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O direito humano fundamental à água no contexto da modernização agrícola cearense: violação e resistência na comunidade Boa EsperançaIracema

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

GERMANA NORONHA MOREIRA

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À ÁGUA NO CONTEXTO DA MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA CEARENSE: VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA NA

COMUNIDADE BOA ESPERANÇA/IRACEMA

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GERMANA NORONHA MOREIRA

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À ÁGUA NO CONTEXTO DA MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA CEARENSE: VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA NA

COMUNIDADE BOA ESPERANÇA/IRACEMA

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

Área de concentração: Direito Constitucional

Orientador: Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa

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Biblioteca Universitária

Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

M837d Moreira, Germana Noronha.

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À ÁGUA NO CONTEXTO DA MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA CEARENSE: VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA NA COMUNIDADE BOA

ESPERANÇA/IRACEMA / Germana Noronha Moreira. – 2017. 119 f. : il. color.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2017.

Orientação: Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa.

1. Direitos humanos. 2. Direitos fundamentais. 3. Direito humano fundamental à água. 4. Modernização agrícola do Ceará. 5. Movimentos sociais. I. Título.

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GERMANA NORONHA MOREIRA

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À ÁGUA NO CONTEXTO DA MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA CEARENSE: VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA NA

COMUNIDADE BOA ESPERANÇA/IRACEMA

Monografia submetida à Coordenação do Curso em Direito da Universidade do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Área de concentração: Direito Constitucional. Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Profa. Dra.Cynara Monteiro Mariano Universidade Federal do Ceará (UFC)

_______________________________________________ Mestrando Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho

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À comunidade Boa Esperança. Ao MAB.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Gustavo Raposo Feitosa, pela compreensão diante de tanta demora, de tantos percalços; pela credibilidade e apoio apesar de todos esses pesares que me fizeram acreditar no que eu estava duvidando, na minha capacidade de finalizar este trabalho.

Ao Prof. Ms. William Paiva Marques Júnior, pela gentileza tantas vezes em me ouvir e ajudar nos processos burocráticos de matrícula, se mostrando não só um exemplo de dedicação à Faculdade de Direito, mas aos discentes.

À Hymya, querida servidora das atividades complementares que se solidarizou todas as vezes que precisei dar uma pausa e novamente todas as vezes que resolvi tentar terminar este trabalho, minha eterna gratidão.

Ao Elvis e a Ingrid, pela colaboração na correção e normalização em tempo recorde mesmo com todas as vezes que não cumpri os prazos combinados; obrigada, muito mesmo.

À professora Cynara Monteiro Mariano por aceitar fazer parte da banca examinadora e pelas enormes contribuições posteriores.

Ao mestrando Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho, advogado popular admirado, por também compor a banca examinadora, contribuir e incentivas para eu ir além.

Ao professor Flávio Gonçalves, pela breve passagem no grupo de pesquisa GTEIA que foi fundamental para a minha formação acadêmica;

Ao CAJU, grupo de extensão universitária que permitiu ressignificar o direito e poder enfim acreditar que havia um lugar ali para mim.

Ao MAB, pelo tempo que pude colaborar e que colaborou para ampliar minha compreensão de mundo e de luta social.

À comunidade Boa Esperança/Iracema, sobretudo às mulheres e crianças da comunidade, pela acolhida, pelo compartilhamento de saberes, pela divisão do seu dia a dia, pela alegria na luta, por me fazer querer colaborar na construção de um mundo melhor, que os respeite em toda integralidade do que vocês são.

Aos meus sogros, pelo carinho e pelo apoio nos fins de semana que possibilitam o descanso e o trabalho.

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Às minhas primas-irmãs, Gabriela e Manuela, pelo apoio, pelos momentos de ajuda com Eduardo mesmo com suas rotinas corridas.

À Gabriela, pelo abstract, obrigada, prima-irmã. Vou entrar, sim, no inglês.

Às minhas grandes amigas, Elaine e Raiane, minhas flores, minhas hermanas, com quem tenho dividido há tempos os momentos de angústia desse fazer e de toda a vida.

À Sharon, pelas dicas, pela ficha de pesquisa que me ajudou muito, pela prontidão, por tudo. Aos meus tios Antônio Ilo, Germano e Overland, por colaborarem sobremaneira plantando em mim a semente da criticidade e da necessidade de luta por um mundo mais justo.

Ao professor de geografia Hélio Herbster, que ainda na sexta série me mostrou um mundo permeado de desigualdades e injustiças que precisa ser transformado, não só nos livros distantes, mas bem ali, na Chapada do Apodi...

À tia Mirian (in memoriam) pelo apoio vindo daí de onde você está, pela força que você

revelou ter, pelo crescimento pessoal que me serve de exemplo para ir adiante, sempre; pela proteção e intervenção pela saúde de mainha.

À minha avó, Mundica, pela alegria, pelo apoio, pelo amor, pelas recomendações de que estudássemos.

Ao meu companheiro Jackson, meu amor, meu amigo, meu colega, pela colaboração em todos os aspectos possíveis: na crença em mim quando eu duvidava; neste trabalho por meio das discussões frutíferas, das referências e das revisões; na divisão do cuidado com o nosso pequeno; nos sonhos conjuntos de dias melhores não só para nossa família, mas para todo o povo brasileiro; nos pequenos momentos cotidianos de alegria e descontração.

Ao meu pequeno Eduardo, que, ao chegar, adiou um pouco a conclusão deste trabalho, mas também o resignificou. Obrigada, filho, por todo amor, carinho, alegria que jamais pensei que pudesse sentir; obrigada, filho, por colaborar e ficar na creche tanto tempo, mais do que eu gostaria que fosse preciso.

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NA BEIRA DO RIO

Eu vi uma mulher e uma criança na beira do rio A criança brincava, enquanto a mãe lavava a roupa Mas chegaram alguns homens com roupas diferentes Diferentes daquelas que a mulher lavava

E com algo diferente daquilo que a criança brincava Cercaram o rio e ele encheu

E hoje a mulher não pode mais lavar a roupa ali A criança não pode mais brincar na beira do rio Pois o rio não é mais deles

As roupas já não são mais molhadas com água e sim com lágrimas Na mão da criança já não mais o brinquedo

Na boca não mais o canto Nos olhos não mais o brilho Mudaram os cantos

Mudaram as palavras Agora são cantos de justiça Palavras de ordem

Nas mãos há ferramentas pronta pra serem usadas E a bandeira que se choca contra o vento

E até mesmo o vento grita

E às vezes o vento quer fazer justiça por si mesmo Pois arranca as bandeiras

E as leva contra os malfeitores

A chuva chora e enche ainda mais o lago da morte

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RESUMO

O presente trabalho busca fazer um exame da situação cotidiana da Comunidade de Boa Esperança/Iracema-Ceará dois anos após a remoção para a construção da barragem Figueiredo, com escopo de reconhecer se há em curso uma violação do direito humano fundamental à água e de que forma a comunidade vem resistindo a esse processo por meio da sua organização no Movimento dos(as) Atingidos(as) por Barragens. Objetiva-se ainda, ao pesquisar essa realidade particular, inseri-la num cenário global de mercantilização da água a partir do processo de modernização agrícola e averiguar a relação desse processo com a crise hídrica, que atinge sobremaneira as camadas populares mais pobres, com destaque para as classes trabalhadoras dos países de economia periférica. A pesquisa, de cunho qualitativo, é embasada pelo estudo da teoria dos direitos fundamentais em Sarlet e Canotilho, assim como autores de outras ciências, de forma a buscar uma leitura transdisciplinar da realidade. Aborda-se o tema segundo o raciocínio da dialética dos contrários, estabelecendo a leitura crítica do fenômeno jurídico-sociológico por meio da análise de dados primários retirados da pesquisa de campo – entrevistas, visitas à comunidade, observação participante no cotidiano – e da pesquisa legislativa e processual – normas internacionais e nacionais que disciplinam o direito humano fundamental à água, documentos jurídicos referentes ao caso da comunidade, dentre outros – como também por meio de dados secundários, a partir dos referenciais teóricos. Conclui-se que a violação do direito fundamental à água em curso na comunidade faz parte da violação sistemática de uma série de outros direitos pelos quais as comunidades do Ceará vêm passando a partir da instauração de um modelo excludente e opressor de modernização agrícola, que insere o estado cearense na reprodução mundializada do capital e de mercantilização da água. Afirma-se ainda o papel dos direitos fundamentais enquanto legitimadores das formas de resistência e, dialeticamente, da luta organizada em movimentos sociais populares como forma possível de concretizar os direitos fundamentais a partir da transformação/superação da lógica do sistema capitalista.

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ABSTRACT

The aim of the present work is to analyze the daily situation of the community of Boa Esperança / Iracema - Ceará two years after its removal for the construction of the Figueiredo dam with the purpose of recognizing whether there is violation of the fundamental human right to water and how the community has withstood this process through its organization in the Brazilian Movement of Dam-Affected People (MAB).It also intends, by investigating this

reality, to insert it in the global scenario of water commodificationthat started with the process of agricultural modernization and to investigate the relationship between this process and the water crisis, which affects especially the poor, particularly the working classes of the countries of peripheral economy.The qualitative research is based on the study of the fundamental rights theory in Sarlet and Canotilho, in addition to authors from other sciences, in order to seek a transdisciplinary reading of reality. The subject is approached according to the reasoning of thedialecticof contraries, establishing a critical reading of the juridical and

sociological phenomenon through the analysis of primary data taken from field research– interviews, visits to the community, participative observationof its daily life - and from legislative and procedural research- international and national standardsthat govern the fundamental human right to water, legal documents concerning the case of the community, among others - as well as the secondary data, from the theoretical references.It concludesthat the violation of the fundamental right to water in the community is part of the systematic violation of a series of other rights which the communities of Ceará have been suffering since the establishment of an oppressive and excluding model of agricultural modernization, which inserts the state of Ceará in the globalized reproduction of capital and of commodification of water.It also reiterates the role of the fundamental rights as legitimating forms of resistance and, dialectically, of the organized struggle in popular movements as the possible way of realizing fundamental rights by the transformation/overcoming of the logic of the capitalist system.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Reunião de Mulheres e preparação para oficina de arpilleria Figura 2 – Comunidade Boa Esperança/Iracema vista da entrada

Figura 3 – O açude a 800 metros das casas

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 13

2 O DIREITO À ÁGUA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA ... 17

2.1 A evolução do direito a água: breve resgate histórico da disciplina ... 18

2.2 Os Movimentos por Justiça Ambiental, Hídrica e Social ... 22

2.3 Encontros Internacionais e a água ... 30

3 ÁGUA: UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL ... 36

3.1 O direito à água no século XXI: O modelo latino-americano ... 37

3.2 Normas da ONU: a água como direito humano ... 42

3.3 O direito fundamental à água no Brasil ... 50

3.4 Governança democrática: uma nuance do direito humano fundamental à água ... 57

4 O CEARÁ E A MODERNIZAÇÃO AGROPECUÁRIA: A PERIFERIA DA PERIFERIA NO PROCESSO DE VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA PELA ÁGUA... 62

4.1. A água e as transformações econômicas e sociais do campo no Ceará ... 63

4.1.1 A Revolução Verde e a divisão internacional do trabalho: os impactos na periferia da periferia ... 64

4.1.2. Inserção econômica pela da ação estatal: o Ceará no contexto brasileiro e nordestino ... 67

4.1.3 As grandes obras de infraestrutura no campo: os perímetros e as barragens ... 69

4.2 Barragem Figueiredo e a comunidade Boa Esperança: violação e luta ... 74

4.2.1 Coleta de dados ... 75

4.2.2 A Barragem do Figueiredo: águas para quem? ... 77

4.2.3 A comunidade Boa Esperança/Iracema: violação, resistência e luta ... 81

4.3 E o futuro? A organização popular quanto elemento concretizador dos direitos humanos fundamentais ... 91

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 97

REFERÊNCIAS ... 101

ANEXOS ... 111

ANEXO A – Transcrição das entrevistas ... 111

ENTREVISTA 1 ... 111

ENTREVISTA 2 ... 113

ENTREVISTA 3 ... 117

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1 INTRODUÇÃO

A partir da década de 1980, diversas regiões do Ceará vêm passando por um processo de modernização agropecuária que insere o estado dentro do contexto de reprodução ampliada do capital mundial de uma forma como nunca se deu anteriormente. Essa modernização, encampada pelo agrohidronegócio por intermédio de grandes empresas e com o apoio do Estado, vem provocando intensas transformações no interior do Ceará no âmbito de estrutura física, econômica e social (ELIAS, 2002; THOMAZ JR, 2010).

É nesse contexto que se insere a construção da barragem Figueiredo, no município de Alto Santo, abrangendo ainda áreas de Iracema e Potiretama, na região do Vale do Jaguaribe, especificamente na bacia do Médio Jaguaribe. Diversas comunidades foram removidas para que a obra fosse realizada. Dentre elas, a comunidade Boa Esperança/Iracema, que dois anos após a remoção continuava sem acesso permanente e direto a água para consumo e trabalho (a não ser por abastecimento de carro pipa e de um açude que fica distante 800 metros, quando este tem água), sem terra para produção, dentre outros meios de vida que lhes foram negados. A análise deste trabalho recai sobre o impacto causado pela possível violação do direito humano fundamental à água nesta comunidade como situação emblemática que perpassa a realidade de muitas comunidades no Brasil, principalmente no Nordeste, e, com outras características locais, situação semelhante a de outros países periféricos1. Em razão da

complexidade do tema, que perpassa a histórica, a economia, a geografia, dentre outras ciências, busca-se referenciais teóricos diversificados, perseguindo a construção de uma pesquisa transdisciplinar.

Quanto aos demais aspectos metodológicos, utiliza-se da pesquisa qualitativa, que é menos estruturada e permite informações mais subjetivas, amplas e detalhadas do que os métodos quantitativos (DIAS, 2000), mostrando-se mais adequada à compreensão crítica do fenômeno segundo a vertente jurídico-sociológica e por meio do raciocínio dialético (GUSTIN, 2010). Foi realizada pesquisa bibliográfica, assim como consulta legislativa e pesquisa de campo.

No primeiro capítulo, discorre-se sobre as percepções que a humanidade construiu ao longo da história acerca da água e a tendência a partir do século XX a predominar a percepção econômica dentro de uma lógica de mercado, acentuando-se da década de 1980 para cá. Esse

1A terminologia utilizada guarda esteio nos teóricos marxistas da dependência, diferenciando países de economia

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se constitui enquanto fator preponderante para o surgimento de uma crise hídrica que tem colocado esse recurso sob foco no cenário mundial como um bem cuja disciplina jurídica está em disputa, em torno da qual se organizam diversos atores sociais, influindo no caminho percorrido pelo direito à água.

O direito humano à água está passando por um processo de redefinição. Os movimentos sociais, a pressão de alguns Estados, dentre outros atores sociais, tem agido em rede a partir de lutas locais e forçado o avanço e a ampliação do direito à água, com o reconhecimento pela ONU do direito humano à água.Para além dos limites do antropocentrismo jurídico, surge ainda a discussão de um novo paradigma de direito ao meio ambiente e os recursos que o compõe, seguindo os exemplos latino-americanos do Equador e da Bolívia que declararam a água como um direito da natureza, mais abrangente e não contraditória com a definição de direito humano (WOLKMER, A. C.; AUGUSTIN, S.; WOLKMER, M. F. S, 2012). Isso ocorre como resposta ao processo de transformação da água em mercadoria que vem ocorrendo e dificultando o acesso das populações mais pobres.

Embora haja boas perspectivas de ampliação do reconhecimento do direito ao acesso à água, essa redefinição ainda está em disputa, com poderosos atores sociais (grandes empresas que atuam no gerenciamento e na transformação dos recursos hídricos em mercadoria, o Banco Mundial, países desenvolvidos como Estados Unidos dentre outros) se mobilizando e criando polarizações no sentido de reduzir e de não reconhecer o direito humano fundamental à água e sua obrigatoriedade. Busca-se fazer uma breve digressão sobre os principais encontros internacionais, suas consequências e como se deu/está se dando essa polarização nos espaços políticos institucionais e sua influência sobre a normatização e efetivação do direito humano à água.

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Reflete-se também acerca da governança hídrica como um elemento, uma nuance que compõe o direito fundamental à água a partir de suas potencialidades e limites dentro da lógica econômica posta. Destaca-se sua importância como essencial para que haja efetividade e supressão das violações de direito e desigualdade no acesso à água, que terminam por vulnerabilizar as populações mais pobres e causar a violação de outros direitos, com agravamento das desigualdades sociais.

Contextualizando-se a violação do direito humano fundamental à água dentro do processo de modernização agropecuária no Ceará, busca-se compreender no terceiro capítulo como esse processo relaciona características locais tradicionais de exploração e negação de direitos do povo camponês com a reprodução mundial do capital e, dialeticamente, a relação entre essa reprodução e as novas formas de exploração e violações de direitos encontradas nas regiões que abrigam esse processo de modernização agropecuária recente.

Utiliza-se categorias de análises marxista para compreender o fenômeno da reprodução do capital e seus impactos, principalmente sobre a classe trabalhadora. A categoria classe é de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho, assim como a compreensão da superestrutura e da base econômica que dão sustentação à sociedade capitalista.

Dessa forma, analisa-se a retórica jurídica como parte da superestrutura do capitalismo, lançando o olhar sobre o discurso do “desenvolvimento” promovido por organizações internacionais oriundas dos países de economia central como uma forma de exercer controle sobre a pobreza e invisibilizar as desigualdades sociais, ao buscar estabelecer o mínimo necessário para o indivíduo em suas necessidades diárias de produção e reprodução como o possível e o suficiente (CAMPOS, 2011).

Levanta-se então a hipótese que na modernização agropecuária inserida no processo de reprodução mundial do capital pela qual o Ceará passa atualmente, as violações dos direitos fundamentais ocorrem tanto pela ação/omissão do Estado quanto de empresas, engendradas no processo mais amplo de exploração social necessária para a reprodução do capital, que se mantém graças à infraestrutura – produção material – e à superestrutura – produção ideológica, da qual o Direito faz parte.

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próprio sistema, que podem e são utilizadas pelos movimentos e organizações sociais de resistência como instrumentos de transformação social e superação do próprio sistema capitalista. A luta pelo acesso à água como também pelo controle social sobre esse bem, necessário para a produção e reprodução da vida da comunidade, se torna então realidade constante que se repete em diversas outras comunidades impactadas pelas grandes obras advindas com a modernização agropecuária cearense.

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2 O DIREITO À ÁGUA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Até por volta da década de 1960, a água era encarada pela humanidade como um bem disponível sem limitação, razão pela qual seu uso era indiscriminado e havia pouca regulamentação jurídica em termos de necessidade de garanti-la para todos e para as gerações futuras. No entanto, é antiga a tentativa de controle do acesso à água em diversas culturas, explicitando seu conteúdo político: desde os tempos remotos, em que o homem se tornou sedentário e passou a possuir meios privados de produção, o controle das fontes hídricas foi exercido, demonstrando ser esse recurso um indispensável meio de produção e reprodução da vida humana, uma consequência da sua essencialidade para a própria natureza e todas as formas de vida. Em alguns locais de mais escassez hídrica, controlar as fontes de água era/é uma das maiores, se não a maior, fonte de poder político e controle social. (BARLOW, 2015; CORTE, 2015)

Este capítulo busca fazer um breve apontamento do caminho percorrido pelo direito à água a partir da década de 1960, quando se inicia o processo de evidenciação de uma crise ambiental e hídrica, causada pela ação humana, até os dias atuais, quando a crise hídrica já acontece em diversos locais e o processo de mercantilização dos recursos ambientais, com destaque para água, se intensifica. Para isso, destaca-se os principais atores políticos e os marcos da disputa em torno do conteúdo das normas e políticas da água.

Utiliza-se neste trabalho os termos água e recursos hídricos como sinônimos, embora se tenha conhecimento que grande parte dos estudiosos da água fazem a distinção. A partir de Fracalanza (2005), entende-se que recursos hídricos é um termo mais estrito, que se refere à água na sua dimensão de meio de produção, enquanto termo água engloba todas as dimensões. No entanto, compreende-se neste trabalho que o uso da água, ou dos recursos hídricos, implica uma relação imbricada de todas as suas dimensões, e tentar isolar uma é dotar-lhe de uma predominância em detrimento das demais, que influenciará o controle e uso que é feito sobre ela a partir da conceituação. Assim, por exemplo, não seriam reconhecidos e contemplados os usos culturais e religiosos da água numa política nacional de recursos hídricos, se se assumir a expressão “recursos hídricos” somente enquanto dimensão econômica da água, o que nos parece ir de encontro aos direitos fundamentais culturais e a visão global integrativa das dimensões da água que, acredita-se, deve prevalecer.

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econômico que ocorre a partir da expansão da industrialização e da globalização capitalistas ao longo do século XX, tendo como uma das consequências a crise hídrica que se inicia e ameaça se agravar. (BALDIM, 2013).

2.1 A evolução do direito a água: breve resgate histórico da disciplina

A água é objeto de instrumentos jurídicos como forma de controle social há muito tempo na história da humanidade, principalmente em lugares onde é mais escassa. Porém, para além da percepção do conteúdo político e econômico da água, a humanidade cultivou ao longo de sua história múltiplas percepções da água, influências importantes que regem a forma como cada cultura se relacionou/relaciona com esse recurso hídrico. (BARLOW, 2015)

Muitas culturas se desenvolveram e se expandiram em torno de leitos de água, de forma que a vida religiosa e cultural, assim como a econômica, se relaciona de forma intensa e indissociável da água: a água é vida, meio de produção, meio de transporte, símbolo religioso, etc. O Rio Nilo, no Egito; o rio Amarelo, na China; o rio Ganges, na Índia, o Rio Amazonas, no Brasil; são alguns exemplos de berços de importantes culturas. Outras culturas também se organizaram/organizam em torno da busca e da necessidade de racionar água, que se torna então um bem precioso e um símbolo de reificação a ser zelado, estimulando-se assim o desenvolvimento de técnicas de armazenamento e economia desse bem. É o caso das tradições das civilizações andinas que aprenderam a perfurar poços nas regiões semidesérticas (MOREIRA, FALEIROS, 2013).

Essa herança da estreita relação com a água enquanto elemento de múltiplas percepções que ultrapassa sua valorização como meio de produção (CORTE, 2015) perdura ainda hoje, embora de forma mitigada, não só nos grupos tradicionais de grandes culturas, mas também em pequenos agrupamentos que desenvolveram seu modo de vida, sua vida cultural, seu lazer, sua religiosidade, suas crenças, em torno de rios, riachos, lagos, mar, entre outras fontes de água, e deles tiram não só parte dos meios de vida, como a própria noção de ser e de pertencimento ao mundo enquanto sujeitos.

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percepção da água como bem agregador de valor econômico2 em detrimento das demais

percepções desenvolvidas por milênios nas histórias das civilizações humanas. Ao longo do desenvolvimento do capitalismo, a lógica da acumulação baseada na exploração do trabalho, na necessidade de aumento do consumo, na expansão para outros continentes com a exploração das colônias, globaliza não só a economia, como também a predominância da visão restrita da água enquanto bem de valor econômico. (FRACALANZA, 2005)

O estreitamento das percepções humanas sobre a água acontece em escala global à medida que o capitalismo se expande, com destaque para o século XX, mais especificamente em suas décadas finais, quando este recurso ambiental passa a meio de produção/mercadoria, caracterizado pela monetarização e privatização, de uma forma intensa. Como afirma Ruscheinsky (2004, p. 7), esse “movimento sem volta de intenso uso da água esvazia de seu conteúdo a mística original da água e, no entanto, ressurge revestindo-se em mercadoria ou reembalada como espetáculo (exemplo, turismo)”.

Partindo-se do referencial de valor de troca e de valor de uso (MARX, 2013), observa-se nesobserva-se processo de mercantilização da água a predominância de observa-seu valor de troca sobre observa-seu valor de uso, como ocorre a outros recursos ambientais dentro do sistema capitalista (Andrioli, 2008; Grossi, 2009). Afirma Andrioli (2008, p. 2):

Não é o valor de uso ou a utilidade de um produto ou serviço que tem prioridade e sim seu valor de troca, como aspecto formal e quantitativo. A mercadoria precisa ser comercializada o mais rápido possível para concretizar o processo de geração de mais-valia e lucro nela existente. Não são as necessidades, mas a capacidade de pagamento que decide sobre o acesso a produtos, serviços e meios de produção.

Nesse contexto, a água é vista como uma necessidade humana básica3 que se busca

garantir para manter a força de trabalho que necessita dela para sobreviver, dentro dos ditames da ordem capitalista de controle sobre os bens da natureza necessários à produção. Em outras palavras, declara Grossi (2009, p.14) que “o capitalismo se afirma e se auto-realiza através da subordinação das necessidades humanas às necessidades de reprodução do capital”. Não há nesse processo a preocupação com a economia do recurso, com a garantia de sua quantidade e

2Para efeito de esclarecimento, compreende-se que a água sempre foi um bem dotado de valor econômico para a

humanidade, na esteia do sentido etimológico de “economia” enquanto administração do lar. Em outras palavras, a água sempre foi fundamental para os processos produtivos que garantiam a produção e reprodução da vida humana. O que se destaca neste trecho é a prevalência desta percepção sobre as demais percepções.

3Há uma diferenciação no estudo do direito humano à água entre direito humano e necessidade básica, que é

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qualidade para uma vida digna e justa, com a preservação da relação dos sujeitos/comunidades com os recursos hídricos dos quais estão próximos, e sim com garantia da utilização deste como bem capaz de produzir valor, a serviço da acumulação capitalista (MARX, 2013; HARVEY, 2016).

Deixa-se claro que esse processo de mercantilização da água não ocorreu e não ocorre ao mesmo tempo em todos os lugares do planeta, ainda há lugares onde o acesso à água ocorre de maneira mais livre, menos sujeita aos ditames do capital, e onde se continua a haver outros valores e outras percepções para a água além da sua dimensão econômica. O que se busca aqui é descrever brevemente o processo de redução da percepção da água e sua mercantilização que foi e é ainda uma tendência mundial e como isso refletiu/reflete na concepção e disciplina jurídica desse bem.

Assim, é símbolo do processo de mercantilização/privatização dos recursos ambientais, com destaque para os recursos hídricos, o Consenso de Washington, ocorrido em 1989 entre organismos financeiros internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional), o Instituto Internacional de Economia de Washington e alguns países de economia central (como Estados Unidos) e outros de economia periférica da América Latina. Nesse encontro, cujo objetivo era se discutir os problemas econômicos que assolavam a América Latina, lançaram-se as bases do Neoliberalismo enquanto política econômica para os países em desenvolvimento (DOS SANTOS, 2004), primando pela privatização da gestão dos recursos hídricos e demais serviços públicos como forma de sair da crise. Havia uma idéia de que os países não tinham condições nem meios para financiar e gerir as demandas, colocando em risco os recursos ambientais e afetando a qualidade de serviços, que poderia ser melhorada com investimentos da iniciativa privada e empréstimos que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional poderiam fazer, desde que a privatização e a lei de mercado, sem intervenção estatal, fossem a norma dominante (DOS SANTOS, 2004; BALDIM,2013).

Também se destaca enquanto agente de estimulação do processo de mercantilização dos recursos ambientais o papel exercido pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que em seu encontro informalmente batizado de “Rodada do Desenvolvimento” inclui no Acordo Geral sobre Comércio de Serviços a pauta para negociações de liberalização progressiva dos serviços ambientais (BRZEZINSKI, 2006).

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mercado a gestão destes recursos. Exemplos da manifestação dessa política aconteceram/acontecem em todo o mundo, dentre os quais cita-se a privatização dos sistemas de abastecimento de Paris e outras cidades da França (que hoje já re-municipalizaram o serviço); a tentativa de exportar água dos Grandes Lagos do Canadá para os Estados Unidos; as licenças emitidas por países para empresas utilizarem seus recursos hídricos que foram/estão sendo vendidas no livre mercado como qualquer outra mercadoria, causando na Austrália uma bolha inflacionária que quebrou pequenos produtores; o crescimento exponencial de água engarrafada, dentre outros muitos exemplos possíveis (SODRÉ, 2017) .

A crítica da mercantilização da água no esteio da teoria da escassez como a única forma eficaz de gestão dos recursos hídricos encontra embasamento nas análises sociológicas de Polanyi (1980), que, analisando sociedades pré-capitalistas, verifica que outras formas de gestão de recursos escassos são amplamente utilizadas e desmistifica a valoração econômica enquanto primazia para a gestão dos meios de produção e recursos ambientais (VINHA, 2001; SANTOS, 2004). No mesmo sentido vai à análise de Irigaray (2003) e Brzezinski (2006), que sustentam o caráter de escolha desta solução segundo uma opção da ideologia capitalista de reprodução do capital, sem sustentação em análises científicas da realidade. Este trabalho filia-se a este entendimento, principalmente diante da análise dos impactos ambientais e sociais que a gestão privada e a apropriação dos recursos ambientais vêm causando, indo na contramão do que buscam afirmar os que defendem a mercantilização a partir da valoração econômico-monetária como soluções.

O capitalismo quanto modo de produção não comporta preocupações com o meio ambiente, todavia a sociedade civil é mais complexa e não representa a máxima expressão deste, sendo ela permeada de contradições. Por conta destas, emergem no seio da sociedade processos políticos que colocam em xeque a forma de reprodução do capital (IASI, 2007). Dentre esses processos, ganha destaque a desmistificação da infinitude dos recursos ambientais por volta da década de 1960, quando a ciência passa a se ocupar em estudar mais sistematicamente e a denunciar as situações de agressão da natureza e o perigo para a própria vida humana da escassez dos recursos ambientais, dentre os quais, os recursos hídricos. A mobilização, denúncia e luta em torno dessas causas são fundamentais para a quebra do paradigma de produção a todo custo (CORTE, 2015) no âmbito do discurso político, lançando as bases para os discursos de sustentabilidade (COSTA LIMA, 2003).

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direitos para toda a humanidade em âmbito internacional, todavia sem grande intervenção garantista estatal nas relações econômico-sociais (BONAVIDES, 2010) – era um cenário político favorável para o surgimento de denúncias da situação ambiental e da movimentação política e social que se seguiu. Assim, as preocupações ambientais e humanas com o acesso à água, nesse contexto político e social, não puderam mais ser completamente negligenciadas pelos Organismos Internacionais, pelos Estados, pelas empresas e pelos demais atores sociais. Inicia-se então, paralelamente ao processo de mercantilização da água, uma organização em torno do tema “água” que tem gerado movimentações políticas, disputa de interesses, criação de discursos retóricos em todo o mundo, espraiando-se sobre a disciplina jurídica dos recursos hídricos. Nesse cenário de certeza de escassez de água potável que se redesenha aos poucos da década de 1960 para cá e que é agravado pelo aumento populacional, é consenso que se inicia uma crise hídrica e que é necessário agir para controlá-la, sendo a água um dos recursos em torno do qual se gerará mais conflitos e debates nas próximas décadas (CORTE, 2015).

No tópico seguinte faz-se uma exposição sintética dos principais movimentos sociais que estão se mobilizando em torno da luta pelo direito à água e como essa luta vem impulsionando mudanças jurídicas e políticas no cenário global e no Brasil, influenciando mudanças constitucionais, resoluções internacionais, mudanças políticas de postura de países, dentre outras transformações positivas que dão esperança de uma saída justa para a crise hídrica.

2.2 Os Movimentos por Justiça Ambiental, Hídrica e Social

Partindo da compreensão do conceito de movimento social de forma ampla, como “gênero” do qual os movimentos sociais, ambientais e de justiça hídrica fazem parte, busca-se aqui fazer uma delineação do papel fundamental desses movimentos para o surgimento das discussões sobre a necessidade de preservar o bem água, posteriormente sobre justiça hídrica e governança democrática, que impulsionaram/impulsionam os avanços do reconhecimento do direito humano à água e, ver-se-á mais adiante, do direito da natureza à água no contexto dos países latino-americanos, bem como a sua concretização.

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movimentos contribuíram/contribuem e quais são essas contribuições na luta pela afirmação do direito à água, sem esmiuçar detalhadamente a natureza, os objetivos, as crenças, as subdivisões e formas de luta de cada movimento.

Nessa senda, movimentos sociais são entendidos como “expressões de poder da sociedade civil, e sua existência, independente do tipo de suas demandas, sempre se desenvolve num contexto de correlação de força social". (GOHN, 2002, p. 251 apud CORTE,

2015, p.83).

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, por volta da década de 1950, começa a tomar corpo os movimentos ambientalistas entre a massa da população, principalmente de classe média dos países desenvolvidos. Até então, as preocupações ambientais estavam restritas a pequenos grupos das elites. Iniciando-se em movimentos locais e regionais, aos poucos toma forma de movimento global. Nesse início, os movimentos se caracterizam essencialmente pelas idéias preservacionistas, passando posteriormente, na década de 1960, para movimentos de recusa ao modo de vida consumista, estando nesse bojo os movimentos antinucleares,

hippies, pacifistas, dentre outros (CORTE, 2015).

Foram marcos importantes a publicação dos livros Silent Spring (Primavera

Silenciosa), da bióloga norte-americana Rachel Carson, em 1962, e, posteriormente, em 1972,

The Limits to Growth (Limites do Crescimento), coordenado por Dennis Meadows. (CORTE,

2015). Ambos tratavam da temática ambiental e dos riscos da industrialização crescente e foram fundamentais para criar a movimentação que realizou a Conferência de Estocolmo, em 1972.

Menciona-se que a Conferência de Estocolmo foi o acontecimento isolado que mais influenciou o reconhecimento do movimento ambientalista em nível internacional; assim, esse deixou de ser tratado, apenas, como marginal ou acadêmico, passando a ser inserido na esfera pública. Foi a partir dela que o meio ambiente integrou, permanentemente, a agenda de preocupações mundiais, pois seu status foi elevado a

de direito humano-fundamental e, também, foi legitimado como necessário para a efetividade de outros direitos da pessoa humana (CORTE, 2015, p. 97).

Os movimentos ambientais, ou ativismo ambiental, da década de 1950 para cá, se multiplicaram, possuindo caráter, valores, objetivos, formas de comunicação e de ação diversas, desde ações diretas ilegais a movimentos institucionalizados em ONGS. O que se observa é que são movimentos locais que hoje se comunicam a nível global, e ainda possuem um papel significativo de conscientização ambiental da população e de pressão política.

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numa localização próxima a rede de abastecimento de água de um bairro pobre e preponderantemente negro. Os movimentos de racismo ambiental surgem e abrem espaço para os movimentos de justiça ambiental que buscam dar visibilidade à inter-relação renda e raça (posteriormente gênero também passou a ser colocado como fator) como fator preponderante para o aumento de risco ambiental. Em outubro de 1991 ocorre a I Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor, em Washington (EUA), que afirma 17 princípios da Justiça Ambiental, marcos até hoje de diversos movimentos sociais (conceito amplo), pois incorporou em seu conteúdo para além do antropocentrismo e foi referência para documentos jurídicos que vieram depois, estabelecendo a justiça ambiental como fator a ser levado em conta na tomada de decisões (ACSELRAD, 2004; CORTE, 2015).

O movimento por Justiça Ambiental tem alcançado outros países, principalmente países em desenvolvimento, nas últimas décadas, na esteia da transposição de riscos ambientais. Para Acselrad (2004, p. 11):

A força simbólica do movimento de justiça ambiental decorreu de sua capacidade de: a) estender a matriz dos direitos civis ao campo do meio ambiente, fundando a

noção de “justiça ambiental” como alternativa à oposição Homem – Natureza; b) politizar, nacionalizar e unificar uma multiplicidade de embates localizados; c)

elaborar apropriadamente uma “classificação” dos grupos sociais compatível com a

posição diferencial dos indivíduos no espaço social (ACSELRAD, 2004, p. 11).

A partir dos movimentos ambientalistas de modernização ecológica e das denúncias de injustiça ambiental, surge a semente do que será a partir da década de 1980 o discurso do desenvolvimento sustentável, que tem em seu embrião o ecodesenvolvimento e tem sua designação como tal atrelada ao documento “Nosso Futuro Comum” (também conhecido como Relatório Brundtland), publicado em 1987, pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD). Salienta-se que esse diploma foi resultado das discussões ocorridas na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (1972) em Estocolmo, bem como da criação, em 1983, da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nele, o desenvolvimento sustentável é subscrito como um princípio, nos seguintes termos: “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades” (CORTE, 2015, p. 98).

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gerar simpatia diante da superação que está em curso do paradigma desenvolvimentista, buscando fazer crer na possibilidade de crescimento econômico, justiça social e preservação ambiental como possíveis dentro dos moldes capitalistas atuais, sem mudar o modo de produção, desde que haja a colaboração de todos; seria a “humanização” do capitalismo, num discurso retórico que busca manter a realidade tal como está. Hoje, os movimentos sociais e ambientais têm uma maior criticidade quanto à utilização do termo por compreender que mudanças só serão geradas com transformações estruturais na lógica de funcionamento capitalista. (CAVALCANTI, 1994; COSTA LIMA, 2003; ACSERALD, 2004).

No que diz respeito especificamente à luta pela água, se inicialmente os movimentos ambientais se concentravam na busca pela conservação e não poluição dos recursos hídricos, por volta da década de 1990 toma corpo um movimento, institucional e não institucional, que se preocupa mais com a quantidade desse recurso disponível para as gerações futuras. Já a origem do movimento por justiça hídrica é diverso. Ele ocorre a partir de lutas locais pelo acesso a água, que foram aumentando e tomando corpo, até desembocar no surgimento do Movimento Global pela Justiça na Água como uma "uma resistência feroz ao controle corporativo da água [...]" (BARLOW, 2009, p. 110 apud CORTE, 2015, p. 132), decorrente da

forma de organização político-econômica que tem cada vez mais levado à mercantilização dos recursos naturais, ocasionando disputas e lutas locais pelo controle do recurso, que, aos poucos, toma a forma global diante do valor do recurso água para a reprodução do capital, seja na produção de bens (indústria e agricultura) ou in natura (mercado de água,

commodities, gestão privada da água, etc.). (CORTE, 2015)

Assim, em todos os continentes é possível identificar nas últimas décadas fortes lutas locais pela justiça hídrica, pelo controle popular dos recursos hídricos, contra a privatização da gestão dos recursos hídricos e da própria água. Desde 2002, com a onda de privatização da gestão de recursos hídricos, os movimentos vêm se mobilizando na Índia. Na Austrália, além da luta para combater o intenso mercado de águas engarrafadas que retiram água dos aquíferos, instaurou-se um mercado de águas em 1994 que vende licenças para acesso a água como qualquer outro bem e causou uma bolha econômica que encareceu a água e quebrou muitas pequenas empresas e pequenos produtores rurais. No Brasil, em 1993 ocorreu o Tribunal de Águas, que julgou sete casos e condenou os envolvidos, num movimento de denúncia e educação ambiental que chamou a atenção do governo e do mundo (CORTE, 2015).

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um risco real de contaminação do manancial. No México, milhares de camponeses e militantes sociais também saíram às ruas para protestar contra a instalação de uma empresa estadunidense de produção de cerveja na comunidade de Choropo, onde a fábrica fará uso de grandes volumes da água que eles usam para a agricultura (TAVARES, 2017). Merece destaque pela grande influência que exerceram posteriormente no processo de afirmação do direito humano à água as lutas pela água nos países latino-americanos do Equador e da Bolívia, que reconheceram em suas constituições não só o direito humano a água, como o próprio direito da natureza à água, como se verá no próximo capítulo.

No Equador, na capital, Quito, em 2005, a alta dos preços cobrados pelo fornecimento de água durante o processo de transferência para o setor privado da gestão dos recursos hídricos levou a inadimplência de grande parte da população, que teve o serviço de água cortado. Um grupo de cidadãos organizados no Observatório Cidadão de Serviços Públicos realizou um forte combate e pressão política que exigia multas à empresa por não cumprir os termos ajustados, de forma que o prefeito da cidade, juntando a isso irregularidades praticadas pela empresa, cancelou o processo de privatização (CORTE, 2015).

Na Bolívia, a Guerra Del Agua, em Cochabamba, terceira maior cidade do país, ocorreu em meados do ano 2000. A região, de clima semi-desértico, possui um histórico de escassez de água, ampliada pela ausência de tecnologias de abastecimento/economia do recurso, pelo inchaço da cidade nos anos de crise econômica das décadas de crise econômica de 1950 a 1980 e, principalmente, a grande desigualdade social, que piorou e se agravou nos períodos de crescimento econômico que ocorreu após 1987 sob as diretrizes neoliberais impostas pelos órgãos financeiros internacionais. (KRESPO E FERNANDES, 2001 apud

BALDIN, 2013; DRUMOND, 2015).

Os serviços de água começaram a ser transferidos, por pressão do Banco Mundial (que só assim realizaria empréstimos para a expansão do serviço de água, grande problema na cidade de Cochabamba, com quase metade da população sem água tratada e utilizando água de poços artesanais clandestinos e carros pipas), para a empresa norte-americana Becthel (que detinha o controle da oficializada empresa multinacional “Aguas del Tunari”, que comprou o serviço público de abastecimento de água), com direito a cobrar água a preços de reajuste segundo Índice de Preços dos EUA. Nenhuma licitação foi realizada, e a Ley del Aguas, publicada no mesmo ano, garantiu a possibilidade de monopólios privados e de estrangeiros investirem no setor de água e esgoto (ASSIES, 2003 apud BALDIN, 2013).

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Del Tunari pagasse as dívidas da concessionária municipal que havia comprado e construísse a barragem de Misicuni nos primeiros dois anos da concessão, como exigia o governo no acordo firmado. Outra medida foi a proibição de acumular água das chuvas e de ter poços domésticos (costume tradicional andino), sendo muitos destruídos, com base na Ley Del Agua que garantia monopólio do serviço de água (BALDIN, 2013).

Diante dessas medidas extremas, a população começou a se mobilizar, e diversos setores se reuniram com a coordenação do comitê cívico La Coordinadora, a “Coordenadora

da Defesa da Água e da Vida”, para reivindicar mudanças na Ley Del Agua, o que não ocorreu. Assim, no dia 4 de fevereiro, foi convocada uma grande manifestação popular, que, após um mês, conseguiu colocar milhões de bolivianos nas ruas, que se locomoveram até Cochabamba exigindo direito universal à água, sendo duramente reprimida, mas ainda assim conseguindo ocupar a Plaza Central da Cidade por dois dias (SHIVA, 2006, apud BALDIN,

2013). Após uma trégua em que o governo prometeu rever a lei, anda foi feito, e novas manifestações surgiram, agora exigindo a revogação da Ley Del Agua. Manifestações e tréguas se deram até abril, quando o estado de guerra civil (ocasionado pela violenta intervenção militar com mortes e muitos feridos, pela deportação de líderes do movimento dentre outras ações do governo que incitou a população) , ameaçando se espalhar pelo país, juntamente com a pressão internacional, fez o governo romper o contrato de concessão e a multinacional a se retirar do País, remunicipalizando os serviços de água, fazendo uma nova lei que garantia uma autogestão democrática, com participação popular. (BALDIN, 2013)

Anos depois, a empresa cobrou no Tribunal Banco Mundial indenização ao governo da Bolívia pelo investimento realizado, mas a questão foi resolvida com um acordo entre Bolívia e a empresa, graças à mobilização da sociedade civil que enviou uma petição, que embora tenha tido papel político importante nunca foi formalmente aceita, exigindo reparação da empresa à situação ocorrida no país (CORTE, 2015).

O papel desempenhado pela Guerra Del Agua no avanço do direito humano fundamental de acesso à água no mundo é reconhecido mundialmente4, principalmente no que

tange a luta contra a privatização e a exploração internacional, razão pela qual Cochabamba será sempre um exemplo de luta e vitória. No entanto, é preciso reconhecer que há muito que se fazer: o déficit do serviço hídrico na cidade de Cochabamba ainda é enorme e recai sobre os mais pobres, os sistemas de participação popular ainda precisam melhorar para se tornarem efetivos. (BALDIN, 2013)

4No capítulo 2 aborda-se as mudanças políticas e constitucionais na Bolívia que são reflexo dessa imensa luta

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No Brasil, os movimentos por justiça hídrica são diversos, dentre os quais muitas ONGS’s atuam, mas se destacam as lutas encapadas em conjunto pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), que busca mapear e denunciar injustiças ambientais por todo o País, organizando atividades e intervenções políticas; os movimentos sociais tradicionais (urbano e rural), como o MAB; e os movimentos ambientalistas.

Desses movimentos, reconhece-se o papel fundamental na mobilização social e organização de lutas por justiça hídrica realizadas pelo Movimento dos(as) Atingidos(as) por Barragens (MAB)5, que iniciou seu período de organização social e denúncia de violação de

direitos humanos ainda na década de 1970, quando se inicia o processo de construção de barragens para a geração de energia elétrica diante do surto de crescimento econômico que o Brasil passava.

Para a construção das hidrelétricas, milhares de famílias foram removidas sem que houvesse um plano de vida digno, com indenização, reposição de terras, etc. Essas famílias engrossaram as periferias das cidades e os Movimentos de Sem Terra e Sem Teto que também surgem por essa época. Aos poucos, esses processos de remoção geraram resistências locais em diversas regiões do País, com destaque para a usina de Tucuruí, no Norte, de Itaipu, no Sul, e de Sobradinho e Itaparica, no Nordeste. Inicialmente a luta era por uma indenização justa, mas com o processo de avanço e conscientização dos atingidos, aos poucos foram modificando as exigências pelo direito de continuar na terra. Houve lutas e vitórias significativas, que até hoje são referência na luta dos atingidos. A unificação desses movimentos ocorreu durante o Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos, com a participação de representantes de várias regiões do País (História do MAB, 2011).

Outra onda de atingidos por barragens que também passa a se organizar no MAB surge no Nordeste a partir da década de 1980, com destaque para o estado do Ceará, decorrentes da remoção para construção de grandes represas de água, visando abastecer empresas de agrohidronegócio6, dentre outras, que se mudavam para a região, atraídas pela

5No capítulo 3, faz-se uma breve análise do papel do MAB na denúncia de violações de direito e na busca pela

efetivação desses na comunidade ora analisada, razão pela se faz importante esse breve relato da origem do movimento e do papel de destaque que exerce na defesa dos recursos hídricos no Brasil.

6Compreende-se agrohidronegócio enquanto o modelo predominante de modernização agrícola no Brasil,

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mão de obra barata, redução de impostos, dentre outros incentivos governamentais7.

Em seguida a esse período, com a onda de privatização de empresas que ocorreu a partir dos anos 1990, as lutas do MAB se intensificaram. Passa-se a lutar contra multinacionais que constroem e que controlam as barragens, a transmissão e a venda de energia, que passa a ser uma mercadoria como qualquer outra. As violações de direitos humanos se multiplicam, dentre as quais falta de acesso à energia e à água, levando o movimento a compreender que só com outro modelo energético é possível garantir justiça social para os atingidos e o povo brasileiro. O lema do MAB passa a ser Água e Energia não são mercadoria, tendo em vista que são esses bens indispensáveis para a sociedade e para uma vida digna, devendo então ser bens públicos, sob gerenciamento do Estado e do Povo, de forma a garantir o acesso igualitário de todos (História do MAB, portal virtual do MAB, 2011).

Compreende-se aqui movimentos por justiça hídrica dentro do amplo leque de movimentos sociais. Frisa-se, então, o papel dos movimentos sociais, e especificamente do movimento por justiça hídrica, no processo histórico de reafirmação dos direitos humanos fundamentais, que, dentro do contexto capitalista, surgem como “brechas” no aparato ideológico do sistema a partir das lutas de classes; estes são sementes de outra sociabilidade que surgem da luta e que, de forma dialética, possibilitam à crítica da racionalidade capitalista e apresentam as limitações do ordenamento jurídico e da lógica política – que apesar de incorporar direitos fundamentais no texto normativo, o Estado não possui meios para materializá-los (BONEVIDES, 2010) –, mas servem como condições de possibilidade da disputa no âmbito institucional; agindo, assim, para a superação dessa lógica ao demonstrar para as classes mais pobres e marginalizadas o caráter sistemático e cruel da lógica do lucro e da exclusão que move esse sistema político-econômico.

Assim, a atuação dos movimentos por justiça hídrica tem sido fundamental para o processo de polarização política e disputa do conteúdo da redefinição do direito a água que vem ocorrendo no âmbito internacional, afetando e sendo afetado pelos âmbitos internos dos países. O último tópico relaciona os principais encontros internacionais com a temática da água, suas contribuições para a resolução da crise hídrica e as disputas pelo conteúdo normativo que a redefinição do direito à água no século XXI tem trazido à tona e que se torna mais perceptível nesses encontros. (CORTE, 2015)

7 No capítulo 3 se aprofunda mais a respeito deste processo, que vem ocasionando diversas violações de direitos

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2.3 Encontros Internacionais e a água

A crescente preocupação e movimentação em torno das causas ambientais a nível mundial dão ensejo ao surgimento de vários encontros internacionais com o objetivo de se discutir, propor soluções e firmar acordos que busquem soluções para os problemas ambientais. O tema água foi tocado de forma transversa ou direta em diversos deles e essas menções fazem parte do caminho trilhado pela água até ser reconhecido pleno enquanto direito humano fundamental (caminho que ainda não chegou ao fim). Busca-se aqui destacar alguns dos mais significativos encontros internacionais, que são pilares do histórico do direito a água.

A Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente Humano, ocorrida em Estocolmo em 1972, é um importante marco para a evolução do direito à água. Embora a água tenha sido tratada no principal documento da Conferência, a Declaração de Estocolmo, de forma pontual e transversa, foi citada expressamente como elemento essencial ao direito ao meio ambiente adequado e ao desenvolvimento econômico. A despeito do não reconhecimento da água enquanto direito autônomo, do pouco avanço prático das discussões entre os países e do caráter antropocêntrico, ligado aos ditames econômicos capitalistas, saiu dessa conferência um Plano de Ação e a criação do PNUMA, órgão subsidiário da Assembleia Geral da ONU (BRZEZINSKI, 2012, p. 123. apud CORTE, 2015, p.330).

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explícita a água, enquanto a Agenda 21, outro documento de planos de ação do encontro, dedica o capítulo 18 aos recursos hídricos, embora enfatize mais a questão da preservação ambiental. Embora ambos os documentos não possuam força normativa, somente caráter protocolar, é inegável sua importância para o direito ambiental e internacional e consequentemente para a disciplina jurídica e resolução de conflitos em torno do bem ambiental água, dado que muitos princípios do direito ambiental foram firmados e consolidados a partir de então (BRZEZINSKI, 2012, p.131-132 apud CORTE, 2015, p. 333).

A Conferência Internacional sobre a Água e Meio Ambiente de Dublin, em 1992, ocorreu pouco tempo antes da Rio92 e foi um marco mais importante que aquela no que diz respeito ao tema da água. Quatro princípios saíram dessa conferência na chamada “Declaração de Dublin”, que afirma a finitude do recurso natural água, a necessária gestão participativa no que diz respeito ao planejamento e controle sobre o bem água, a centralidade do papel da mulher na proteção e gestão da água e, por último, o reconhecimento da água enquanto bem de valor econômico (Declaração de Dublin, 1992).

Este último princípio repercute e gera ainda hoje ferrenhos debates ambientais, políticos e jurídicos em torno do tema, pois, para muitos estudiosos do tema e movimentos que lutam por justiça hídrica, o reconhecimento da água enquanto bem econômico não é conciliável com os outros princípios e com a própria dignidade da pessoa humana, pois é uma característica que exclui pessoas do uso de um bem essencial à vida (RIBEIRO, 2008, p. 81

apud LIMA, 2014, p. 22). Assim, critica-se esse princípio e considera-se que este é um

paradoxo a limitar a proteção do bem água e o acesso justo à água de todos os seres humanos em quantidade e qualidade, além de se chocar com a própria necessidade que a natureza possui para se manter desse recurso. O reconhecimento da água quanto bem econômico torna-a suscetível torna-a torna-apropritorna-ação privtorna-adtorna-a, torna-ao controle privtorna-ado e, no sistemtorna-a ctorna-apittorna-alisttorna-a, justifictorna-a torna-a prevalência dessa visão economicista sobre as demais dimensões da água, dificultando o acesso à água das populações mais pobres, como é o caso concreto da violação em análise nesse trabalho.

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da água e a garantia de acesso aos mais pobres, sem, no entanto, ser definido nenhuma forma de isenção de pagamento pelo acesso. (RIBEIRO, 2008 apud CORTE, 2015, p. 351).

Outro encontro de relevância em termos de expressividade de participação, mas que não trouxe inovações consideráveis ao direito humano a água, foi a Conferência Internacional da Água e Desenvolvimento Sustentável, promovida pela Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (Unesco), ocorrida em 1998 em Paris. No documento final, há incentivo ao investimento privado na gestão dos recursos hídricos, ao mesmo tempo em que se afirma a essencialidade da água para a vida humana sem, no entanto, falar em um direito humano a água. (RIBEIRO, 2008 apud CORTE, 2015).

A Conferência “Água: Chave para o Desenvolvimento Sustentável” ocorreu em 2001, na cidade de Bonn, Alemanha. Seus objetivos centravam-se em discutir a segurança hídrica e o gerenciamento sustentável, trazendo uma inovação ao não condicionar os empréstimos aos países em desenvolvimento ao tema privatizações da gestão da água.No entanto, nos demais aspectos, reiterou posicionamentos anteriores e deixou diversos aspectos importantes de fora, como a afirmação da água enquanto bem comum (CORTE, 2015, p. 353).

Um encontro que se destaca positivamente no caminhar da afirmação do direito à água enquanto direito humano é a Rio+20, ocorrida em 2012, no Rio de Janeiro. Ele ocorreu dez anos após a Rio+10, ocorrido em 2002 em Johanesburgo, África do Sul e que não avançou muito em relação a Rio-92, terminando por somente reafirmar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, criados pela Declaração do Milênio das Nações Unidas (RIBEIRO, 2008, p. 106 apud CORTE, 2015, p. 336), “incluindo-se neles a meta de "redução

pela metade da população sem acesso à água e ao saneamento básico até 2015”. (idem).

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Faz-se necessário falar também dos encontros denominados Fórum Mundial da Água, que não são organizados pelas Nações Unidas, mas vem contribuindo – de maneira nem sempre positiva, na perspectiva deste trabalho – nos últimos anos com formulações sobre a água, influenciando legislações e condutas políticas, contando com a ampla participação de empresas e estados nações, estando atualmente na sua VII edição.

Os Fóruns Mundiais da Água (FMA) são encontros organizados pelo Conselho Mundial da Água (CMA) – um organismo de caráter privado que conta com o patrocínio de grandes corporações econômicas, como a Coca-Cola – com o objetivo de se discutir soluções para crise hídrica que já se enfrenta hoje. Embora nesses encontros se busque passar a idéia de legitimidade social de suas formulações a respeito de como deve ser o tratamento dispensado à água no mundo, a realidade é que, de uma forma geral, os Fóruns são mais um espaço de caráter corporativo que um encontro que espelha a amplitude da sociedade civil que se organiza em torno do tema da água, daí se questiona a real capacidade de suas formulações como representação uníssona – como pretendem os organizadores – do que vem se elaborando sobre a água. Assim, os FMA não são espaços onde se discute abertamente conflitos sobre o tema: há o silenciamento e invisibilização de diversos atores sociais (que compõe ou que nem são convidados a comporem o Fórum) e de questões pertinentes a água que avançam em direção ao reconhecimento da água como direito humano, deixando patente prevalência da visão da água como mercadoria, o que atende de pronto ao interesse de grandes corporações. Em outras palavras, trata-se de um espaço que se imbui de uma legítima preocupação acerca do futuro da água, mas propagandeia a privatização dos recursos hídricos – que favorece muitas empresas privadas (que inclusive participam do FMA) – como necessária no processo de controlar o uso da água e dar acesso a população mais pobre, não assumindo em seus documentos finais o direito humano a água.

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É importante citar um fato que ocorreu durante o quinto FMA, em 2009, quando o presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas discursou defendendo o posicionamento do direito humano a água, rechaçando a entrega à iniciativa privada como solução para o problema de acesso a água e expondo as tentativas falaciosas do CMA de criar a falsa ideia de consenso enquanto há uma massiva oposição a esses direcionamentos (CORTE, 2015 p. 365). Nesse mesmo sentido, discursou o diretor do Programa de Hidrologia Internacional da Unesco, András Szolli-Nagy, afirmando que os avanços que tinham saído durante as reuniões preparativas para o FMA não estavam incluídas no documento final do 5º encontro. Fortalecidos por esses discursos, 20 países também desafiaram o texto final e lançaram uma contradeclaração, encabeçados pelos países latino-americanos (idem). O Brasil se posicionou

de acordo com o texto final oficial do 5º encontro.

Em seu sexto encontro, em 2012, novamente, a Declaração Ministerial, principal documento final do encontro, não traz claramente o direito humano a água, deixando margem para o reconhecimento interno de cada Estado. Esse documento é uma afronta e um retrocesso frente ao reconhecimento do direito humano a água pela ONU em 2010, por meio da Resolução 64/292/A/HCR e RES/15/9 (CORTE, 2015, p. 369), que será analisada no próximo capítulo. Embora a Declaração Ministerial não seja investida da mesma força jurídica que a Resoluções da ONU, termina por se tornar um documento que respalda a escusa de diversos países em não reconhecer o direito humano à água.

A despeito de haver assinado as Resoluções da ONU que reconhecem o direito humano a água, novamente o Brasil assinou a declaração Ministerial do 6º encontro, ignorando os movimentos sociais e ambientais internos que se opõe ao direcionamento do FMA. A escusa para acatar o documento é que o reconhecimento do direito humano à água – já feito anteriormente na resolução da ONU – pode representar um risco à soberania do País, que possui 12% da água doce planeta, o que, ver-se-á adiante, não é uma justificativa plausível.

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público-privadas, da mútua colaboração e do monitoramento dos compromissos firmados (PORTAL VIRTUAL HIRIA, 2015). O próximo encontro, em abril de 2018, está previsto para ocorrer no Brasil, na cidade de Brasília.

Embora tenha crescido o número de participantes e a projeção política do FMA, continua sendo um evento homogêneo, opressor em relações aos protestos, conservador acerca da visão privatista e economicista da água segundo ditames do capitalismo liberal, que tem feito um desfavor no processo de afirmação da água enquanto direito humano, razão pela qual se faz importante compreender seu papel político dentro da disputa no direito internacional em torno da força normativa da Resolução nº15/9 da ONU8. Como afirma

Ruscheinky (2004, p. 16):

[...] as forças sociais opostas ao tema em destaque consolidam um conjunto amplo de intelectuais, ora com um discurso bem articulado (...). Na sociedade contemporânea se arraigam redes de controle social, complexos corporativos e organizacionais e fluxos de comunicação que tornam o poder mais obscuro, quase impossível de fixar seus contornos ou difícil de enfrentar, enfim eterizado e insensível. Romper uma muralha de uma cidade ou matar um soberano ou destruir um exército reunido é algo bem mais concreto do que atacar um cartel internacional da água.

Os encontros internacionais são importantes espaços políticos de mobilização nos quais é possível entender um pouco a geopolítica da água e os interesses e jogos de poder que direcionam as forças políticas. Assim, embora possamos afirmar que houve, ao longo de mais de quatro décadas de encontros, um despertar para a questão da crise hídrica e da dificuldade de acesso à água por uma ampla parcela da população, com alguns avanços positivos, ainda há muito sendo discutido e disputado no cenário mundial. Ressalta-se que os documentos assinados nesses encontros, embora significativos e importantes para o direito internacional, possuem caráter de soft Law no direito internacional, não sendo, portanto, normas cogentes, o

que dificulta a sua concretização e deixa para a conjuntura, as possibilidades de cada governo e as regras do mercado coordenar o acesso à água, o que, como se verá adiante, não é juridicamente possível com o reconhecimento do direito humano à água (IRIGARAY, 2003).

Imagem

Figura 1 – Reunião de Mulheres e preparação para oficina de arpilerria
Figura 2 – Comunidade Boa Esperança/Iracema vista da entrada
Figura 3 – O açude a 800 metros das casas

Referências

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