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Embora parte de um mercado em franca expansão na Europa e nos EUA, - um amplo modismo nestes lugares – os estereoscópios não foram os únicos instrumentos ópticos consumidos pela população do Rio de Janeiro. Conforme já indicamos em capítulo anterior, as exibições dos dispositivos de projeção e ampliação das imagens, como as lanternas mágicas e os cosmoramas, dentre outros, eram freqüentes nas festas populares. A aferição dos anúncios no Almanak, demonstrou que estes aparelhos eram comercializados na mesma proporção que os estereoscópios. Além dos já citados estabelecimentos de José Maria dos Reis (‘Casa de Optica’ – onze anos anunciando a venda de instrumentos para fantasmagoria), e de José Antonio de Faria (‘Armazém de optica, e instrumentos mathematicos, Louça, Porcelana, Crystaes, etc.’ – oito anos anunciando os polyoramas panopticos acompanhado de vistas, além de lentes e vistas para cosmoramas), outros negociantes vincularam seus anúncios citando explicitamente estes aparelhos.

As lanternas mágicas, por exemplo, figuraram por 8 anos seguidos em dois importantes estabelecimentos. De 1854 à 1862, os sócios Severino & Magallar (sucessores de Felicio Luraghi, que anunciava no Almanak sua casa de óptica desde 1844), estabelecidos à Rua do Ouvidor, anunciaram, dentre os inúmeros instrumentos, as lanternas mágicas no seu ‘Armazem de Optica, Physica e Mathematica’. Da mesma forma, o negociante Ferdinand Rodde, anunciou o mesmo dispositivo de 1876 a 1883 à venda no estabelecimento ‘Ao Grande Mágico’ situado na mesma rua (n. 107). Os anúncios veiculados por este último estabelecimento, em especial, nos oferecem alguns elementos importantes para análise.

De 1870 a 1875, F. Rodde anunciava-se na seção de Lojas de fogos de artifício, com texto curto e genérico. Em 1876, F. Rodde passa a anunciar o estabelecimento ‘Ao Grande Mágico’ de forma extensa (duas páginas) na ‘Revista das Notabilidades’ do Almanak (1876:136-7). Do mesmo modo que a maioria dos estabelecimentos, o contato

direto com fabricantes e fornecedores estrangeiros era valorizado: F. Rodde informava com destaque a vinculação do estabelecimento com “Casa em Paris, Boulevard Magenta, 33 bis”. Toda a espécie de artigos era oferecida à venda: “Bichas Hamburguezas” [sanguessugas], “Perfumarias francezas e inglezas”, “Tinturas de todas as qualidades para cabellos”, “Electricidade” (vários artigos), “Campainhas electricas”, “especialidades pharmaceuticas francezas, inglezas e Americanas”, “remédios para matar ratos, baratas, mosquitos e todos os insectos”, “Empreza geral de festejos e illuminações a giorno, públicos e particulares”, “copos de cores e lanternas de papel, desde 500 rs a dúzia”. Dentre todos estes e outros vários artigos, Rodde anunciava:

MÁGICA E OPTICA.

Aparelhos completos, em caixas e avulsos para amadores e prestidigitadores. SEMPRE NOVIDADES.

Polyoramas e Lanternas Mágicas. Luz Oxyhydrica de Drummond.

Inicialmente, cabe indagar sobre a exagerada variedade dos gêneros dos produtos anunciados. Todavia, o estabelecimento não era especializado em instrumentos científicos. Na perspectiva de atender a demanda, crescente na Corte, do consumo de produtos importados, F. Rodde procurava mesclar mercadorias para todos os segmentos do mercado: sanguessugas para tratamento de diversas enfermidades, perfumes e tinturas para as mulheres (que nesta época passavam a freqüentar os espaços públicos da cidade), remédios para matar as pragas de uma cidade em crescimento, porém com pouca infra- estrutura, e artigos para o mercado aberto pelas festas populares. Além disso, F. Rodde oferecia, com destaque, a mais nova demanda da ‘civilização’: a luz elétrica e seus produtos derivados (“pilhas electricas”, “telegraphos electricos”, “pára-raios”, “motores electricos diversos”, etc.). A marca da loja (o desenho de um ‘mago’), associada ao título do estabelecimento, fazia jus: tantas novidades reunidas num só lugar só poderiam mesmo ser obra da ‘magia’ e funcionava em contraponto com os estabelecimentos especializados em artigos vinculados à ciência.

Em perspectiva diversa da maioria dos estabelecimentos do ramo da óptica e da física, que procurava vincular os aparelhos e dispositivos à ciência, ou daqueles ligados ao campo editorial ou fotográfico, que divulgavam os aparelhos acompanhados das ‘vistas’ de paisagens, monumentos, ou de ‘cenas da história’, F. Rodde oferecia os aparelhos enfatizando a possibilidade de utilização dos mesmos nos espetáculos de ilusionismo, propaganda veiculada em outros periódicos da época: “na mesma casa há sempre os

melhores aparelhos electricos, pilhas, motores e todos os seus acessórios, lanternas

mágicas, polioramas, aparelho de escamotagem e prestidigitação, etc" [grifo nosso].

(Gazeta de Notícias, 03 ago., 1875). Ainda, em outro periódico, F. Rodde divulgava as lanternas mágicas como “especialidade da casa” ao lado das “bichas hamburguezas” (Jornal do Século XIX, 20 de out. 1876, p.9).

Contudo, a vinculação à origem científica dos aparelhos não era de todo abandonada. Em alguns anúncios F. Rodde também chamava a atenção para esta qualidade:

DIVERSOS PRESENTES SCIENTÍFICOS. Apparelhos portáteis (Doubroni) premiados na exposição universal, pra qualquer pessoa ou criança fazer a photographia e paisagem, apparelhos eléctricos para divertimentos, telegraphos funcionando a grande distância, caminhos de

ferro electro-circulares aquarius; apparelhos para a photogenia, caixas de

mágica completas. Aviso – não querendo conservar estes objectos de um

anno para o outro, para os preços baratos, a concorrência é impossível. [grifos nossos] (Jornal do Commercio, 24 dez., 1870, p. 4).

Mais do que utilizar as duas vinculações (à ciência e ao ilusionismo) para divulgar os aparelhos, o proprietário do “Ao Grande Mágico” combinava-as, oferecendo ao público- consumidor a possibilidade não apenas de experimentar mas de produzir os efeitos ilusórios. O conhecimento daqueles que sabiam manejar os aparelhos, possuidores dos ‘segredos da óptica e da física’, era ampliado. Dessa forma, combinando a ‘magia’ (‘branca’!!!) com a ciência’, “qualquer pessoa”, que pudesse pagar de 4$ a 150$000, poderia apresentar os efeitos de ilusionismo:

MÁGICA BRANCA.!! Sciência ao alcance de todos!! AOS

AMADORES. O Grande Mágico acaba de receber um grande sortimento de peças avulsas de lindíssimos effeitos e completas illusões. Assim como também 200 caixas completas para as mesmas sortes de prestidigitação com

as competentes explicações para qualquer pessoa poder executar, desde 4$ até 150$000. Ver para crer. [grifos nossos] (Jornal do Commercio, 12

set., 1871, p. 7).

Assim como F. Rodde, os sócios Ribeiro Chaves & C., com estabelecimento similar (inclusive no nome), – ‘Ao Rei dos Mágicos’, também localizado na Rua do Ouvidor (n. 116) – ofereciam mercadorias ligadas ao ‘mercado’ do ilusionismo sob a égide da ciência. Em 1876 a casa também figurava como importadora de “bichas hamburguezas” e anunciava “Artigos raros de Pariz e novidades todos os annos” [sic]. Enorme variedade de mercadorias era anunciada como “especialidades da Casa”. Dentre estas, “aparelhos electricos, medicinaes e scientificos”; “perfumarias”; “preparações para matar ratos,

baratas e insectos” e “Peças e Magica em caixas e avulsas para amador e

prestidigitador”. [grifo nosso] (Revista das Notabilidades. In: ALMANAK, 1876:138).

Embora, pelo texto do anúncio, não possamos afirmar que as ‘peças e mágicas’ incluíssem alguns dos dispositivos, ressaltamos esta possibilidade, pois a loja praticamente repetia as mercadorias anunciadas por F. Rodde. Alguns anos depois, a mesma loja anunciava:

Casa scientifica e original, sem rival no Império. Encarregão-se da

collocação de campainhas electricas, telephones, porta-vozes e pára-raios, em todo o Brazil, para o que tem habeis officiaes. Grande variedade de

apparelhos de electricidade, physica, magica, optica, etc. (...) recebe por

todos os paquetes grandes sortimentos de novidades. (...) Importadores de 50,000 variedades applicadas ás artes, ás sciencias, ás industrias e ao commercio. [grifo nosso] (Notabilidades do Brazil, electricidade, In: ALMANAK, 1881:2272).

No ramo da óptica, conforme já assinalamos, a maior parte dos dispositivos era mais vinculada à ciência da óptica e da física (que os originou) do que ao seu poder de criar ilusionismos. Mas havia exceções. Como vimos, o negociante José Maria dos Reis, por exemplo, não abria mão de utilizar o termo ‘fantasmagoria’ para divulgar os aparelhos, embora se referindo à prática do ilusionismo como ciência – “Instrumentos para as seguintes sciencias: (...) astronomia, physica, (...) phantasmagoria, e em geral todos os instrumentos de optica” (Revista das Notabilidades. In ALMANAK, 1863:14).

É da mesma forma que outro negociante do ramo se referirá aos aparelhos. Por 19 anos seguidos, de 1856 a 1874, o ‘Armazem de Optica’ situado na Rua da Alfândega (inicialmente de propriedade de Agostinho de Souza Neves &C., e a partir de 1864 sob a direção de José Vieitas da Costa & C), anunciaria “completo sortimento de oculos (...) lunetas, (...) assim como instrumentos para uso de mathematicos, agrimensura, engenharia, marinha e phantasmagoria” [grifo nosso] (ALMANAK, 1856:564).

A presença da lanterna mágica foi verificada ainda em outros estabelecimentos. A ‘Casa do Anjo’ (Rua do Ouvidor, 109), em anúncio publicado na seção de “utensílios domésticos”, vendia a lanterna mágica dentre toda a sorte de itens que passavam a fazer parte da vida dos cidadãos ‘modernos’ – seringas, comadres, “castiçaes”, palmatórias, aparelhos de metal para chá e café, bules e cafeteiras, “machinas” de fazer café, fôrmas para pudins e empadas, caixas envernizadas com fechaduras para guardar dinheiro e papéis, torneiras de metal, sorveteiras, “machinas” de bater ovos, mamadeiras, copos de metal, ferros para engomar, escarradeiras, regadores, gaiolas, banheiras, lampeões (e

“Kerosene americano”). Além disso, como a maior parte das lojas, informava que as vendas poderiam ser a varejo ou atacado. O proprietário, Madei, se anunciava como “funileiro e lampista de Paris” e informava que fabricava “toda espécie de obra de folha de Flandres, latão e zinco polido e dobrado”. Afirmava, ainda: “encarrega-se de mandar vir de Paris todas as encomendas que lhe forem pedidas” (Revista das Notabilidades. In: ALMANAK, 1863:34-35).

Outro estabelecimento, “As Bichas Monstro” (Rua Gonçalves Dias, 56), especializado em fogos de artifício, “com fábrica em Niteroy”, de propriedade de Roudet (ALMANAK, 1871:583;646), também oferecia os aparelhos. Embora os anúncios no Almanak divulgassem a Casa na seção de ‘fogos de artifício’ sem listar os artigos oferecidos, a complementação da pesquisa no Jornal do Commercio nos possibilitou a verificação:

LANTERNAS Mágicas de CAMARA OBSCURA, espectáculo com 12 vidros e 36 vistas grotescas e dos circos! Grande divertimento de theatro

em casa para passar as noites de Santo Antônio! São João! E São Pedro!

Preço 20$, 30$, 40$; sempre na mesma casa, achando-se as afamadas CAIXAS DE PHYSICAS Amusante92 com explicação a 10$, 20$, 30$, 50$

e 100$ cada uma [grifos nossos] (Jornal do Commercio, 12 jun., 1872, p. 5). FESTAS! Chegou! Da alfândega grandes e lindíssimas LANTERNAS Mágicas de câmara obscura, como nunca se têm visto nesta côrte, de todos os tamanhos desde 15$ a 80$ com caixas de 12 vidros, pinturas grotescas e

carnavalescas [grifos nossos] (Jornal do Commercio, 28 dez., 1872, p. 6).

Como nos anúncios de F. Rodde, a Casa oferecia os aparelhos para um público maior do que aqueles que pudessem objetivar apenas organizar espetáculos ‘pagos’ de ilusionismo. “Presentes para famílias inteiras!!!”, informava Roudet em outro anúncio (Jornal do Commercio, 10 dez., 1871, p. 5). Toda a família era convidada a ‘se divertir’ no espaço doméstico com a as experiências da física (acompanhando as ‘explicações’) e apreciação do espetáculo de vistas.

Vale ressaltar que a própria temática dos fogos de artifício oferecidos pela Casa refletia a crescente demanda ‘visual’ da população e utilização dos aparelhos. Em 1872 Roudet oferecia à venda, por exemplo, “Caixas de família” de fogos de artifício para salões, contendo as seguintes ‘temáticas’:

92 A palavra ‘amusante’, não encontrada nos dicionários de língua portuguesa, cremos, é uma derivação de amusement, diversão, distração, e amusing, divertido, engraçado.

Estrellinhas microscópicas; Lágrimas do diabo; Boas constrictores; Fontes

de flores; Cascatas das hespérides; Pílulas do diabo; Papel relâmpago;

Machinas e illusões de óptica; Luz eléctrica; Vulcão napolitano; Sol da

união americana; Aurora boreal; Estrellas do Paraíso; Serpentes de pharaó; Revolver de jetão; Tochas deputados, etc. [grifo nosso] (Jornal do Commercio, 23 jun., 1872, p. 5).

Na década de 1870, os aparelhos e dispositivos já eram apresentados com freqüência na Cidade nos espaços públicos e semipúblicos e também consumidos no espaço doméstico. Além disso, cabe ressaltar, foi também no século XIX que as crianças passaram a se constituir num ‘segmento’ específico de mercado. Nesse sentido, algumas lojas passaram a se especializar em artigos para crianças, como os brinquedos. Conforme verificamos, os aparelhos foram também oferecidos ao consumo nestes estabelecimentos:

PARA CRIANÇAS. Lanternas mágicas com vistas magníficas. Cadeiras mágicas. Panoramas e marmotas. Brinquedos modernos e finos. Jogos, novidades para todos os sexos. Presepes finos e figuras avulsas. Armamento sortido. Instrumentos variados, tudo a preços módicos, na Rua dos Ourives, 55. (Jornal do Commercio, 25 set., 1872, p. 6)

De acordo com o Almanak (1872:619), o estabelecimento pertencia a Candido Antonio Pessoa D’amorim e possuía filial na Rua Visconde de Inhaúma, n. 77. Contudo, cabe esclarecer, a pesquisa no Almanak não evidenciou este tipo de estabelecimento como sendo um dos principais veiculadores destes aparelhos e dispositivos. No ano de 1872 (em que verificamos o anúncio no Jornal do Commercio), 12 lojas de brinquedos foram anunciadas no Almanak. Entre os anos de 1854 e 1885 o número de lojas de brinquedos variou de 8 a 16 estabelecimentos, entretanto uma média de 13 lojas de ‘quinquilharias’, neste período, oferecia à venda, dentre outras mercadorias, artigos destinados às crianças. Todavia, os anúncios foram veiculados de forma genérica, sem explicitar as mercadorias oferecidas. Caberia, posteriormente, uma verificação mais sistemática do comércio dos brinquedos, em especial.

A pesquisa realizada no Almanak Laemmert e complementada no Jornal do Commercio, evidenciou um largo mercado de distribuição dos aparelhos e dispositivos na Cidade do Rio de Janeiro do século XIX. A partir do mapeamento inicial realizado neste estudo, concluimos que o consumo dos mesmos foi além da experiência do público observador nas diversas exibições (teatros, festas de rua, ambulantes). Oferecidos ao consumo, ora como parte dos avanços científicos, ora como entretenimento, passaram a fazer parte do lazer e da educação visual de parte dos habitantes da Cidade ao mesmo tempo em que ajudaram na constituição de um ‘lazer familiar’ nos espaços domésticos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo empreendido nos permite afirmar que os aparelhos e dispositivos ópticos tiveram uma considerável presença na cidade do Rio de Janeiro durante a maior parte do século XIX. Esta comprovação é plena de significados: não deixa de ser surpreendente o acesso muito rápido aos inventos dos países europeus e dos EUA por um país colonial e periférico. A partir desta constatação, buscamos explicações sobre o modo como os referidos dispositivos circularam no país e colocamos em relevo as suas implicações para a sociabilidade e para o redimensionamento do observador do século XIX.

A investigação confirmou que dispositivos como a lanterna mágica e o cosmorama, entre outros, circularam na cidade desde as primeiras décadas do século XIX. Ainda que inicialmente em âmbito privado, rapidamente passaram a ser veiculados em estabelecimentos próprios e a ser anunciados tanto como ‘novidade científica’ quanto como ‘divertimento’. A partir da reflexão sobre os espaços públicos nas cidades, a presente tese sustenta que as exibições propiciaram também novos espaços de sociabilidade, alterando o universo visual da cidade que passa a ser povoado por vistas das cidades de outros países, fatos históricos, imagens ‘instrutivas’, ‘catequizantes’ (como as visões bíblicas) e ‘científicas’.

É possível postular que a população do Rio de Janeiro, sobretudo as classes vinculadas à aristocracia e à ascendente burguesia, estavam abertas aos novos regimes de visualidade que se configuravam no Ocidente na época Esta afirmação pode ser corroborada a partir da constatação de que havia, de fato, um público ávido por essas imagens e novidades. A precocidade da chegada da fotografia no país (com a vinda do daguerreótipo quase simultaneamente à sua invenção na Europa), o pioneirismo do trabalho estereoscópico de Klumb, a coleção de vistas estereoscópicas que nos foi legada pelo Imperador D. Pedro II, atestam isso. Ademais, não é possível descartar certa intencionalidade nessa difusão/produção de imagens. Com efeito, as características próprias da fruição destas vistas contribuíram para a edificação da imagem de um ‘Brasil Moderno’ e para a inserção dos observadores numa modernidade construída pelo olhar.

A argumentação do presente trabalho pretendeu sustentar que o modo de circulação dos dispositivos e das imagens esteve diretamente relacionado à forma de fruição dos mesmos. Há distinções se inseridos no campo da ciência ou do entretenimento. Essas tensões puderam ser constatadas no estudo do modo de comercialização dos referidos dispositivos nos anúncios do Almanak Laemmert e do Jornal do Commercio.

A partir da confirmação da presença destes aparatos visuais transformados em divertimentos, assim como da verificação de seus usuários e difusores, de suas formas de observação e dos contextos sociais em que os mesmos foram disseminados no Rio de Janeiro oitocentista, verficamos que, também aqui no Brasil, a utilização desses aparelhos e dispositivos ópticos contribuiu para o redimensionamento do observador da modernidade nos moldes defendidos por Crary (1994).

Tomando de empréstimo a metáfora utilizada por Turazzi (1995)93, podemos dizer que a presença dos dispositivos e aparelhos ópticos no Brasil do século XIX, em especial na cidade do Rio de Janeiro, se configurou num grande panorama estereoscópico entre as exibições dos dispositivos nas ruas, festas e estabelecimentos de divertimento público e as possíveis fruições das vistas estereoscópicas nos salões, nos ambientes domésticos e outros espaços privados. Diversos ‘relevos’ que devem ser percorridos com nosso olhar para que seja possível compreender parte da visualidade forjada na cidade do Rio de Janeiro oitocentista. Assim, os diversos ‘planos’ desta pesquisa – as exibições, a fruição pessoal e o comércio – podem se juntar para algumas considerações preliminares que, esperamos, possam ser retomadas e aprofundadas por outros pesquisadores futuramente.

Inicialmente consumidos no espaço privado por aqueles que tinham maior acesso aos produtos importados, como o jovem Pedro II, que ganhara uma lanterna mágica de seu pai, os instrumentos ópticos começaram a figurar nos jornais logo nas primeiras décadas do século XIX em anúncios de leilão e exibições organizadas nas residências de seus proprietários. Rapidamente, as possibilidades de transformação desses aparatos ópticos em divertimentos foram notadas por pequenos empresários, na maioria estrangeiros, que passaram a organizar sessões em espaços próprios de exibição. A constituição desses espaços, acolhendo, em parte, aqueles que não podiam pagar pelos espetáculos destinados

93 “Como num panorama estereoscópico, a história da fotografia e a história das exposições, vistas então

simultaneamente, redimensionam o contorno de vários aspectos interessantes da cultura e da tecnologia no século XIX, bem como das relações internacionais no período.” TURAZZI (1995:26).

às elites nos poucos teatros da época, fizeram parte também da construção do espectador da modernidade.

A relativa urbanização da cidade na segunda metade do século XIX propiciou um maior convívio público e o gosto pela vida exterior. A rua torna-se um lugar de passeio, de exposição, de diversão e consumo. Novos espaços de convívio coletivo foram incorporados ao imaginário social da população. Em torno das exibições proporcionadas pelos aparelhos e dispositivos ópticos, práticas de diversão e lazer foram construídas para além do convívio doméstico e privado.

A profusão de casas de ‘diversão’, em alternativa aos caros espetáculos organizados nos luxuosos teatros, atraiu inicialmente predominantemente o público masculino e a boemia da cidade. Objetivando a ampliação de seus negócios, empresários e exibidores colocaram em relevo o caráter de ‘entretenimento científico’ dos divertimentos ópticos (a ciência serviria para legitimar a exibição dos referidos dispositivos) facilitando a convocação da presença de toda a família para as exibições, em especial as ‘senhoras’ e os ‘meninos’, até então confinados ao espaço doméstico.

O hábito de freqüentar espaços públicos era, assim, gradativamente construído, da mesma forma que a experiência da fruição coletiva das imagens projetadas. Normas de comportamento passam a ser exigidas, como a proibição do uso de chapéus e do fumo nos locais de exibição. Vistas de outras cidades, povos, costumes, fatos históricos, personalidades, passam a compor o imaginário visual da população fluminense.

Em meados do século XIX, a demanda incessante por novas imagens se refletia em vários setores da vida da Corte. Na pesquisa no Jornal do Commercio encontramos vários exemplos de como as ‘vistas’ exibidas por meio dos aparelhos, assim como os espetáculos ilusionistas, já faziam parte do imaginário social da cidade: cartas de baralho com vistas da cidade, bailes com o título de “fantasmagórico”, bilhetes de amor nos jornais se referindo a um encontro ‘fantasmagórico’, nomes de periódicos (Lanterna Mágica, por ex.), e mesmo a marca do periódico Semana Ilustrada: uma caricatura de uma exibição de uma lanterna mágica’. O repertório temático das vistas, explorando o gosto pelas novidades, mas também pelo exótico, não era exclusividade das várias ‘casas de cosmoramas’, ‘galerias ópticas’, etc., que iam se constituindo na Cidade. O mesmo tipo de espetáculo era oferecido também nos teatros ‘oficiais’ da Corte para a aristocracia e elite e, pela freqüência com que era anunciado nos jornais, era bastante concorrido.

A difusão da exibição dos mencionados dispositivos assumiu, de fato, caráter massivo com as festas populares como as festas religiosas que passaram, também, a ser loci de exibição e fruição coletiva das imagens veiculadas por esses aparelhos e