BERNARDO CURVELANO FREIRE
A Conciliação Interrompida: modos de mediação na França e o
espiritismo francês no século XIX.
CAMPINAS 2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Conciliação Interrompida: modos de mediação na França e espiritismo
francês no século XIX.
Orientador: Professor Doutor Ronaldo Romulo Machado de Almeida
CAMPINAS 2015
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas para a obtenção do Título de Doutor em Antropologia Social
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO BERNARDO CURVELANO FREIRE, E ORIENTADA PELO PROF. DR. RONALDO ROMULO MACHADO DE ALMEIDA
Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
Freire, Bernardo Curvelano,
F883c FreA conciliação interrompida : modos de mediação na França e espiritismo francês no século XIX / Bernardo Curvelano Freire. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
FreOrientador: Ronaldo Rômulo Machado de Almeida.
FreTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Fre1. Kardec, Allan, 1803-1869. 2. Espiritismo - França - Séc. XIX. 3. Mediação. 4. Fotografia. 5. Modernidade - Aspectos religiosos. I. Almeida, Ronaldo Rômulo Machado de,1966-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Interruption over conciliation : modes of mediation in France and
french spiritism in nineteenth century
Palavras-chave em inglês:
Spiritism - France - 19th century Mediation
Photography
Modernity - Religious aspects
Área de concentração: Antropologia Social Titulação: Doutor em Antropologia Social Banca examinadora:
Luiz Fernando Dias Duarte Patricia Birman
Bernardo Lewgoy Maria Suely Kofes
Data de defesa: 11-06-2015
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social
Abstract: The following thesis presents a discussion about the problem of religious mediation concerning the topics and objects mobilized by the judicial process moved against three spiritists, followers of Allan Kardec, in Paris, 1875. Using as procedure both, ethnographical procedures and rudiments of micro-history, the same judicial process is presented as a social drama carved in the judicial process text conceived as speech duration and form for official tutelary mediation diffusion in a post-revolutionary France. The subjects made visible by the primary documents suggests a great amount of analogies with themes that the social anthropology theory constantly reflects about what makes part of the bibliographical support more as witnesses of their own world then a simple and utilitarian index of quotes. Both, spiritists and their police opponents, share with the first anthropology a lot of questions about media and tutelary power and it is by this relationship that canonical texts are considered. Tylor, Durkheim, Mauss and Tarde are mixed together with Rivail, Kardec, Frégier and Bédarride as native theory offering different forms of conceiving the reasons for the process had took place, what includes anthropological theory.
Resumo: A presente tese discute, por via de uma prosa que margeia tanto procedimentos etnográficos quanto os da micro-história, diferentes dimensões relativas à mediação, inclusive a religiosa, que informam a diversidade de relações de um determinado acontecimento. O processo judicial que condena três espíritas kardecistas em Paris no ano de 1875, documento central desta tese, é compreendido como um drama social encravado no universo do texto jurídico, aqui compreendido como a duração da fala, e como forma de difusão da mediação estatal e tutelar da França pós-revolucionária. As questões visibilizadas pelos documentos primários sugerem um grande número de analogias com os temas abordados por parte da teoria antropológica que lhe é contemporânea. Assim, tal teoria é refletida, não como aporte utilitário de um sistema de citações utilizadas como suporte de um argumento, mas como testemunha de seu próprio mundo, solidária com muitos dos problemas postos tanto pelo espiritismo como de seus acusadores, o que os reúne ao redor do problema posto por variações a respeito das mediações e do poder tutelar. É assim que textos canônicos como os de Tylor, Durkheim, Mauss e Tarde são discutidos como uma versão particular de teoria nativa junto a Kardec, Rivail, Frégier e Bédarride, dando outra inteligibilidade para um processo que condena os kardecistas de Paris, o que por sua vez acrescenta outras dimensões daquilo que podemos reconhecer como sendo o conceito e a disciplina da antropologia.
Palavras-Chave: Kardec, Allan 1803-1869; Espiritismo – França – Sec. XIX; Mediação; Fotografia; Modernidade – Aspectos Religiosos.
Sumário
INTRODUÇÃO 1
PRIMEIRA SEÇÃO: FIGURA 25
Uma trama em busca de personagens: fábula, trama e tema. 30
Metáfora e Taxinomia: heresia, etnônimo e território. 79
O juiz, o porta-‐voz da lei e a solidariedade criminosa. 110
O objeto fotográfico 125
O fantasma na máquina: uma variação do tema da pessoa 142
A química e a perversão da seda 151
A conciliação desafiada e o demônio do procedimento 163
O terceiro réu, as relações solidárias e a presença de Allan Kardec. 187
SEGUNDA SEÇÃO: FUNDO/TERRITÓRIO:
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.
(1) França 209 (2) Tylor 213 (3) França 217 (4) Tylor 225 (5) França 229 (6) Tylor, De Brosses e Vico 232 (7) Vico, De Brosses e as mudanças de hábito 243 (8) Tylor, libertino 251 (9) Tylor, Tarde e o sonambulismo social 257 (10)Tarde, Kardec 262 (11) Tarde e a curva hieroglífica 268 (12) Tarde, Tylor e o Vôo das Andorinhas 269 (13) França como escala de relação 271 (14) França, Tarde e o Vôo das Andorinhas 278 (15) Tylor, profecia e política 282 (16) França e secularização, de fato e de direito 284 (17) França, secularização e escala 288 (18)A administração do pecado e o porta-‐voz da lei 291 (19) França, de fato e de direito 294 (20) França 299 (21) França, de fato e de direito 304 (22) França 307 (23) França 310 (24) França codificada 314 (25) França e cidadania cosmopolita 326
TERCEIRA SEÇÃO : trânsito entre figura e fundo, mudança de escala.
331
Uma vez na França. 343
Em nome de quem? 352
Um caso ligeiro: Olympe Audouard. 359
Rivail rival e o auto-‐didatismo. 365
Iconografia do Processo dos Espíritas 455
Bibliografia 469
Pro Mateus Isao,
Tetei,
correndo.
Agradecimentos:
Existe uma versão dos fatos que carrega consigo todos os ares de uma beleza inocente. Esta versão diz que é possível exercer o ofício de pesquisador em humanidades sem ser incômodo, especialmente aos mais próximos e queridos. A despeito de não acreditar que esta seja uma ilusão e tampouco manifestação de inocência, é seguramente moeda corrente. No entanto, não tenho o hábito de participar desta economia, o que diz muito a meu respeito tanto quanto diz a respeito desta tese. Este trabalho é em grande parte um tributo que pago aos amigos que tenho. Mas não necessariamente a todos os amigos. É dedicado especialmente aqueles que, pela arte do incômodo, da perturbação e demais riscos produzidos pelo desgaste, produziram uma sorte de atrito necessário para que o mais tímido dos passos não seja sempre um escorregão. Eis o pequeno passo que, da minha parte, acolhe o mesmo atrito que por vezes escoria, e que incomoda tanto quanto traz o conforto da brisa do movimento. Quero aqui enaltecer esta forma de amizade difícil por que ela assume os mais diversos riscos. É assim para todos que a aceitam da forma mais crua, por sua vez, a única forma de levá-‐la adiante. E também por que, a qualquer minuto, anos de amizade e parceria podem cair por terra, como frequentemente acontece. Como aconteceu. E ainda assim, sim.
De todos os amigos que fazem parte deste pequeno panteão pessoal, o primeiro, e seguramente o que gerou maior número de incômodos e desgastes, é Fábio Antônio da Costa, que aqui figura como protagonista do atrito. Antes de mais nada, porque sem este especialista em filosofia da física eu sequer teria um objeto de estudos. Foi em razão de sua interferência que quase tudo que aqui se apresenta pôde tomar lugar. Se antes de uma determinada conversa no falecido bar Asdrubal’s vim a conhecer o Processo dos Espíritas por sua sugestão, sua participação não se encerra aí. Como de hábito, o objeto de pesquisa veio acompanhado pelo interesse permanente e pelo constante debate a respeito de toda e qualquer sutileza. Com o intuito de
certificar que eu não estava queimando etapas e, principalmente, fugindo pela tangente, a constante tensão de nossas conversas é o que hoje chamamos de amizade. E se eu, por algum momento, recorri ao expediente mais fácil, foi por ter guardado a versão final desta tese da leitura perigosa oferecida – e sempre oferecida – pelo mesmo Fábio. Nunca arredou o pé, nem por um momento, de acompanhar, debater e confrontar com qualquer afirmação que por ventura eu viesse a ter coragem de fazer. Não foi fácil e diversas vezes não foi sequer agradável. Mas nesta altura dos acontecimentos, o que importa não é isso.
Ainda que nem tudo sejam espinhos, não há ninguém que figure na memória com admiração que não seja a presentificação de um desgaste, uma dificuldade e da coragem de manter de pé a austeridade agreste da clareza de propósitos. Nisso, há muito o que reconhecer em Axel Lazzari, Diego Escolar e Gustavo Verdésio pelo primeiro sopro de entusiasmo dado para esta pesquisa que, em um dado momento, parecia fadada ao fracasso. Os conheci na Reunião de Antropologia do Mercosul, em Buenos Aires, em 2009. Axel e Diego, junto com Antonádia Borges, organizavam um grupo de trabalho que tinha no inexplicável nas pesquisas em antropologiao o seu interesse declarado. Assim, passamos uma semana discutindo aporias empíricas da pesquisa de campo. Foi aí que o atrito frutífero, aliado com o interesse mais ue estimulante tomou lugar em uma estadia argentina que jamais esqueci. Axel, infatigável, promoveu o atrito gentil até mesmo como o anfitrião generoso que é; passeio no parque e jantar em família. A ele, agradeço em especial.
Nesta trajetória que antecede o começo de meu doutorado convém anotar a pequena reunião com Ricardo Benzaquém de Araújo, quem me ofereceu, ainda no IUPERJ, o mais preciso vaticínio a respeito daquilo que eu apresentava como um projeto de doutorado que agora chega à termo; de que este seria um caminho, para todos os efeitos, bastante solitário. Não tanto, ou não somente pela natureza do ofício, mas pela dificuldade de interlocução e pela natureza arrogante do pesquisador.
Este elogio do atrito que toma forma de agradecimento conta com outras personagens importantes. Assumiram seu papel como professores que participaram
da minha vida acadêmica e que souberam não me reduzir à caricatura de meu próprio esforço. Nisso, tenho muito a agradecer a Luiz Fernando Dias Duarte, Suely Kofes e John Monteiro (in memorian). A elas quero reservar este parágrafo como forma de homenagem. A Luiz, por ter sido aquele sem o qual eu talvez jamais voltado à antropologia depois de tantos anos como livreiro e tempos depois, emprestou-‐me o primeiro livro que li com o objetivo de escrever projeto cuja tese defendo agora. Seria fatigante desfilar a quantidade de aspectos de meu trabalho que tem em minha relação com Luiz o seu ponto de partida. No caso de John, nunca tive a sorte de ter sido seu aluno. Só travei contato com ele como representante discente em um tempo de reuniões acaloradas em que discutíamos a reforma da grade curricular. Estávamos frequentemente em lados opostos da mesa, em reuniões disputadíssimas e que John, esmerado no exame dos problemas, fazia com que fossem ainda mais difíceis exatamente porque se importava. Quanto à Suely, tudo o que eu tenho a dizer é que Celso Azzan Jr. tinha razão. Obrigado, Suely.
Aos três, quero os nomes de Amir Geiger, o de Patricia Birman, Christiano Tambascia e de Bernardo Lewgoy. Amir é , Com Patricia divido as situações de acaso, dado que é com quem sempre me encontro de improviso nos momentos em que minhas pesquisas vêm a público, não importando o país em que eu esteja. A Chris, agradeço por ter aceito ter entrado numa fria em nome de outros tempos que por fim, nos permitiram tomar decisões delicadas. Por fim, a Bernardo Lewgoy, quem gentilmente aceitou participar de minha banca de defesa, gentileza que perdurou defesa afora.
Esta pesquisa contou com uma espécie de confiança cega e de liberdade quase que irrestrita da parte de Ronaldo de Almeida, meu orientador, a quem agradeço. Dele e de Artionka Capiberibe veio também o apoio em momentos particularmente difíceis quando estivemos, minha esposa e eu, em Paris, no o cumprimento de meu estágio doutoral no exterior. Tomo a liberdade de agradecer também em seu nome. O mesmo pode e deve ser dito de Gabriel Feltran que ofereceu
não poucas orientações, especialmente aquelas que nos levaram ao parque de Belleville, ao Jardin Monet, em Giverny e ao sistema público de saúde francês.
Recebi o mesmo tipo de confiança irrestrita da parte de Omar Ribeiro Thomaz, que me aceitou como bolsista PED de uma disciplina oferecida para a graduação ao lado de Larissa Nadai, em 2011. Larissa, e depois Fabiana Andrade, foram as pessoas que fizeram as vezes da casa. Foram as mais frequentes amigas durante a maior parte de minha curta estadia nas dependências da Unicamp a quem tenho que agradecer, para além de tudo, pelo carinho e por terem falado tanto e tão bem de seu pesquisa de mestrado. Muitas das soluções de minha própria pesquisa são desdobramentos das pesquisa delas postas em outra escala. Uma nota semelhante vale para Neila Soares e Igor Scaramuzzi, ambos na qualidade de recém egressos e que foram camaradas de primeira e segunda hora, respectivamente. Creio que a lista de colegas a ser arrolada poderia compreender a todos. No entanto, cometo aqui a indelicadeza de citar especialmente os que estiveram envolvidos no processo de reestruturação da grade curricular da pós-‐graduação, movendo questões e debates particularmente delicados. Aqui, cabe o elogio ao protagonismo de Larissa Nadai, Ernenek Tupinambá Mejía, Mariana Petroni, Fabiana Andrade e Roberto Resende que tomaram a frente dos problemas que enfrentamos como corpo discente. Quero acreditar que aprendi com vocês aquilo que nos ensinaram.
O estágio de 12 meses no exterior, que assim como o resto do meu doutorado, também foi financiado pela CAPES, fixou residência na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Lá a pesquisa foi acolhida por Véronique Boyer (MASCIPO), quem generosamente me recebeu como aluno, e por Jean Hébrard (CRBC) que, mais do que interesse pela pesquisa, oferecereu orientação e suporte quando informado que ao invés de sermos duas pessoas a chegarem do Brasil, éramos em três. A ele, mais uma vez, muito obrigado. Aqui cabe uma nota especial de agradecimento à Alba Horesntein, da secretaria de acolhimento da EHESS, quem me pôs em contato com a figura de M. Blindermann, meu senhorio de Paris; e Natália Mesquita-‐Alves, secretária do Mascipo-‐EHESS, didática e meticulosa com tudo o que
precisei durante o ano em questão. Convém mencionar a gentileza e atenção dos bibliotecários da BnF e da Maison des Sciences de l’Homme, onde passei boa parte dos meus primeiros meses como estagiário. Agradeço também ao camarada Rodrigo Bulamah e Ana De Francesco que, não obstante serem amigos de IFCH, mobilizaram um grande número de contatos que dispunham em Paris, todos decisivos em diversos momentos. Foi por via de Rodrigo que conheci Mirko Solari Pita e Pia Cevallos. Ambos introduzem-‐se nesta história como a dádiva que se desdobrou na forma de minha irmãzinha de Taiwan, FangFang Chen, a quem amo muito e sinto muita falta sempre. Dádiva que também se materializou, por via dos contatos de Ana, na forma de Shisleni Macedo. Shis é a razão de ser de toda uma outra Paris que tomou forma graças a ela, em especial na mais ecumênica das ceias de Natal que tomou lugar durante três dias de farra, comida e sono. Em retorno não pude oferecer nada além de umas poucas aulas de natação e meia dúzia de queixas a respeito de tudo. Este pequeno universo em expansão contou também com minha sobrinha Fany Cazares, seu comparsa Rene Hdez; e muito especialmente, contou com entusiasmo comovente de Paula Bolonha na primeira vez que teve diante de si um quadro de Marc Chagall.
Em Paris pude reencontrar Ed Pereira, amigo dos tempos de mestrado no IFCS-‐UFRJ; e Luís Felipe Sobral, amigo e colega deste mesmo doutorado que agora se encerra, no caso dele, um dia depois do meu. Ambos fizeram os dias longos na Bibliothèque Nationale Française (François Miterrand), se não mais agradáveis, bastante menos perturbadores. E enquanto amargava certos efeitos da distância do torrão natal, chorava as pitangas com Gil Vicente Lourenção, quem estava no Japão, país com quem estreitou laços mais ou menos da mesma forma que eu. Sorte semelhante de lamúrias foram igualmente divididas com Gustavo Tentoni Dias, no King’s College de Londres, e com Alexandre Barreto de Menezes, em Camberra. E que não se entenda mal. Nunca conversamos sobre as saudades que, até então, não sentíamos do Brasil.
No entanto, é inegável que esta pesquisa foi levada à cabo mediada pelas enormes saudades dos tempos em que vivi no Rio de Janeiro, dos amigos e família que
tenho por lá. E que grande parte do tempo em que estive de volta na mesma Campinas em que fui criado, mantive um outro pé no antigo Distrito Federal onde se deu minha recriação (recreação?). Em ambas as pontas da ponte aérea tenho muito a agradecer as portas abertas e ao tempo que sempre me oferecem, família lá e cá, para que minha esposa e eu pudéssemos, agora na qualidade de pais, nos reorganizar a cada momento que antecede uma mudança de planos; de cidade; de vida. Meus pais, minha avó, meus irmãos em Campinas e, por extensão, okaasan, otosan e sobrinhos em Itapeti; livraria Berinjela e seus patronos (Daniel, Silvia, Nora e a extensão de Zílio Tosta) mais e Zulma e Zaíra, no Rio. A eles tenho que somar os nomes daqueles que me são caros e sempre me recebem em suas casas – mesmo quando a casa é a rua -‐ , seja para o que for, quando for: Rommel Luz, Taís Pereira, Gabriel Leitão, Manaíra Carneiro, André Sandino, Wagner Novais, Paulo Filgueiras Camacho, Bruno Marques, Indira Caballero, Eduardo Dullo, Delcides Marques, Taís Danton, Suzana Mattos, Bianca Arruda, Rafael Saldanha, César Marins, Hamilton Nonato Marques, Neide Eisele, Naara Luna, Jeremy Stolow, João Veridiano Franco Neto e meus padrinho e madrinha, Rafael Paquito Gutierrez e Maria Elvira Díaz Benítez. Cabem aqui o agradecimento a Orlando Calheiros pelos dias de quando me converti à Amazônia e, mais adiante, à fotografia. O feliz reencontro com Orlando se deu na mesma Belém que me apresentou Renata Emin quem, no final das contas, convenceu-‐me a não abandonar o doutorado e correr de volta para a Altamira que me acordou do sono dogmático. Agradeço também a Victor Amaral Costa, o Codorna, quem me desafiou a acordar e me acolheu em seu apartamento na mesma cidade localizada na Volta do Meio do rio Xingu.
Quero registrar aqui que não foram poucas as passagens desta tese que foram gestadas no Laboratório de Antropologia da Religião, coordenado por Ronaldo de Almeida. A convivência extremamente agradável com Hugo Soares, Ana Carolina Capellini Rigone, Hellen Fonseca, Deive Leal, Asher Brun, Carlos Gutierrez, Thuany Figueiredo, Everton de Oliveira, Sariza Caetano, Adriano Godoy e Lucas Braga merecem menção especial. Melhor do que vida longa, desejo vida próspera ao LAR. Outras tantas idéias são frutos de longas conversas, todas deliciosas, com Bruna
Bumachar, com quem tenho um laboratório que revive, sem que ela saiba, os mesmos temas que mantiveram minha pesquisa viva desde minha estadia em Buenos Aires.
Por fim, não posso deixar de anotar o grande atrito de todos, em grande parte a razão de eu ter persistido em escrever esta tese até seu ponto final, Claudia Yukie Dan, a quem não dediquei esta tese porque no meio do caminho apareceu Mateus Isao. Amo vocês.
“POBRE E se por acaso os sentidos talvez se vejam perdidos?
AUTOR Para isso, comum grei, terei, desde o pobre ao rei, para emendar quem errar e, a quem não sabe, ensinar,
junto ao ponto, minha lei; ela a todos vos dirá o que vos cabe fazer por queixoso ninguém ser.
Livre arbítrio tendes já, e pois prevenido está o teatro, a todos vem medir que tamanho tem esta vida. DISCRIÇÃO Que esperamos? Vamos ao teatro! TODOS Vamos! Deus é Deus, fazei o bem.
Quando vão sair de cena, aparece o MUNDO que os detém.”
Calderón de la Barca O Grande Teatro do Mundo
Introdução.
Esta tese de doutorado é antes de mais nada, pura e mera antropologia de gabinete. Ainda que o que se encontre aqui não deva ser compreendido como sua apologia, mas somente como seu exercício, o trabalho de pesquisa feito em arquivos e bibliotecas não poderia se esconder desta possível acusação. Tendo como contraponto o elogio à pesquisa de campo e ao dado empírico que fundamenta grande parte do dar,
receber e retribuir da antropologia como disciplina constituída, este mesmo processo
parece merecer algumas pausas em que o objetivo não seja necessariamente uma revisão de tudo, mas uma forma de reflexão que vise compreender qual é o problema, visando entabular questões de teoria. Assim, esta é uma tese em que as distâncias de viagem e os métodos de coleta de dados estão misturadas, em igual medida, às horas intermináveis em bibliotecas e arquivos buscando mais precisamente como formular um problema em especial, sobre o caráter expressivo do binômio modernidade
religiosa – binômio cozinhado em conversas longas com Carlos Eduardo Valente Dullo.
A proposta da injunção em questão era fruto da insatisfação de ambos, que da minha parte permanece, a respeito de como proceder em pesquisas a respeito do universo religioso. A insatisfação é referente ao tom frequentemente escapista dos problemas postos nas costas do nativo, este enorme guarda-‐chuva de proposições em antropologia que ironicamente diz quase que exclusivamente aquilo que interessa ao pesquisador. É claro que, aqui, cometo uma generalização. Esta afirmação não poderia assumir o caráter de regra, dado que é no mais das vezes um artifício retórico. Fosse rerga, as exceções não seriam raras ainda que não sejam abundantes. Mas são aos problemas conceituais, e não aos categoriais, que me refiro. Assim, religião – no geral ou em particular -‐ seria tudo aquilo que o nativo disser e o que escrevêssemos seria, por fim, representativo disso fazendo com que instanciássemos a definição. Dito isto é de bom tom dizer que a última coisa que pretendo com esta tese é que ela seja representativa das fontes que menciono, ou dos teóricos com quem dialoga. O que
entendo ter sido feito é uma conversa travada com as fontes e, assim, o dialógo travado entre as fontes o que interessa de verdade. É a tensão constitutiva do campo, mais do que a remissão empírica como atestado jurídico do fato, o que dá forma ao método de trabalho.
Pôr em questão a modernidade religiosa como um problema implicaria em reconhecer no lexema religião e suas variações quase que homófonas no eixo euro-‐ americano um problema que não reside somente no reconhecimento, quando não imposição legal, da crença como uma dimensão subjetiva. O binômio sugere, e aí não cabe nenhuma novidade, modos de relacionamento em que a irradiação de instituições, valores e atitudes que se imponham como modernos produzem por sua vez a tensão com o arcaico, antigo ou tradicional. Enfim, com o religioso. Na supressão da presença de lideranças religiosas da potestas governamental que marca a gestão da vida política moderna, é possível intuir o desenho de algo que, mais uma vez, possa ser compreendido como religioso ainda que definido por sua negação. Os esforços de Dullo nesta direção (2012, 2013), ainda que partindo de uma mesma inquietação, geraram frutos muito diferentes com relação ao que apresento aqui; e pontos de encontro muito importantes. Dullo leva o problema da secularização muito mais a sério do que eu, o que não deixa de ser irônico, uma vez que suas pesquisas mais definitivas se dão em solo brasileiro mesmo quando a instituição de origem é francesa – como foi o caso dos maristas na cidade de São Paulo (Dullo, 2008). E no entanto, e esta é uma dívida que esta tese começa a pagar com quem talvez seja seu principal interlocutor, diz respeito à percepção do papel que as instituições de ensino e instrução ocupam neste debate. O recuo histórico que apresento é mais ambicioso do que eu mesmo imaginava a princípio, e trabalha com uma gama de acontecimentos que mostram o que resta para um certo domínio religioso, o que coincide com um determinado setor da prestação de serviços que na França se chama “instrução pública. Aquilo que resta, por sua vez, é uma remissão direta às sobrevivências das
intuir, não é pouca coisa, mas dificilmente poderia ser chamado de religião impunemente.
Fazer uso de não poucas proposições tylorianas e de todo o jogo de desrespeitar o contexto sociológico de conceitos e idéias dos mais diferentes povos cumpre um papel importante aqui. Apesar do crime de violação do contexto em que emergem diferentes formas de vida, há um mérito que parece inquestionável no método e na intuição seguidos por Tylor. Em Primitive Culture vemos que o passado enquanto estrutura do tempo está disperso em relações quase que inapreensíveis senão por via de restícios difundidos na matéria; e que todo e qualquer acontecimento é um fenômeno de convergência, ainda que parcial, o que se encontra presente na enorme discussão sobre difusão cultural, processo identificado em diversos artefatos segundo sua forma de mediação. Em Tylor temos um observador dos movimentos de expansão e contração de formas culturais em que a contração atende frequentemente por sobrevivência. O valor do trabalho do antropólogo escocês não está, no entanto, em seu poder diagnóstico. Ainda que eu lance mão de proposições de Primitive
Culture, o faço com vistas na correlação entre mediação material e difusão, problemas
que Tylor cultiva comungando com muitos de seus contemporâneos, dentre eles os movimentos espíritas da segunda metade do século XIX.
No mês de novembro de 1872, Tylor se lança na investiação do fenômeno espírita tal como ele viria a se dar na Inglaterra. Em 1875, o espírita que conduzia a
Société Parisienne d’Études Spirites, Pierre Gaëtan Leymarie, é preso junto a dois
médiuns-‐fotógrafos sob acusação de ludibrio, extorsão e aquisição de crédito imaginário. As acusações sofridas por Leymarie e demais kardecistas – a Société
d’Études fora fundada por Allan Kardec, então falecido -‐ se assemelham em muito às
censuras que Tylor escreve tendo como alvo o mesmo movimento espiritualista1. A
1 As notas sobre o espiritismo estão em manuscritos descobertos por George Stocking Jr., em 1969, no
Museu Pitt Rivers, Oxford (Stocking Jr. 2001). Assim, spitirualism, em inglês, designa o espiritismo como
investigação dos fenômenos psíquicos sem nenhuma distinção doutrinal específica. Na França, contudo, o spiritualisme é uma orientação filosófica articulada no seio do psicologismo eclético de Victor Cousin
relação que Tylor trava com este universo, ainda que fugaz, permite uma série de correspondências com aquilo que ele mesmo define em sua obra como animismo. A definição deste conceito tem muito a dizer a respeito da emergência do espiritismo segundo outros ângulos que não por via do complexo de atitudes diante da morte que, por esta razão, não serão consideradas com maior atenção neste trabalho2. As notas
de Tylor permitem compreender melhor como a teoria do animismo se corresponde intimamente com a idéia de que o espiritismo, tal como praticado no século XIX, é um caso de polícia.
No período que antecede a viagem de Tylor à Londres o espiritismo tinha lugar, principalmente, no seio de pequenas reuniões domésticas das classes sociais mais baixas. Estas reuniões contrastam com a formação de associações dedicadas ao estudo dos fenômenos anímicos, como a Burns Progressive Library and Spiritual
Institute, em 1865 e, mais importante, a London Dialectical Society, em 1869. Estas
sociedades concretizam o envolvimento daqueles que Janet Oppenheim chama de classe média profissional (professional medium class) que por diversas razões, frequentemente políticas, passam a ocupar os mesmos espaços e sessões que outrora serviram de reduto de camponeses egressos e operários da nova sociedade industrial.
Em 1871, a London Dialectical Society, com a participação ativa de Alfred Wallace, William Crookes e Edward Cox, reconhecem publicamente a realidade do fenômeno espírita. Durante o mesmo período, William Crookes começa seus experimentos com Daniel Dunglas Home, quem Oppenheim (op.cit.) reputa ser o médium mais discutido no meio das pesquisas psíquicas na Inglaterra Vitoriana. A posição de dois pesquisadores da época, tanto de Wallace quanto de Crookes, serve de marco pois data o envolvimento de alguns dos mais destacados pesquisadores em suas respectivas áreas nas sendas do espiritismo – o spiritualism inglês. Ambos não refugaram no intuito de ampliar o círculo de pesquisadores envolvidos com o tema. O que fizeram foi, portanto, deflagrar uma campanha em que colegas de igual destaque
Philosophie Spiritualiste, deixando o título original como parte do sub-‐título. Cousin tem um livro
viessem a participar das sessões. Thomas Henry Huxley, naturalista, declinou do convite de participar da London Dialectical Society reiterando sua postura que investe no divórcio entre as ciências e qualquer rescaldo do universo sobrenatural das instituições religiosas. Tylor, ainda que não dispusesse de opinião mais favorável ao espiritismo, tinha por sua vez, boas razões para aceitar o convite de William Crookes. O movimento ao redor da atividade medianímica tinha correspondência, ao contrário do caso de Huxley, com suas pesquisas a respeito da religião dos selvagens, título de artigo que havia publicado em 1866 (Stocking Jr., 2001). Tylor vai a Londres
Foram em nove os dias de observação. Entre os dias 4 e 28 de novembro de 1871. O conteúdo das notas respeita aquilo que produzem boa parte das sociedades científicas da época com relação ao fenômeno espírita. O conteúdo da investigação, por sua vez, não difere daquilo que se encontra em qualquer dispositivo de julgamento produzido por um órgão da justiça. O que se discutem são formas de autenticação segundo critérios de verossimilhança em busca de falhas em procedimentos indutivos. No que tange o espiritismo, quando as expectativas científicas se frustram, o veredito é o de impostura (Stocking, 2001:130). Dito de outra forma, é impostura quando relações de causalidade são submetidas a uma figura de linguagem ou alegoria de forma a ocultar as relações de fundo, notadamente naturais, que reportam a percepção imediata a uma outra escala de relações. No caso da antropologia vitoriana, e não somente neste caso, está em questão a história natural da espécie humana com relação à qual o espiritismo (spiritualism) serve como sintoma de estágio da evolução ou degeneração. Dos seus sistemas, códigos e narrativas, estes não serviriam como explicação de coisa alguma. Convém lembrar que este é o estatuto que a mesma antropologia dava à teologia, também relegada à indiferença por se tratar de uma variedade específica no caos do discurso alegórico. A indiferença como postura analítica na qual é possível constituir conjuntos experimentais segundo uma determinada taxinomia que produz gêneros, e não singularidades, também se encontra presente nos meandros do processo sofrido pelos kardecistas em 1875, em Paris. No entanto, como a indiferença diante da
impostura é praticada por instituições jurídicas e policiais, os efeitos são bastante diferentes daqueles que poderíamos entender como desdobramentos da publicação de Primitive Culture. Isto porque não é a estruturação da imaginação sobre a equivalência dentre as imposturas humanas em sua história natural que está em questão. Não é a generalidade do problema segundo um determinado universal antropológico debatido em Cambridge. O que está em questão é a condução de um inquérito que tem como objetivo decidir sobre o que fazer com uma impostura em particular que, do ponto de vista da lei não contraria nenhuma Lei Natural, mas fere a redação do artigo 405 do código penal francês.
Assim, esta tese não tem no espiritismo o seu objeto primeiro de investigação. É na acusação de impostura transformada em dispositivo policial que o mesmo será abordado. É na medida em que sofre tal ou qual acusação a partir de tal ou qual agente que produzem o que vem a ser um objeto de uma economia de discurso, cada qual com seu ponto de vista, que o espiritismo será abordado. A caracterização é, portanto, negativa na medida em que toma como ponto de partida as infrações à lei ou a frustração de um determinado regime de expectativas, ou qualquer indício de infração. Num caso em que as evidências são fotografias espectrais que a polícia francesa se esforça em comprovar a falsidade (impostura do fotógrafo e seus divulgadores), não há nesta tese nenhuma tentativa de responder se as fotografias são reais; se fantasmas existem; se eu acredito no espiritismo. No caso, acredito tanto no espiritismo quanto acredito em sua condenação na medida em que ambos aconteceram. A variedade de questões articuladas pelo acontecimento do Processo dos
Espíritas é o ponto de partida e o fio condutor com relação ao qual não disponho
sequer do interesse de oferecer qualquer síntese judicativa. No final das contas, o intuito é o de conseguir contar uma história não tanto mediante uma narrativa segura, mas também por via de vacilos na interpretação de passagens que sejam particularmente sensíveis na demonstração das tensões postas em jogo.
Para conseguir sair do lugar, no entanto, foi preciso encarar esta pesquisa como um exercício de aprendizagem. Mas não somente a respeito de como esse
processo pôde tomar lugar na Paris pós-‐guerra civil de 1871. Em parte foi necessário
compreender como muitos dos problemas mobilizados por ele também são pertinentes para a compreensão de muitos dos temas da antropologia social moderna que emergia no mesmo período em que o espiritismo tomava lugar. Reconhecer a pertinência, por sua vez, advoga em favor da necessidade de aprender novamente o conteúdo do material canônico, então editado com ênfase em passagens menos usuais que normalmente encontramos nos comentários. Neste sentido, referências bibliográficas como as de Tylor, somadas com as de Durkheim, Mauss e Tarde são lidas na qualidade sempre suspeita de teoria nativa, de forma que o espiritismo, o
sistema jurídico e a polícia sejam submetidos a um diagnóstico, mas em relação com as
questões que o discurso antropológico mobiliza. Aceitar a fixidez da posição de análise sem reconhecer a solidariedade e a participação das variações de pontos de vista implicaria em sonegar dimensões importantes, tanto do pensamento antropológico emergente, em grande parte, das ciências jurídicas, quanto do espiritismo com quem compartilha boa parte de seus projetos e ancestrais. Disto desdobra a alternativa de comprometer o espiritismo com as acusações que sofreu, comprometer a antropologia com proposições do espiritismo, e comprometer parte da jurisprudência acionada em questões da antropologia emergente a fim de evitar, enfim, um certo cinismo.
Se o cinismo pode ser apontado na postura de Diógenes Laércio que, nu, vocifera para que Alexandre, o Grande saia do seu sol e pare de lhe fazer sombra, com relação ao qual sou simpático, é ao cinismo que mudou de lado que me refiro. É aquele que ironiza tudo aquilo que o faria legítimo, produzindo assim a casta de integrados esclarecidos que pode julgar a tudo com a segurança de um bunker (Sloterdijck, 2012:166-‐168). Afinal, é tão metafisicamente irresponsável sugerir algo com relação ao espírito de época (Zeitgeist) ou a função social segundo o espírito público (esprit
publique) quanto o seria falar com o espírito de uma filha já falecida, como o fez Victor
Hugo. Este detalhe chama a atenção para o fato de que, como veremos, ou todos são expressões metafóricas – metáfora de quê? -‐, ou nenhuma delas o seria, o que indica que sua metáfora de base estaria alhures. Nesta variação, vale notar, o romantismo de
Victor Hugo, mais atenta às relações mediadas pela voz e por isso mais restrita à esfera da experiência imediata é flagrantemente menos perigosa do que a alternativa que manipula o espírito em outras escalas, sucessivamente maiores que, por fim, negam dialeticamente a relevância do imediato da experiência vindo a finalmente declara-‐la epifenômeno. O signo deste movimento é, como se sabe, o do
desencantamento que aqui leio na chave da emergência de dispositivos de religião
dispersos em modos estatais de mediação.
A dimensão da mediação estatal, tal como pretendo discutir por via deste trabalho, mereceu um recuo histórico ambicioso, distribuído tanto na primeira quanto na segunda seção da tese. O recurso tem o objetivo de evidenciar não exatamente uma certa profundidade histórica pertinente ao problema, mas a diferença que o percurso evidencia. Este recuo diz respeito à emergência de dispositivos de religião, o que se torna relevante pela diferença entre o teor das acusações movidas contra o espiritismo e a forma pela qual a condenação é enunciada, evidenciando a clivagem entre o consuetudinário/oral da polícia e a axiomática jurídica do Código penal dos artigos de lei. Como veremos, este afastamento entre o código escrito e as relações orais consuetudinárias deixam sensível a defesagem que uma dimensão produz na outra, culminando na relação peculiar em que tudo o que a voz faz é falar o código, e o código, por sua vez, silenciar a voz – porque o código é, por fim, a medida comum. Parte integrante dos documentos que utilizo são designados como dispositivos de julgamento. Neste ponto, aquilo que na reflexão foucaultiana se desdroba em metáforas de relações de força, aqui tem seu potencial metafórico restrito em sua dimensão técnica. Data da modernidade um conjunto de alterações na organização de saberes e meios técnicos relativos à vida moral humana que respondem muito bem ao tríptico para o qual Agamben (2007) chama atenção, uma vez que são tramados na tensão forjada pelas novas instituições jurídicas, militares e tecnológicas, justamente aquelas que fazem do conceito de dispositivo uma moeda de troca bastante corrente. Isto não significa, contudo, recusar a elaboração do mesmo Michel Foucault. Sua fórmula a respeito dos dispositivos de sexualidade que, antes de mais nada faz
menção ao moralismo vitoriano -‐ severo observador dos limites da permissividade e perversão sexual se constituindo como ciência moral -‐ tem com este trabalho alguma analogia. É este observador, atento e impessoal dos padrões civilizados contrapostos à promiscuidade primitiva num sistema de gradação evolutiva, o principal codificador da sexualidade que tanto se esforça em reprimir, lembrando da forte relação entre codificação e repressão:
“O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos
tenha permanecido atado a essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre seu sexo; que, a partir da época clássica, tenha havido uma majoração constante e uma valorização cada vez maior do discurso sobre sexo; e que se tenha esperado desse discurso, cuidadosamente analítico, efeitos múltiplos de deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo. Não somente foi ampliando o domínio do que se podia dizer sobre o sexo e foram obrigados os homens a estendê-‐lo cada vez mais; mas, sobretudo, focalizou-‐se o discurso no sexo, através de um dispositivo completo e de efeitos variados que não se pode esgotar na simples relação com uma lei de interdição. Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-‐se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, suscetíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia.” (1988:26)
Em um momento de recrudescimento da condenação do sexo, a multiplicação dos discursos a seu respeito distribui-‐se na rede dos elementos que a exprime. Algo muito semelhante pode ser dito a respeito da religião. O que está em questão é a possibilidade de inventariar um complexo ativo de onde emergem dispositivos que respondam a esta dialética do dizer o máximo possível e com isso produzir o efeito da ivisibilidade, no caso do sexo, e do silenciamento, no caso da religião. Contudo, a noção de dispositivo incide sobre os arranjos institucionais capilarizados de controle e produção de modos de vida, com ênfase na fenomenotécnica das ciências da vida, como medicina, psicologia, biologia e