais que se leiam diversos nomes relativos ao trabalho corporal do ator, estariam todos ligados a um entendimento único e relativo à preparação corporal? O preparador tem uma ampla gama de possibilidades de atuação, reconfiguradas a cada obra em que se envolve. “Expressão corporal”, “preparação corporal”, “trabalho de corpo” e “direção de movimento” são, ainda hoje, termos ocasionalmente sujeitos a uma abordagem genérica e entendimentos variados. Porém, essas funções encontram historicamente uma raiz comum nos primórdios de sua utilização na cena teatral brasileira: o trabalho do coreógrafo mineiro Klauss Vianna no teatro.

Embora não seja tão frequente, já começamos a encontrar obras dedicadas diretamente à trajetória de artistas que, em determinado ponto de suas carreiras, assumiram a alcunha de preparadores corporais de atores. Destaque para trabalhos de pesquisa que se refere à trajetória do coreógrafo brasileiro Klauss Vianna (1928 - 1992), reconhecido como um pioneiro na adoção da nomenclatura preparador corporal na década de 1970 no Brasil.

8 Faço aqui alusão à especialização tanto enquanto um refinamento das atividades artísticas ou técnicas

que levam a adotar a atribuição de preparador corporal, quanto ao fato desse ‘oficio’ ser oferecido somente em nível de pós graduação latu sensu, que exige uma formação anterior para que possa ser ingressado.

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Atribui-se ainda a ele o status de responsável por uma importante redefinição do corpo do ator no panorama brasileiro (TAVARES, 2007). Klauss Vianna inaugura uma maneira outra de tratar o corpo pelo movimento corporal consciente, o qual beneficia tanto atores como diretores. É possível identificar essa transformação deflagrada principalmente em seu período no Rio de Janeiro (1967-1979), fase em que foi mais intenso seu contato com a linguagem do teatro.

Pode-se dizer que uma primeira geração de preparadores corporais é composta pelo próprio Klauss Vianna, seus parceiros e pupilos, destacando-se sua própria família: aesposa Angel Vianna, seu filho Rainer Vianna e sua nora Neide Neves. E às gerações de preparadores que se seguem, pode-se atribuir um status de discípulos, sejam eles diretos ou indiretos, com a filosofia de Klauss atuando tacitamente como pensamento estruturante nesse tipo de trabalho. Hoje, apesar da assimilação de uma ampla gama de técnicas com as mais variadas fontes, é possível encontrar minimamente os vestígios do que era proposto por Klauss.

No entanto, cabe apontar que o curso de pós-graduação dedicado à Formação de Preparador Corporal nas Artes Cênicas9 não oferecia, à época frequentada pelo pesquisador, uma disciplina específica sobre a Técnica Klauss Vianna10. Quando elencamos Klauss Vianna como um preparador inicial, notamos que os princípios levantados por ele em seu livro ou mesmo nas pesquisas realizadas sobre ele, se afinam com qualidades que foram passadas de maneira latente nesse curso de especialização, subliminarmente implícita em discursos dos professores e não necessariamente como componentes curriculares. Contudo, consultando o site da escola11 verifica-se que para nas novas turmas, houve a inclusão de uma disciplina intitulada Família Vianna, que pode ter revertido esse quadro e abordar mais diretamente o referido conteúdo.

Na esteira desse legado, seja direto ou latente de Klauss Vianna, conforme identificamos no contexto formativo do artista cênico, é possível levantar uma suposição de que no meio profissional do teatro, uma herança similar também ocorra em certa medida. A identidade inicial do preparador corporal acompanha uma marca dos modos de trabalho de Klauss Vianna. Por mais variados que sejam os procedimentos técnicos de abordar o ator e sua corporalidade nos dias atuais, talvez seja possível notar

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Pós-graduação latu sensu em Preparação Corporal nas Artes Cênicas, oferecido pela Faculdade Angel Vianna, no Rio de Janeiro. Inaugurado no ano de 2010 com o nome Formação em Preparador Corporal nas Artes Cênicas. Cursado pelo autor no período de 2011 e 2012, onde obteve o grau de especialista.

10 Maiores explicações sobre essa técnica e suas implicações serão devidamente abordadas ao longo dessa

dissertação.

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que, a despeito do caminho trilhado, o que podem desejar, tacitamente, os artistas é que haja uma experiência como as vividas com a presença de Klauss Vianna ao lado da equipe de sua peça. Sem restringir metodologias de trabalho ou procedimentos, reitero, as possibilidades de abordagem corporal hoje são as mais diversas.

Dada a pessoalidade do seu modo de trabalho, o que, em síntese, transformou a relação com os atores foi sua presença. Não é preciso, como Klauss, inventar a roda, no sentido de abrir um novo espaço a ser explorado. Aos preparadores contemporâneos caberia, não exatamente reproduzir a sua experiência, mas, de certo modo, adaptá-la e ajustá-la às demandas do ator de nosso tempo. Esse ator que é ainda mais múltiplo, por vezes, já desconstruído e com experiência sobre sua corporalidade marcada desde a sua formação. E as nossas produções encontram-se inseridas em um contexto político-cultural distinto daquele das últimas décadas do século XX. Como autodidata e eterno curioso, Klauss se reinventou a cada novo empreendimento artístico que se envolveu. Mais do que seguir sua técnica, uma maneira de ser fiel ao seu legado seria manter um trabalho aberto e flexível.

O preparador atua em função de equalizar o elenco com as propostas da direção, adaptando suas estratégias a cada caso. Está sob o jugo de diversas variáveis para articular qual a melhor abordagem em cada situação: o elenco, o diretor, a proposta, o tempo para trabalhar e o seu próprio repertório.

Em última análise, quem é responsável pela presença de um preparador corporal é o diretor do espetáculo. Para os atores, entra mais um profissional, mais um olhar de fora imbuído de ajudá-lo a refinar seu trabalho com a obra a que se pretende apresentar. Não cabe a eles, no entanto, decidir se haverá ou não um preparador em um processo. Podem inclusive solicitá-lo, mas quem determina, dentro de um modelo hierárquico hegemônico, é o diretor. Ele próprio, o diretor teatral, poderia também executar esse trabalho com os intérpretes. Preparar os atores, com ênfase na corporalidade ou não, é uma incumbência recorrentemente atribuída ao diretor do espetáculo.

Poderia-se supor, em um pensamento inicial, que a presença do preparador corporal esteja, de certa maneira, associada a uma falta na formação dos atores. Em uma análise preambular, talvez esse tivesse sido o caso do próprio Klauss, indicando os primeiros passos rumo a uma conscientização corpórea de toda uma geração de atores brasileiros. Hoje, poderíamos questionar de maneira semelhante se a presença de um preparador estaria relacionada a um suporte ao diretor teatral diante de seus elencos. Com o trabalho corporal cada vez mais especializado, o diretor não é necessariamente

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obrigado a saber dialogar com a multiplicidade de correntes que chegam até ele marcadas nos corpos de seus atores.

No entanto, é de suma importância destacar o papel do diretor na formulação dos princípios do trabalho do ator ao longo do século XX. As sistematizações das mais diversas técnicas estão associadas a discursos específicos de determinados diretores e encenadores. Historicamente, a passagem do teatro textocêntrico para um teatro com ênfase na cena – e, consequentemente, no corpo dos intérpretes – se deu, primeiramente, na prática para posteriormente ser assimilada nos processos formativos. Enquanto novos caminhos para o teatro surgiam, em um panorama mais amplo, dentro do qual nem todos os artistas, tanto atores como diretores, estavam preparados ou mesmo afinados com tais mudanças.

Porém, em última instância, acreditamos aqui que a manutenção, bem como a crescente difusão desse fenômeno dos preparadores corporais resume uma sofisticação destas relações. O preparador pode ser mais um co-criador ou assistente do diretor, tal qual todos os demais componentes da ficha técnica. Ele convoca um cenógrafo para criar o cenário, um iluminador para conceber a luz e, da mesma maneira, um preparador para trabalhar sobre a corporalidade de seus atores. Como dito anteriormente, esse trabalho é, tradicionalmente, ligado ao próprio diretor. Vide encenadores de destaque no século XX, que são responsáveis por articular suas próprias técnicas e filosofias de trabalho do ator. Partindo dessa relação historicamente estabelecida, delegar essa função torna-se mais polêmico que contar com assistência em demais áreas como a cenografia, iluminação, sonoplastia, etc. O diretor é o grande arquiteto geral do projeto cênico, como um maestro que guia cada componente para dar vida a uma sinfonia.

Ao falar da inclusão de um preparador corporal em uma equipe criativa de um espetáculo, a discussão torna-se um pouco mais delicada e complexa ao ser comparada à inserção de outros colaboradores como cenógrafos, iluminadores, etc. Sempre haverá um trabalho corporal de ator; sim, isso é inegável. Mesmo que inconscientemente e realizado pelo próprio ator. Mas, dentre os possíveis objetivos do preparador, podemos destacar justamente o auxílio ao ator, tornando-o consciente da qualidade de seus movimentos, viabilizando, da melhor maneira, o seu trabalho corporal. A função surge como uma atividade complementar a possíveis lacunas na relação entre diretor e ator, para evitar uma tipificação, incongruências ou inconsistência no trabalho, principalmente, no que tange os objetivos da obra manifestos na corporalidade dos atores em cena.

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Cabe ao preparador corporal, conduzir os processos em direção aos pressupostos levantados pelo diretor, mesmo que esses sejam, a princípio, difusos. Por outro lado, de acordo com a liberdade e o tempo hábil em cada processo, o preparador pode ainda investir na pesquisa e investigação com os atores. Ele pode focar seu trabalho em gerar material para nutrir a criação, tanto em termos de qualidade de execução quanto do surgimento de novos materiais. Atuando no limiar entre um técnico e um artista criador, o preparador pode instigar esse descobrir-gerar-criar de corporalidades, modelos, matrizes que venham a nutrir a direção ao invés de buscar se encaixar em desejos e concepções pré-existentes.

Na fina linha que delimita sua esfera de ação, a cada processo, um preparador pode estar incumbido de gerar diretamente material para a cena ou apenas refinar o que chega de outros momentos do ensaio. Ele se dedica a criar condições para que os corpos em cena respondam às demandas do processo criativo em questão. Seja diretamente no momento em que atua sobre / junto aos atores ou no ato de predispor favoravelmente o elenco para uma etapa seguinte.

Joana Ribeiro e Marito Folsberg, em um dos poucos trabalhos integralmente voltados ao entendimento do “preparador corporal”, ressaltam que:

Dentre os objetivos maiores do preparador corporal foi destacado o de se integrar à proposta da encenação em que ele estiver inserido, como uma espécie de coreógrafo transposto, que atua a serviço de um projeto artístico, em diálogo constante com o diretor. Os objetivos específicos do preparador seriam, entre outros, os de tornar o ator mais expressivo e preciso em sua atuação, conscientizando-o das suas ferramentas, notadamente, a relação do movimento corporal com o espaço e o tempo. (2012, p. 4)

Eles apontam ainda para o preparador corporal como uma “figura-ponte” entre a

proposta específica (a encenação, o diretor) e as necessidades do ator, preparando-o pontualmente, a partir de um olhar mais apurado sobre a sua fisicalidade, visando atender às demandas da encenação.

Dessa colocação, podemos já problematizar o atual status da relação entre o ator e o diretor, ao assumir e reconhecer a necessidade de uma “ponte” entre ambos. Como a função de intervir e criar junto aos atores é tradicionalmente atribuída ao diretor, haver ou não um intermediador altera essas relações desde o momento em que um preparador é convocado.

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Que fissura seria essa que se deu na atualidade entre diretor e ator, que gerou espaço para o surgimento de um terceiro artista, responsável por permitir que a concepção do primeiro seja satisfatoriamente manifesta no segundo? Por que essa função foi delegada uma vez que o ator e seu corpo são, em última instância, o elemento essencial à construção da cena no teatro?

Em maior ou menor grau, o preparador serve à proposta do diretor e, no fim das contas, é esse quem demarca os limites de sua intervenção. O profissional pode ter uma tendência estética pessoal, porém, essa estaria subordinada às demandas da obra. Por vezes, o próprio convite para integrar uma equipe leva em conta uma afinidade anterior. Outras vezes, essa deve ser lapidada ao longo da execução do trabalho. Por sua especificidade como um trabalho de intermediação, a preparação corporal tampouco está ligada a estilos dramatúrgicos ou a uma poética específica anteriores à obra que se envolve. O preparador corporal – haja vista o exemplo do próprio Klauss Vianna – pode transitar por uma pluralidade de gêneros e estilos, sem que isso comprometa a realização de sua função.

No entanto, Tavares (2007) identifica também que, para Klauss Vianna, a dramaturgia era um elemento norteador de cada preparação corporal no teatro. Apesar das revoluções no teatro brasileiro das décadas em que exerceu seu trabalho, as obras em que interviu eram, em geral, concebidas a partir de textos teatrais. Por mais tênues que fossem, como no caso dos membros dos coros que executavam as coreografias, sempre havia personagens nos quais Klauss e os atores pudessem focar suas criações. Pode-se entender que ele partia da compreensão, por parte do ator, de suas potencialidades e as colocava a serviço da composição não só da cena, mas de um personagem.

Mesmo em poéticas mais experimentais, uma possível ausência de personagens – ao menos, de maneira clara, como na dramaturgia tradicional – não impediria a atuação de um preparador corporal. Por ventura, existem processos em que primeiro se concebem as personagens e depois se estrutura uma dramaturgia, de modo que esses se articulem cenicamente. E tal construção de personagens, com notável frequência, também partem justamente da corporalidade dos atores inserida em determinado universo temático. Nesse tipo de processo, por vezes, um preparador pode se revelar extremamente pertinente e conduzir as investigações dos atores por caminhos que, muitas vezes, não alcançariam por conta própria.

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