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MARIA CRISTINA MIRANDA DA SILVA A PRESENÇA DOS APARELHOS E DISPOSITIVOS ÓPTICOS

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Academic year: 2018

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A PRESENÇA DOS APARELHOS E DISPOSITIVOS ÓPTICOS

NO RIO DE JANEIRO DO SÉCULO XIX

DOUTORADO: COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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A PRESENÇA DOS APARELHOS E DISPOSITIVOS ÓPTICOS

NO RIO DE JANEIRO DO SÉCULO XIX

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica – Signo e Significação nas Mídias – sob a orientação do Prof. Doutor Arlindo Ribeiro Machado Neto.

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BANCA EXAMINADORA:

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Ao orientador desta pesquisa, Prof. Arlindo Machado, pelas leituras cuidadosas e por iluminar o percurso do estudo com sua experiência acadêmica.

Às professoras Ana Claudia Mei e Lucrecia D’ Alessio Ferrara pelas valiosas indicações, durante o exame de qualificação, fundamentais para a finalização desta tese.

À Cida e Edna do COS pela atenção rotineira. Ao CNPQ, pelo financiamento da pesquisa.

E também:

Maria de Fátima Moraes Argon e Neide Cristina Machado da Costa (Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis), em especial pela acolhida durante a pesquisa de campo; Cristina Zappa (Instituto Moreira Salles-RJ); Gavin Adams; Marcelo França; Profa. Ana Maria Mauad (História-UFF); Profa. Ilma Resende Soares (ESS-UFRJ); Prof. Roberto Leher (FE-UFRJ); Prof. Marcelo Badaró (História-UFF); Prof. Sara Granemann (ESS-UFRJ); e à Viviam de Almeida Mattos e Iná de Souza Borges, pelo auxílio na pesquisa de campo.

E ainda:

Às Profas. Marialva Monteiro e Rê Fernandes, que me apresentaram pela primeira vez os aparelhos ópticos e, em especial, ao CINEDUC, que me guiou nos primeiros passos em busca do ‘aprender a olhar’.

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Maria Cristina Miranda da Silva

RESUMO

O estudo investiga a presença dos aparelhos e dispositivos ópticos no Brasil do século XIX, em especial na cidade do Rio de Janeiro, objetivando examinar os seus usuários e difusores, bem como as formas de observação e os contextos sociais de utilização dos mesmos. A pesquisa é fundamentada nos estudos do primeiro cinema, especialmente em

Tom Gunning e Charles Musser, e na obra do historiador da arte Jonathan Crary, autores que nos ajudam a analisar, respectivamente, o processo de recontextualização do uso dos dispositivos ópticos e do redimensionamento do observador da modernidade. O trabalho

empírico consiste na análise dos pedidos de licença à Câmara Municipal do Rio de Janeiro para a exibição dos dispositivos, no período de 1830 a 1890, e no estudo sistemático de anúncios publicados nos periódicos do período, em especial no Jornal do Commercio,

entre as décadas de 1850 e 1870. A organização e categorização dos achados da pesquisa comprovam a popularização dos referidos dispositivos e aparelhos, sobretudo nas festas de rua. Especial ênfase foi conferida a chegada da fotografia no Brasil e a precocidade com que a estereoscopia foi aqui desenvolvida pelo fotógrafo Revert Henrique Klumb. As temáticas que foram referência para a visualidade brasileira foram mapeadas e os fotógrafos brasileiros que desenvolveram esta técnica em seus trabalhos foram inventariados. A partir dos anúncios publicados no Almanak Laemmert, entre os anos de

1844 e 1889, realizamos um levantamento dos estabelecimentos que importavam e comercializavam os aparelhos e dispositivos no período referido. A partir das informações coligidas, a investigação problematiza a presença dos dispositivos e aparelhos ópticos na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, considerando as particularidades dos aparelhos e dispositivos no contexto histórico, econômico e social da época.

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Maria Cristina Miranda da Silva

ABSTRACT

The study investigates the presence of optical apparatus and optical devices in Brazil of century XIX, in special in the city of Rio de Janeiro, objectifying examining its users and diffusers, as well as the forms of comment and social contexts of the use the same ones. The research is based on the studies of the early cinema, especially in Tom Gunning and

Charles Musser, and in the workmanship of the historian of the art Jonathan Crary, the authors that help us, respectively, in the process of the recontextualizing of the use of optical devices and the dimensionality of the observer of modernity. The empirical work consists of the analysis of the orders of license to the city council of Rio de Janeiro for the exhibition of the devices in the period of 1830 the1890, and in the systematic study of the announcements published in newspapers in that period like Jornal do Commercio from

1850 to 1870. The organization and the categorization of the findings of the research prove that the popularization of the devices mentioned, over all in the street parties. Special emphasis was conferred on the arrival of the photograph in Brazil and the precocity with that the photographer Revert Henrique Klumb developed the Stereoscopy. Thematic that they had been the reference for the Brazilian visuality had been mapped and the Brazilian photographers who had developed this technique had been inventoried. From the announcements published in the Almanak Laemmert, between 1844 and 1889, we have

done a survey of the establishments that imported and commercialized the apparatus and devices in the period in question. Taking into account all the information provided, the study questioned the presence of the optical apparatus and devices in the city of Rio de Janeiro in the 19th century, considering the particularities of them in the historical, economical and social context of the time.

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Página

INTRODUÇÃO ... 008

1 RECONTEXTUALIZAÇÃO DOS APARELHOS E DISPOSITIVOS ÓPTICOS DO SÉCULO XIX: JONATHAN CRARY E O PRIMEIRO CINEMA ... 013

1.1 Redimensionamento do observador moderno ... 013

1.2 Visibilidade e fantasmagoria – o engajamento do espectador ... 017

1.2.1 Particularidades dos aparatos ópticos e suas exibições ... 019

1.3 Tecnologias, observadores e imagens ... 022

1.3.1 Transformações na percepção: atenção e distração ... 024

2 DIVERTIMENTOS ÓPTICOS NO RIO DE JANEIRO ... 027

2.1 Considerações preliminares ... 027

2.2 Cultura e lazer na Corte ... 029

2.3 As exibições dos divertimentos ópticos ... 036

2.3.1 Prestidigitação: visibilidades e fantasmagorias ... 046

2.3.2 A ciência e a educação conjugadas com os dispositivos ... 053

2.4 Os aparelhos e dispositivos ganham as ruas ... 056

2.4.1 Os requerimentos à Câmara Municipal do Rio de Janeiro ... 056

2.4.1.1 Os estabelecimentos e as exibições ambulantes ... 057

2.4.1.2 Exibições nas festas de rua ... 058

3 A PRESENÇA DA ESTEREOSCOPIA NO BRASIL ... 075

3.1 Breve histórico: chegada e expansão da fotografia no Rio de Janeiro ... 075

3.2 A estereoscopia ... 080

3.3 Os primeiros anos no Brasil ... 083

3.4 Estereoscopias presentes nos acervos públicos do Rio de Janeiro: sistematização preliminar ... 087

3.4.1 Estereoscopias brasileiras: o projeto de um ‘Brasil Moderno’ ... 087

3.4.1.1 Estereoscopias de Revert Henrique Klumb ...087

3.4.1.2 Outras estereoscopias produzidas no Rio de Janeiro ...096

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E DISPOSITIVOS ÓPTICOS NO RIO DE JANEIRO DO SÉCULO XIX ... 107

4.1Demanda e consumo dos estereoscópios ... 113

4.2Aparelhos vinculados ao ilusionismo ... 122

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ... 140

ANEXO A Pedidos de licença para exibição dos dispositivos e aparelhos ópticos - 1834 a 1899 .... 149

ANEXO B Principais estabelecimentos que importavam e comercializavam os aparelhos e dispositivos opticos no século XIX ... 166

ANEXO C Sistematização das notícias do Jornal do Commercio ... 188

ANEXO D Reproduções de anúncios do ALMANAK LAEMMERT ... 211

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INTRODUÇÃO

Este estudo tem sua gênese na dissertação de mestrado APARELHOS ÓPTICOS DO SÉCULO XIX: FORMAÇÃO DO ESPECTADOR MODERNO, defendida no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), em maio de 2001, na qual objetivamos problematizar o papel dos aparelhos ópticos do século XIX na história da visualidade ocidental. Fundamentados teoricamente nos estudos do historiador da arte Jonathan Crary (1994, 1999), e nas pesquisas referentes ao pré-cinema, especialmente nas obras de Tom Gunning (1995) e Charles Musser (1990), verificamos que a utilização desses aparelhos, a partir do jogo entre o real e o ilusório, contribuiu de forma intensa na formação do espectador moderno. A reflexão sobre as transformações no espaço social e na experiência do tempo, sobre as formas de observação advindas das particularidades desses aparelhos e de suas formas de utilização e exibição, assim como a relação entre a ciência (notadamente os estudos da física e da fisiologia), o início da industrialização e a modernidade, nos permitiu evidenciar um redimensionamento da história da visualidade do decorrer do século XIX. A presente tese aborda a natureza e o caráter dessas relações no Brasil oitocentista.

Diversos autores que examinaram o período inicial do cinema no Brasil ressaltaram a utilização dos aparelhos e dispositivos ópticos que reproduziam imagens fixas e em movimento como forma de divertimento e lazer no decorrer do século XIX. Nesse sentido, destacam-se as obras de Vicente de Paula Araújo (1976, 1981), que oferece um painel do setor das diversões populares, na chegada do cinema no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX e de Alice Gonzaga (1996), que analisou a expansão do cinema no Rio de Janeiro desde os seus primórdios. Estes autores discutem a utilização desses aparelhos, porém, não como objetivo principal, mas lateralmente, como uma etapa primitiva de uma sucessão de invenções e aperfeiçoamentos que levaram à invenção do cinematógrafo e como parte introdutória da chegada do cinema no Brasil. Por esses motivos, privilegiam o final do século XIX e a passagem para o século XX, período em que estes aparelhos coexistiram com o

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Entretanto, vários desses aparelhos e dispositivos ópticos circularam por diversos espaços no Brasil desde as primeiras décadas do século XIX, provocando significativa repercussão em toda parte, principalmente nos centros de maior densidade populacional e pujança econômica.

O olhar desta tese é outro. A presente pesquisa investiga os instrumentos ópticos do século XIX não como um elo inscrito na pré-história do cinema no Brasil, mas, antes, como uma problemática que exige método de análise e categorias capazes de apreender as suas particularidades. A investigação mapeia a chegada e a disseminação desses aparelhos e dispositivos no Brasil (em especial, na Cidade do Rio de Janeiro) do século XIX, objetivando examinar os seus usuários e difusores, bem como as formas de observação e os contextos sociais de utilização dos mesmos.

A escolha do Rio de Janeiro se justifica pois esta cidade foi elevada à condição de Capital do Império no início do século XIX e, por esta condição, centro cultural, político e econômico do território nacional, servindo como porta de entrada e palco principal da exibição desses aparelhos no Brasil, em especial após a Abertura dos Portos em 1808, quando a cidade passou a receber um maior número de estrangeiros e de mercadorias importadas.

Todavia, cabe ressaltar, ao mesmo tempo em que Capital do país e Corte da Monarquia, o Rio de Janeiro constituiu-se numa área de grande concentração de escravos. Assim, longe das pretensões da Corte do Rio de Janeiro de transformar a cidade em um “pólo civilizador da nação”, a Cidade se tornaria “o teatro das contradições imperiais” (ALENCASTRO, 1997:23).

Distintamente de uma Paris nos trópicos, essas contradições e antinomias moldaram o Rio de Janeiro como um espaço singular em que também as diversões e o processo ‘civilizatório’ contêm inegáveis particularidades. Ao longo do estudo, será visto que o modo como os aparelhos e dispositivos circularam na capital refletem muitas dessas contradições.

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da fotografia, o que nos levará a também abordar em nosso estudo parte da história da fotografia no Brasil.

Para tornar pensável o uso social desses aparelhos, a investigação discutirá, ainda que preliminarmente, o contexto histórico-social brasileiro. Esta discussão requer, ainda, referências conceituais contidas nos estudos do primeiro cinema e na obra do historiador

da arte Jonathan Crary, que nos ajudam a examinar, respectivamente, o processo de recontextualização do uso desses aparelhos e do redimensionamento do observador da modernidade. Esperamos, assim, contribuir para os estudos sobre a formação da cultura visual brasileira, sobretudo a forjada no Rio de Janeiro.

Ressaltamos que o estudo e a contextualização histórica e social desses aparelhos e dispositivos no Brasil, sobretudo no que se refere à sua utilização, tornam-se uma tarefa difícil na medida em que há uma escassa bibliografia sobre o tema. Além disso, outras dificuldades se apresentam aos pesquisadores para o estudo proposto: pouco material em acervos públicos e acervos privados não inventariados e indisponíveis ao público tornam os registros de utilização dos aparelhos muito dispersos e fragmentários. A presente tese pretende ser uma contribuição também para outros pesquisadores ao buscar organizar as informações sobre os acervos investigados. Com efeito, a sistematização da presença destes aparelhos e dispositivos ópticos no Rio de Janeiro do século XIX, a partir do mapeamento de suas exibições públicas, de sua comercialização, e das imagens que veiculavam, podem servir como ponto de partida para estudos futuros. Assim, o que poderia parecer uma imprudência, o longo período a ser mapeado (século XIX), se justifica visto que a pesquisa se vale de informações que muitas vezes parecem desencontradas compondo um grande mosaico que a presente investigação pretende tornar inteligível.

Inicialmente apresentamos as referências conceituais dos estudos do primeiro cinema e de Jonathan Crary tomadas por base nesta pesquisa. Discutiremos as

especificidades dos aparelhos e dispositivos ópticos do século XIX e sua contextualização mais geral na modernidade. Conforme pode ser visto adiante, o método de análise e as categorias de Crary servem de referência conceitual e metodológica para a presente pesquisa.

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1830 a 1890, proporcionou a verificação de diversos pedidos de licença à Câmara Municipal para a exibição dos dispositivos comprovando a sua popularização, sobretudo nas festas populares. No ANEXO A, apresentamos a sistematização dos dados recolhidos.

Na seqüência, problematizamos a chegada da fotografia no Brasil e a precocidade com que a estereoscopia foi aqui desenvolvida pelo fotógrafo Revert Henrique Klumb. Uma verificação nos acervos de instituições públicas, como a Biblioteca Nacional e o Museu Imperial de Petrópolis, das estereoscopias produzidas e consumidas no Rio de Janeiro durante o século XIX, possibilitou um mapeamento de parte das temáticas que foram referência para a visualidade brasileira e de alguns fotógrafos brasileiros que desenvolveram esta técnica em seus trabalhos.

Por meio de uma pesquisa sistemática dos anúncios publicados no Almanak Laemmert, entre os anos de 1844 e 1889, foi realizado um levantamento dos

estabelecimentos que importavam e comercializavam os aparelhos e dispositivos no período referido. No ANEXO B, apresentamos o resultado da aferição.

A pesquisa sobre as formas de comércio e exibição dos aparelhos e dispositivos no Rio de Janeiro foi complementada, no seu conjunto, com a análise de anúncios veiculados pelo Jornal do Commercio entre as décadas de 1840 e 1870. A pesquisa

mais sistemática neste periódico concentrou-se na década de 1850, com a verificação completa de quatro meses – março, junho, setembro e dezembro – por ano, e nos três primeiros anos das décadas de 1860 e 1870. Os demais anos e meses foram verificados de acordo com a necessidade da pesquisa, de maneira menos sistemática. Apresentamos no ANEXO C, uma sistematização dos anúncios verificados no estudo, distinguindo os aparelhos e dispositivos presentes no texto e correlacionando-os à função do anúncio de divulgação das exibições ou comércio.

A opção pelo Jornal do Commercio se justifica pela consistência de sua

periodicidade (diária) e permanência no mercado (desde 1827), permitindo o estudo de períodos mais dilatados no tempo. De grande circulação (na corte e nas províncias), e de caráter conservador, destinava-se em especial a divulgar notícias comerciais nacionais e estrangeiras, com ênfase nos anúncios. Era dirigido principalmente às elites e burguesia ascendente, mas atingia também as camadas médias da população da Cidade. O

Almanak Laemmert (1844-1930), editado anualmente, se afirmou como um suporte

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dos estabelecimentos e serviços oferecidos na Corte, foi uma grande referência à sua época, divulgando inclusive festas, costumes e o calendário da Casa Imperial, além dos retratos de D. Pedro II.

À luz do levantamento empírico realizado pela pesquisa, procuramos abordar a discussão proposta pelos estudos do primeiro cinema e de Jonathan Crary. Pretendemos,

assim, a partir das informações apresentadas e sistematizadas, conceituar a presença dos dispositivos e aparelhos ópticos na Cidade do Rio de Janeiro no século XIX, considerando as particularidades dos aparelhos e dispositivos no contexto histórico, econômico e social da época.

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1. RECONTEXTUALIZAÇÃO DOS APARELHOS E DISPOSITIVOS ÓPTICOS

DO SÉCULO XIX: JONATHAN CRARY E O PRIMEIRO CINEMA

1.1 Redimensionamento do observador moderno

Os aparelhos ópticos que surgiram ao longo do século XIX, a partir de pesquisas e experiências científicas, e rapidamente foram popularizados sob a forma de brinquedos e ‘divertimentos’, vêm sendo tratados, como destacado, pela historiografia clássica do cinema, por exemplo, por George Sadoul (1948), apenas como parte de um processo de evolução tecnológica de produção das imagens que culminaria com a invenção do cinematógrafo.

Entretanto, recentes trabalhos vêm configurando um novo quadro: os estudos referentes ao período inicial do cinema, também conhecidos por primeiro cinema1, e o

estudo do historiador da arte Jonathan Crary (1994, 1999), especialmente em seus livros

Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century e Suspensions of Perception: Attention, Spectacle, and Modern Culture, destacam que a

inserção desses aparelhos na história da visualidade deve ser pensada a partir de seu funcionamento e uso social e não vinculada diretamente à história do cinema.

Os estudos do primeiro cinema consideram que os primeiros anos de exibição de

filmes, assim como o período anterior, de invenção e popularização dos aparelhos ópticos, são mais do que a ‘infância’ daquilo que hoje conhecemos por cinema e, por isso, não devem ser analisados sob o ponto de vista do cinema narrativo, mas em suas especificidades, pois estão inseridos em uma lógica e em um projeto não imediatamente relacionados com as características posteriormente presentes no cinema. (COSTA, 1995).

Em consonância com esses estudos, Jonathan Crary (1994) também não vê linearidade na pretensa ‘evolução’ desses aparelhos até se chegar ao cinema. Existem rupturas e continuidades entre a criação dos aparelhos e seus usos sociais. Em cada situação o observador possui relações distintas com as imagens; indagações e interesses diversos.

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Ressaltamos a escolha de Crary (1994) do termo ‘observador’, em vez de espectador’. Segundo ele, contrariamente a spectare, raiz latina de ‘espectador’, a raiz de

‘observar’ não significa literalmente ‘olhar para’. Crary diz preferir evitar o termo ‘espectador’ porque, especialmente no contexto do século XIX, ele assume o sentido de uma ‘testemunha’, alguém que assiste um espetáculo sem dele participar, tanto numa galeria de arte como num teatro. Segundo ele, o termo observare torna-se mais apropriado

a seu estudo, pois

significa ‘se conformar à’, respeitar: assim dizemos ‘observar’ as regras, os códigos, as instruções, os usos. Ainda que ele seja (...) uma pessoa que vê, o observador é acima de tudo uma pessoa que vê no quadro de um conjunto predeterminado de possibilidades, uma pessoa que se inscreve num sistema de convenções e de limitações2 (CRARY, 1994:26).

Os estudos de Crary (1994) apontam para um reposicionamento do observador, no início do século XIX, indissociável de uma reestruturação do saber e das práticas sociais. Este reposicionamento se dá a partir de uma ruptura com os modelos clássicos de visão herdados do Renascimento que tinham no funcionamento da câmara escura sua maior metáfora.

A câmara escura, dispositivo óptico baseado no princípio da projeção de uma imagem luminosa (captada por um orifício numa sala ou caixa escura) na parede oposta a esse orifício (MANNONI, 2003:31-35), foi bastante utilizada no Renascimento para a observação de objetos exteriores no auxílio à pintura. “Do final do século XVI ao fim do XVIII, os princípios estruturais e ópticos da câmara escura se conjugam em um paradigma dominante”, embora não exclusivo, através do qual era descrito o status e as possibilidades do observador. Modelo do pensamento empiricista, este dispositivo foi amplamente utilizado como instrumento de inquirição científica, prática artística e entretenimento popular (CRARY, 1994:56-7).

Por meio da câmara escura, o indivíduo observa uma projeção sobre um campo exterior a ele mesmo, “um espaço unificado e ordenado que não se modifica em função de seu próprio sistema sensorial e psicológico” e se configura na “encarnação” de um ponto de vista único, exprimindo uma única imagem verdadeira do mundo.

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Com sua abertura monocular, a câmara escura é mais apropriada que o corpo do sujeito humano, completamente enredado no seu regime binocular, para representar a ponta de um cone de visão ou para encarnar um ponto de vista único. De certa maneira, ela metaforiza as potencialidades mais racionais do sujeito que percebe num mundo onde a desordem dinâmica não cessa de aumentar (CRARY, 1994:88).

Além disso, a forma como a imagem era captada e projetada, impedia o observador de ver que sua posição espacial fazia parte da representação, separando-se, assim, o ato da percepção do corpo físico do observador.

Em contraposição a essa ‘óptica geométrica’ da câmara escura, mediante a crise do empirismo e a proeminência do racionalismo surge uma ‘óptica fisiológica’, no bojo dos estudos e pesquisas fisiológicas do início do século XIX (persistência das imagens na retina, visão periférica e binocular, limiares da atenção) considerando o funcionamento do olho como parte integrante do ato de ver.

As experiências ópticas descritas por Goethe (1810) em seu Tratado das Cores, são

um possível esboço desse sistema, pois oferecem uma concepção de visão impossível de ser abraçada pelo modelo clássico representado pela câmara escura. Ao contrário da separação entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ propiciada por este dispositivo, caracterizando a separação sujeito-objeto, temos as chamadas ‘cores fisiológicas’ de Goethe, assim denominadas por serem formadas na retina, por ‘pertencerem ao corpo do observador’. O sujeito – o corpo – passa a produzir ativamente a experiência óptica. A visão torna-se um “nó inextricável de elementos pertencentes ao corpo do observador e de dados vindos do mundo exterior”. Essa visão subjetiva coincide com a transformação do observador em um sujeito de conhecimentos e técnicas de poder novos e o terreno onde isso se torna claro é a fisiologia (CRARY, 1994:105-20).

Na primeira metade do século XIX, a fisiologia proporciona um

inventário exaustivo do corpo. Este conhecimento vai também servir de base à formação de um indivíduo capaz de satisfazer as exigências da

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As pesquisas e estudos da óptica fisiológica3 subsidiaram a invenção de uma série de aparelhos ópticos que rapidamente se popularizaram e encontraram lugar na cultura visual de massa. A concepção defendida por Crary (1994) nos leva, num primeiro momento, a agrupar esses aparelhos ópticos em dois grandes grupos: aqueles que se mantêm nos marcos do modelo clássico de visão (câmara escura, lanterna mágica, cosmorama, panorama) e aqueles que, ao utilizar o próprio ato da visão como fator complementar ao seu funcionamento, inauguram um novo observador, como é o caso dos aparelhos que produzem a ilusão do movimento (taumatrópio, fenaquitoscópio, zootrópio e variações) e dos estereoscópios, que produzem a ilusão de profundidade e relevo. Estes aparelhos, diferentemente dos dispositivos de projeção, exigem do observador um alinhamento ao instrumento, seu corpo deve estar fisicamente próximo e imóvel para que a imagem em movimento ou em relevo seja observada. Segundo Crary (1994:183),

Estes instrumentos se inscrevem numa mudança que é produzida na relação entre o olho e o dispositivo óptico no século XIX. Nos séculos XVII e XVIII, esta relação era essencialmente metafórica: o olho de uma parte, e a câmara obscura, o telescópio ou o microscópio de outra parte, eram aparentados por uma similitude conceitual, na qual a autoridade do olho ideal não era jamais colocada em questão. A partir do século XIX, o olho e o aparelho óptico mantêm uma aproximação metonímica: estes são daqui em diante dois instrumentos contíguos, (...).

É neste segundo grupo de aparelhos, portanto, que Crary (1994) concentra sua análise, examinando a importância dos mesmos não apenas em função do modelo de representação que eles implicam, mas, sobretudo, naquilo que os caracteriza como o lugar de um saber e de um poder que se exercem diretamente sobre o corpo do indivíduo. Estes aparelhos fazem parte da transformação do observador em um “objeto calculável e manipulável, e da visão humana em um fenômeno mensurável” (CRARY, 1994:41).

É também no século XIX que se intensificam os estudos sobre a Atenção. Para Crary (1999), a necessidade de trocar a atenção rapidamente de uma coisa para outra – uma espécie de adaptabilidade perceptual humana – é uma questão essencialmente moderna: de um sujeito com novas tarefas ‘produtivas’ e ‘espetaculares’.

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Dentre esses estudos, Crary (1994, 1999) destaca os que defendem que um sujeito atento pode ser produzido e treinado através do conhecimento e do controle de procedimentos externos de simulação – a atenção pode ser determinada por operações ‘automáticas’ ou ‘inconscientes’.

Nesse sentido, a criação desses aparelhos e sua utilização, podem ser vistas como parte constituinte desses processos que se tornaram ‘automáticos’ ou ‘inconscientes’. Ao mesmo tempo em que estes aparelhos serviam como divertimento, entretenimento, permitindo a um novo público consumir imagens de uma ‘realidade’ ilusória, eles eram utilizados para “adquirir saber sobre o observador”. Através da posição em que colocam o observador, dizem respeito às esferas nas quais estão circunscritos – o entretenimento, a ciência, a indústria – que se inter-relacionam e são traduzidas por Crary (1994:162) como “uma mistura de três modos de ser: o corpo do indivíduo é de uma só vez espectador, sujeito da pesquisa e da observação empíricas e elemento de uma produção mecanizada”. Assim tornam-se também ‘dispositivos’ de poder. O domínio sobre as imagens e, em especial, o controle do olhar, foram utilizados não apenas para fins de diversão, mas também para a racionalização do trabalho, por meio de técnicas que ampliaram o controle sobre o trabalhador. O observador, torna-se, ele mesmo, objeto de estudo e lugar de um saber (CRARY, 1994:40).

1.2. Visibilidade e fantasmagoria – o engajamento do espectador

A historiografia clássica do cinema colaborou para a crença bastante difundida de um espectador ingênuo, incapaz de distinguir a imagem da realidade. Nesse sentido, a cuidadosa consideração do contexto histórico e social da invenção e utilização desses primeiros aparelhos permite considerar outros aspectos da questão como a rica interação entre a exibição, os aparelhos e os espectadores.

Crary (1994) denomina esses aparelhos de ‘tecnologias da atração’ (Cf. Tom Gunning) que configuram um novo espectador em torno de suas atividades de ‘atenção’. O termo ‘atrações’, se refere a uma identificação das primeiras imagens animadas – primeiro cinema – com o tipo de experiência visual que se tinha nas feiras, parques de diversões, e

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Uma contextualização histórica dessas primeiras exibições nos permite afirmar que o espectador do primeiro cinema não confundia realidade e imaginário. Ainda que essas primeiras imagens animadas causassem algum tipo de estranhamento ou excitação nos espectadores, o que estava em jogo na cultura visual de massa que toma forma entre 1880 e 1890 no ocidente, não eram as formas de representação ou teatralização, mas, ao contrário, uma estratégia de engajamento do espectador (GUNNING, 1995).

De acordo com a análise de Gunning (1995:54), o “espanto deriva[va] mais precisamente da metamorfose mágica do que da aparente reprodução da realidade”. O espectador do ‘primeiro cinema’ era devidamente ‘preparado’, durante as exibições, para as imagens que desfilariam diante de seus olhos. Os filmes eram apresentados, inicialmente, como imagens congeladas, projeções de fotografias imóveis. Era apenas num segundo momento que àquelas imagens era consentido o movimento. O espectador não confundia a imagem com a realidade. O espectador se ‘espantava’ com a transformação de uma imagem fixa em uma imagem em movimento, se espantava com a ‘ilusão’ produzida na projeção.

Em1646, Athanasius Kircher – padre jesuíta e cientista alemão – indica, no tratado

Ars magna Lucis et umbrae, através de ilustrações e de uma descrição detalhada do

funcionamento de uma lanterna mágica, que a exibição do aparato era essencial à desmistificação da imagem projetada. Para tal, incentivava os exibidores a tornarem claro para a audiência que a projeção das imagens em questão envolveria reflexão da luz e óptica, impedindo, assim, qualquer apreensão do espetáculo como ‘magia’.

Ou seja, Kircher torna transparente o processo de produção da imagem projetada. Musser (1990) vê essa desmistificação como condição necessária para a projeção como entretenimento e como algo essencial para a existência do que chamamos hoje ‘espectador’. Para ele, Kircher estabelece, assim, um corte histórico, separando a projeção ‘desmistificadora’ daquela realizada quando o aparato era usado para manipular o espectador, com imagens mágicas e misteriosas.

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contém os desenhos, vemos cada etapa do movimento antes mesmo dele se constituir. O próprio ato de olhar por meio de uma das fendas, para que se configure a ilusão do movimento, pode servir para explicar o fenômeno perceptivo. Outro exemplo significativo encontramos no quinetoscópio. Ao girar uma manivela para dar movimento às imagens vistas pelo visor do aparelho era possível, ao ‘observador’, ver fotograma por fotograma, parar o movimento ou, até mesmo, acelerá-lo ou ralentá-lo. Considerando que os aparelhos que proporcionavam a ilusão do movimento foram criados, inicialmente, no bojo da ciência com o intuito de análise do movimento (fisiologia), isto demonstra que, nesses ‘brinquedos’, a análise ainda não está totalmente separada da reconstituição do movimento. Ela é parte constituinte do mesmo. Entretanto, isto não impedia a criação de uma ‘fantasmagoria’: a ilusão do movimento coexistia à sua explicitação. O potencial de ilusão desses aparelhos, associado às suas possibilidades de ‘visibilidade’, de desmistificação, concorreu para a formação do espectador moderno.

1.2.1. Particularidades dos aparatos ópticos e suas exibições

Para explicitar esta dupla via de produção de ‘visibilidades e fantasmagorias’, podemos tomar como exemplo as apresentações das fantasmagorias (phantasmagorias),

espetáculo de ilusionismo, bastante popular em fins do século XVIII e início do XIX, concebido por mágicos e cientistas por meio de projeções com uma lanterna mágica.

A observação de que a passagem de um feixe de luz, através de um orifício qualquer, possibilita a projeção de imagens é conhecida desde a Antigüidade, mas os registros do que hoje conhecemos por ‘câmara escura’ (como forma de captação de imagens do exterior de dentro de uma sala ou caixa escura) somente foram encontrados a partir do século XIII nos diferentes trabalhos de astrônomos e ópticos. Entretanto, esses trabalhos se restringiam a estudos astronômicos e somente no início do século XVI, a partir dos escritos de Leonardo da Vinci, encontramos registros sobre a utilização desse dispositivo para observação de objetos exteriores.

Além dos trabalhos de Leonardo da Vinci, é também bastante conhecida a descrição do físico italiano do século XVI Giovanni Bapttista Della Porta (1540-1615). Della Porta descreveu em detalhes a câmara escura, em 1558, em uma obra em quatro partes, intitulada Magiae naturallis [Mágica natural]. Posteriormente, uma nova edição

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Mannoni (2003:36-37) ressalta que, com o espetáculo sugerido por Della Porta, a câmara escura desviava-se de sua vocação científica e tornava-se um “teatro óptico”,

um método de iluminação capaz de projetar histórias, cenários fictícios, visões fantasmagóricas. Deixou o domínio da ciência e da astronomia para mergulhar nos do artifício, da representação, do maravilhoso, da ilusão.

Um século depois, as ‘visões fantasmagóricas’ projetadas seriam um espetáculo à parte. Diferentemente das apresentações comuns de lanterna mágica que corriam as cidades, muitas vezes realizadas nas praças públicas ou em casas de moradores, os espetáculos de fantasmagoria exigiam um local apropriado e cuidadosamente preparado

para as exibições. Isto se devia a algumas especificidades.

Conforme ressaltou Gunning (1996:29), a exibição de fantasmagoria, usando a lanterna mágica, era uma forma mais elaborada de entretenimento visual: “invocava o sobrenatural projetando imagens de espíritos dos mortos em misteriosos ambientes, com encenações complicadamente dirigidas”. A diferença destas exibições para as anteriores é que, com os aperfeiçoamentos da lanterna, se aprofundava a diegese: o equipamento de projeção ficava escondido atrás da tela, as projeções eram bem mais nítidas (graças a aperfeiçoamentos no tubo óptico da lanterna), as imagens, além da já conhecida animação, podiam aumentar de tamanho rapidamente, causando a impressão de que se moviam em direção à platéia e toda a exibição era acompanhada de uma encenação que vinha por reforçar as sensações dos espectadores.

Destacamos aqui Étienne Gaspar Robert (também conhecido por Robertson), dentre outros, e suas exibições num antigo convento de capuchinhos na França, caracterizadas como ‘performances fantasmagóricas’. Durante a exibição, Robertson sublinhava o aspecto das imagens de ‘parecer, mas não ser real’, advertindo os espectadores de que o que era projetado era apenas uma imagem, mas que, mesmo assim, se acreditaria ser real. Depois disso, as luzes se apagavam, e o espetáculo ilusionista continuava, com aparições de personagens históricos já falecidos, como Robespierre, Voltaire, Rousseau e “outros heróis da burguesia”4, causando um “inquietante tipo de medo” nos espectadores, ainda que essas “sessões” fossem efetivamente anunciadas como ‘ilusões ópticas’ (MUSSER, 1990:22-25).

4 New York Evening post, 4 november 1803, p.3,

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O resgate da história dos aparelhos ópticos do século XIX, a partir da contextualização da sua invenção e utilização, permite evidenciar, portanto, duas de suas qualidades: 1) a capacidade de transparecer a sua estrutura de funcionamento, e 2) a capacidade de fornecer ao observador imagens ilusórias, seja a partir do movimento, seja a partir da profundidade. Baseados na análise de Crary (1994), denominamos essas qualidades de ‘visibilidade’ e ‘fantasmagoria’.

Essas duas características são partes componentes desses aparelhos e não podem ser consideradas sem uma vinculação direta com a prática de utilização dos mesmos. Conforme a análise de Gunning (1995) e Musser (1990), essas duas características dos aparelhos estiveram sempre presentes, tanto nas práticas de exibição, como nas imagens (re)produzidas, como fator importante e imprescindível.

É essa prática de dar ‘visibilidade’ e ‘fantasmagoria’ às imagens que confere um novo estatuto ao espectador moderno, o ‘novo’ observador ‘reconfigurado’ de Crary. O espectador moderno é aquele que tem plena consciência do aparato que medeia a sua visão. Ele permanece consciente tanto da “ação de olhar” como das capacidades ilusórias da imagem.

A partir da abordagem de Crary e da nova historiografia do cinema, podemos discutir mais profundamente as particularidades dos aparelhos e dispositivos ópticos do século XIX na formação do espectador moderno. Nessa perspectiva, devemos examinar especificidades conceituais e históricas desses aparelhos, assim como buscar caracterizar o “status” próprio dos mesmos. Trata-se de iniciarmos uma discussão sobre a observação e o próprio observador, verificando que a transformação operada no sujeito/observador, faz parte de mudanças profundas na sociedade do século XIX.

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1.3. Tecnologias, observadores e imagens

A invenção e utilização dos aparelhos e dispositivos ópticos estão relacionadas a um novo sujeito, um novo observador, que se constituiu a partir de transformações que se deram ao longo dos séculos XVIII e XIX no campo da política (Revolução Francesa), da economia (Revolução Industrial), do social (urbanização), e da Ciência (notadamente na física e na fisiologia).

A contextualização da invenção e popularização desses aparelhos, deve considerar diversos aspectos inter-relacionados provocados pela hipertrofia do capitalismo (com a subsunção real do trabalho ao capital, por meio do maquinismo) que se materializou na forma da industrialização. Com efeito, no bojo desse processo ocorreu a expansão das cidades, bem como as reformas urbanas (em que a perspectiva através de longas ruas de Haussmann é um símbolo marcante). Gradativamente, espaços públicos vão sendo forjados – avenidas, praças, escolas públicas – mas sempre em tensionamento com expressões do capital (as avenidas exibem um comércio florescente, cada vez mais sedutor, mas somente passível de ser fruído pela burguesia emergente).

Nesse contexto, a relação ciência – indústria ganha novos contornos: por meio da tecnologia, os saberes ‘interessados’ passam a ter crescente importância e legitimidade, mesmo no seio das universidades modernas. Também no plano epistemológico ocorrem profundas mudanças. Em especial, é preciso mencionar a crise do empirismo. Com as concepções racionalistas, os estudos fisiológicos conheceram notável expansão e sofisticação, propiciando a ‘corporalização’ da visão apontada por Crary (1994).

Essas transformações estão inseridas (com maiores ou menores tensões) no contexto da modernidade, mais especificamente no projeto Ilustrado, marcado principalmente pela racionalização da relação sociedade-natureza, onde o homem amplia imensamente seu domínio e controle sobre a natureza pelo uso da razão.

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aumentos do conhecimento e da técnica, na riqueza, no bem-estar e na construção da nova civilização das Luzes (HOBSBAWM, 2000:37).

A primazia do conhecimento trouxe novas exigências, novas perguntas e novos padrões de pensamento para a ciência. A educação científica e técnica passa a ser mais valorizada5. Os tratados científicos e técnicos são substituídos por manuais especializados e periódicos científicos, “dando início a um processo de vulgarização da ciência” (MONTEIRO, 2001:36).

A valorização do conhecimento técnico-científico é coerente com a revolução Industrial em curso, principalmente no que diz respeito à determinação de normas e parâmetros quantificáveis. As ciências neste momento dedicavam-se em especial à solução de problemas produtivos. A década de 1860, por exemplo, foi um grande período de padronização e mensuramento (HOBSBAWM, 1995:357).

O desenvolvimento das cidades veio acompanhado de uma série de transformações sociopolíticas que afetaram o tempo de lazer e proporcionaram maior acesso à cultura para categorias cada vez mais amplas da população urbana. As lutas da Comuna de Paris (1871) em prol da universalização da escola pública para todo o povo é um exemplo disso. Entre outras mudanças importantes que ganharam impulso no século XIX, cabe registrar os novos métodos de reprodução de imagens em série, que provocaram uma inédita circulação em grande escala de imagens como nunca vista antes. Também o aparecimento cada vez maior de jornais, diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de media,

devem ser destacados. Gradativamente, as cidades tornaram-se um “universo audiovisual” de máquinas, fios elétricos, veículos de transporte, vitrinas, cartazes de propaganda, aglomerados humanos, luzes e ruídos, transformando-se em espetáculo para a sensibilidade (XAVIER, 1978:26).

O advento de novas tecnologias expressa e provoca mudanças substanciais na esfera da cultura. A chegada da eletricidade, por exemplo, e a invenção e utilização em larga escala de trens e automóveis, assim como a utilização cada vez maior do telefone, trouxeram um redimensionamento do uso do tempo e mudanças nas noções de proximidades e distância. A visão no século XIX está intrinsecamente ligada a todas essas transformações; ao efêmero, às novas temporalidades, às novas velocidades, às novas experiências do fluxo de informação. O ‘observador’ do século XIX deve se adaptar a esses deslocamentos perceptivos e temporais.

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1.3.1. Transformações na percepção: atenção e distração

Não menos importante, e inteiramente dentro dessa discussão, (a despeito do confronto realidade-ilusão) a busca de emoções, por parte do espectador, está inextricavelmente inserida na transformação da percepção que se deu no século XIX. Os

aparelhos e dispositivos utilizados para o entretenimento visual estariam respondendo às especificidades da vida moderna (por exemplo, ao instigar a curiosidade visual e o desejo de novidade) que, segundo Gunning (1990:58), “Benjamim e Kracauer formularam como sendo a extinção da experiência e sua substituição pela cultura da distração”.

Dentro destes pressupostos, destacamos a argumentação de Crary (1994:164-165) em relação ao caleidoscópio, instrumento inventado, em 1815, por Sir David Brewster. Crary contrapõe duas visões do aparelho: a idéia de uma produção em série infinita, de Brewster, que justifica sua fabricação, pela produtividade e eficácia, comparando-o a um meio mecânico de reformar a arte a partir da inversão e multiplicação de formas simples, e a de Baudelaire, para quem o caleidoscópio coincide com a própria modernidade, ao ser capaz de desintegrar a unidade da subjetividade e de dispersar o desejo e organizá-lo segundo estruturas móveis. Para Crary, “são as mesmas forças da modernização que permitem a abstração necessária ao delírio industrial de Brewster e que oferecem a Baudelaire o modelo cinético do caleidoscópio” para representar a multiplicidade da vida moderna.

O modelo ‘caleidoscópico’ se assemelha, nesse sentido, ao ‘formato’ das exibições. Vários filmes curtos, ou várias imagens, em uma seqüência de exibição que, na maioria das vezes, era dada pelo próprio projecionista, ou apresentador, dependendo da resposta do público. De acordo com Gunning (1995:59), “a própria estética das atrações vai contra a absorção ilusionista, visto que o formato de variedades” a ser exibido “por meio de uma série de impactos sensuais, lembra continuamente o espectador do ato de ver”.

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o design do interior dos movie theatres, serve a um único propósito: fixar a

atenção do público no periférico, de modo que eles não mergulhem no abismo. Os estímulos aos sentidos sucedem-se com tal rapidez que não sobra lugar para que se introduza entre eles nem a mais breve contemplação.6

Esta experiência, proporcionada pelas primeiras exibições de filmes, assim como pelos aparelhos ópticos, é coetânea da transformação do espectador no ‘moderno’ e ‘atento’ observador apresentado por Crary (1994). O engajamento desse ‘novo observador’, formado a partir de uma relocação da percepção no corpo (corporalização da visão), contextualizado na emergência de um campo social, urbano, psíquico e industrial crescentemente saturado de estímulos sensoriais, aconteceu concomitantemente a uma centralização do tema ‘Atenção’.

Crary (1999:24-25) explica a ‘Atenção’ como um processo de seleção em que a percepção requer a exclusão de algumas partes do campo perceptivo, procedimento claramente contrário à natureza da câmara escura, onde o campo visual é entendido como

um todo. Assim, o observador passa a ser conceitualizado não apenas pelos objetos que isola na visão, mas igualmente em termos do que não é percebido – das ‘desatenções’, ou, daquilo que é cortado do campo visual, consciente ou inconscientemente.

A análise do psicólogo alemão Hugo Munsterberg (1970), publicada originalmente em 1916, a respeito do funcionamento da narrativa cinematográfica no início do século e sua relação com as operações mentais do espectador, torna-se parte desta discussão sobre visibilidade, fantasmagoria e engajamento do observador, se inserindo também na discussão sobre as diferenças entre imagem projetada/observada e realidade.

Em conformidade com as preocupações de sua época, Münsterberg (1970) dedica um capítulo de seu livro7 à questão da ‘Atenção’. Segundo ele, as cenas dos filmes devem “conduzir permanentemente a atenção [do espectador] para um elemento importante e essencial – a ação”.

6 KRACAUER, Siegfried. The Cult of Distraction. New German Critique, 40. Winter, 1987.

apud Gunning

(1990:58).

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Para Munsterberg (1970) a ‘Atenção’ é a mais fundamental das funções internas que criam o significado do mundo exterior.

Selecionando o que é significativo e relevante, fazemos com que o caos das impressões que nos cercam se organize (...). A atenção se volta para lá e para cá na tentativa de unir as coisas dispersas pelo espaço diante de nossos olhos. Tudo se regula pela atenção e pela desatenção.8

O observador que emerge no século XIX, inserido na lógica cultural do capitalismo, imbrica-se crescentemente num regime de ‘atenção’ e ‘distração’ recíprocas.

A análise de Crary e dos teóricos do Primeiro Cinema nos remete a um

redimensionamento do papel destes dispositivos e aparelhos na história da visualidade ocidental. Um novo observador pode se afirmar ao longo do século XIX – o espectador moderno – e a experiência fornecida pelos aparelhos ópticos fomentou novos modos de atenção, lazer, desejo e percepção nesse observador.

No bojo da industrialização crescente do século XIX, muitos desses aparelhos, adquirem um novo caráter: transformam-se em brinquedos. Comercializados como ‘divertimentos’, nas ‘feiras de atrações’ das diferentes cidades que se tornavam cada vez mais próximas e acessíveis em decorrência das novas estradas e dos meios de transportes mais rápidos, esses aparelhos, assim como alguns de seus princípios científicos, passam a compor certo ‘senso comum’. Suas possibilidades educativas, e suas qualidades para o entretenimento de crianças, e também de adultos, passam a ser ressaltadas.

Seguindo o modelo artesanal das produções científicas de então, os aparelhos ópticos demonstraram capacidade de gerar lucro e de desbravar novos mercados passando a integrar a corrente de industrialização. Baudelaire (1975), no ensaio Morale du joujou, de

1853, por exemplo, cita as possibilidades educativas destes aparelhos9. De acordo com as preocupações da época, ele ressalta as qualidades de ‘entretenimento’ dos aparelhos e do “gosto pelos efeitos maravilhosos e surpreendentes” que os mesmos poderiam desenvolver no cérebro (!) das crianças. Segundo ele, uma espécie de “brinquedo científico” que tenderia a se multiplicar, apesar do ‘custo alto’ na época.

Como veremos adiante, também no Brasil oitocentista esses aparelhos e dispositivos foram utilizados – e se popularizaram, ainda que em menor grau do que nos grandes centros da Europa e dos Estados Unidos, ensejando o discurso do ‘entretenimento científico’ e contribuindo na formação do observador moderno.

8 MÜNSTERBERG, H. (1970) In: XAVIER (1983:28).

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2

DIVERTIMENTOS ÓPTICOS NO RIO DE JANEIRO

2.1 Considerações preliminares

Os estudos que têm abordado as diversões populares no Brasil oitocentista em geral, sobretudo aqueles ligados à história do cinema, costumam ressaltar a ‘ausência quase total’dos divertimentos ópticos neste período10.

As diversões populares existiam, mas eram raras. Excetuando-se o carnaval, (...) as demais oportunidades apareciam de tempos em tempos, (...) como os circos e as touradas. Na área (...) dos divertimentos ópticos, a ausência foi quase total. De acordo com Adhemar Gonzaga e Vicente de Paula Araújo, os cosmoramas foram os mais difundidos. Além deles parece que as fantasmagorias também tiveram certa repercussão entre nós. (GONZAGA, 1996:26).

Tal afirmação, entretanto, deve ser considerada em comparação com a proliferação desses divertimentos na Europa, na mesma época, mas não de forma absoluta. Conforme afirmou Kossoy (1980:10), é necessário “estabelecer as devidas comparações entre o mercado consumidor (...) (em todas as suas manifestações e aplicações) existentes na Europa, nos EUA e no Brasil”, diferentes espaços socioeconômicos e culturais11.

Um estudo mais sistemático demonstra que os aparelhos e dispositivos ópticos do século XIX foram conhecidos e utilizados nos espaços públicos e privados no Brasil oitocentista, ainda que em proporção menor se comparada aos grandes centros da Europa. Como divertimentos, fizeram parte da história da visualidade na cidade do Rio de Janeiro,

chegando a alcançar alguma popularidade, sendo exibidos em estabelecimentos próprios, barracas em festas de ruas e outros espaços semipúblicos (como os teatros) e também consumidos em espaço privado.

10 Nos referimos, em especial, aos autores que têm historicizado a chegada do cinema no Brasil do final do século XIX, como Vicente de Paula Araújo (1976, 1981) e Alice Gonzaga (1996), dentre outros, e também àqueles que procuraram dar um panorama dos divertimentos do século XIX como Renault (1985, 1982) e De los Rios Filho (2000).

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Desde 1815 já encontramos referências à presença de aparelhos/dispositivos ópticos na cidade do Rio de Janeiro, ainda que inicialmente no âmbito privado. A primeira delas refere-se a uma lanterna mágica, conforme notícia da Gazeta (13/9/1815) citada por

Renault (1985:41):

Guilherme Lennox anuncia o ‘leilão de huma colleção de livros em varias línguas, estampas Francezas, huma lanterna magica e phantasmagorica’. [grifos nossos]12

Em correspondência de D. Pedro I a seu filho, em torno de 1832, encontramos também referência a uma lanterna mágica que teria sido enviada ao príncipe regente

juntamente com outros presentes da Europa13.

Não temos condições de apontar o destino da lanterna anunciada para venda por

Lennox, mas, assim como o presente recebido por Pedro II quando criança, podemos deduzir que tenha sido comprada para exibição em espaço privado. Segundo Araújo (1976:55) quem introduziu o dispositivo no Brasil foi Benjamin Schalch, morador à Rua do Príncipe (atual Quintino Bocaiúva), em São Paulo:

Benjamin Schalch, de regresso de uma viagem, havia trazido uma grande lanterna mágica, com cerca de 250 discos entre os quais, no gênero humorístico, vários de movimento, como por exemplo, o do bigodudo dorminhoco, engolidor de camundongos! Para essa lanterna, Schalch tinha de fabricar um gás especial. Só era exibida em família. Foi enlevo de todos os vizinhos e de outras pessoas das suas relações. Mais tarde Schalch vendeu o aparelho ao prestidigitador Ilhéu Curvelo de Ávila, um artista de real merecimento.14

O autor não faz referência à data, mas o relato demonstra que os dispositivos foram utilizados no espaço familiar, antes mesmo de se popularizarem e ganharem exibições para um público maior nas mãos de prestidigitadores. Como veremos a seguir, além do uso privado, daqueles que podiam importar os aparelhos e dispositivos ou adquiri-los em suas viagens, porque portadores de uma situação econômica favorável a isso, rapidamente suas propriedades de entretenimento foram notadas pelos empresários de divertimentos que passaram a organizar sessões de exibição com os aparelhos. Além disso, o

12 Segundo Mannoni (2003:289), em torno de 1821, o óptico Philip Carpenter (1776-1833) estabelecido em Londres, “lançou um novo modelo de lanterna, batizada de phantasmagoria, que teve grande aceitação. Era um aparelho sólido, fabricado em chapa de ferro, com longa chaminé que se dobrava na metade e lentes acromáticas e condensadoras da mais alta qualidade. Em seu interior havia uma lâmpada à óleo com refletor”. Considerando a data do anúncio de venda do dispositivo (1815) a referência à phantasmagoria

provavelmente era devida apenas ao tipo de utilização da lanterna (para projeções ‘fantasmagóricas’). 13Cartas. Correspondência entre D. Pedro I e D. Pedro II. Arquivo Histórico do Museu Imperial, I POB 22.2.831 PI.B.C1-8 apud MAUAD (1999:145).

14 SANT’ANA, Nuto. São Paulo histórico

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desenvolvimento das atividades culturais e de lazer (e também do comércio) na cidade do Rio de Janeiro, sobretudo no período do Segundo Reinado, proporcionou uma maior popularização das exibições desses aparelhos e dispositivos.

2.2. Cultura e Lazer na Corte

É com a chegada da família Real e de todo o séqüito que a acompanhava, em 1808, que começam a se desenvolver na Cidade do Rio de Janeiro algumas atividades de lazer (inscritas no conceito eurocêntrico de diversão), antes quase inexistentes. A presença da Corte portuguesa, com cerca de 20 (vinte) mil novos moradores na Cidade que abrigava apenas “60 mil almas”, engendrou novos hábitos que alterariam o ritmo da Cidade (SCHWARCZ, 1998:35). Com efeito, o País era então em grande parte africano, indígena, colonizado por estrangeiros, notadamente portugueses, voltados em sua maioria para a agricultura e o extrativismo, mas não exatamente devotados à cultura, às artes e à ciência, situação que se transformou de modo mais acelerado após a chegada da Corte. E é nesse contexto que os dispositivos ópticos irão se popularizar.

No início do século XIX, “a ópera era uma das atividades sociais mais em voga” na Europa (LIMA, 2000:48). Da mesma forma, na nova sede do Império, freqüentar os espetáculos de ópera, assim como os dramas teatrais, seria a atividade cultural mais concorrida. Segundo Coaracy (1988:86-7), “em meados do século XVIII, funcionava, no Largo do Capim, a ‘Casa da Ópera’ do Padre Ventura”. A Casa sofreu um incêndio e foi substituída por uma outra, construída por Manuel Luiz Ferreira “na vizinhança do palácio dos vice-reis”, denominada “Nova Ópera”. Segundo Lima (2000:36), com a chegada da Corte portuguesa, a Casa de Manuel Luís, entretanto, tornou-se insuficiente para abrigar o grande número de “cortesãos aficionados pelo canto lírico que chegaram com o príncipe regente”.

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O Teatro, ao longo do século XIX sofreria várias reformas e mudanças de nome15, mas manteria sempre o seu estilo luxuoso e seria até o final do século o mais freqüentado da Corte. Segundo Lima (2000:52-3), o Teatro chegou a ser comparado, por um oficial da Marinha holandesa, em tamanho, a um grande teatro de Amsterdã da época e, na arquitetura, ao Scala de Milão. Segundo a descrição de Escragnolle Doria, era um teatro

“com estátuas de mármore, vasos, espelhos, flores e arbustos em cena e no espaço da orquestra; lustres adicionais suspensos no arco de boca e arandelas pregadas por toda a sala realçavam os variegados e luxuosos trajes das senhoras (...)16.” Pinho (1970:18) também destaca o Teatro como lugar dos “encontros elegantes e mostras de luxo”, onde “portuguesas e brasileiras, alinhadas nos camarotes e fartamente ornadas de jóias por pescoços e cabeleiras” se encontravam.

Considerando a grande parte da população escrava e a imensidão de analfabetos nas primeiras décadas do século XIX17, era claro a quem estava franqueada a freqüência de tão luxuoso espaço. À construção e à decoração luxuosas, somavam-se os espaços hierarquicamente definidos no interior do teatro: camarotes, platéia, galeria, palco, foyer. Quanto mais nobre o espectador, tanto mais poderia pagar pelos espaços ocupados18.

Além do Real Teatro, havia apenas, nos primeiros anos do século XIX, o Teatro do Plácido (1823-1824), um ‘teatrinho’ particular que durou apenas dois anos. Posteriormente foram inaugurados mais dois teatros: o Teatro São Francisco de Paula, (1832)19, e o Teatro da Praia de Dom Manuel (1834)20. Segundo Coaracy (1988:174) “as diversões públicas que amenizavam a vida dos habitantes da cidade se reduziam a três tipos: celebrações

15 Em 1824 o teatro teve que ser reconstruído por conta de um grande incêndio e foi reaberto com o nome de

Imperial Teatro São Pedro de Alcântara. Em 1831, o teatro teria seu nome alterado, novamente, para

Teatro Constitucional Fluminense, nome que permaneceu até 1838, quando fechou as portas para uma nova reforma. Em 1839, foi reaberto sob o nome de Teatro São Pedro de Alcântara. Em 1843 foi arrendado pelo ator João Caetano. Sofreu ainda mais dois incêndios: um em 1851, com quase perda total do prédio, e outro em 1856. Nos dois casos o teatro foi recuperado e reaberto. Em 1885 o teatro sofreria nova reforma, desta vez supervisionada pelo próprio Imperador, para instalação de iluminação à gás. Por fim, em 1923, o teatro sofreu uma última reforma e passou a ser designado de Teatro João Caetano. LIMA (2000).

16 DORIA, Escragnolle.

Coisas do passado. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, p.86. apud LIMA

(2000:55).

17 Schwarcz (1998:118) ressalta que no recenseamento de 1872 “apenas 16% da população era alfabetizada” no país.

18 Cabe ressaltar que, também na Europa, “nenhuma das grandes realizações artísticas deste período estava ao alcance dos analfabetos ou dos pobres”. As únicas exceções são a ópera italiana, que “floresceu mais como uma arte popular que cortesã”, as reproduções gráficas das artes plásticas e alguns pequenos poemas e canções. HOBSBAWM (1977:279)

19 Em 1846, passou a se chamar Teatro São Francisco e, em 1855, Teatro Gymnasio Dramático. Além das comédias, dramas, óperas e revistas, também outras atividades, como mágicas e reuniões de estudantes foram realizadas nesse teatro. Para um quadro completo sobre a história dos teatros no Rio de Janeiro ver: http://www.ctac.gov.br/centrohistorico/TEMAHistorico.asp?cod=18

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oficiais dos dias de gala; festividades religiosas; teatro. Havia também o carnaval, ou entrudo; mas este ocorria apenas uma vez em cada ano”. Nos primeiros anos do século XIX, portanto, não haviam outros lugares destinados ao lazer da Corte. Gonzaga (1996:26) explica, assim, “a transformação de qualquer evento público numa oportunidade para o mundanismo e recreação. Procissões, enterros, missas, inaugurações, enforcamentos, eram utilizados como desculpa para conversas, audição musical, flertes, festas e catarse coletiva”. As festas de rua, sobretudo às de origem religiosa, serão um importante lócus de desenvolvimento das atividades de lazer e entretenimento mais populares.

Desde que chegara à Cidade, a família real procurara organizar na Corte alguns espaços de cultura e lazer. Ainda no tempo de d. João VI a colônia conheceria “suas primeiras instituições culturais: o Museu Real, a Imprensa Régia, o Real Horto, a Biblioteca Real” (SCHWARCZ, 1998:159). Em 1824 o “Passeio Público torna-se o primeiro lugar de recreio dentro do perímetro urbano”, conforme ressalta Renault (1985:84), e permanece sendo o único espaço público de lazer (de inspiração européia) nas primeiras décadas do século XIX.

A partir da metade do século XIX, a Cidade começa a se ‘modernizar’ e, ao mesmo tempo, se inicia uma ampliação da esfera pública. Segundo Schwarcz (1998:102), com o fim do tráfico dos escravos “uma massa de recursos apareceu da noite para o dia”. Simbolizando, no contexto, o avanço e progresso da nação,

Investiu-se muito na infra-estrutura do país e acima de tudo nos transportes ferroviários. De 1854 a 1858 foram construídas as primeiras estradas de ferro, as primeiras linhas telegráficas e as primeiras linhas de navegação; a iluminação à gás chegou às cidades e começou a crescer o número de estabelecimentos de instrução.

(33)

O modelo era a Paris burguesa e neoclássica, mas a realidade local oscilava entre bairros elegantes e as ruas do trabalho escravo. Nos lugares de acesso mais fácil foram construídos palácios majestosos, edifícios monumentais e amplas avenidas. Destacavam-se os prédios da Academia Imperial de Belas-Artes e do Palácio do Comércio; as grandes avenidas que levavam ao Paço Real, em São Cristóvão – abertas um pouco mais tarde –, e os primeiros jardins públicos, o Campo de Santana e a Quinta da Boa Vista (SCHWARCZ, 1998:106)

A Cidade, iluminada à noite e com ruas pavimentadas, passa a ser facilitadora de um maior convívio público de dia e de noite. Segundo Alencastro (1997:85), “as famílias que antes só se expunham ao olhar público nas missas dominicais e, às vezes, nos teatros” passam a freqüentar “os cafés, as confeitarias e os restaurantes”.

O fim do tráfico de escravos concorreu, ainda, para dobrar o número de importações: “bens de consumo semiduráveis, supérfluos, jóias, etc. – destinados aos consumidores endinheirados da corte e das zonas rurais vizinhas”. Dentre os produtos importados preferidos, o piano “será a mercadoria-fetiche dessa fase econômica e cultural” (ALENCASTRO, 1997:37):

Comprando um piano, as famílias introduziam um móvel aristocrático no meio de um mobiliário doméstico incaracterístico e inauguravam – no sobrado urbano ou nas sedes das fazendas – o salão: um espaço privado de sociabilidade que tornará visível, para observadores selecionados, a representação da vida familiar. (...) Os efeitos dessas mudanças no consumo e nos costumes são consideráveis e repercutem em vários planos. [grifo nosso] (ALENCASTRO, 1997:45-8).

Conforme ressalta Schwarcz (1998:111), “se cria uma febre de bailes, concertos, reuniões e festas”. Além das festas e reuniões particulares, inauguram-se as ‘sociedades dançantes’ familiares: Recreio dos Militares, Lysia, vestal, Phil’Armonica de São Cristovam, Phil’Euterpe, Sociedade de Baile Sylphide, Recreação Campestre, Harmonia

dos Empregado Públicos, Guanabara, Cassino Médico, e tantas outras. Entre todas, a do

Cassino Fluminense, a mais requintada, seria a mais freqüentada pela elite (SANTOS, 1941:203).

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carnaval. Privatizado, o que era divertimento público passa a se tornar “marca de distinção, coisa de gente fina” (ALENCASTRO, 1998:52-3).

A “clivagem social” entre o entrudo e o carnaval, conforme ressalta Schwarcz (1998:280), “fazia parte de um projeto ‘civilizatório’ mais amplo que, nesse caso, procurava mudar o caráter do ritual brasileiro, transformando-o numa cópia do modelo europeu veneziano”. Segundo a autora, “até 1870, inclusive, eram constantes as reclamações contra o comportamento do público que se reunia na zona central da corte para assistir aos préstitos do entrudo”.

A segregação, entretanto, não era ‘privilégio’ da festa que posteriormente se tornou a marca do Brasil. Embora houvesse um esforço da elite em importar tudo o que pudesse dar um caráter ‘civilizatório’ para a Corte, o Rio de Janeiro não era Paris. Conforme assevera Schwarcz (1998:116), “no fundo, a elegância européia e calculada convivia com o odor das ruas, o comércio ainda miúdo e uma corte diminuta e muito marcada pelas cores e costumes africanos”. O grande volume de escravos, ainda na metade do século XIX, dividia a cidade entre a elite “com seus hábitos requintados e europeus” e uma “cidade quase negra”. Assim como as festas “dos brancos”, nos interiores dos palacetes e teatros, se opunham às festas “dos negros” nas ruas da Cidade e nas senzalas das fazendas, outros tipos de segregação eram forjados e refletidos nas atividades coletivas de lazer.

A cultura artística nos moldes europeus, das óperas e dramas teatrais, não atingia as camadas populares, mas chegava à burguesia ascendente, que, “não possuindo brasões, encontrava nos teatros o ambiente ideal para ostentar riquezas e aproximar-se da aristocracia”. Entretanto, conforme ressalta Lima (2000:61), apesar de “tanto a aristocracia quanto a burguesia” impregnarem-se “de entusiasmo pela música clássica européia e pelos espetáculos líricos”, “nem só essas camadas sociais constituíam o público dos teatros”. Freqüentemente, sobretudo após a segunda metade do século XIX, as galerias eram ocupadas por intelectuais, estudantes, empregados, pequenos funcionários e, eventualmente, “representantes da classe média, que não podiam arcar com os altos custos dos trajes indispensáveis na platéia e nos camarotes”. Conforme explicita a nota publicada no jornal O País, em 1886, ali, também, a segregação continuaria presente, sobretudo

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Ontem, durante a apresentação da dama das camélias, um pequeno grupo de indivíduos das torrinhas, impertinentes, grosseiros e sem o menor vislumbre de educação, pretendeu manifestar a tacões o seu desagrado ao Sr. Garnier, artista de reputação consagrada por toda a alta crítica parisiense. (...) Um conselho à empresa: eleve o preço das galerias ao triplo e ao seu teatro não irão mais os tais manifestantes (Jornal O País, 1886, apud LIMA, 2000:62).

Segundo Gonzaga (1996:26), “a penetração das idéias liberais européias e o fortalecimento do espírito capitalista” também concorreu para as transformações no lazer da Cidade. “Se a população perde o medo das ruas, assumindo o lazer como necessidade, o empresário do ramo incentiva os novos hábitos ampliando as ofertas disponíveis”. Assim, ao longo do século XIX, sobretudo a partir do Segundo Reinado, verifica-se uma ampliação crescente, ainda que lenta, da esfera pública na Cidade do Rio de janeiro.

Também na segunda metade do século XIX, um outro gênero teatral ganhou popularidade: o teatro musicado, descendente dos cafés-cantantes do segundo império francês, também conhecidos como music-halls. Segundo Lima (2000:64-5),

No Rio de Janeiro, o café-cantante tornou-se rapidamente café-concerto, agregando elementos tomados de empréstimo ao circo, às exibições de feira, ao bailado operístico. (...) O primeiro deles parece ter sido o café-cantante intitulado Salão Paraíso, mais tarde Folies Parisiennes, inaugurado em

1858 na Rua da Ajuda.

Nestes estabelecimentos a freqüência era masculina em sua maioria. Além disso, os preços eram bem mais acessíveis do que os dos teatros que exibiam os dramas e óperas e por isso atraíam uma maior diversidade de classes sociais. Rapidamente os cafés-concertos alcançaram grande popularidade, na mesma medida em que eram criticados e acusados de reunir a “massa vulgar”. Entretanto, Lima (2000:66) afirma que “pelos testemunhos, eram os espetáculos de variedades que realmente atraíam as camadas burguesas, principalmente no que tange à platéia masculina”.

Paralelamente ao sucesso dos teatros clássico e romântico, os cafés-cantantes, assim como o café-concert francês e o Music-hall inglês, fazem parte de uma transformação

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constituir numa verdadeira febre na Cidade. São nesses espetáculos que irão se inserir algumas das exibições dos dispositivos ópticos21.

Conforme será verificado na seção seguinte deste estudo, os aparelhos e dispositivos ópticos estiveram presentes no Rio de Janeiro desde o início do século XIX, demonstrando que as festas oficiais, os espetáculos teatrais e os concertos não esgotavam as possibilidades de divertimento dos habitantes da Cidade. A noticia veiculada pelo jornal

Gazeta do Rio de Janeiro, ainda em 1818, nos dá a medida dessa afirmação, onde a

exibição de uma novidade mecânica, por exemplo, poderia se transformar em espetáculo: José Joaquim Lopes faz ciente ao público ter chegado proximamente de terras estrangeiras com uma peça de grande gosto, na qual apresenta várias figuras: esta peça tem relógio de sala e um realejo, com uma grande máquina de figuras, as quais manobram debaixo de compasso de música, e cada uma em suas ocupações, umas trabalhando em seus ofícios, e outras contradançando, outras passeando em boa harmonia de música, e um esquadrão de cavalaria. Os senhores que a quiserem ver ou ser espectadores deste bom divertimento dirijam-se ao princípio da ladeira de João Homem, à esquerda, por cima da casa de pasto, sendo a sua entrada por cada pessoa 240 réis; e também obriga-se o seu dono a ir às casas particulares22 (Gazeta do Rio de Janeiro, n.42, 1818. apud SILVA, 1978:75-6).

No anúncio do divertimento mecânico inserem-se muitas das características que serão observadas nas exibições dos dispositivos ópticos na Cidade do Rio de Janeiro que percorreram todo o século XIX. Conforme veremos a seguir, exibidos como novidades ‘estrangeiras’, não só nos poucos teatros, mas também em estabelecimentos próprios (e até mesmo em residências preparadas como casa de espetáculo) e com preços um pouco mais acessíveis, tais divertimentos contribuíram para moldar a visualidade do espectador moderno no Brasil.

Referências

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