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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

CLAUDIA MARIA POLETI OSHIRO

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE

DA INFLUÊNCIA DO CRISTIANISMO EM RELAÇÕES

FAMILIARES VIOLENTAS A PARTIR DE MULHERES

ACOLHIDAS NAS CASAS ABRIGO REGIONAL GRANDE

ABC E DE HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA

São Bernardo do Campo 2017

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CLAUDIA MARIA POLETI OSHIRO

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE

DA INFLUÊNCIA DO CRISTIANISMO EM RELAÇÕES

FAMILIARES VIOLENTAS A PARTIR DE MULHERES

ACOLHIDAS NAS CASAS ABRIGO REGIONAL GRANDE

ABC E DE HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião

Área de concentração: Religião Sociedade e Cultura

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza

São Bernardo do Campo

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BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza

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Dedico este trabalho às mulheres que me

permitiram adentrar seus mundos, pela

inspiração, pelo exemplo de luta, pela

resiliência e pela coragem. Pela ternura que

ainda preservam dentro de si. Gratidão!

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Agradecimentos

Agradeço à minha linda família, à minha pequena Serena por todas as horas que deixei de ficar com você para me dedicar a este trabalho, à Amanda pelo imenso incentivo que me permite optar sempre pelo sim, pela realização dos meus sonhos. Ao meu amigo, companheiro e amor Ricardo, pela segurança, lealdade e carinho que me permite caminhar com confiança. Ao papai, irmãos e irmã, cunhados(as), lindas sobrinhas, vovó, tios(as) e primos(as), que sempre me apoiam nas minhas escolhas.

Às minhas amigas, em especial à Susana, que sempre caminha ao meu lado, obrigada por tudo! À equipe do CREAS de São Bernardo do Campo, pelo apoio e pela contribuição especial para a realização deste trabalho: vocês são realmente especiais! Às técnicas dos Centros de Referência “Márcia Dangremon” e ao “Vem Maria”, em especial à Rosana e Regina, que me receberam com muito carinho e gentilmente contribuíram para a realização desta pesquisa. A todas as mulheres que me autorizaram adentrar suas vidas, obrigada pelo aprendizado! Aos homens que participaram desta pesquisa, por trazer suas histórias, suas intimidades.

Agradeço à ONG Samaritano São Francisco de Assis, pela confiança na coordenação das Casas Abrigo. Ao Consórcio Intermunicipal Grande ABC, por me permitir estudar o cotidiano do Programa Casas Abrigo Regional e pelas informações concedidas para a realização deste trabalho.

Ao Programa da CAPES, proporcionando bolsa de estudos. Ao Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, pelo qual fui recebida com muito carinho e prontidão. À querida Naira, pela sua sabedoria, dedicação e paciência nos meus momentos de angústias: gratidão!

Por fim, agradeço imensamente a minha linda orientadora, que, em meio a tantos saberes e conhecimentos, contribuiu para que eu pudesse ampliar o olhar para novos horizontes e traçar novos caminhos. Sandra, o meu muito obrigada!

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“(...) mas não sou completa, não. Completa lembra realizada. Realizada é acabada. Acabada é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo. Eu vivo me completando... mas falta um bocado.”

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Resumo

OSHIRO, Claudia. Violência de gênero e religião: Uma análise da influência do cristianismo em relações familiares violentas a partir de mulheres acolhidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC e de agressores. 2017. Dissertação de Mestrado (Ciências da Religião). Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo. 2017.

A violência doméstica é um fenômeno que nos preocupa. De forma concreta ou simbólica, ela perpassa o cotidiano de muitas mulheres que vivenciam situações de violência doméstica. Uma vez que construída socialmente, ao homem é posta uma posição desigual de poder, e estas ações muitas vezes são banalizadas e reforçadas por uma sociedade que é marcada pelo patriarcalismo. As desigualdades de gênero reforçam a violência contra as mulheres. A minha prática demonstra que muitas destas mulheres buscam ajuda na religião, mais especificamente com seus líderes religiosos, que, em sua maioria, além de compactuar com a violência vivida, a reforçam através de suas crenças religiosas. Os casos atendidos nas Casas Abrigo Regional Grande ABC atestam que muitas mulheres não rompem com o ciclo da violência, pelo fato de pertencerem a uma instituição religiosa e ouvirem de seus líderes discursos que legitimam a submissão e a violência contra as mulheres. Esta pesquisa pretende identificar e analisar a influência do cristianismo nas relações familiares violentas de mulheres católicas e evangélicas religiosas acolhidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC e de autores da violência contra as mulheres dos mesmos grupos religiosos. Procuraremos compreender as consequências da violência na vida dessas mulheres, bem como identificar a influência da religião no exercício masculino da agressão e na sujeição feminina à agressão. Como campo desta pesquisa escolhemos dois Centros de Referência de Atendimento à Mulher: “Marcia Dangremon” e “Vem Maria”, para abordagem com as mulheres. E o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS de São Bernardo do Campo, para a abordagem com os autores de violência contra as mulheres.

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ABSTRACT

OSHIRO, Claudia. Gender Violence and Religion: An analysis of the Christianity influence on violent family relationship from women housed in the large ABC regional shelter homes and from aggressors. 2017. Master's Degree Dissertation (Religion Sciences). Methodist University - São Paulo. São Bernardo do Campo, 2017.

Domestic violence is a worrying phenomenon. In a concrete or symbolic way, it pervades the daily lives of many women who have experienced domestic violence situations. Once socially constructed, man is placed in an unequal position of power, these actions are often trivialized and reinforced by a society that is marked by patriarchy. Gender inequalities reinforce violence against women. My practice shows that many of these women seek help in religion, more specifically with their religious leaders who, in addition to agreeing with the violence that woman has lived, reinforce it through their religious beliefs. The cases seen at Casas Abrigo Regional Grande ABC attest that many women do not break the violence cycle because they belong to some religious institution and hear from their leaders discourses that legitimize submission and violence against women. This research intends to identify and analyze the Christianity influence in the violent family relations of Catholic and Evangelical women hosted in Casas Abrigo Regional Grande ABC and the same religious groups' perpetrators of violence against women. We will try to understand the violence consequences in these women's life, as well as to identify religion's influence in the masculine exercise of aggression and in the subjection of women to aggression. To approach these women, we chose two Reference Centers for Women's Care: “Marcia Dangremon” and “Vem Maria” as a field of this research. In order to approach the perpetrators of violence against women, we chose Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS de São Bernardo do Campo.

Keywords: Gender, Domination, Masculinities, Violence against Woman, Religion, Domestic Violence

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LISTA DE TABELAS

Figura 1 – Ciclo da violência contra as mulheres...30

Figura 2 – Tabela 1: Perfil das mulheres entrevistadas...50

Figura 3 – Tabela 2: Origem das mulheres...53

Figura 4 – Tabela 3: Cidade de referência...53

Figura 4 - Tabela 4: Mulheres por faixa etária...54

Figura 5 – Tabela 5: Mulheres por raça/etnia...55

Figura 6 – Tabela 6: Mulheres por nível de instrução...55

Figura 7 – Tabela 7: Estado conjugal das mulheres...57

Figura 8 – Tabela 8: Quantidade de filhas (os) por mulheres...58

Figura 9 – Tabela 9: Profissão e situação de empregabilidade...59

Figura 10 – Tabela 10: Renda atual das mulheres...60

Figura 11 – Tabela 11: Religião das mulheres...61

Figura 12 – Tabela 12: Religião dos pais das mulheres...63

Figura 13 – Tabela 13: Tipos de violência sofrida...64

Figura 14 – Tabela 14: Tempo de acolhimento...,65

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... ...13

I. VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL: UMA ABORDAGEM GERAL...17

1. A VIOLÊNCIA E SEUS CONTORNOS...17

2. VIOLÊNCIA DE GÊNERO...19

2.1 A violência contra as mulheres em dados...24

2.2 Violência doméstica contra as mulheres...27

2.2.1 Ciclo da violência contra as mulheres...29

3. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA...31

4. LEI MARIA DA PENHA...33

4.1 Serviços especializados para homens autores de violência doméstica...35

4.2 Formas de violência contra as mulheres...35

5. PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES...36

5.1 Instrumentos de enfrentamento à violência contra as mulheres...37

5.1.1 Central de atendimento à mulher...38

5.1.2 Delegacias Especializadas...39

5.1.3 Centros de Referência da Mulher...39

5.1.4 Casas de Acolhimento Provisório...40

5.1.5 Casas Abrigo...40

5.1.6 Serviços de atendimento geral...41

II. GÊNERO E RELIGIÃO...43

1. AS DESIGUALDADES NAS RELAÇÕES DE GÊNERO...43

1.1 As diferenças de gênero...44

2. AS MULHERES E OS AGRESSORES: TRAÇANDO UM PERFIL...48

2.1 Universo da pesquisa...49

2.2 Perfil das entrevistadas...50

2.3 Perfil dos autores da violência contra as mulheres...66

2.4 Discussão...69

3. A RELIGIÃO COMO SISTEMA SIMBÓLICO ESTRUTURANTE...71

3.1 A religião...71

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III. AGÊNCIA RELIGIOSA NO PROCESSO DE ENFRENTAMENTO À

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA...78

1. A RELIGIÃO E A INFLUÊNCIA NAS RELAÇÕES FAMILIARES VIOLENTAS...78

1.1 As mulheres e o pentecostalismo...81

1.2 Religião e violência simbólica no cotidiano das mulheres...85

2. O PROCESSO DE RESILIÊNCIA DAS MULHERES QUE VIVERAM SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA...87

2.1 As guerreiras, o sagrado e a batalha cotidiana...87

2.2 Masculinidade, construção social e religião...93

3. AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES...95

3.1 As lideranças religiosas como agentes no processo da violência contra as mulheres...96

3.2 O espaço religioso como referência e sociabilidade...100

CONSIDERAÇÕES FINAIS...105

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...109

APÊNDICE I...116

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INTRODUÇÃO

A violência está presente em todas as relações e afeta o meio em que vivemos. Na ânsia de exercer o poder, o ser humano invade o espaço do outro, espaço que não lhe pertence. Compreender certos atos violentos não é uma tarefa simples, as agressões cometidas contra as mulheres, a intolerância e a indignidade dos agressores nos obrigam a buscar maiores explicações. Neste trabalho buscamos construir conhecimento a partir da categoria de gênero, que nos permite compreender a construção social dos sexos: masculino e feminino.

Apesar de trabalhar há muito tempo com violência, não pude deixar de sentir tamanha indignação ao atender mulheres, com seus filhos e filhas, nas Casas Abrigo Regional Grande ABC, ameaçadas de morte pelos companheiros. Ouvir suas histórias, suas dores, olhar para as marcas, visíveis ou não, foi o bastante para repensar a efetividade do trabalho profissional que estamos desenvolvendo para combater este fenômeno. A violência contra as mulheres não é apenas uma violência comum, mas uma cultura que se estende desde o início da nossa história. Ao questionarmos os motivos pelos quais as mulheres viveram tantos anos sob ameaças e agressões de seus companheiros, uma das justificativas mais comuns entre as acolhidas foi que estavam sendo “assistidas” por lideranças religiosas nas igrejas que frequentavam, porém permaneciam em situações violentas que quase as levaram à morte. Tais circunstâncias me despertaram para uma envolvente e complexa indagação: existe relação entre violência doméstica e religião? Em que medida as ações violentas de gênero são justificadas pelos discursos religiosos? Quais são estes discursos?

O presente estudo tem como objetivo analisar se e como as instituições cristãs contribuem, por meio de seus discursos religiosos, para a reprodução e perpetuação da violência doméstica, tanto no que tange às vítimas quanto aos agressores, tendo como referência as mulheres atendidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC. Para tanto, almejamos que os dados coletados possam se transformar em elementos e análises que possam contribuir para o trabalho de profissionais da área social, para elaboração de propostas de intervenção ao enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres, como subsídio para ações de mobilização e participação de novos atores sociais e organizações religiosas, nas discussões sobre o enfrentamento da violência de gênero no

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14 Brasil. Ressaltamos que todos os nomes mencionados nos depoimentos, tanto das mulheres em situação de violência doméstica quanto dos homens autores de violência são fictícios.

Esta pesquisa foi realizada com mulheres em situação de violência doméstica acolhidas nas Casas Abrigo Grande ABC e com homens que cometeram atos de violência contra as mulheres, indicados por técnicas que trabalham no Centro Especializado de Assistência Social – CREAS do Município de São Bernardo do Campo. A pesquisa foi realizada nos meses de setembro e outubro de 2016.

As Casas Abrigo Regional Grande ABC são um serviço subsidiado pelo Consórcio Grande ABC, que foi criado em 1990 pela iniciativa do então prefeito do município de Santo André, Celso Daniel. A sede do Consórcio está situada no município de Santo André, sendo financiado pelas prefeituras dos sete municípios que compõem a Região do Grande ABC: São Caetano, Santo André, São Bernardo do Campo, Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. A partir de representantes destes municípios, que têm como atribuições planejar, articular e definir as principais ações de caráter regional, foi criado o serviço regional Casas Abrigo para mulheres em situação de violência doméstica com ameaça de morte. A criação deste serviço foi devido à grande demanda de mulheres que estavam sendo espancadas e ameaçadas pelos seus companheiros na região.

Criada em 2003, as Casas Abrigo Regional Grande ABC tem como objetivo garantir a segurança e proteção de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, sob risco iminente de morte, acompanhadas ou não de seus filhos e filhas menores de dezoito anos, intervindo no ciclo da violência e propiciando sua restruturação biopsicossocial. As mulheres acolhidas são encaminhadas pelas equipes técnicas dos Centros de Referência dos Municípios, que realizam a avaliação do risco iminente de morte. Elas podem permanecer nesses centros por até 180 dias, ou até que consigam reunir condições para continuar o curso de suas vidas.

O Centro Especializado de Assistência Social – CREAS se propõe a ofertar serviços especializados de caráter continuado a famílias e indivíduos que estão em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos, conforme dispõe a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais da Política da Assistência Social.

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15 Para compreendermos o fenômeno que é a violência contra as mulheres e sua relação com a religião foi percorrido um caminho bibliográfico e pesquisa de campo conforme apontamos acima. No primeiro capítulo, abordamos conceitos sobre violência, violência de gênero e como se relacionam entre si. Apresentamos dados sobre a violência contra as mulheres no Brasil e as influências históricas que levaram a tamanha proporção. Discutimos e esclarecemos as principais políticas públicas para as mulheres que estão em situação de violência doméstica no Brasil, bem como uma explanação geral da Lei Maria da Penha e as formas de violência contra as mulheres. Ainda neste capítulo, é apresentado o plano nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres e os serviços públicos especializados para mulheres que estão sofrendo violência, ofertados pelos municípios, destacando que esta deve ser trabalhada de forma ampla e não somente no singular.

No segundo capítulo, a discussão foi baseada nas relações de gênero, as desigualdades entre os sexos e as suas diferenças, que são construídas socialmente e são hierarquicamente legitimadas pela sociedade. Como item fundamental desta pesquisa apresentamos, em seguida, o perfil socioeconômico das mulheres que participaram dos grupos focais e dos homens autores de violência doméstica entrevistados, bem como a análise da coleta dos dados. Ainda neste capítulo, apresentamos uma reflexão sobre a religião e a sua influência na construção das identidades dos indivíduos, bem como nas questões de gênero.

No terceiro e último capítulo, abordamos a religião e sua influência nas relações familiares violentas, além do seu caráter simbólico, que intervém no cotidiano das mulheres que sofrem violência doméstica. Apresentamos em seguida o processo de resiliência das mulheres que vivem ou viveram situações difíceis, que socializaram suas histórias, revelando-nos os mecanismos que construíram ao longo de suas vidas para a superação do ciclo da violência. Ainda neste capítulo abordamos a masculinidade e a sua relação com a religião. Realizamos também uma discussão sobre o envolvimento das instituições religiosas no enfrentamento da violência contra as mulheres, bem como os instrumentos e recursos utilizados pelas lideranças religiosas no tocante à violência contra as mulheres. Finalizamos a pesquisa apresentando as várias possibilidades que as mulheres encontram nos espaços das igrejas como oportunidades de encontros sociais, formação e propagação da ajuda mútua entre os fiéis da comunidade.

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16 Sendo assim, esperamos que este trabalho contribua para uma reflexão ampla sobre as mulheres que sofrem violência doméstica, sobre a construção social alienante, bem como sobre o poder concedido aos homens e sobre a complexidade e subjetividade da religião com seu caráter acalentador, confortador e, ao mesmo tempo, opressor e regulador!

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CAPÍTULO I

I. VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL: UMA ABORDAGEM

GERAL

1 A VIOLÊNCIA E SEUS CONTORNOS

A violência, em seus mais variados contornos, é um fenômeno histórico na sociedade construído culturalmente. Ela possui significados e atribuições diferentes, dependendo do período histórico ou contexto social em que é praticada. Para tanto, é necessário considerar os valores sociais pertinentes ao mesmo, ou seja, “cada sociedade está às voltas com a sua própria violência segundo seus próprios critérios e trata seus próprios problemas com maior ou menor êxito” (MICHAUD, 1989, p. 14). Portanto, podemos considerar que, quando se trata de ações violentas, as mesmas são interpretadas pela sociedade de forma ambígua e relativa.

Ela está igualmente presente nos rituais simbólicos, em que os cidadãos baseiam suas práticas sociais através de comportamentos, linguagens, gestos e símbolos. Esse fenômeno se sofistica através da modernização da sociedade, e suas consequências variam entre danos físicos, psicológicos, morais, culturais e econômicos. Em outros termos, a violência material e a violência simbólica estão conectadas.

Baseada no senso comum, a violência é entendida como qualquer agressão física contra seres humanos, cometida com a intenção de lhes causar sofrimento, afetando o meio em que vivem e as relações interpessoais. A ideia de violência está ligada ao conceito de poder e subordinação, refere-se a “um processo relacional, pois deve ser entendido na estruturação da própria sociedade e das relações interpessoais, institucionais e familiares” (FALEIROS, 2007, p. 7). Muitas atitudes violentas são consideradas decorrentes do desejo de exercer o poder, e isso ocorre porque, muitas vezes, as normas estabelecidas para o bem comum são rompidas, afetando a convivência pacífica do mundo das trocas e gerando violência.

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18 Hannah Arendt (1994) entende que a violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade. Para ela, poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o ser humano domina o ser humano. Neste sentido, a violência exerce uma função de manutenção do poder, até mesmo contra aqueles que são julgados pela maioria. A autora afirma ainda que:

Politicamente falando, é insuficiente dizer que o poder e a violência não são o mesmo, poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro será ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas deixada a seu próprio curso, ela conduz a desapropriação do poder (...) falar de um poder não violento é de fato redundante. (ARENDT, 1994, p. 43).

Neste sentido, numa relação conflituosa, a violência é praticada quando os agressores se veem perdendo o poder, aflorando assim um sentimento de insegurança. Quando ditam suas regras e as mesmas não são obedecidas, sentem-se incapazes, ou ainda, querem obrigar as pessoas a realizar seus desejos. Em se tratando da violência intrafamiliar, por exemplo, as agressões são perpetradas quando não existe mais a possibilidade de diálogo entre os membros da família, e as vítimas muitas vezes são silenciadas pelas agressões. Portanto, a perda da autoridade, que ameaça a masculinidade hegemônica, contribui para as transformações nas tradicionais relações de poder.

Atualmente, no Brasil, estamos vivendo uma fase de ressignificação da violência, uma vez que ela pode ser considerada “ambígua e relativa” (PORTO, 2000, p. 2). Em se tratando da violência contra a mulher, por exemplo, há poucas décadas, estes episódios eram tratados somente na esfera privada e não eram entendidos como violência. Conforme Porto (2000, p. 190), “a criminalização de atos de violência contra a mulher sinaliza para novos sentidos do que se considera violência, o que reflete outro estatuto da condição feminina.” Durante muitas décadas, várias práticas violentas eram naturalizadas e consideradas costumeiras de modo que, regulamentadas em práticas sociais, se tornavam “fundadas em uma rígida hierarquização do social que instituía a desigualdade como processo legítimo, por assim dizer, de estruturação do social” (PORTO, 2000, p. 190). As violências estão inseridas no contexto das transformações do mundo contemporâneo; desta maneira, estabelece-se como um fator importante de transformação do social. Não podemos deixar de considerar que “os grupos sociais, atores desta violência, impõem formas de regulação a partir da própria lógica da violência” (PORTO, 2000, p. 196) e, consequentemente, estes atores se manifestam através das mais diversas formas de violência. Uma grande preocupação é que muitas mulheres que convivem com

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19 a violência desde a infância, embora se incomodem com os comportamentos machistas e agressivos dos companheiros, podem perceber as relações conflituosas como algo esperado ou até mesmo natural, o que acarreta manter-se nesse tipo de relação por muitos anos ou até o fim de suas vidas.

Considerando os processos sociais em que a sociedade brasileira vem conquistando “patamares de civilidade” (PORTO, 2000, p. 3), certos atos de violência passam a ser inaceitáveis. A criação de redes de proteção às mulheres, as denúncias realizadas através dos meios de comunicação, por exemplo, são súplicas da sociedade para enfrentar a violência de gênero. Embora tenhamos avançado, ainda há um longo caminho a percorrer no sentido de garantir maior visibilidade ao fenômeno, que é a violência de gênero.

2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Para que se possa compreender a complexidade do fenômeno da violência de gênero, faz-se importante compreendê-lo. A violência de gênero, que se perpetuou durante décadas de dominação do masculino sobre o feminino, está se desmistificando a partir do entendimento de que a construção de identidades está firmada na cultura. Judith Butler, ao estudar sexo e gênero, concebeu o sexo e o gênero como construções. Diferentemente do entendimento dominante, a autora afirma que: “...talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre o sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (BUTLER, 2003, p. 25). Neste sentido, passamos a compreender que o sexo não é natural, mas ele é também discursivo e cultural, assim como o gênero, de sorte que, ao entendermos que o gênero é construído socialmente, inferimos também que ele expressa a essência do sujeito (REZENDE, 2012). Partindo deste pressuposto, a violência de gênero é entendida como uma relação de poder entre homens e mulheres com participação desigual das mulheres na sociedade, devido à sua condição sexual, que são as relações sexuais de gênero.

Transmitida de geração a geração, foi somente no início dos anos 1980 que a violência de gênero foi considerada no Brasil como um problema social. Isso se verificou em virtude da visibilidade nas mídias de alguns casos extremados de violência perpetrados por parceiros íntimos, capazes de sensibilizar a opinião pública (MORAES, 2009).

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20 O conceito de violência de gênero é amplo, podendo ser utilizado não como sinônimo de violência contra as mulheres, mas em todas as relações, já que abrange mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos, presente especificamente nas violações dos direitos, por parte, sobretudo, de agressores que, na sua maioria, são homens (SAFFIOTI, 2001, p. 115), pois a violência de gênero é de ordem patriarcal.

O poder masculino pode ser observado em várias atitudes. De acordo com Heleieth Saffioti, muitas vezes o homem comporta-se como um “sujeito desejante em busca de sua presa” (Saffioti, 1987, p. 18). Pudemos constatar essa realidade em nosso campo de pesquisa.

Joana, 30 anos, uma mulher que fugiu de sua casa com os dois filhos para não ser morta pelo ex-companheiro, ficou acolhida com sua prole na Casa Abrigo para mulheres em situação de violência doméstica. Ao falar sobre a violência do companheiro, afirmou:

Ele dizia pra mim: ‘Se você não fizer o que eu quero agora, eu te mato; se você sair pela porta eu te mato também; se você fugir, o dia que eu te encontrar eu te mato; se você ficar dentro de casa eu te bato até você ficar no chão. Você imagina que se eu te encontrar fora de casa quando eu te achar eu te mato, e se eu não te achar eu vou matar toda a sua família, um por um, até você se entregar para morrer.’

Atitudes como essas não podem ser vistas apenas como um ato violento. São ações e ameaças que precisam ser analisadas e interpretadas considerando a construção social dos papéis de gênero. O que pode levar um homem a sentir-se dono de uma mulher? O que autoriza este homem a ameaçar, agredir e aprisionar uma mulher?

A situação das mulheres é fruto de um processo histórico de construção social da subordinação feminina. A identidade feminina foi construída como dócil, frágil, fraca e inferior; em contrapartida, o homem é entendido como forte, macho, racional e superior (Saffioti, 1987). Se considerarmos tais características, será possível compreender as relações de dominação-exploração estabelecidas entre homens e mulheres que vivenciam situações de violência. A incidência de mulheres com o perfil de Joana demonstra que novas construções podem contribuir para novas verdades.

A identidade feminina é estruturada pela inserção das mulheres no universo doméstico e sua responsabilidade por ele, até mesmo pela manutenção da harmonia no lar, pelos cuidados com a prole e pela reprodução dos valores e crenças da família

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21 (MACHADO, 1996). Em nossa cultura, desde crianças, as meninas são socializadas para atender às necessidades dos homens, ainda que sejam pai e irmãos, enquanto que as suas são geralmente secundárias. É veiculado pela mídia o papel da mulher perfeita, da mulher ideal enquanto cuidadora, dedicada e abnegada, sendo o homem o ser mais importante e, depois, os filhos, preferencialmente os meninos. Outra crença de gênero que abala muitas mulheres em nossa sociedade, é que a sexualidade dos homens é incontrolável e que os mesmos necessitam “ser servidos” e jamais contrariados, posto que seus desejos são leis pré-estabelecidas que devem ser cumpridas.

O relato das mulheres que quase foram mortas por seus companheiros, demonstra claramente tal afirmação. O contrato matrimonial, legalmente estabelecido, contribui para o controle da sexualidade feminina pelo homem, para o conhecido “dever sexual”, que obriga as mulheres a manter relações sexuais mesmo sem o desejo de fazê-lo. Esta forma de violência é muito comum nas relações matrimoniais. O depoimento de Joana, que também sofreu violência sexual da parte do ex-companheiro e que, durante vários anos, silenciou sua dor para que ele não matasse a família, ilustra tal afirmação:

Ele me estuprava. Eu não aceitava até ele me proibir de ir na casa dos meus parentes.

Para Joana, nada foi tão cruel quanto a violência sexual que estava sofrendo. Além do estupro, tinha que ouvir jargões machistas como:

‘Não se faça de difícil porque sei que você gosta’ ou ele me ameaçava, quando eu tentava sair daquela situação, e me enforcava até eu quase morrer. Daí, eu acabava cedendo.

Sem suportar mais tanta violência, Joana foi buscar ajuda técnica no Centro de Referência Especializado da Mulher:

Em outras situações, eu até aceitava e ficava quieta mesmo; mas quando chegava a violência sexual eu não dava conta, eu não aceitava, eu não aguentava mais aquela situação, e aí eu fui buscar os meus direitos.

Estudos1 revelam que comportamentos de ameaças e intimidação são típicos de homens perversos. Um fator que estimula tal violência tem a ver com o fato de que

1 Estudos de Frieze I. H. & Snyder, H. N. Children’s beliefs about the causes of success and failure in

school settings. Journal of Educational Psychology, 72: 186-96, 1980; Citado por: Narvaz, M. G., & Koller, S. H. (2004). Famílias, gênero e violências: desvelando as tramas da transmissão transgeracional

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22 homens que foram socializados em famílias em que as mulheres eram vistas como patrimônio do homem, sentem-se no direito de tratá-las como tal, impedindo sua autonomia e desrespeitando sua privacidade. Existem outros fatores que devem ser considerados como, por exemplo, o fato de que muitos homens acreditam que tais atitudes fazem parte de sua masculinidade e encontram na violência uma única forma de resolver conflitos.

Com tanto poder conferido ao homem, ele se sente no direito não somente de manter relações sexuais com a companheira contra a vontade dela, mas ainda de usá-la para satisfazer seus desejos mais secretos. Tal situação é demonstrada no triste depoimento de Luana, 48 anos, que viveu sob violência e ameaças durante anos. Seu ex-companheiro tinha desejos que ela não aceitava; porém, seu poder e fascínio pelo seu objeto de desejo obrigava Luana a passar por situações humilhantes e imensamente cruéis, conforme relata:

Ele contratou um travesti na Av. Industrial para transar comigo na frente dele. Ele comprou um filme pornô e eu tinha que escolher um daqueles homens do filme. Mesmo eu chorando, ele me obrigava a escolher um, e eu dizia: ‘Meu Deus, isso é nojento! Isso é tudo nojento’.

Culturalmente, o homem possui papel “ativo” na relação sexual, enquanto que o papel feminino é entendido como de passividade e reprodução. Ainda muito timidamente, as mulheres estão se posicionando e conquistando seu lugar igualitário ao dos homens na sociedade. Todavia, muitos são os obstáculos. A sociedade investe muito na naturalização deste processo, quando afirma, por exemplo, que é a capacidade natural da mulher de ser mãe que a faz cuidar melhor dos filhos e filhas do que os homens. Isso reforça um comportamento dos homens livre de responsabilidades com a prole e com os cuidados domésticos. Em entrevista com Fabricio, 44 anos, ele relata sua dificuldade em lidar com a companheira e com as mudanças no comportamento feminino:

As coisas estão mudando um pouco. As mulheres estão perdendo a noção da situação. Hoje em dia, vocês estão na posição que chegaram e vocês estão abusando. As mulheres estão perdendo o sentido do bom senso, tem que ter uma diretriz de igualdade, de divisão.

Este relato apresenta claramente a dificuldade dos homens em dividir seu lugar de poder na sociedade, em função de ser um lugar muito confortável e de privilégios. No

da violência de gênero. Em M. N. Strey, M. P. R. de Azambuja, & F. P. Jaeger (Orgs.), Violência, gênero e políticas públicas (pp.149-176). Porto Alegre: Editora da PUCRS.

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23 caso de Joana, assim como em muitos outros, ela e sua família sobreviveram a sacrifícios e renúncias, originados pela situação de alta vulnerabilidade social à qual estavam submetidas. Inserida em um cotidiano de luta pela sobrevivência, ela necessitava trabalhar para subsidiar o sustento dos filhos. Segundo Joana, o ex-companheiro e agressor não admitia que ela se ausentasse do ambiente doméstico sem sua companhia e, por ciúmes, era contra uma vida profissional ativa. Assim, ela era espancada quando se atrasava. Além de todas as responsabilidades que assumia, ela enfrentava as dores de confiar suas crianças a estranhos quando estavam doentes ou quando não tinha com quem deixá-las em sua ausência. A cruel realidade das mulheres incumbidas de cuidar dos filhos, da casa e, ainda, de prover o sustento da família, fundamenta o depoimento de Joana, quando ela relata que ser mulher: “É ser firme, é enfrentar muitos preconceitos e dificuldades no serviço, quando temos que sair para trabalhar com o coração frouxo, porque é nosso filho que está doente.”

A sobrecarga de responsabilidades, a dupla jornada de trabalho e a vulnerabilidade à qual Joana estava exposta, fizeram com que ela se tornasse de fato uma guerreira. Muitas mulheres estão presentes no mercado de trabalho não só pelo prazer, pela conquista de autonomia e independência, mas também para contribuir para o orçamento doméstico. Pode-se considerar que esta é uma relação atual de gênero, à proporção que ela deixa simplesmente de encarregar-se dos afazeres domésticos, como ocorria habitualmente com a maioria das mulheres, há tão poucas décadas. Neste sentido, como caracterizar tais mudanças?

Nas relações de gênero, também os privilégios usufruídos pelos homens são transmitidos, principalmente na família. Isso é visível quando se trata da educação das crianças. Não é difícil encontrar casais que transmite aos filhos e filhas um padrão de comportamento diferenciado entre eles, ou seja, muitos são extremamente liberais com os filhos e rigorosamente moralistas com as filhas. Tais valores repassados por gerações estão ainda hoje bastante presentes em nossa cultura. Para a sociedade, a mulher necessita estar sempre pronta para aceitar qualquer atitude falha do companheiro, mesmo quando ambos estão comprometidos pelo matrimônio. Não é raro conhecer mulheres que aceitam aventuras amorosas de seus companheiros e, ainda assim, permanecem na relação, dado que “a resignação, ingrediente importante da educação feminina, não significa senão a aceitação do sofrimento enquanto destino da mulher” (SAFFIOTI, 1987, p. 37). Na qualidade de sofredora, submissa, compreensiva e fiel, a mulher tem como destino

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24 compadecer-se de sua provação e, por isso, receber aplausos da sociedade pela sua fidelidade e resignação.

Muito diferente ocorre quando a esposa não se mantém fiel. Se ela decide infringir as normas estabelecidas pelo matrimônio ou se deseja separar-se do companheiro e este não concordar, ou ainda, se este simplesmente suspeitar que ela possa estar interessada em outro homem, além de receber desaprovação da sociedade por ter sua honra manchada, sente-se no direito de ameaçá-la, espancá-la e, ainda, assassiná-la. Crimes assim não são somente banalizados pela sociedade, como autorizados por ela, já que a sociedade não apenas aceita o adultério masculino, mas culpabiliza a mulher pelos caminhos incertos do matrimônio.

2.1 A violência contra as mulheres em dados

Ainda nos dias de hoje, diariamente, os meios de comunicação noticiam diversos casos de violência contra a mulher em contexto urbano que passaram a ser destaque devido ao aumento de sua ocorrência e de sua intensidade. Tais notícias, porém, classificam genericamente essas violências como “urbanas”, não especificando o tipo de crime cometido. Trata-se, por exemplo, de feminicídio, violência doméstica, estupro, crimes motivados pelo preconceito, violação dos direitos humanos.

A violência doméstica fatal contra as mulheres no Brasil, no ano de 2015, atingiu mais de 4.700 mulheres e 50,3% do total nesse ano foram perpetrados por um familiar da vítima que representa perto de sete feminicídios diários. Dessas mulheres, 1.583 foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro, o que representa 33,2% do total de homicídios femininos nesse ano (Waiselfisz, 2015, p. 8). Estes números indicam a existência de um problema gravíssimo, agudo e de longa duração, o feminicídio2 íntimo. Para a socióloga Lurdes Bandeira, o conceito de feminicídio está diretamente ligado ao poder patriarcal:

O feminicídio representa a última etapa de um continum de violência que leva à morte. Seu caráter violento evidencia a predominância de relações de gênero

2 Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Em 9 de março de 2015, foi

aprovada a Lei nº 13.104/2015, a Lei do Feminicídio, que altera o art. 121 do Decreto-Lei no. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Dar maior visibilidade ao problema é um dos principais ganhos desta lei. Segundo especialistas, a tipificação é vista como uma oportunidade para dimensionar a violência contra as mulheres no Brasil, bem como aprimorar políticas públicas para preveni-la e coibi-la.

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25 hierárquicas e desiguais. Precedido por outros eventos, tais como abusos físicos e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de dominação masculina e a um padrão cultural de subordinação que foi aprendido ao longo de gerações. (BANDEIRA, 2013, p.1).

O feminicídio representa a última etapa depois de muitas agressões físicas e psicológicas, a que leva à morte. As mulheres são submetidas à dominação masculina, um padrão cultural de subordinação das mulheres aos homens, o qual foi aprendido ao longo de muitas gerações, podendo ser entendido como um sistema de dominação patriarcal e misógino (BANDEIRA, 2013). Os pressupostos mais comuns deste crime são a premeditação e a intencionalidade de sua consumação. Entre suas características, apontamos: destrói o corpo feminino com ações de crueldade; é perpetrado com meios sexuais; possui caráter violento; evidencia relações de gênero desiguais e hierárquicas; sobrepõe diversas violências no mesmo corpo; ocorre como um processo de terror, humilhação, como mamilos arrancados, mutilação dos órgãos genitais. Muitas mulheres que sofrem violência chegaram ao limite entre viver ou morrer: por sorte ou por uma casualidade, livraram-se da morte por muito pouco. A história de Edilia, 45 anos, relata uma das situações de horror que viveu por anos:

Muitas vezes, ele me mandava ficar de joelhos como se ele fosse uma autoridade para me agredir. Uma vez ele deu uma paulada na minha cabeça e eu levei vinte pontos e quase morri. Ele me agredia de todas as formas que você pode imaginar.

A violência cometida pelo companheiro de Edilia era meticulosamente planejada e se repetia dia após dia. O companheiro fazia com que ela se percebesse em uma relação de dominação. Segundo o Dossiê Violência contra as Mulheres, realizado pela Agência Patrícia Galvão, 2014: “A violência sexual é a mais cruel forma de violência depois do homicídio.” Ela trata da apropriação do corpo da mulher. O agressor está se apropriando, sem consentimento, daquilo que há de mais íntimo. O Ministério da Saúde estima que mais de 500 mil pessoas são estupradas no Brasil a cada ano. E de acordo com a Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014)3, estima-se que, no mínimo, 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Não há ainda números efetivos sobre a violência sexual cometida por parceiros íntimos, visto que muitas mulheres,

3 IPEA, 2014. Disponível em:

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26 mesmo sem desejo, acreditam que é obrigação da mulher “servir” ao marido. Desse modo, muitas não reconhecem a violência sexual que sofrem ou, se reconhecem, optam por não denunciar o parceiro, em sua maioria por medo de morrer, como o que se passava com Edilia, que sofreu todos os tipos de violência, inclusive cárcere privado, e sentiu na pele o terror do estupro por anos a fio: “Se você não quiser o que eu quiser agora eu te arrebento, se você sair eu te arrebento e se você fugir eu pego seus filhos eu mato eles, e aí eu ficava morrendo de medo.” Segundo Edilia, as agressões foram se tornando cada vez mais violentas, a ponto de ter que fugir, mesmo sabendo que, se o companheiro a encontrasse, ela morreria.

As agressões perpetradas pelos parceiros íntimos são uma das formas mais comuns de violência contra a mulher. Parentes imediatos ou parceiros e ex-parceiros são responsáveis por 67,2% do total de atendimentos na saúde4. Em relação às formas de violência sofrida, a violência física é, de longe, a mais frequente, presente em 48,7% dos atendimentos, com especial incidência nas etapas jovem e adulta da vida da mulher, quando chega a representar perto de 60% do total de atendimentos. Em segundo lugar, a violência psicológica, presente em 23% dos atendimentos em todas as etapas, principalmente de jovens em diante. Estes tipos de violência podem ser enquadrados dentro da violência doméstica, dado que a mesma se expressa nas relações interpessoais familiares, baseadas nas relações de gênero hierarquizadas, baseadas nas estruturas da sociedade: classe, gênero e etnia (MORGADO, 2012). Os números de violência contra as mulheres apresentados acima são impactantes. As próprias considerações da pesquisa registram o fenômeno da seguinte forma:

A questão atual centra-se nas proporções inéditas que o fenômeno vem assumindo. Ano após ano, observamos, com mistura de temor e indignação, que o País vem quebrando suas próprias marcas, numa espiral de violência sem precedentes. (Mapa da Violência 2015, Homicídios de Mulheres no Brasil, 2015).

A violência doméstica contra a mulher sempre existiu no Brasil, e pesquisas mostram que a maior parte não registra queixa por constrangimento e humilhação, ou até por medo da reação do parceiro, pois é muito comum ela sofrer ameaças inclusive de morte, caso revele o ocorrido. É importante ressaltar que a violência sexual

4 http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf Acesso em: 15/12/2016.

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27 frequentemente é associada a outras violências, como a física e até mesmo a psicológica, principalmente quando o agressor é um companheiro.

2.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES

O espaço doméstico é tido muitas vezes como espaço de conflitos, aquele que pode ser de extremo perigo, de modo que é nele que se estabelece o confronto da disciplina, da dominação e da resistência, em que as relações entre o casal são permeadas por abusos físicos, psicológicos, sexuais, morais, entre tantos outros.

A violência doméstica é praticada por aqueles que convivem no espaço doméstico e não se restringe aos familiares, mas inclui aqueles que trabalham diretamente ou convivem na mesma residência. Em sua maioria, é praticada por homens que se acham no direito de dominar o espaço físico e simbólico. A violência doméstica também pode ocorrer fora dos limites físicos da residência, ainda que a principal característica é ser praticada por conviventes, mas não exclusivamente naquele local. Diferentemente dos animais, para os seres humanos, o território do domicílio é considerado simbólico, de modo que, numa relação, o homem pode praticar violência contra a companheira fora dos limites físicos da residência, por considerar a relação conflituosa entre eles.

As agressões cometidas pelos parceiros íntimos constituem uma das formas mais comuns de violência contra a mulher. Em passado não muito distante, estas agressões não configuravam nenhuma espécie de crime ou delito, pelo contrário: eram atos legitimados pelo regime patriarcal e estimulados pela sociedade, posto que estes casos não eram denunciados. Os direitos negados às mulheres são historicamente conhecidos no Código Penal de 1940. Por exemplo, nele constava a criminalização de condutas ofensivas à virgindade, tal como o crime de defloramento. Por muitos anos, o texto penal foi compreendido e pautado pela moralidade sexual do sistema patriarcal, o qual era baseado em critérios discriminatórios e excludentes.

Analisando as histórias de mulheres que foram acolhidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC, inicialmente os depoimentos se revelam com requintes de crueldade e perversidade. Ainda assim, as mulheres marcadas pelo horror da ameaça de

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28 morte procuram sobreviver e dar continuidade a suas vidas e buscam força e coragem para romper com padrões familiares de violência.

Não é de se admirar que as agressões contra as mulheres são vistas na sociedade, quase sempre de forma naturalizada: presentes no cotidiano de muitos lares, as atribuições sociais de homens e mulheres são postas de forma diferenciada, em que aos homens é permitido o poder de decisão e, consequentemente, à mulher, a sujeição. Nesta relação, o agressor, geralmente, faz uso de formas violentas para alcançar e satisfazer seus objetivos, sentindo, muitas vezes, a “necessidade” de deixar marcas no corpo da mulher que mostram quem é o dono daquele corpo, porque é o “corpo marcado que determinará a imediata relação de poder” (FOUCAULT, 1993, p. 148).

A naturalização da violência favorece a invisibilidade das ações dos agressores, visto que muitos deles não reconhecem suas ações como crime e se referem às denúncias realizadas pelas suas companheiras como ato abusivo. Abaixo, apresentamos o depoimento de Pedro, que, detido, se sentia imensamente incompreendido:

Cheguei na delegacia e já fui mostrando a carteirinha do médico e o delegado não quis nem ver; pegou, mandou o policial pegar no meu braço e me jogou no ‘curralzinho’ e ela me deu as costas. Minha amiga, aí eu vi o negócio arrochar para o meu lado e a minha coluna doía muito, e lá estava tudo sujo. Eu fui obrigado a deitar no chão, eu estava ainda com roupa de dormir. Fiquei encolhido no chão [...] eu disse para ele: ‘Estou preso só porque eu discuti com a minha mulher; não sei o que eu posso fazer em relação a isso [...], eu não fiz nada de errado’.

A violência física e psicológica cometida foi de tal forma banalizada por Pedro, que ele não identificou as agressões como uma ação criminosa. Muito pelo contrário: sentiu-se imensamente injustiçado, pois considerava que seu problema de saúde era muito mais grave que o espancamento praticado contra a companheira.

Sair de uma situação de violência que durava anos a fio assemelha-se a lutar numa guerra e sair ilesa. As agressões físicas, morais e psicológicas levam as mulheres a chegar aos seus limites, e a maioria delas traz consigo medos, angústias, além de terem pré-disposição para desenvolver doenças mentais, as quais ainda são vistas com descaso e indiferença pela sociedade. As histórias têm suas particularidades, porém todas possuem o mesmo perfil: o poder dos homens em relação às mulheres. No caso de Bruna, 33 anos,

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29 que carrega no corpo cicatrizes e dores, em virtude da tentativa de homicídio que sofreu pelo ex-companheiro, por muita sorte está viva. Segundo ela, o motivo principal era o fato de ter começado a trabalhar numa lanchonete. Socorrida pelo próprio companheiro, que levou Bruna até à frente de um hospital, ela conseguiu sobreviver e, atualmente, trabalha como doméstica e cuida das duas filhas:

Ele planejou tudinho meticulosamente, tudo que ia fazer [...] eu entrei no carro e parecia que tudo estava normal, levou chocolate pra mim, caixa de bombom e eu nem acreditei porque ele nunca tinha levado nada. [...] mas logo percebi que tinha alguma coisa errada [...] aí eu senti que ia acontecer alguma coisa comigo, tentei abrir a porta do carro, mas estava trancada e eu comecei a gritar, mas não adiantou. Aí ele pegou e puxou a faca do banco do carro e nisso, lá dentro do carro, me deu sete facadas. Na hora eu achei que ia morrer e a única coisa que eu falei pra ele: ‘Por favor, cuide das minhas filhas, eu só te peço isso.’

2.2.1 Ciclo da violência contra as mulheres

As agressões e as ameaças contra as mulheres por seus companheiros ou ex-companheiros são contínuas; porém, no decorrer do tempo, passam a ficar cada vez mais graves e sérias. Elas não são um episódio, mas um processo, um ciclo contínuo que, sem uma oportunidade de interrupção, tende a permanecer alternando tensão, violência e pedido de desculpas. Mirtes, 40 anos, foi ameaçada de morte pelo companheiro e socorrida pela liderança religiosa da igreja que frequenta, mas ainda acredita que ele pode mudar:

Uma das qualidades que eu tenho é uma coisa muito boa, que é a de perdoar, eu perdoo fácil, eu perdoei meu marido, porque eu sei que ele precisa de ajuda. Eu tirei a queixa dele e conversei com as minhas filhas pra elas perdoar ele e falei que todo mundo merece perdão. Se a gente não perdoar aquele que nos ofende, nós também não merecemos perdão. A falta de perdão, ela prejudica mais a gente do que a própria pessoa.

Assim como Mirtes, muitas mulheres, acreditando que o agressor pode mudar de forma milagrosa, sem nenhuma intervenção socioeducativa, retomam a relação conflituosa ou nela permanecem. Este processo de idas e vindas é chamado de “ciclo da violência”. Este ciclo é apenas um padrão geral que, em cada caso, se manifestará de modo diferenciado, em que os próximos incidentes poderão ser ainda mais violentos e repetir-se com maior frequência e intensidade, terminando, muitas vezes, em assassinato. As mulheres sentem-se presas a essa relação de fases, pois, logo depois das agressões e das brigas, o companheiro se mostra amoroso, arrependido, com promessas de que nunca

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30 mais irá agredi-la; ele se desculpa com o intuito de que a mulher se sinta suficientemente forte para a manutenção da relação. Nesta ciranda, a mulher busca salvar a relação, acreditando no arrependimento do companheiro e desistindo de deixá-lo. Em pouco tempo, a relação volta a ficar tensa até o momento em que as agressões se reiniciam e, a cada dia, se tornam cada vez mais violentas.

O ciclo da violência é composto por três fases: tensão, explosão e lua de mel.

Fonte: BRASIL. Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional/ Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Brasília, 2003. p.58.

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31 3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE

VIOLÊNCIA

Os movimentos feministas e organismos internacionais vêm lutando para fazer valer os direitos de todas as pessoas, inclusive os direitos das mulheres. A Organização dos Estados Americanos – OEA, em 1994, afirmou que a violência contra as mulheres constitui violação dos direitos humanos das mulheres e estão pautados na eliminação de todas as formas de discriminação e violência praticadas contra elas.

Em 1948, a Organização das Nações Unidas aprovou a primeira “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, em que está estabelecido, em seu artigo 2º, que os direitos humanos são inalienáveis, universais:

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, nascimento, ou qualquer outra condição. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU, 1948).

Apesar de tais tratados registrarem a não discriminação e a igualdade entre homens e mulheres, a realidade não condiz com o que vemos, de modo que a prática evidencia a violação sistemática deste documento. Diante de tantas evidências e transgressões, surgiu a necessidade de se realizar conferências e convenções, de forma a reforçar o reconhecimento, a garantir e implantar os direitos das mulheres no plano sociojurídico nos Estados. Tais ferramentas são importantes na luta pela garantia dos direitos das mulheres, no combate ao preconceito e à discriminação.

Em se tratando de registros históricos, em 1945 já se estendia a participação das mulheres, principalmente na elaboração dos conteúdos da Carta das Nações Unidas, que afirmou a garantia dos Direitos Humanos baseados na igualdade entre homens e mulheres. No ano de 1975, houve a primeira conferência mundial sobre a situação jurídica e social da mulher, realizada no México e convocada pela Commission on the Status of Woman (CSW). A Organização das Nações Unidas (ONU) retirou em definitivo as questões de gênero do âmbito particular dos Estados e passou para a realidade internacional, de forma que os objetivos foram ampliados para a esfera global (ALMEIDA; BANDEIRA, 2015).

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32 A Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), incorporada à OEA como um organismo especializado de caráter técnico permanente, que tem como finalidade apoiar os Estados-membros em seus esforços para garantir o direito das mulheres e a igualdade de gênero, possui também uma importante função, que é “formular estratégias direcionadas a transformar os papéis e a relação entre as mulheres e homens nas esferas públicas e privadas” (ALMEIDA; BANDEIRA, 2015, p. 505). Neste sentido, a CIM, com a missão de estudar as formas e os meios para prevenir a violência contra a mulher, elaborou um texto que resultou em um projeto aprovado pelos parlamentares em 1994. Neste mesmo ano, na Assembleia Geral da OEA, em Belém do Pará, a CIM apresentou este projeto como Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra as Mulheres, a chamada “Convenção de Belém do Pará”, que define por si só e com nitidez, o que é considerado violência contra as mulheres e, pela primeira vez, foi estabelecido o direito de as mulheres viverem uma vida sem violência.

Não podemos deixar de considerar que, em Beijing (Pequim), já em 1995, foi realizado outro evento também de suma importância, que foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em que foram reconhecidos, definitivamente, os direitos humanos em sua Declaração e Plataforma de Ação.

A Convenção de Belém do Pará foi marcada por quatro premissas que fazem parte do texto inicial do Tratado Internacional que adotou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conforme foi mencionado acima. São elas:

‘A violência contra as mulheres constitui uma violação dos direitos humanos’; ‘A violência contra as mulheres é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.’; ‘A violência contra a mulher transcende todos os setores sociais’; ‘A eliminação da violência contra as mulheres é condição para o desenvolvimento igualitário’. (BANDEIRA;ALMEIDA, 2015).

A Convenção de Belém do Pará significou um grande avanço em relação à defesa dos direitos das mulheres, pois nela está estabelecido que “a violência contra as mulheres envolve qualquer ação ou conduta baseada em seu gênero, que lhe cause morte, dano ou

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33 sofrimento físico, sexual, psicológico, tanto na esfera privada como na esfera pública”5. Consequentemente, a definição de violência foi ampliada já que, anteriormente à convenção, o assunto era tratado somente com base na violência física, num viés totalmente descontextualizado e conservador. A partir de então, a violência passou a ser compreendida conforme a condição de gênero. Ao mesmo tempo, trata-se de um instrumento sociojurídico que se opõe à violência contra a mulher, além de permitir que a denúncia interna dos Estados seja deslocada para o plano internacional, conforme se sucedeu com o caso da Maria da Penha6. Como resultado de tais ações, em agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340, a chamada Lei Maria da Penha, que passou a ser um marco histórico no combate à violência contra as mulheres no Brasil.

4 LEI MARIA DA PENHA

Os movimentos feministas brasileiros vêm lutando com o objetivo de alcançar reformas políticas e jurídicas referentes à violência contra as mulheres. Neste sentido, vários avanços foram alcançados na esfera da justiça criminal, com a implementação de políticas públicas que atendem às necessidades emergentes das mulheres que estão em situação de violência doméstica. Uma das conquistas mais importantes foi a Lei Maria da Penha, pelo motivo de que “nesta lei é sistematizado um estatuto único das conquistas históricas do feminismo (...), que cria novas situações jurídicas que impõem mudanças” (CAMPOS; CARVALHO, 2013, p. 143). A Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica e familiar contra as mulheres, é fruto do engajamento do Estado brasileiro no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos das mulheres. A luta dos movimentos feministas por uma vida sem violência possibilitou a aprovação desta lei, que é uma conquista muito importante de exercício de uma cidadania ativa.

5 Esta e as demais premissas fazem parte do texto inicial do Tratado Internacional que adotou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994.

6 Em 1983, após ela ter voltado do hospital, o então marido de Maria da Penha atirou contra ela duas vezes

alegando que havia ocorrido um assalto em sua residência. Duas semanas depois ele eletrocutou a vítima enquanto ela tomava banho. Entre essa dupla tentativa de homicídio e a prisão de seu marido, passaram-se 19 anos e 6 meses, o que demonstra a morosidade da justiça brasileira nesse período. Diante disso, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima, formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) – órgão internacional responsável pelo arquivamento de comunicações decorrentes de violação desses acordos internacionais – levando à construção do Relatório 54 da OEA, em 2001, responsabilizando o Brasil pela negligência em relação à violência doméstica contra a mulher, apesar de reconhecer algumas mudanças estabelecidas pelo país de cunho insuficiente. (ALVES, Fabricio da Mota, 2006, p.1).

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34 Ao ser sancionada, a Lei Maria da Penha se tornou um instrumento fundamental para o combate à violência contra as mulheres, principalmente para os casos impunes. Ainda, em fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu que qualquer pessoa pode registrar formalmente uma denúncia de violência contra a mulher. Este é, portanto, mais um marco na redução da violência contra as mulheres.

A Lei Maria da Penha estabelece uma gama de indicações e decisões articuladas a serem tomadas para a efetivação do enfrentamento à violência doméstica e familiar, sendo uma de suas finalidades a legitimidade pública, segundo a qual o problema deixa de ser apenas da mulher que está em situação de violência doméstica, e passa a ser de toda a sociedade. Outro apontamento de suma importância que consta na referida lei, é a efetivação de ações articuladas da rede socioassistencial multidisciplinar, em que são envolvidas várias políticas públicas governamentais, magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e organizações da sociedade civil. Não temos dúvida que esta interconexão de saberes é ainda um desafio para os profissionais e para os órgãos que nela estão imbricados e ancorados; porém, não podemos negar que as verdadeiras transformações ocorrem nas ações pedagógicas multi e transdisciplinares.

Uma das grandes dificuldades na implantação da Lei Maria da Penha é a herança da formação patriarcal e conservadora dos agentes públicos e responsáveis pela sua execução, além da escassez de recursos públicos para a criação e ampliação de serviços voltados às mulheres em situação de violência doméstica. Para Bandeira e Almeida (2015), uma das grandes eficácias na Lei Maria da Penha é que ela está ancorada na capacidade de criar e mudar práticas jurídicas, à medida que elas interferem diretamente na postura de profissionais da área. É preciso uma reflexão crítica sobre posturas profissionais supostamente neutras, pois estas acabam por contribuir com a reprodução da moralidade e do patriarcalismo, mantendo a opressão contra as mulheres.

Em se tratando dos agressores, a maioria desconhece os objetivos e as estratégias da Lei Maria da Penha, e muitos se sentem injustiçados quando ela é aplicada eficazmente, como nos relata Fabrício, 44 anos, que está respondendo por três processos por ter agredido fisicamente a ex-companheira:

Para mim isso não vale nada, este é um artigo que para mim tem que rasgar. Tem mulheres que abusam da Lei Maria da Penha e colocam embaixo do tapete

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35 as agressões que ela faz. Aí pega um homem que teve uma legítima defesa contra ela, e aí como que fica?

Dos quatro agressores entrevistados apenas um deles ficou detido pela Lei Maria da Penha, embora todos tenham sido denunciados pelas companheiras e a dois deles foram aplicadas medidas protetivas.

4.1 Serviços especializados para os agressores

A Lei Maria da Penha, em seu artigo 35, previu a criação e promoção de centros de educação e reabilitação para os agressores. O objetivo do trabalho com os homens agressores tem como propósito ajudá-los a resolver conflitos de forma não violenta, através de mudanças de comportamentos para que agressões futuras e reincidências criminais sejam evitadas. É fundamental que todo agressor tenha a oportunidade de ser (re)educado e (res)socializado. Todavia, Martin Junior alerta que “é preciso muito cuidado quando da concepção desses espaços de reabilitação”, pois a eventual “patologização” do agressor desqualifica o caráter criminoso de sua conduta, “desterritorializando-a” do crime para “doença” (2011, p. 362).

Não há dúvida de que a responsabilidade referente às violências praticadas contra as mulheres é dos agressores, que deverão ser imputados criminalmente. Todavia, não é só isso uma vez que se trata de um fenômeno de ordem histórica, cultural e social. Por conseguinte, para que o enfrentamento da violência contra as mulheres seja eficaz, são necessárias articulações que envolvam: o Poder Público, o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e as ONGs, que, articulados, possam criar mecanismos que reprimam tais atos. A criação de serviços de execução dos trabalhos socioeducativos com os autores de violência contra as mulheres é de fundamental importância, pois são eles que, vinculados a outros órgãos, ajudarão a assegurar e a proteger as mulheres que estão em situação de violência doméstica, bem como oferecerão, através do trabalho técnico junto aos agressores, a oportunidade de rever suas práticas machistas e conservadoras e criar novas atitudes que valorizem o diálogo e o respeito entre os gêneros.

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36 O artigo 7º da Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) objetiva facilitar didaticamente sua aplicação à área do Direito (FEIX, 2011). Vale considerar que a violência contra as mulheres não ocorre isoladamente, mas de maneira concomitante, como quando a mulher sofre uma agressão física seguida de ameaça de morte. Por esse motivo, decorre a importância de destacar cada tipo de violência e suas definições. Baseadas nas desigualdades de gênero, seguem abaixo as formas de violência doméstica e familiar descritas na Lei Maria da Penha em seu artigo 7º:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

5 PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

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