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As Cartas Portuguesas: relação entre texto e imagem - Relatório de Projeto

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2015

As Cartas Portuguesas:

relação entre texto e imagem

MARINA DA SILVA MOTA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA

À FACULDADE DE BELAS ARTES DA UNIVERSIDADE DO PORTO EM DESIGN GRÁFICO E PROJECTOS EDITORIAIS

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Relatório de projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à obtençãodo do grau de Mestre em Design Gráfico e Projectos Editoriais, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor Rui Vitorino dos Santos.

Setembro, 2015

As Cartas Portuguesas:

relação entre texto e imagem

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odução

Ao Prof. Doutor Rui Vitorino dos Santos,

pelo empenho e dedicação com que me orientou.

À família, amigos e colegas de mestrado.

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Resumo

Este relatório de projecto tem como objectivo reflectir sobre o papel do ilustrador, enquanto autor e mediador na relação entre texto e ilustração. O ilustrador tem a capacidade de inter-pretar o enunciado narrativo de um outro autor, consegue transformá-lo pelo seu próprio pensamento, reflectindo as memórias, as emoções, as experiências e a perspectiva como vê e cria o seu próprio mundo. A ilustração é um exercício de autoria. A forma como pode repre-sentar um texto é baseada na interpretação dos signos escritos, por norma associados às pa-lavras, revelam o que está implícito, conferem novos significados. Dedicamo-nos a perceber o que faz um ilustrador com o texto que lê e como utiliza esse mesmo texto para ilustrar. Esta investigação propõe uma nova abordagem As Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, um projecto sobre a forma de um livro ilustrado, uma reflexão sobre a interpretação da ilustra-ção enquanto suporte da construilustra-ção narrativa.

Palavras - Chave

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Abstract

This project report has as purpose to think about the illustrator’s as an author and a media-tor of the relationship between the text and the illustration. The illustramedia-tor has the capacity of interpreting another authors narrative briefing, convert it in is own thought, reflecting the memories, emotions, experiences and the perspective of how he sees and creates his own world. Illustration is an authorship exercice. The way it can represent a text is based on the interpretation os the written signs, usually related to words, revealing what is implic-it, checking new meanings. We dedicate ourselves to understand what an illustrator does with the text he reads and how he uses the same text to illustrate it. This investigation pro-poses a new approach to As Cartas Portuguesas by Mariana Alcoforado, a project shaped as an illustrated book, a reflection about the interpretation of the illustration as the base of the narrative construction.

Keywords

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Agradecimentos • 7 Resumo • 9

Abstract • 11 Introdução • 16

Cap. I As Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado • 19 1.1 Síntese Histórica • 19

1.2 Alegoria e Caracterização Literária das Personagens •22 1.3 Autenticidade e Tradução das Lettres Portugaises • 26 1.4 Legiões de Alcofodoristas • 29

Cap. II O ilustrador: intermediário na relação do texto e da imagem • 35 2.1 Pensar a Imagem. Da percepção visual para o tratamento visual. • 35 2.2 Ilustração e semiótica: construção de mensagens usando signos • 38 2.3 A construção narrativa: entre texto e ilustração • 40

2.4 A ilustração e a estrutura da mensagem • 42 2.4.1 A Interpretação • 42

2.4.2 A Metáfora • 46

2.5 O ilustrador enquanto intérprete ou autor • 47 2.6 Casos de Estudo • 50

Cap. III Projecto Prático • 75 3.1 O Artefacto • 75

3.2 Os desenhos e os desígnios da ilustração • 85 3.2.1 Primeira Carta • 87 3.2.2 Segunda Carta • 90 3.3.3 Terceira Carta • 93 3.3.4 Quarta Carta • 96 3.3.5 Quinta Carta • 100 Conclusão • 105 Lista de Figuras • 109 Referências Bibliográficas • 111

Índice

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Introdução

As imagens ilustradas, comunicam visualmente, revelam uma metodologia específica de pensamento e processo. Cada ilustrador domina uma expressão singular, uma forma única de se exprimir, onde manifesta a participação cognitiva e afectiva, na tentativa de interpretar o texto, desvendando o seu sentido implícito. Através da individualização da subjectividade e da poética, constroem-se soluções narrativas, gráficas e plásticas únicas.

A ilustração ao recorrer à metáfora visual, para a comunicação, evoca significados interpre-tativos, é regularmente, de comentário autoral. Aquilo que perspectivamos ser o processo de ilustração, actualmente. Uma reflexão visual que procura transmitir ao leitor e observador as dimensões que o texto suporta. A configuração entre a linguagem verbal e a expressão vi-sual é transposta para o artefacto imbuída de experiências, memórias e conhecimento, tudo aquilo que o corpo permite ao autor sentir.

Para desenvolver esta investigação construímos o relatório de projecto na seguinte for-ma: num primeiro capítulo As Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado, onde contextualizaremos a obra e a autora que serviram de base para a concretização de pro-jecto prático; num segundo capítulo, O ilustrador: intermediário na relação do texto e da imagem tentaremos perceber os pressupostos teóricos que foram a base, para a aplicação prática, em conjunto com a análise a três obras; por último, no Projecto prático descrevere-mos o processo e as soluções aplicadas no livro ilustrado, o artefacto final que engloba este relatório de projecto.

Na análise de As Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado salientaremos a importância da pesquisa, uma etapa fundamental na criação dos livros ilustrados. Na recolha, sob a forma de informação textual, procuramos uma síntese histórica, que situa a obra, na época e o seu contexto social que consideramos essenciais para a sua tradução visual, no projecto prático, a que nos propomos realizar. Assim como, uma breve explicação e caracterização da narra-tiva textual e das personagens, presentes no texto. Através da visão de alguns autores, real-çaremos várias controvérsias, sobre a prova e a autenticidade de As Cartas Portuguesas, ao longo dos séculos, que atribuíram às mesmas, o título de lenda intemporal. Encerraremos o capítulo com um levantamento de diversas interpretações que decorreram sob a influências das cinco cartas, com a intenção de ressaltar o valor literário e as diferentes abordagens vi-suais e textuais que se sucederam ao longo da história que contribuíram para o alargamento narrativo da obra.

No estudo do ilustrador: intermediário na relação do texto e da imagem introduziremos a necessidade de pensar a imagem e o que poderá ser entendido por imagem. Na tentativa de compreender a relação entre texto e ilustração exploraremos a construção da narrativa, da textual para a visual, mediante a visão do ilustrador. O mesmo que interpreta o texto, utili-zando metáforas, com o intuito de construir novas formas de significar sobre o enunciado narrativo, através de signos icónicos, figurativos, plásticos, e integrais.

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É a reflexão sobre estes aspectos que nos permitirá perceber e identificar o papel/processo do ilustrador, enquanto mediador entre o texto e a ilustração.

Para concluir, este capítulo, procederemos à análise de três obras. A selecção das publica-ções para esta investigação requereram uma pesquisa cuidada. Interessou-nos privilegiar uma selecção de livros, cuja narrativa gráfica, transparecesse uma linha de pensamento cui-dada e direccionada, que justificassem e reforçassem a perspectiva teórica.

Em Lettres Portugaises, litografias de Henri Matisse (2004) procuraremos perceber a forma como o artista interpretou e transpôs o texto para o artefacto, no caso de Todas as Cartas de Amor (2014) de Paulo José Miranda, com ilustrações de Mariana, A Miserável, ressaltaremos a exploração do livro enquanto objecto editorial. Por último, com o colectivo It’s Raining Elephants analisaremos Die Grosse Flut (2011). Exemplos que nos abrem pistas sobre possí-veis formas de interpretar um texto, com vários séculos e inúmeras interpretações.

Na análise sobre o Projecto prático descreveremos as várias etapas, na concretização real do livro ilustrado, assumindo o papel de ilustradores e de designers gráficos.

A publicação desenvolve-se em diversas fases projectuais, iremos mencionar as escolhas re-lativas: ao estudo do objecto, à interpretação do texto, à realização da ilustração, à edição e à paginação do artefacto final. Através da aplicação dos conteúdos investigados, no decorrer do relatório de projecto, incluído as dificuldades encontradas, ao longo da concretização fí-sica do objecto. O livro, por ser um artefacto editorial que comunica através de um conjunto de recursos semióticos, onde destacamos o texto, a ilustração e a materialidade do livro, que requerem um tratamento particular nesta parte do relatório. Enquanto artefacto, tencioná-mos explicar a utilização dos materiais e a escolha dos caracteres. Por último, mencionare-mos o processo de trabalho, enquanto ilustrador e mediador entre o texto e a imagem, na criação de uma interpretação singular.

Na fase inicial da estruturação de projecto, tínhamos o intuito de trabalhar sobre a temáti-ca amorosa, nomeadamente, as temáti-cartas de amor. Roland Barthes (1981) sustenta que as temáti- car-tas amorosas têm sempre um destinatário, mesmo que seja um destinatário futuro ou uma identidade fantasmática. O autor salienta, contudo, que o discurso amoroso é um discurso isolado, não havendo ninguém disposto a defendê-lo.

No processo de selecção, de um texto, que sustentasse as principais intenções desta inves-tigação: compreender o papel do ilustrador como mediador entre o texto e a imagem. Ao lermos As Cartas Portuguesas pela primeira vez interessou-nos explorar a autenticidade exacerbada dos sentimentos de Mariana, que julgamos ser resultado do que Barthes define como um processo de construção de extrema solidão.

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O texto de Mariana Alcoforado diferencia-se de vários exemplos que consultámos. O tema das cinco cartas de amor, não é uma simples troca diária de afectos ou um relato de activi-dades que o casal pudesse fazer. Contam uma história, onde residem diferentes níveis de sentimentos e metáforas que se revelaram no foco de interesse para o projecto. A publicação final tenciona ser mais um contributo, contemporâneo, para preservar a potencialidade do valor literário, presente nestas cartas e relembrá-las na actualidade.

No decorrer da investigação procuraremos perceber outras questões pertinentes, relaciona-das com o nosso principal objectivo, nomeadamente: O que faz o ilustrador com o texto que lê?; Como é que o ilustrador usa o texto a ilustrar?; Como poderá ser construído o espaço de experimentação, transmutação, representação e significação?

A característica mais importante deste estudo encontra-se na modalidade de investigação utilizada, um método de investigação aplicado, que propõe o desenvolvimento de um pro-jecto prático. Com o intuito de construir um espaço de reflexão, oferecendo uma interdis-ciplinaridade crítica entre o pensamento e a prática. Atribui-se o papel do ilustrador como uma preocupação de relevo, na relação entre texto e imagem, aliado às motivações que sus-citaram este trabalho, na tentativa de colmatar dúvidas e decisões para futuros projectos, numa perspectiva de enriquecimento e crescimento profissional.

O relatório de projecto pretende ser uma reflexão sobre a acção de ilustrar, defendido como um exercício de autoria, na interpretação do texto de um outro autor, deste modo, contri-bui para a afirmação do que se compreende ser a ilustração nos nossos dias, na singula-ridade do seu pensamento e enquanto recurso expressivo, impulsionadora na criação de novos percursos semânticos.

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Capítulo I

Mariana Alcoforado, considerada contemporaneamente um mito nacional a “freira portu-guesa, produto de muitas décadas de escritos, imaginativos e criativos, sobrepostos a um registo histórico escasso e frequentemente contraditório, adquiriu a solidez e a coesão

tran-quilizadoras de uma lenda intemporal” (Klobucka, 2006, p.73).

Ao longo deste projecto descobriremos que um dos aspectos fundamentais no processo de criação dos livros ilustrados relaciona-se com a pesquisa. Esta recolha de elementos especí-ficos ou transversais, pode ser sob a forma de informação visual ou, como será narrado ao longo deste capítulo, sob a forma de informação textual.

Gémeo Luís, refere na sua tese de doutoramento intitulada A importância do Ilustrador no

Processo do Livro que “na abordagem ao texto, quer este seja de carácter narrativo ou não

narrativo, a atitude do ilustrador passa pela desconstrução e comporta a leitura analítica, a reescrita, o resumo, o levantamento de ideias-chave ou a listagem de novas palavras-chave. O alargamento semântico proporcionado por estas estratégias, nomeadamente pela produ-ção de texto paralelo ao inicial, proporcionam o distanciamento da ilustraprodu-ção face ao texto a

ilustrar, logo, o alargamento do espaço conceptual dos livros” (Fonseca, 2013, p.379).

Com este pressuposto, o ilustrador deve respeitar o texto original, “por via da insubmissão

da ilustração e consequente desvio de sentido” (Fonseca, 2013, p.379), enriquecendo o

aumen-to de possibilidades de interpretação, relativamente às expectativas criadas pelos leiaumen-tores e autores, ao criar um ambiente de trabalho favorável à descoberta, à experimentação e ao aumento das hipótese de escolha.

Com base na importância atribuída à pesquisa, excedente ao enunciado narrativo, inicia-mos esta investigação com uma síntese histórica, em torno de alguma informação escrita sobre Soror Mariana Alcoforado e o mistério em redor de As Cartas Portuguesas, baseado em opiniões, críticas e controvérsias de alguns escritores e historiadores, relevantes ao longo dos séculos.

1. Anna Klobucka

Doutorada em Línguas e Literaturas Românicas pela Universidade de Harvard (EUA), professora no Departa-mento de Português da Universidade de Massachusetts Dartmouth (EUA), lecciona literatura portuguesa e lite-raturas africanas em língua portuguesa e colabora no projecto Women’s and Gender Studies. Autora de O Formato Mulher: A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa (2009) e Mariana Alcoforado: Formação de um Mito Cultural (2006). É editora executiva da revista Journal of Feminist Scholarship. Entre o ano de 2005 e 2006 foi Presi-dente da American Portuguese Studies Association.

Capítulo I

1.1 Síntese Histórica

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Capítulo I

A alegoria sobre a freira portuguesa, segundo Anna Klobucka1, no livro Mariana Alcoforado:

Formação de um Mito Cultural, refere que dificilmente conseguimos afirmar que foi “um

aci-dente fortuito da história o facto da descoberta, a tradição e, por fim a ávida adopção das

Lettres portugaises, pelos portugueses, ter coincidido cronologicamente com a ascensão do

nacionalismo cultural moderno e, especificamente, com a constituição e agilização graduais

de uma das instituições fundamentais: a história da literatura nacional” (Klobucka, 2006, p.102).

E revela que, “o destino histórico literário das Lettres portuguaises em Portugal, como obra notável e nacionalmente importante, por outras palavras, imbuída de notoriedade

‘sociogra-mática’– concretizou-se, pela primeira vez, plenamente nos escritos de Teófilo Braga2, o mais

incansável investigador oitocentista do património cultural português”(Klobucka, 2006, p.108).

A primeira edição de As Cartas Portuguesas ocorreu no ano de 1669, em Paris, a obra anónima denominada Lettres Portugaises, escrita em francês, apresentava-se, através de um “avis au

lecteur introdutório, como uma tradução igualmente anónima de cinco cartas de amor

au-tênticas, escritas por uma freira portuguesa chamada Marianne” (Klobucka, 2006, p.11).

Revelaram-se um êxito na época, foram traduzidas em diversos idiomas, durante a vida de Mariana Alcoforado produziram-se “mais de cinquenta edições das cartas, em francês,

in-glês, alemão e italiano” (Saramago, 1994, p.166).

No entanto, o reconhecimento da obra literária e inclusive de Mariana foi moroso, demons-tra-se importante o contributo de diversas gerações de escritores, historiadores, artistas, ci-nematógrafos, entre outros, que interpretaram e analisaram as cartas atribuindo-lhes a rele-vância literária actual, como explana Anna Klobucka: “Durante o primeiro século e meio da sua existência, a fugida Marianne, cujo queixume se eleva das páginas das Lettres portugaises, não passou de uma sombra textual anónima (...). Foi graças ao esforço de gerações de

alcofo-radistas portugueses que ela foi ganhando substância (...)” (Klobucka, 2006, p.19).

Em Portugal, no decorrer do século XVII, durante o reinado do rei D. Afonso VI, período em que As Cartas Portuguesas foram escritas, o reino de Portugal e Espanha estavam em guerra. Denominada a Guerra da Restauração, entre os anos de 1640 e 1668, neste último, ocorreu a assinatura do Tratado de Lisboa que atribuiu a integral independência a Portugal.

A sociedade portuguesa desta época dominava uma tendência conservadora e consequen-temente devota, contemplava “sacrificar as filhas em prol dos irmãos, era preceito da época e tanto, que não se considerava castigo, antes constituía distinção, imolarem-se as meninas

a uma comunidade” (Martins, 2006, p.4), como afirma Rocha Martins, na introdução que

escre-veu para uma reedição de As Cartas Portuguesas, intitulada Soror Mariana.

Mas, apenas as famílias que pertenciam à nobreza o poderiam fazer, como explana Alfredo

Saramago3, no ensaio histórico sobre o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição: “por

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Capítulo I

ás senhoras das melhores famílias do reino que, impedidas de constituírem casa na vida laica, no convento pretendiam encontrar condições dignas do seu estatuto social. Era me-lhor ser freira de convento rico e influente do que senhora solteira, sem dote e sem marido, e a falta de dote ou marido continuava a constituir a principal razão de ingresso no mosteiro”

(Saramago, 1994, p.82).

Segundo os registos do Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição: “Mariana Alcofora-do nasceu em Beja, a 22 de Abril de 1640 e era filha de Francisco da Costa AlcoforaAlcofora-do. O pai foi executor de almoxarifado de Beja, procurador às cortes de 1642 a 1645, coudel-mor e juiz

de fora. (...) Pertenceu à ordem de Cristo e foi guerreiro destemido” (Saramago, 1994, p.164). Filha

de nobre ingressou “para o convento em 1656, com dezasseis anos” (idem, 1994, p.164).

A questão controversa sobre a verdadeira entidade da freira persistiu durante anos. Mas, segundo o livro de óbitos de 1710 a 1743 existe o registo do falecimento de Mariana Alco-forado com as habituais lisonjas de comportamento: “era muito exemplar, com todos os seus anos gastos ao serviço de Deus; ninguém dela teve queixa e era muito benigna para to-dos... durante trinta anos de fé, de ásperas penitências e padeceu de graves enfermidades...”

(Saramago, 1994, p.166).

No decorrer da nossa investigação é referido que a freira tinha um irmão, que conforme as ambições paternais, para a época, este “devia nobilitar mais o nome da família (...) era da tro-pa, tenente ou capitão dum regimento que operava conjuntamente com cavaleiros franceses

do Conde de Schomberg, comandante e chefe dos exércitos” (Martins, 2006, p.6). A presença

de oficiais e soldados estrangeiros em Portugal, durante a Guerra da Restauração, tinha como principal propósito impedir o exército espanhol de conquistar Évora.

Nesta breve contextualização histórica, sobre Soror Mariana Alcoforado conseguimos situar no tempo, o período em que As Cartas Portuguesas puderam ter sido escritas.

Assim como, obter um sucinto retrato social dos costumes, de uma sociedade devota e con-servadora do século XVII, em Portugal. Revela-se fácil entender a condição, referida ao longo das cartas, por Mariana Alcoforado, de estar confinada a um Convento. Visto que, era uma prática corrente na época, para as meninas das famílias nobres do reino. Todos os aspectos abordados sobre a contextualização das Lettres portugaises são tidos como possibilidades de criação, do livro ilustrado, que engloba este relatório de pesquisa.

2. Teófilo Braga

O político, escritor e ensaísta português Joaquim Teófilo Fernandes Braga, frequentemente nominado por Teófilo Braga, nasceu em 1843. A sua primeira obra literária Folhas Verdes foi publicada em 1959. Desenvolveu diferenciadas produções textuais sobre etnografia, poesia, ficção, filosofia e história literária.

3. Alfredo Saramago

Alfredo Saramago, nasceu em 1938, formou-se na área das ciências sociais e humanas, fez o doutoramento em Antropologia,

e trabalhou como investigador, entre França e Inglaterra. A sua investigação centraliza-se sobre as temáticas de história, gas-tronomia e tradições gastronómicas.

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Capítulo I

1.2 Alegoria e Caracterização Literária das Personagens

“Jamais tão esbeltos militares tinham aparecido nos campos alentejanos. E em seus unifor-mes vistosos, azuis e oiro, verdes e prata, alambazados, cintilantes, os oficiais faziam mano-brar os seus esquadrões nos terreiros vastos, quando não assomavam na raia os inimigos

chamando-os a combater” (Martins, 2006, p.6).

O texto introdutório da reedição intitulada Soror Mariana, Rocha Martins4, escreve de

for-ma fantasiosa e por vezes irónica, ufor-ma história subjacente às Cartas Portuguesas. Ufor-ma intro-dução que acrescenta detalhes e uma possível caracterização de determinados pormenores sobre as personagens, que ajuda o leitor a criar imagens visuais, ao iniciar a leitura das car-tas, visto que, as mesmas não revelam muito do ambiente envolvente.

Acima citado, é referida uma caracterização generalizada dos militares da época, que habi-tavam pelos campos alentejanos.

Joana Quental, no seu estudo A Ilustração enquanto Processo e Pensamento. Autoria e

Interpre-tação direccionado para a relação entre o ilustrador e a ilustração, no âmbito do processo de

design, refere Platão e Aristóteles, no primeiro capítulo Da história do conceito de Ilustração. Afirma que Platão “constrói um argumento essencial para a ilustração: a possibilidade de antecipar, de projectar algo de novo, a partir das imagens suscitadas por palavras. Chama a estas construções da alma ‘pinturas de prazeres’, pinturas que advêm de opiniões, suscitadas pelas sensações e pela memória. Aristóteles reformula os pressupostos de Platão: a percep-ção das coisas que existem além de nós suscita uma imagem mental que corresponde ao co-nhecimento do mundo e, por isso, ver corresponde a pensar. O coco-nhecimento advém então,

das sensações proporcionadas pelas formas sensíveis (...)” (Quental, 2009, p.26).

Partindo deste princípio que a ilustração “corresponde a uma necessidade de conhecer e de

fundamentar o saber” (Quental, 2009, p.29) ao longo deste subcapítulo, sobre a alegoria e

carac-terização literária das personagens iremos ressaltar alguns excertos de textos, que revelaram um factor importante para a construção do universo visual, presente no projecto prático, e uma melhor compreensão da história que sustenta a lenda intemporal das cartas.

Rocha Martins, continua a caracterização dos cavaleiros, ao narrar que “ (...) só chamavam pela divindade nas horas das preces apressadas em que lhe solicitassem prazeres. Fora disto, bravos, valentes, viciosos, bebendo e jogando, os cachimbos atulhados de tabaco, ignoran-tes, cheios de garbo nas fardas vistosas, prontos a dar vida numa batalha ou num duelo, mas sendo em amor tão voláteis como nas pelejas, iam devastando sempre o maior número de

corações e de inimigos” (Martins, 2006, p.7).

Sobre Mariana Alcoforado, “a freira portuguesa tem sido retratada de muitas e variadas ma-neiras pelos seus interpretes e as Lettres portugaises mantiveram uma presença constante, ocasionalmente até como centro de animados debates, no cânone referencial dos estudos

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Capítulo I

Rocha Martins, descreve “o seu olhar terno de donzela falha de carinhos, criada longe dos afagos maternos, na figura esbelta e forte, graciosa e audaz, dum capitão de cavalaria cujo

nome quisera, desde logo, conhecer” (Martins, 2006, p.8). Noel, era o nome do cavaleiro, que

utilizava o título de Conde de Chamilly.

Foi retratado como um “homem esbelto e valoroso, habituado ao trato das damas e aos

ardo-sos ímpetos do amor, sem escolha (...)” (Martins, 2006, p.8). Mariana Alcoforado apaixonou-se

primeiramente, em sonhos e “entregando-se ao preferido, quase tinha a certeza de serem mentirosas as frases saídas de seus lábios; porém, não queria convencer-se, como se elas, mesmo mentiras, lhe soubessem melhor do que as verdades ditas por outro mais sincero

mas do menor agrado” (idem, 2006, p.8-9).

Segundo a descrição de Rocha Martins “o amante era desatento”, ainda no auge da desmedi-da paixão de Mariana Alcoforado ele “preferia-lhe as caçadesmedi-das, o jogo, os divertimentos, depois de a ter enganado. Levá-la-ia para as terras de França, tornando-se ali o seu esposo, a abater a prosápia orgulhosa dos Chamilly, os quais acabariam por ceder aos encantos da monja exilada

do seu país por um doce e enternecido delito de paixão. Eis o que lhe segredava” (Martins, 2006,

p.9). A par das falsas promessas do Conde de Chamilly “as coisas mais estranhas se passavam,

sem que a triste acordasse do seu devaneio. Largava-a pelas correrias nos campos em batidas alegres, trocando pela febre da jogatina os delírios dos beijos, quando começara a achar-lhe um sabor vulgar. Noel, seguia a rota habitual do declínio de todos os rasgos amorosos”

(Martins, 2006, p.10).

A família de Mariana Alcoforado teria tomado conhecimento do imponente escândalo para a época “aquela loucura tinha chegado ao conhecimento da família da que se entregara, rindo e em lágrimas, para querer voltar a ser do amado, em júbilos e em soluços. O seu amor era feito de abismos, de auroras e de cavernas, de estrelas e de pélagos; e sofria, torturava-se, magoando-se nos pensamentos como numa roda de lâminas ás quais ofertasse a sua carne,

sentindo prazer maior nas mais agudas lacerações.” (Martins, 2006, p.10).

A metáfora literária criada por Rocha Martins, para descrever os sentimentos de Mariana e a sua própria caracterização remete-nos para mais um exuberante exercício de fantasia explorado por vários autores procurando identificar o feminino de Mariana, como ressalta Klobucka: “(...) visando imaginar a identidade física de Mariana e, em particular, o seu corpo

inconfundivelmente feminino e, muitas vezes, fortemente sexualizado” (Klobucka, 2006, p.132).

4. Rocha Martins

Autor de os “Grandes amores de Portugal” viveu entre os anos de 1879 e 1952. Teve um percurso versátil foi jorna-lista e um dos cronistas, folhetistas e novejorna-listas mais requisitados na sua época. Começou o seu percurso num jornal monárquico, o "Diário Popular", de Mariano de Carvalho; de seguida trabalhou para a "Vanguarda", diri-gida par Magalhães Lima, grão-mestre da maçonaria; ligou-se depois a João Franco e à ditadura que implantou, no "Jornal da Noite"; foi braço direito de Malheiro Dias na "Ilustração Portuguesa".

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Capítulo I

Um desses exemplos, citado pela escritora, aborda lascivamente o tema da púbere Mariana, prematuramente aprisionada na sua clausura monástica:

O seu corpo gentil ia desenvolvendo-se, exuberante de vida, dentro da mal suportada tortura dos ci-lícios. A atmosfera de misticismo (...) excitava-lhe os sentidos” (Guimarães, cit. por Klobucka, 2006, p.132).

Outros escritores, tinham uma perspectiva inversa preferindo “registar provas de perversão e patologia na história de Mariana. O esforço mais notável nesse sentido foi realizado por Asdrúbal de Aguiar, professor de Medicina Legal e especialista na ‘ciência sexual’ em

Portu-gal (...)” (Klobucka, 2006, p.133). Define Mariana Alcoforado como um exemplo de masoquismo

e sadismo, em cuja, introdução declarou seu intuito:

“procurando descobrir através das tão admiráveis frases das cinco cartas (...) as provas do crudelíssi-mo prazer que ela sentia cocrudelíssi-mo o decorável e inconsciente proceder do homem a quem tão apaixonada-mente amava” (Aguiar, cit. por Klobucka, 2006, p.134).

Anna Klobucka refere que Asdrúbal de Aguiar, apenas tinha um objectivo, fundamentar o

diagnóstico da freira portuguesa como um “caso patológico de masoquismo psíquico”

(Klo-bucka, 2006, p.75), e alega que Mariana só podia ser masoquista, para se justificarem as

refe-rências, à modéstia e inferioridade, da sua condição patente nas Lettres portugaises. “Afinal, ela não tinha qualquer motivo para se sentir esmagada pelo esplendor aristocrático do seu amante francês, uma vez que a sua família igualava a dele em nobreza e era superior em

antiguidade” (Klobucka, 2006, p.75).

No decorrer da construção alegórica de Mariana Alcoforado, por Rocha Martins, este acres-centa que “as mentiras de Chamilly sabiam a Mariana como deliciosas verdades. Não queria aprofundá-las. Deixava-se amar, ceguinha de todo, não vendo as imperfeições, tratando de sublime o que era banal, pois emprestava espírito com destino ao ser superior ao qual

dese-java render-se” (Martins, 2006, p.12).

Por fim, a partida do francês “pôs termo ao romance, mas em nada diminuiu a intensidade

da paixão da freira abandonada pelo seu ex-amante” (Klobucka, 2006, p.11). Rocha Martins

es-clarece-nos, “um dia, o amado deixou, precipitadamente, o exército, os seus camaradas, o país pelo qual se batera nas guerras contra os espanhóis, abandonando, sobretudo, Mariana, a doce, a terna, a encantadora de alma, a fascinada que, mergulhando, ainda no seu arreba-tamento, entrara a chamá-lo, de longe nas cartas torturantes em que lhe enviava bocados

sangrentos do seu nobre coração prisioneiro” (Martins, 2006, p.12).

Sob este sentimento, Soror Mariana Alcoforado “escreveu numa prosa ao mesmo tempo exuberante e magistral, digna dos mais dotados artificies do grand siécle francês. Pouco

de-pois da sua publicação, as cartas tornaram-se um best-seller internacional” (Klobucka, 2006,

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Capítulo I

A religiosa implorava e fustigava estafetas para as novas missivas, após ter escrito a primeira carta, “alguns dos amigos de Chamilly, conhecedores da desdita monja, ocorriam à grade e entre eles o tenente de esquadrão, a participar-lhe que sabia do oficial. Talvez esperasse herdar-lhe o afecto de tão apaixonada e veemente mulher, obtendo-o por uma represália”

(Martins, 2006, p.58).

No convento5 “era uma desgraçada (...) queriam distraí-la e nomeavam-na porteira (...)”

(Martins, 2006, p.61). Como provam os registos do Real Mosteiro de Nossa Senhora da

Concei-ção “sabe-se que foi nomeada Madre porteira em 1668 (...)” (Saramago, 1994, p.164).

O enredo termina sem obter muitas respostas do cavaleiro francês “desfizera-se de todas as lembranças que possuía, vindas das mãos amadas, como se imaginasse olvidar totalmente a sua imensa dor, a sua incomensurável desdita. Pedira à confidente, D. Brites de Brito, para devolver tudo quanto possuía provindo do comandante: o retrato, as pulseiras, os troféus de amor que se dão com beijos e se recebem, quase sempre com gestos desdenhosos ou indiferente; quando são devolvidos. O que ela não podia enviar-lhe porque lho entregara

inteirinho, era o seu próprio coração” (Martins, 2006, p.61).

Anna Klobucka (2006) refere que em 1885, E. Beauvois, investigador e historiador francês,

pu-blicou na cidade de Beanne, na Borgonha, um estudo biográfico do Marechal de Chamilly. Possivelmente utilizado, por Rocha Martins, nas notas do seu texto, ao mencionar que “Noel Bouton, Conde de Chamilly, nasceu em Chamilly, morreu em Paris (1636-1715). Distinguiu-se nas guerras de Portugal e da Holanda. Foram-lhe dirigidas as Cartas Portuguesas. Casaria em 1671 com uma senhora da casa de Villefix, filha do Marechal de França, João Jacques de

Brou-chet” (Martins, 2006, p.60). E acrescenta, que mesmo “depois de se bater bravamente na Grécia, no

Luxemburgo e na Holanda, foi chamado o triste herói das cartas da freira portuguesa ” (idem,

2006, p.60). Para Soror Mariana, “o amor consistia naquela ânsia de sem se sacrificar,

entregan-do-se como uma louca e duas torturas: primeiro, a do amor; depois, desejando ter mais que

padecer 6(Martins, 2006, p.64).

No decorrer desta exposição narrativa de alguns autores, conseguimos obter informação dis-tanciada ao texto original, que é um ponto de partida para o alargamento do espaço concep-tual, na realização do projecto prático, sobre a história que reúne a origem das cinco cartas.

5. Convento

Nas cartas de Mariana Alcoforado há uma menção à Janela de Mértola, actualmente conservada no Museu Regional de Beja. Considerada uma atracção do convento, do museu e da cidade, através da qual a religiosa observava o cavaleiro, e que desencadeou a infeliz paixão.

6. Notas de Madre Escrivã

“Notas de madre escrivã do Real Convento da Conceição, de Beja, D. Antónia Baptista de Almeida” (Martins, 2006, p.64).

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26

Capítulo I

Que podemos sintetizar do seguinte modo: Mariana Alcoforado, pertencia à nobreza, in-gressou no convento bastante jovem. Avistou o cavaleiro Chamilly, através da janela de Mér-tola, situada no interior do convento. Iludiu-se, numa enorme paixão e acreditou em todas as mentiras, nomeadas ao longo das cartas. Num discurso, que passa por várias fases, como abordaremos no primeiro caso de estudo, é narrado o sentimento de abandono e tristeza. Na tentativa de descobrir o feminino de Mariana, vários autores, incutem um discurso se-xual, referem-na com sendo, principalmente, submissa e masoquista.

O cavaleiro, também de família nobre é retratado de forma galante e boémia. A alegoria, descrita, por Rocha Martins, descrevo-o como a personagem maligna. Aproveitou-se da ino-cente Mariana, proferindo-lhe várias mentiras, até voltar novamente para França, onde ca-saria com a sua esposa.

1.3 Autenticidade e Tradução das Lettres Portugaises

Este projecto tenciona ressaltar o valor literário, que As Cartas Portuguesas obtiveram ao lon-go dos séculos, e contribuir com mais uma interpretação sobre as mesmas. Não é do nosso interesse provar a sua verdadeira autoria. Mas, partirmos do princípio, que de facto, Mariana Alcoforado existiu e tentámos perceber esta controvérsia sobre a verdadeira entidade da freira, que atribuiu sucesso às cartas, até aos dias de hoje.

A forma de escrever à lá portugaise converteu-se “um verdadeiro código aplicável a um

deter-minado estilo – a escrita no auge da paixão num momento de desvario e angústia” (Kauffman,

cit. por Koblucka, p.95). Embora Dubois7 considere que “as múltiplas traduções e edições ates-tam o interesse suscitado por uma obra cujo valor literário é por vezes mal apercebido, mas

que conquista o êxito pelo atractivo mundano – uma espécie de êxito do escândalo.”

(Du-bois, 1988, p.36). O entusiasmo exercido em torno das cartas da freira, deveu-se essencialmente

“à excitante incerteza que rodeia a identidade concreta da sua autora. O debate sobre essa questão começou, seriamente, no início do século XIX quando um erudito francês,

Jean-François Boissonade, publicou uma nota que identificava a freira (...)” (Klobucka, 2006, p.13).

Esta nota também é referenciada, por Alfredo Saramago, no seu ensaio histórico. “Em 1810, no folhetim semanal do Variétés, Boissonade faz a seguinte revelação: ... os bibliográficos não descobriram ainda o nome da religiosa. Posso dizer-lhe eu: no exemplar da edição de 1669, há uma nota numa letra que não é desconhecida que diz, la religieuse à Beja, entre

l’Estrama-dure et l’Andalouse. Le cavalier a qui cês lettres furent ècrites etait le conte de Chamilly, dit alors le comte de Saint-Léger” (Saramago, 1994, p.166).

No entanto, a polémica originada sobre a autenticidade de Soror Mariana Alcoforado pre-valeceu durante os séculos “e em relação à qual não foi possível encontrar resposta, encami-nhou para o arquivo da Conceição os entusiastas que aceitavam a Mariana como autora e os

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27

Capítulo I

defensores da ideia de falso autor, inventando pelo editor Barbin em oportunismo livreiro”

(Saramago, 1994, p.166). Barbin, referenciado por Alfredo Saramago, publicou a primeira edição

das cartas, anteriormente mencionada, em 1669. Contudo, a dúvida persiste “desde o

prin-cípio, porque nada existe na edição que possa provar a autoria das cartas” (idem, 1994, p.166).

Em Portugal, a história da recepção das Lettres portugaises “com a sua insistência na figura imaginada de Soror Mariana Alcoforado como uma personificação de essência nacional, a

ansiedade da localização semiperiférica emerge como um tema dominante” (Klobucka, 2006,

p.38). A primeira edição portuguesa, foi publicada por Morgado de Mateus, em 1824,

“en-controu os Alcoforados em Beja, mas não foi mais do que uma suposição sem interesse”

(Saramago, 1994, p.168). O reconhecimento do valor literário das cartas foi controverso, “em 1862,

Inocêncio Francisco da Silva8, ao compilar, a secção respectiva do seu monumental

Dicioná-rio Bibliográfico Português em múltiplos volumes (...), registou uma menção das Lettres Portu-gaises, mas optou por não pronunciar sobre a autenticidade nacional das mesmas” (Klobucka, 2006, p.53).

Mais tarde, durante o seu curso de Literatura Portuguesa (1876), Camilo Castelo Branco9 foi

categórico ao excluir as cartas da freira do património português” (Klobucka, 2006, p.53).

Segun-do AlfreSegun-do Saramago, “Camilo Castelo Branco, em 1876, dava a primeira notícia sobre duas

freiras de nome Alcoforado, D. Peregrina10 e D. Mariana, dizendo no entanto que tal freira,

amando talvez muito o conde, não escreveu tais cartas, e apenas lhe deu o amor e o nome

para a ficção” (Saramago, 1994, p.168).

7. Dubois

Jean Paul Dubois, um escritor, ensaísta e jornalista francês, nasceu em 1950, na cidade de Toulouse. Em 2004 ganhou o Prémio Femina, com Une Vie Française, um importante galardão literário, em França.

8. Inocêncio Francisco da Silva

Foi um importante bibliógrafo lusófono, reuniu toda a informação existente sobre autores de língua portugue-sa até meados do século XIX. Viveu em Lisboa, entre 1810 e 1876 é autor do monumental Dicionário Bibliográfico Português, que foi terminado por outros autores após a sua morte.

9. Camilo Castelo Branco

Camilo Castelo Branco, um importante escritor português, nasceu em Lisboa em 1825, durante a sua carreira literária foi romancista, cronista, dramaturgo, crítico, tradutor e historiador.

10. D. Perigrina

Mencionada no ensaio histórico sobre o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, de Alfredo Saramago, irmã de Mariana Alcoforado.

11. Conde de Sabugosa

O Conde de Sabugosa, viveu entre os anos de 1854 e 1923, foi escritor poeta e publicista, foi um dos fundadores do grupo Vencidos da Vida, que determinou o panorama intelectual português nos finais do século XIX.

12.Jean-Jacques Rousseau

Um dos principais nomes dos filósofos que fizeram parte do movimento intelectual do século XVIII, o Iluminis-mo. O filósofo social, teórico político e escritor viveu entre os anos de 1712 e 1778. A sua obra de maior relevância é O Contrato Social.

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28

Capítulo I

Esta atitude céptica já tinha sido manifestada pelo escritor, Alexandre Herculano e mais tar-de perfilhada pelo romancista português, Henrique Lopes tar-de Mendonça. Luciano Cortar-deiro

“o mais notável mitógrafo de Mariana” (Klobucka, 2006, p.45) com uma importante obra, que

destaca a emotiva defesa da autenticidade de Soror Mariana Alcoforado e da sua respecti-va autoria. Conseguiu prorespecti-var que Mariana Alcoforado existira: “fora freira do Convento da Conceição e tinha vinte e cinco anos de idade aquando da estadia de Chamilly em Portugal”

(Klobucka, 2006, p.55).

Era inevitável que a tradução fosse um dos aspectos relevantes a discutir. “Afinal, é no domí-nio da linguagem, da tradução e da aptidão para serem traduzidas que as cartas de Mariana revelam a sua singular inadequação como ícone de portugalidade, dado o duplo afastamen-to linguístico do texafastamen-to traduzido em relação à essência nacional depurada que os

alcofora-distas portugueses postulavam estar na base da sua expressão primitiva” (Klobucka, 2006, p.79).

Esta questão “ia animando periodicamente os intelectuais e, em 1915, o Conde de Sabugosa11

dizia que as cartas tinham sido vertidas directamente para francês (...). Tal como, o poeta português, Afonso Lopes Vieira, que igualmente reconhece a sua autenticidade (...). O poeta e historiador português, António Sardinha retoma a questão, diz que as cartas só poderiam

ter sido escritas por um homem, juntando-se assim à ideia que foi de Rousseau12. Mais tarde,

Green, um professor de literatura francesa da Universidade de Cambridge, veio dar base

documental à conclusão de Rosseau e de António Sardinha (...)” (Saramago, 1994, p.168). Com

um manuscrito encontrado na “Biblioteca Nacional de Paris (...) no século XVII, em que sob o nome de Barbin vem escrito o seguinte: aujourdui 17 Novembre 1668 nous a esté presenté en

Privilage du Ray donné a Paris le 28 Octobre 1668 signe Mageret pour cinp annés um livre Intitulé Les Vallentines lettres portugaises Epigrannes et Madrigaux de Guilleraques” (Saramago, 1994, p.170).

O ficcionista, poeta e crítico literário, José Osório de Castro e Oliveira, em 1942 defendia que as cartas tinham sido escritas em português “deu ao lamento de amor de Mariana a sua fama internacional e o transformou, assim, num agente ‘pró-nacional’ de expansão e influência

cultural” (Klobucka, 2006, p. 95).

Anna Klobucka declara que “a correspondência de Mariana com Chamilly só podia ter sido

originalmente escrita em francês” (Klobucka, 2006, p.81). A mesma teoria anteriormente

par-tilhada, em 1915, pelo Conde de Subugosa, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, pois sendo filha de família nobre e freira saberia francês, ao contrário de Chamilly. Ale-gando que possivelmente o tempo de estadia em Portugal poderia não ter sido suficiente para aprender português.

Concluindo que “se as Lettres portugaises tivessem sido escritas e exclusivamente divulgadas

em português, o seu eventual valor patriótico teria sido muito reduzido” (Klobucka, 2006, p.96).

Alfredo Saramago acrescenta que “os que recusam a Mariana a autenticidade referem o grande interesse que Barbin tinha em utilizar, Guilleraques, boémio galante de época, como tradutor, e não como verdadeiro autor das cartas. Portugal, por causa da guerra da Restau-ração e da estadia de muitos franceses entre nós, estava na moda no imaginário de

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mui-29

Capítulo I

tos franceses. Era uma oportunidade para lançar uma obra que se adequava ao espírito da

época” (Saramago, 1994, p.170). E continua, “dizer que Mariana desconhecia o mundo e que só

a frequência dos salões podia permitir uma experiência que levasse à escrita das cartas, é desconhecer em absoluto o clima que se vivia no Mosteiro. (...) Em relação à formação li-terária de Mariana é oportuno realçar que foi ela que educou desde a idade de três anos, a sua irmã Peregrina, que foi mais tarde escrivã e abadessa do Mosteiro durante dois triénios”

(idem, 1994, p.171).

Em suma, Alfredo Saramago esclarece-nos que “nunca foi conhecida prova irrefutável que pudesse constituir Mariana Alcoforado como autora das cartas, mas também não existe

qualquer facto que impeça essa autoria” (Saramago, 1994, p.172).

1.4 Legiões de Alcofodoristas

Ao longo dos séculos as diversas questões, análises e interpretações sobre as cartas portu-guesas, mantiveram Soror Mariana Alcoforado como uma figura presente. “Geração após geração, legiões de alcofodoristas das mais diversas estirpes tentaram dar existência a Ma-riana através da escrita, decifrar a realidade material do seu corpo feminino e a identidade

cultural da sua voz portuguesa nas cadências retóricas das cartas” (Klobucka, 2006, p.22). Este

projecto constitui mais uma contribuição para sustentar a memória de Soror Mariana Alco-forado. Neste subcapítulo iremos abordar algumas interpretações, de diferentes áreas, que decorreram sob a influência das cinco cartas.

Um dos exemplos mais recentes e significativos que daremos ênfase, remota o ano de 1972, com o manifesto feminista Novas Cartas Portuguesas, da autoria colectiva de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa, “cuja interpretação revisionista da histó-ria de Soror Mahistó-riana, à semelhança de muitas narrativas estabelecidas a partir de uma pers-pectiva anteriormente marginalizada, impeliu o mito para novos e emocionantes rumos”

(Klobucka, 2006, p. 25).

O colectivo, também apelidado de as três Marias “ao restituírem o passado, não em termos de uma verdade a recuperar, mas como uma fonte muito sugestiva de substancia histórica e simbólica, as três Marias não se propuseram ‘desmitificar’ Mariana, recrutando-a, em vez disso, para o seu projecto progressista, onde se incluíam quer uma descrição e uma denún-cia directas das realidades sodenún-ciais e históricas vividas pelas mulheres portuguesas, quer uma reunificação semiótica compensatória de uma das ficções mais relevantes da feminilidade

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Capítulo I

A All My Independent Woman (AMIW), fundada por Carla Cruz, categoriza-se por um projecto

de exposição e de um blogue, baseado numa perspectiva feminista. Em 2010, realizou uma exposição em torno da leitura das Novas Cartas Portuguesas, das quais surgiram várias inter-pretações dos diferentes artistas convidados. Resultante desta exposição foi o catálogo All

My Independent Woman, com o prefácio transcrito da segunda edição em 1974 e o

pré-prefá-cio e prefápré-prefá-cio para a terceira edição, em 1980, de Maria de Lourdes Pintasilgo, que questiona: “A partir do nó evolutivo das Novas Cartas Portuguesas – a freira de Beja Mariana Alcoforado e o seu romance de amor, em pleno séc. XVII – surgem as mulheres deste século, em muitas e diversas situações e culturas. E é legítimo perguntar: porquê um tal eco? Que coisa nova foi

dita? Que forma tão universalmente comum foi utilizada?” (Pintasilgo, 2010, p.7).

E acrescenta que era a primeira vez na história do “movimento feminista da sua expressão literária a cumplicidade entre as mulheres foi ao mesmo tempo sujeito e objecto de toda a

trama de um livro. Aí reside a sua espantosa originalidade” (Pintasilgo, 2010, p.7).

As Novas Cartas Portuguesas são mais do que um simples testemunho. “São um libelo con-tra a sociedade que descrimina, escraviza, julga, marginaliza. Por isso falam de estruturas sociais, de relação entre dominadores e dominados. As Novas Cartas Portuguesas revelam e denunciam a opressão das mulheres como parte de uma sociedade toda ela operativa. A escolha de Mariana vai dar um nome a essa opressão: chamar-se-á ‘clausura’ (aqui não

escondesse, ó Marias, a vossa experiência de meninas educadas à sombra de conventos para apren-derdes as maneiras que ás gentes de vossa classe convinha)” (Pintasilgo, 2010, p.10).

As cartas das três Marias são pioneiras inscrevem-se na grande corrente da literatura femi-nista. Atribuem ao texto uma afirmação fundamental: “a mulher tem uma identidade pró-pria e, com o próprio gesto com que reclama igualdade, traça na história a sua fundamental

diferença” (Pintasilgo, 2010, p.13).

Este colectivo feminino não foi o primeiro “a reescrever as Lettres portugaises para fazer delas

um romance à sua maneira” (Dubois, 1988, p.35).

Dubois no artigo que escreveu para o Colóquio de Letras da Gulbenkian, em 1988, afirmava que “as Letrres portugaises não tardaram a passar para lá do canal da Mancha: a primeira em data das traduções inglesas é a de sir Roger l’Estrange, de 1678, com uma introdução crítica onde se afirma ‘que o original é escrito em francês e é um dos textos mais artificiais que

existem do género’ (...)” (Dubois, 1988, p.36).

O poeta alemão, “Rilke, na sua tradução Portgiesishe Briefe, de 1907, propôs uma interpretação muito pessoal do amor, no sentido da sublimação, mas inteiramente inadequada ao caso, (...) salienta a ideia de abandono, (...) que seria a característica peculiar do amor na mulher desde que esta aceita a dominação do homem. O papel da mulher é revalorizado: repudiada pelo amante, adquire a sua verdadeira personalidade na abnegação – e isto faculta-lhe uma certa independência perante o homem. Este ponto de vista não contradiz inteiramente o das autoras modernas, que afirmam também o seu desejo de independência da mulher. Mas,

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31

Capítulo I

para elas, a personalidade feminina manifesta-se na sensualidade por forma idêntica à do

homem” (Dubois, 1988, p.36).

As Novas Cartas Portuguesas “foram levadas à cena sob o título La Clôture e com encenação de N. Ozanne, em Outubro de 1978, no teatro da Cidade Universitária de Paris. Mais tarde, as

Lettres portugaises foram apresentadas na Televisão portuguesa em 1979 (RTP, de 2 de Agosto

a Outubro) e seguidamente publicadas em edição bilingue (1980). Foram também adaptadas

para o teatro sob o título From the Balcony (BBC e National Theatre, Maio de 1982) num diá-logo, ou antes: em dois monólogos paralelos, de Mariana e um tal Amand. Nessa adaptação Mariana retoma as expressões das cartas, conta o seu amor infeliz ao passo que Amand

evoca as suas numerosas conquistas amorosas (...)” (Dubois, 1988, p.36).

Mas, para Dubois não existiam dúvidas que a mais profunda “transformação do romance epistolar” foi a das Novas Cartas Portuguesas. “O livro das três Marias è um romance contesta-tário e contestado que retoma a forma exterior do seu modelo: (...) seguir de perto Mariana

e as cartas (Terceira Carta II) para representar três vozes distintas. Há no romance duas linhas

que se entrecruzam: uma é da amplificação da Lettres portugaises, isto é, uma construção da vida de Mariana Alcoforado através das escassas migalhas de factos reveladas no seu monó-logo e do que se julgou descobrir sobre a personagem real e histórica, bem como do que se inventou sobro os membros da família ao longo das gerações de pessoas religiosas ou laicas

até à nossa época” (Dubois, 1988, p.38).

As autoras das Novas Cartas Portuguesas diligenciam explicar a desafortunada situação de Mariana “encerrada num convento, repudiada pela mãe de que é filha adulterina e aproxi-mando-a, assim, de La Religieuse de Diderot. No seu processo literário, que consiste em per-mutar as cartas e em seguida reunirem-se para as discutir, as três romancistas transformam a paixão vivida e dominada na escrita e pela escrita do seu modelo num erotismo cruamente afirmado. Enquanto as Novas Cartas aprofundam o tema da sensualidade e da sexualidade

femininas – o ‘exercício da paixão’ (Primeira Carta I) –, no texto original que serviu de ponto de

partida há apenas uma sugestão desses temas” (Dubois, 1988, p.38).

Uma outra perspectiva abordada nas Novas Cartas Portuguesas “é o desenvolvimento de um certo número de situações modernas paralelas, em que outras Marianas se sentem vítimas da dominação do homem, de que foram separadas por razões históricas, tal como a freira de

Beja. A conjugação da ficção com a realidade está de acordo com o tom do texto original” (idem,

1988, p.38). O erotismo explícito, no livro, demonstrou ser um dos principais motivos da

con-denação oficial em 1972, no entanto, no ano de 1974 as três Marias foram absolvidas, a seguir à libertação de Portugal.

As Novas Cartas Portuguesas reforçaram “o movimento feminista no País” (Dubois, 1988, p.38).

Tornaram-se “o movimento social que constituíram hoje as mulheres, traz potencialmente consigo a resposta. A força colectiva das mulheres, como o grupo social simultaneamente mais discriminado e mais internacional, é um factor de que a história não pode ainda dar

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Capítulo I

contas. Foram passos como as Novas Cartas Portuguesas que ajudaram essa força a tomar consciência de si própria.

Ela está hoje em movimento, na descoberta de novos valores e de outra maneira de estar no

mundo, na prática de uma vida mais liberta e mais dada” (Pintasilgo, 2010, p.13).

Apesar de As Novas Cartas Portuguesas terem sido uma das mais relevantes interpretações das cartas de Mariana Alcoforado, outras existiram. Como é exemplo, em 1915, “José de Alma-da Negreiros, uma Alma-das principais figuras Alma-da vanguarAlma-da modernista, publicou o seu célebre

Manifesto Anti-Dantas. Assinado José de Almada Negreiros, Poeta d’Orpheu, Futurista e Tudo,

o manifesto era um ataque violento e cónico à peça Soror Mariana, escrita por Júlio Dantas, escritor imensamente prolífero e popular. Destacado membro de ‘establishment cultural’. Al-mada denunciou a peça, que na altura estava a ter um êxito considerável no Ginásio Dramá-tico de Lisboa, como um sistema de tacanhez geral da cultura dominante portuguesa, e um

exemplo de regurgitação de fórmulas da tradição nacional (...)” (Klobucka, 2006, p.119).

Alguns autores foram mencionados ao longo do texto que escreveram sobre Mariana Alco-forado, mas é de salientar que em Portugal, antes da reforma de 1930, na educação, as Lettres portugaises eram leccionadas nas escolas, segundo Anna Klobucka, no livro Mariana

Alcofo-rado: Formação de um Mito Cultural. Com o intuito de preservar o conservadorismo português

e a moral da sociedade foram retiradas do programa.

Em 1940, ano em que se realizaram as grandes celebrações do duplo centenário, englobando o tricentenário da Restauração da Independência Portuguesa relativamente a Espanha, em 1640, e o oitavo centenário da existência de Portugal como “Estado-nação autónoma, também tes-temunhou a publicação de mais uma ‘biografia’ da freira. Vida e Morte de Madre Mariana foi escrita por um autor alentejano, Manuel Ribeiro, cuja dedicatória explicativa revela a

dimensão patriótica do seu projecto” (Klobucka, 2006, p.123), sendo o livro apresentado como:

tributo do autor às comemorações nacionais da Restauração da Pátria e do nascimento de Madre Mariana Alcoforado, gloriosa filha de Beja, grande coração que levou a todo o mundo o nome de Portugal e fundiu no bronze das suas Cartas memória eterna do sentimento português” (Ribeiro, cit. por Klobucka, 2006, p.123).

No decorrer do mesmo ano “o seu retrato foi exposto no pavilhão principal, na monumental Exposição do Mundo Português, onde foi catalogada como uma ‘grande figura nacional’

(...) (Pereira, 2006, cit. por Klobucka, p.122). Posteriormente, a presença fictícia de Soror Mariana

Alcoforado na exposição realizada em 1994, na “Biblioteca Nacional de Lisboa, intitulada

Amor em Portugal e consagrada, nas palavras de Maria Leonor Machado de Sousa, a recordar

“alguns pares amorosos particularmente significativos na tradição portuguesa” (Sousa, cit. por

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Capítulo I

Soror Mariana Alcoforado, também inspirou realizadores de cinema como é o caso do

po-lémico filme, para a época, de Jesús Franco, Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa (1977)

assinado com o seu pseudónimo Jess Franco. Outras produções mais recentes são de

Eu-géne Green, com A Religiosa Portuguesa (2009), o Film Les Lettres Portugaises (2013) de Bruno

François-Boucher e Jean-Paul Seaulieu e o documentário de Leonor Noivo, Outras Cartas ou

o Amor Inventado (2012).

Henri Matisse, o artista francês atribui existência a Mariana, à qual lhe dedicou uma série de litografias, que serão analisadas como caso de estudo, no segundo capítulo. Em 1946, ilustra o livro Lettres d'une religieuse portugaise por Mariana Alcoforado onde evoca plasticamente a devoção e a paixão excessiva, num traço delicado com diversas expressões que idealizam um retrato da freira. Ao longo das páginas utiliza diversos símbolos como flores e frutos, incluin-do capitulares, meticulosamente desenhadas.

As Lettres portugaises foram objectos de interpretações tão numerosas como variadas “embo-ra isto seja segu“embo-ramente verdade no que respeita à presença contemporânea de Soror Ma-riana, em Portugal, ocasionalmente ainda se fazem ouvir algumas vezes, vindas de locais tão remotos do mundo lusófono como, por exemplo, o sul da Califórnia, que insiste na

necessi-dade de manter em aberto a questão da confirmação histórica da sua autoria.” (Klobucka, 2006,

p.126). Um exemplo sugerido por Anna Klobucka, ao referir um comentário sobre o romance

Marianne (1996) da escritora luso-america Katherine Vaz.

O primeiro capítulo é sustentado pela necessidade de pesquisa, no desenrolar do processo criativo da ilustração. Na tentativa de perceber o autor e a sua intenção, ao criar possibili-dades para fazer uma abordagem, ao texto, de Soror Mariana Alcoforado. Neste contexto, Bárbara Kiefer acrescenta: “A escolha do conteúdo pictórico por parte do artista pode ser essencial para o significado geral do livro e pode ser a escolha mais importante em termos técnicos. Embora muitos artistas optem por representar, ou ecoar, o texto verbal de um livro,

a experiência estética é reforçada quando o artista traz algo extra para a cena” (Kiefer, cit. por

Fonseca, 2013, p.349).

Com base nesta análise isolada do texto original, conseguimos obter um retrato psicológi-co das personagens principais e algumas possíveis caracterizações físicas, narradas pelos autores referidos. Contextualizar, brevemente, o tempo de acção da história, alguns costu-mes da sociedade, que revelam ser importantes na compreensão das cartas e referidos nas

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Capítulo I

O levantamento de vários projectos, como os mencionados, demonstra o interesse e a re-levância que vários autores e artistas atribuíram ao trabalhar sobre as cinco cartas. Assim como, é um levantamento de hipóteses que são tidas como exemplos, de diferentes aborda-gens e suportes, para a concretização do projecto prático.

Ao terminar este primeiro capítulo voltámos a relembrar a necessidade de pesquisa no de-senvolvimento do processo criativo da ilustração, como refere Diaz Armas, “ilustração e

tex-to formam uma unidade quantex-to aos valores e à visão que defendem” (Armas, cit, por Fonseca,

2013, p.349). Atendendo que a autora do texto, que sustenta este projecto prático, faleceu entre

1710 e 1743, mais pertinente se revela a investigação descrita, ao longo deste capítulo, que auxiliou na criação de uma estrutura de informação textual paralela ao texto. Revelando ser um ponto de partida importante no pensar a imagem, neste caso particular, a ilustração.

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Capítulo II

Capítulo II

2.1 Pensar a Imagem. Da percepção visual para o tratamento visual

O ilustrador: Intermediário na relação do texto e da imagem

O recorrente uso do termo imagem, por vezes, é suportado com diversos significados sem uma ligação próxima, o que demonstra uma certa dificuldade em construir uma definição simples que englobe as variadas formas de a utilizar. Como questiona Martine Joly, em a

Introdução à análise da imagem, o que poderá haver em comum entre “um desenho de uma

criança, um filme, uma pintura rupestre ou impressionista, graffitis, cartazes, uma imagem

mental, uma imagem de marca, ‘falar por imagem’ e por aí fora?” (Joly, 2008, p.13). Apesar da

diversidade de significados que podemos atribuir à palavra imagem, entendemos que esta designa algo que apesar de nem sempre remeter para o visível, utiliza de “empréstimo al-guns traços ao visual e, em todo o caso, depende da produção de um sujeito: imaginária ou

concreta, a imagem passa por alguém, que a produz ou a reconhece” (Joly, 2008, p.13).

Uma das mais antigas definições de imagem, é dada por Platão, explica-nos: “chamo ima-gens, em primeiro lugar às sombras; em seguida, aos reflexos nas águas ou à superfície dos

corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as representações deste género” (Platão, cit. por Joly,

2008, p.13). Portanto, poderemos afirmar a imagem, como um reflexo de tudo o que utiliza um

processo de representação.

Apesar de não ser um objectivo, desta investigação, definir o que é e o que se compreende por imagem, esta surgiu “segundo relato de Plínio, do gesto de contornar a sombra de um sujeito real projectada na parede de uma caverna, está por sua vez na origem da imaginação, termo que justamente remete para a conversão das coisas em imagens... Das coisas... que vimos algures, e que registámos com um desenho de traço ou que fotografámos (e as coisas são aqui preexistentes às imagens delas) e daqueloutras que conjecturámos, colhemos no pensamento, fizemos nascer das potencialidades gráficas dos sistemas informáticos (e neste

processo são muitas vezes as imagens que preexistem às coisas...)” (Calado, 1994, p.13).

O mundo das coisas vistas é rico e diversificado conseguimos formar imagens mentais, ou seja, produtos da nossa criação mental, dos objectos e seres do mundo exterior, que provém de várias circunstâncias, de origem sensorial, visual, auditiva, olfactiva e gustativa.

“O que quer dizer que pensamos por imagens. Assim, o pensamento inconsciente é

predo-minantemente, um pensamento por imagens, como o pensamento onírico” (Calado, 1994, p.24).

Acrescenta, Martine Joly que aplicámos, também, o termo imagem para referir actividades psíquicas. A imagem mental equivale à impressão que obtemos, por exemplo, quando esta-mos a ler ou a ouvir a descrição de um lugar, podeesta-mos ter a sensação de ver esse local, como se estivéssemos lá fisicamente. “Uma representação mental é elaborada de um modo quase

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Capítulo II

Esta representação relaciona-se com um modelo perceptivo do objecto, ou de uma estrutura formal que interiorizamos, e aliámos a um determinado objecto, onde algumas referências visuais são o suficiente para o evocar.

Neste caso, o conceito imagem não se refere apenas a imagens visuais, mas a um conjunto

de percepções sensoriais, que englobam a memória. Como explica António Damásio (2000)

quando vemos, ouvimos ou tocamos em determinada coisa, instantaneamente se desenca-deia uma sucessão de imagens, no entanto aquilo que sentimos sobre estas imagens é o que nos traz a sensação de pertença e a própria consciência deste sentimento. As imagens que vi-sualizámos na nossa mente nunca serão cópias reais ou exactas de um determinado objecto, mas antes um resultado de várias interacções entre o sujeito e uma determinada situação, ou seja, as imagens que construímos são de carácter individual, relacionadas com as nossas ex-periências pessoais. Como refere Isabel Calado, no livro A Utilização Educativa das Imagens, define que “pensar a imagem é, em primeiro lugar, reconhecê-la como objecto inteligível. Realçar a importância dessa reflexão é, em segundo lugar, estar convicto do poder que ela detém sobre a nossa cultura, a nossa mundividência, a nossa inserção na realidade, as nossas

fantasias, os nossos distúrbios e as nossas utopias.” (Calado, 1994, p.12).

Esta questão sobre como pensar a imagem, neste caso particular, a ilustração, subjacente ao projecto prático, que suporta esta pesquisa. Revelou-se uma das principais dificuldades a ultrapassar. A capacidade e a necessidade de construir uma narrativa visual que “não

subs-titui um texto escrito ou uma imagem” (Calado, 1994, p.34), atendendo às suas propriedades

estruturais, a imagem é mais adequada a representar do que o discurso verbal. Gunther Kress e Theo van Leewen, no livro Reading Images - The Grammar of Visual Design mencio-nam Barthes, ao referenciar um outro ponto importante: “the visual component of a text is an

independently organized and structured message – connected with the verbal text, but in no away dependent on it: and similarly the other way around” (Barthes, cit. por Kress e Leeuwen, 1996, p.17). Assim

como, Gémeo Luís, no seu estudo A importância do ilustrador no processo do livro, acrescenta: “cada obra propõe um início de leitura quer por meio do texto, quer da imagem, e [que] tanto

um como outro pode sustentar maioritariamente a narrativa” (Fonseca, 2013, p.51).

Isabel Calado, refere que “a imagem figurativa (não necessariamente mimética...) é expressi-va e apelatiexpressi-va. Prende o olhar, desperta o prazer, desencadeia a evocação. Mas nem sempre aposta no entusiasmo – è um valor de percepção. Quando, numa imagem, a sensibilidade poética se sobrepõe à racionalidade semântica. Quando, numa imagem, a sensibilidade (por vezes, mesmo, a do mito...) – que não a da inteligibilidade – aquela que encara a sedução como ponto de partida para o entendimento, antes como armadilha na qual o seduzido è

ludibriado” (Calado, 1994, p.13).

Com esta afirmação sobre imagem entrámos no domínio da comunicação visual, exposta por Bruno Munari, em determinados casos, como “um meio insubstituível que permite a

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Capítulo II

um emissor passar as informações a um receptor, sendo condições fundamentais do seu funcionamento a exactidão das informações, a objectividade dos sinais, a codificação uni-tária e a ausência de falsas interpretações. Só se podem atingir estas condições se ambas as partes, entre as quais tem lugar a comunicação, conhecerem estruturalmente o fenómeno”

(Munari, 2009, p.78).

Todos estes factos da modalidade da percepção visual são estudados, pela psicologia: “o li-mite de percepção de uma imagem elementar, as ilusões ópticas, a permanência de uma

imagem na retina, o movimento aparente e outros casos (...) (Munari, 2009, p.83).

Isabel Calado explica-nos que a psicologia da visão assenta os seus princípios na Gestalt ou

Teoria da Forma. Esta teoria fundada por Wertheimer, Kohler e Koffka, nos anos vinte do

século anterior, consiste numa noção básica, de que qualquer sistema é um todo constituído por partes. Ou seja, a Teoria da Forma “pode decompor-se, isto é, podem analisar-se as partes de percepção, mas modificar qualquer uma delas terá repercussões no conjunto, pois essas partes são interdependentes. Daí que o mundo das formas visuais seja um campo de

predi-lecção da Gestalt” (Calado, 1994, p.24).

Apesar de apenas referenciarmos, a Teoria da Forma, o termo alemão gestalt “remete para a ideia de totalidade: as formas percepcionadas, enquanto elementos particulares do cam-po visual, dependem do lugar e da função que ocupam dentro desse contexto total. De modo idêntico, a estrutura do conjunto pode alterar-se por efeito de modificações locais”

(idem, 1994, p.24).

A mesma autora define percepção visual como o tratamento visual da informação, “a nível cerebral, dos dados (sensações) que recolhemos através dos receptores sensoriais que são os olhos. A percepção visual é uma capacidade humana fundamental (...), que trata as formas

de modo abstracto (indutivo)” (Calado, 1994, p.25). Se fosse um registo mecânico, apenas

tería-mos informações sobre o tamanho, ângulo e outras características semelhantes.

Assim sendo, concluímos que “as percepções são conceptualizações – se por este termo

en-tendermos construções da mente (...)” (Calado, 1994, p.26). O tratamento visual da informação

pode depender de diversos factores, anteriormente referidos e enumerados, também, por Isabel Calado, de carácter individual, sociocultural, sintáctico, semântico e pragmático. O que puderam ser factores determinantes, neste projecto prático, para a compreensão da re-lação entre o texto e imagem, como abordaremos no decorrer deste capítulo.

Poderemos partir do princípio que, no caso específico deste relatório de investigação, utili-zámos As Cartas Portuguesas como estímulo para a produção, numa primeira leitura, de ima-gens mentais, baseadas nas experiências da autora, como descobriremos na continuação da leitura, que originaram um processo de criação para o resultado final da ilustração.

Referências

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