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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES

DIFERENTES SONS DO TROVÃO:

Uma perspectiva comparativa entre os deuses Thor, Ukko e Horagalles

JOÃO PESSOA, PB 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

VICTOR HUGO SAMPAIO ALVES

DIFERENTES SONS DO TROVÃO:

Uma perspectiva comparativa entre os deuses Thor, Ukko e Horagalles

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para a admissão ao curso de Mestrado em Ciências das Religiões. Linha de Pesquisa: Abordagens filosóficas, históricas e fenomenológicas das religiões.

JOÃO PESSOA, PB 2019

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AGRADECIMENTOS

Agradecer nunca é tarefa fácil. Sempre acreditamos estar esquecendo de alguém ou tememos não fazer justiça ao verdadeiro significado que têm mesmo aqueles que mencionamos. A tentativa de agradecer, contudo, se faz incontornável, pois nesse momento nos reconectamos à todos aqueles que ressoam dentro de nós e a eles nos sentimos gratos e conectados.

Começo agradecendo à minha mãe, Melanie – que foi e é, além de mãe, amiga, companheira e pai – e aos meus irmãos Luiz Guilherme, Bruna e Luis Eduardo, com os quais eu tenho a imensurável felicidade de compartilhar, para além de meu sangue, as memórias, a minha constituição enquanto sujeito e a minha vida em sua completude. Aos meus avós João e Deise que, desde que sou criança, me apóiam e incentivam muito afavelmente dentro de meus peculiares interesses (e aqui se inclui a mitologia). À minha madrinha Bianca, meu tio Leonardo, minha tia Camile e meus primos Caíque, Beatriz e Filipe, sempre muito próximos e presentes da maneira como conseguem.

À Susan, que se aventurou no mesmo programa de mestrado e também encarou os desafios de morar tão longe de onde se viveu e de mudar de uma área do conhecimento para outra. Cada uma das inúmeras conversas que tivemos, os momentos, desabafos - a sua constante presença, enfim - me foram essenciais e muito queridos. Obrigado pela proximidade, pelo carinho, pela paciência, por tudo.

Aos meus amigos Túlio e Luiz Paulo, irmãos que a vida me trouxe e que, mesmo trabalhando e se dedicando a coisas pertencentes a um universo radicalmente diferente do meu, me ouvem falar empolgado do que estudo, ou ainda, com quem eu me encontro sempre que as circustâncias permitem para poder conversar sobre as mais diversas coisas e “distrair a cabeça” indo às roças de nossa sempre saudosa Minas Gerais. Também irmão e amigo de infância, agradeço ao Guilherme, que compartilha comigo o interesse pela carreira acadêmica – algo sobre o qual frequentemente conversamos e desabafamos – e que também sempre se faz presente. Nunca vou esquecer ter sido ele o responsável por me apresentar as Eddas anos atrás, algo que fez com muita naturalidade, mas que criou um divisor de águas em minha vida; tanto é que elas se tornaram hoje, um de meus objetos de estudo. À Karen, amiga que também se aventura pela vida acadêmica, e à Melissa, amiga que a cidade de João Pessoa me trouxe.

Aos meus inesquecíveis e queridíssimos amigos João Paulo, Raíssa e Maria Eliza. Lembro sempre com carinho de todos vocês e agradeço o apoio incondicional, as

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conversas, a união e a autenticidade na relação. Trilhamos cada um o seu caminho com a Psicologia após a graduação, mas é sempre com felicidade e orgulho que contemplo o que estamos nos tornando dentro de nossas possibilidades e potencialidades individuais.

Ao Prof. Dr. Johnni Langer, primeiramente por ter me aceitado como orientando e acreditado no meu potencial e, em segundo lugar, por ter me proporcionado um aprendizado tão grande, tanto a nível de seu conhecimento - por dominar o assunto com tanta propriedade e seriedade - quanto por se mostrar uma pessoa humilde, acessível, disponível, humana, enfim. Muito obrigado pela oportunidade. Nunca esquecerei. À Profª. Drª. Luciana Campos, que desde o começo fez com que eu me sentisse muito acolhido e bem recebido em João Pessoa, além de ter me apresentado seus trabalhos com o living

history e a arqueologia experimental, tão inovadores e pioneiros.

À banca da minha defesa, as Profas. Drª. Luciana Campos e Drª. Maria Lucia Abaurre, que aceitaram gentilmente o convite e oferecerão suas contribuições e apontamentos para que eu possa melhorar meu trabalho. Obrigado.

Ao grupo NEVE (Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos), do qual faço parte. Agradeço aos membros pela ajuda constante com indicações bibliográficas, troca de materiais e pelo apoio moral.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por fomentar minha pesquisa, permitindo que eu me dedicasse, integral e exclusivamente, ao mestrado.

À todos os autores citados e suas respectivas pesquisas e estudos, sem os quais minha própria pesquisa não teria sido viável.

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À minha avó, minha segunda mãe, que também escuta

de seu modo o chamado por mundos, possibilidades e dimensões outras.

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DIFERENTES SONS DO TROVÃO:

Uma perspectiva comparativa entre os deuses Thor, Ukko e Horagalles

Resumo: Thor, Ukko e Horagalles são, respectivamente, as divindades nórdica, finlandesa

e sámi do trovão. O presente estudo visa investigar as principais fontes primárias que mencionem esses deuses ou apresentem quaisquer tipos de narrativa mitológica a seu respeito, evidenciando os principais atributos e traços mais elementares a eles conferidos em tais fontes. Numa tentativa de captar as dimensões mitológicas, simbólicas e culturais dessas divindades, analisaremos suas figuras em obras literárias inseridas em seus contextos culturais e históricos específicos, oferecendo antecipadamente as críticas e contextualizações necessárias desses materiais. Feito isso, elencaremos quais convergências e divergências foram observadas entre essas três figuras divinas no que diz respeito aos atributos e descrições que as englobam. Elegemos a perspectiva do comparativismo conforme proposta por Schjødt. Mais especificamente, e segundo o próprio autor, executaremos o chamado comparativismo de terceiro nível: compararemos os nórdicos com outros povos politeístas com quem estes estiveram em contato. Também faremos uso do conceito de centros semânticos como ferramenta auxiliar para percebermos as categorias de identificação atribuídas a esses deuses dentro de seus respectivos discursos míticos.

Palavras-Chave: Mitologia Comparada; Deuses do trovão; Thor; Escandinávia;

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DIFFERENT THUNDER SOUNDS:

A comparative perspective regarding the gods Thor, Ukko and Horagalles

Abstract: Thor, Ukko and Horagalles are, respectively, the Norse, Finnic and Saami

thunder gods. The present study aims to investigate some of the main primary sources which mention those gods or that present any kind of mythological narrative concerning them, evidencing the most elementary traits and attributes given to them in such sources. In an attempt to capture the mythological, symbolical and cultural dimensions of these divinities, we are going to analyse their insertion in literary works belonging to their specific historical and cultural contexts, offering beforehand the necessary contextualization and critics of such materials. Secondly, we are going to present the convergences and divergences observed once these three gods, their descriptions and attributes are put in a comparative perspective. In order to do so, the comparative methodology as proposed by Schjødt will be adopted. More specifically, and according to the author, we are going to execute the so-called third level comparativism: when a comparison is done between the Norsemen and other polytheistic peoples with whom they have historically been connected. The notion of semantic centres will also be used as a tool to help us identify the identification categories given to these gods within the respective mythical discourses they belong to.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mapa da Península Escandinava e países

próximos..……...….……..……..….…..….…..…...23

Figura 2: Mapa da área englobada pela noção de Sápmi. …..……..………...…..…...…...…………..…..……..…...24

Figura 3: Mapa das principais rotas de navegação dos vikings...47

Figura 4: Estátua de Thor encontrada em Eyrarland. Frente e costas. ...49

Figura 5: “Martelo de Thor” encontrado em Mandermake, na Dinamarca. ………...………...…61

Figura 6: Reconstituição de um culto a Horagales, deus sámi do trovão...86

Figura 7: Pedra de Hørdum...102

Figura 8: Detalhes da pedra de Altuna...102

Figura 9: Ilustração de um tambor sámi segundo Thomas von Westen...106

Figura 10: Ilustração de um tambor sámi, segundo Knud Leem...107

Figura 11: Ilustração de Horagalles conforme consta em tambor sámi encontrado na Noruega...110

Figura 12: Pingente no formato do martelo de Thor encontrado em Östergotländ...156

Figura 13: Ilustração feita por Rheen de um lugar onde, segundo ele, eram feitos sacrifícios sámi ao deus do trovão...164

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...12

Apresentação...12

Fontes primárias sobre Thor, Ukko e Horagalles...17

Os nórdicos, os sámi, os finlandeses...21

Interações entre nórdicos, sámi e finlandeses...26

Considerações teórico-metodológicas sobre o comparativismo...31

CAPÍTULO I: THOR, O DEUS NÓRDICO DO TROVÃO...37

1.1 O deus Thor...37 1.2 O martelo de Thor...55 1.3 A Edda em Prosa...65 1.3.1 O Gylfaginning...68 1.3.2 O Skáldskaparmál...78 1.4 A Edda Poética...88 1.4.1 Þrymskviða...91 1.4.2 Hárbarðsljóð...97 1.4.3 Hymiskviða...99

CAPÍTULO II: UKKO E HORAGALLES, OS DEUSES FINO-ÚGRICOS DO TROVÃO...105

2.1 Horagalles, o deus sámi do trovão...105

2.2 Johannes Schefferus e sua obra...110

2.3 Horagalles na obra de Schefferus...115

2.4 Ukko, o deus finlandês do trovão...124

2.5 Mikael Agricola e sua obra...126

2.6 Ukko nos escritos de Agricola...129

2.7 Elias Lönnrot e a Kalevala...135

2.8 Ukko na Kalevala...139

CAPÍTULO III: UM OLHAR COMPARATIVO...150

3.1 Breve panorama do intercâmbio mitológico-religioso entre nórdicos, sámi e finlandeses na tradição acadêmica...150

3.2 O martelo das divindades do trovão...155

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CONSIDERAÇÕES FINAIS...204 REFERÊNCIAS...210

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INTRODUÇÃO Apresentação

O contexto de nascimento da presente dissertação se deu como consequência de

leituras realizadas ainda durante a época de escrita da minha monografia em psicologia que, na ocasião, propôs realizar um estudo simbólico e arquetípico do material mitológico contido na Edda em Prosa. Um de seus subcapítulos era dedicado à análise do deus Thor, popular divindade do trovão na mitologia e religião escandinava pré-cristã. Na época, esse subcapítulo da monografia acabou sendo apresentado no 4º Seminário Integrado de Monografias, Dissertações e Teses e, em seguida, tornou-se um resumo completo publicado nos anais do evento (cf. ALVES, 2016).

Conforme prosseguia com as minhas leituras envolvendo a figura de Thor, me pareceram surpreendentes tanto seu papel como matador de gigantes – e, portanto, de mantenedor da ordem cósmica e eliminador das forças do caos- quanto sua proximidade com os seres humanos expressa, entre outros fatores, em seu constante companheiro de aventuras

Thjálfi, mero homem mortal (LINDOW, 2001, p. 287-288). Continuando a investigação dos

atributos do deus, acabei por me deparar com afirmações de que Thor possuiria seus correspondentes nas culturas próximas, ou seja, de que vários povos por toda a Eurásia possuíam suas divindades do trovão, obviamente que representadas sempre com suas particularidades de acordo com área geográfica, período histórico e contexto sócio-cultural-: na mitologia celta, seriam os deuses Taranis1 e Dagda; na área báltica e lituana, Perkunos; em território russo, Perunos; na área finlandesa habitada pelos sámi, Horagalles (LANGER, 2015, p. 496). Tantas ocorrências de deuses do trovão entre esses povos que mantinham relações e intercâmbios uns com os outros despertaram meu interesse para que eu realizasse uma investigação comparativa entre elas. Contudo, o material sobre o assunto ainda é escasso e, em território brasileiro, praticamente inexistente.

Devido à natureza da pesquisa que desenvolvia na graduação em psicologia, foi inevitável entrar em contato com as obras de Eliade. O autor afirmava que a sacralidade se revela ao homem religioso por meio das próprias estruturas do mundo. Portanto, segundo Eliade (2013, p. 100), o “sobrenatural”, categoria de revelação, estaria indissoluvelmente

1 Apesar de serem ambos considerados deuses “celtas”, Taranis pertencia aos cultos e mitos da religião gaulesa pré-cristã, ao passo que Dagda era especificamente do panteão irlandês (MARKALE, 1999, p. 83).

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13 ligado ao “natural”, de onde podemos concluir que a natureza sempre exprime, para o homem religioso algo que a transcende, que aponta para além de si mesma. Partindo deste princípio, a simples contemplação da abóbada celeste poderia já ser o suficiente para desencadear toda uma experiência religiosa no indivíduo crente, pois a transcendência se revelaria conforme o homem religioso toma consciência da altura infinita.

Assim, as regiões superiores, inacessíveis ao homem, adquiriram ao longo da história o prestígio do transcendente, da realidade absoluta e da eternidade; são vistas espontaneamente, enfim, como um atributo exclusivo das divindades. Os deuses teriam manifestado as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo, como por exemplo no Cosmos - a obra exemplar dos deuses per se -, cuja construção se deu de tal maneira que a própria existência do céu incita, no homem, o sentimento religioso da transcendência divina. E, já que o céu existe irrefutavelmente e de maneira absoluta, não é surpresa que um grande número de deuses supremos de diversas populações primitivas sejam chamados por nomes que designam a altura, a abóbada celeste ou os fenômenos meteorológicos (ELIADE, 2013, p. 101).

Por mais que se trate de uma perspectiva interessante e muito válida dentro de propostas investigativas específicas, o viés essencialista de Eliade não responde a uma série de perguntas que são levantadas quanto às manifestações precisamente históricas, diacrônicas, culturais e sociais destes deuses do trovão em seus respectivos contextos mitológicos e religiosos. Trata-se de uma impossibilidade metodológica graças à sua visão de religião e, consequentemente, do modo como o pesquisador das religiões deve se aproximar delas: a autonomia plena da religião alegada por Eliade impossibilita que a mesma seja analisada em termos de fenômenos e representações culturais ancoradas na História, tornando de certa forma dispensável, portanto, o uso de ferramentas históricas e culturais para compreensão da religião (STRENSKI, 1993, p.23). Nesse ponto, acredito que a fenomenologia das religiões e seu essencialismo - manifesto, principalmente, em Eliade – mostram suas limitações epistemológicas e conceituais, falhando ao lidar com a historicidade das manifestações religiosas. Portanto, a adoção de uma nova perspectiva, esta historicizada e culturalista, me parecia necessária para responder as questões por mim levantadas.

Enquanto colhia material para escrita de minha monografia, acabei por me deparar também com a perspectiva simbolista, cuja principal alegação seria a de que os raios especificamente representariam, nas mitologias, o comando supremo que passou da terra para o céu; ou seja, constituiriam um intermédio entre o divino e o humano. O raio pode operar

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14 enquanto um desregramento da ordem cósmica, manifestado pela cólera dos elementos, por exemplo. Sendo assim, é recorrente que se encontre, nas mitologias, certa noção de responsabilidade humana direta no desencadeamento do trovão e do raio (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 912). Trata-se, então, de outro elemento que aponta para uma proximidade e conexão entre as divindades do trovão e o ser humano. Ainda assim, questões relacionadas às particularidades dessas divindades do trovão encarnadas em seus devidos cenários e contextos históricos ainda me inquietavam.

Por ser definitivamente um deus do trovão conhecido e popularizado em maior escala,

e sem dúvidas a figura da mitologia escandinava mais popular até os nossos dias (LANGER, 2015, p. 496), Thor é encontrado em alguns estudos brasileiros, embora ainda não de maneira consolidada. Contudo, estudos de cunho comparativo envolvendo o deus ainda não foram desenvolvidos em pesquisas brasileiras.

Por sua vez, o deus do trovão entre os povos sámi2, Horagalles (conhecido em algumas regiões por Aijeke ou Tiermes) foi alvo de algumas breves menções na pesquisa em solo brasileiro, no campo de estudos da mitologia e religião escandinava pré-cristã. Identificou-se que algumas de suas estátuas para fins cultuais eram muito semelhantes às de

Thor, retratando Horagalles com um martelo que atravessava seu corpo e com pregos

cravados em sua cabeça (LANGER, 2015, p.175-176). Contudo, o deus ainda não foi submetido a nenhuma análise enquanto principal objeto de estudo. Já Ukko, divindade do trovão cultuada pelos finlandeses, encontra-se completamente ausente de estudos e pesquisas em nosso país.

Este problema não atinge somente o Brasil: na questão religiosa e mitológica, são ainda relativamente poucos os estudos sobre os sámi e finlandeses antigos, ou então as

2 O viés comparativo de nosso trabalho elegerá os deuses de três povos como matéria de estudo: dos nórdicos, sámis e finlandeses. Por nórdicos, entendemos os povos indo -europeus que habitavam os territórios das atuais Noruega, Suécia, Dinamarca e, posteriormente, Islândia, aos quais costumeiramente emprega -se o termo vik ing. Já os sámis e os finlandeses são de origem fino -úgrica, e não indo-europeia, apesar de também habitarem o norte e extremo norte europeus. As principais teorias trabalham com a hipótese de que esses dois povos teriam sido, antes, uma mesma unidade linguística/genética que, ao começarem a migrar para regiões distintas no norte da Europa, passaram a desenvolver práticas sociais e culturais cada vez mais diferentes uma da outra, além de sofrerem influências cada uma de povos específicos. Em certo mo mento teria havido, então, um desmembramento que teria gerado os proto -fínicos e os proto-sámis enquanto identidades, idiomas e culturas distintas. Evitaremos o uso da palavra escandinavos, pois ela pode, em certa medida, mais complicar do que esclarecer. Em tese, o termo remete a qualquer habitante situado geograficamente na Península Escandinava, que engloba os países da Noruega, Suécia e Finlândia. Portanto, este se trata de um critério exclusivamente geográfico de identificação que pode gerar confusões em relação às diferentes etnias e línguas dos povos habitantes da Península Escandinava, já que é insuficiente para diferenciá -los. Por exemplo: todo nórdico é escandinavo, mas nem todos os escandinavos são nórdicos. Um finlandês é, dentro desse critério, um escandinavo, mas não um nórdico (que seriam indo -europeus de origem germânica). Explicaremos e contextualizaremos de modo mais minucioso essas diferenças em alguns subcapítulos presentes mais adiante, nessa própria parte da Introdução.

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15 pesquisas que abordem as interações e intercâmbios de elementos mitológicos/religiosos entre estes povos e os nórdicos durante a Idade Média. Tamanha escassez de pesquisas é surpreendente, visto que toda a região das atuais Noruega, Suécia, Finlândia e a Península de Kola, no Norte da Rússia eram palco de extrema interação entre esses diferentes povos e sistemas culturais-religiosos, fazendo dela o lugar mais ativo e dinâmico da região Circumpolar Norte. Essas interações são essenciais para entendermos as influências dessas várias culturas sobre a cultura escandinava e também a formação de povos indígenas, como os sámi. Visto isso, é necessário abandonar teorias antiquadas que se embasam somente em grandes migrações para explicar a origem e cultura desses povos nativos, que conquistaram sua própria história e constituição cultural-religiosa após anos de adaptações ambientais, tecnológicas e culturais (BROADBENT, 2010, p. 1).

A fim de contribuir com os estudos na área, nossa proposta é quebrar essa barreira e iniciar os estudos sobre religiosidade sámi-finlandesa no Brasil, na esperança de que surjam também outros trabalhos a respeito. Analisaremos as figuras destas três divindades do trovão, dentro de seus contextos culturais-históricos e com as devidas atribuições mitológicas, simbólicas e cultuais que recebiam de seus povos, o que constitui um objeto de interesse para as Ciências das Religiões. Com isso, estamos explorando um tema ainda inédito em língua portuguesa ao propormos um estudo de mitologia comparada da área escandinava-sámi-finlandesa.

Nosso estudo propõe responder as seguintes perguntas:

1) Como esses deuses foram caracterizados em suas respectivas mitologias? 2) Segundo cada uma dessas fontes, quais são os traços definidores de cada deus? 3) Quais são as semelhanças e diferenças surgidas após compararmos as descrições e atributos dessas divindades?

4) Qual a importância e o papel, nessas fontes literárias, das armas que estas divindades portam?

Visando atender aos objetivos e questões levantadas de maneira organizada, dividimos o trabalho em três partes, constituindo cada uma delas um capítulo. O primeiro capítulo tratará do único deus indo-europeu do trovão que trouxemos para este estudo, Thor. Faremos uma recapitulação dos principais estudos e discussões envolvendo sua figura, principalmente aqueles que analisam seus atributos. Em seguida, contextualizaremos histórica e culturalmente as fontes primárias sobre Thor, apontando as críticas que existem a esse

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16 respeito para que possamos, por fim, investigar essas fontes e delinear quais e como são as descrições que elas oferecem sobre o deus.

Por sua vez, o segundo capítulo tratará dos dois deuses fino-úgricos do trovão: Ukko e

Horagalles. Será seguida a mesma estrutura que o capítulo sobre Thor, ou seja, primeiro será

feita uma revisão bibliográfica de estudos sobre as divindades, seguida pela contextualização e crítica das fontes primárias, terminando por explicitar como essas duas divindades são descritas em suas respectivas fontes.

O terceiro capítulo será a análise comparativa propriamente dita, onde aplicaremos o método proposto por Schjødt (2017). Serão levados em conta os dados levantados nos capítulos I e II para, então, os colocarmos em justaposição e realizar as comparações, com objetivo de tornar claras e evidentes tanto as semelhanças e convergências quanto as discrepâncias e divergências no que diz respeito às descrições feitas sobre esses deuses.

Utilizando esta metodologia, nosso intuito é o de revigorar os estudos em mitologia por meio da perspectiva comparativa, que recentemente voltou a receber a atenção de vários pesquisadores na área de mitologia nórdica3, principalmente quando o assunto é demonstrar suas influências nas mitologias sámi, finlandesa, báltica, ou então as influências por ela recebidas. O exemplo máximo disso talvez seja a recente coletânea Old Norse Mythology:

comparative perspectives, que propôs demonstrar as mais atuais tendências do

comparativismo na área nórdica (LANGER, 2018b, p.252)4.

A perspectiva metodológica adotada é de natureza qualitativa. Sendo assim, o material que será submetido à análise é, em sua totalidade, composto por fontes escritas cujo conteúdo não será sistematizado numérica ou estatisticamente. Nos debruçaremos sobre essas fontes buscando a semântica presente nelas ao mencionarem os deuses do trovão, observando e

3 Alguns desses estudos são: Nordic Religions in the Vik ing Age, (DuBois, 1999), Sacred to the touch (DuBois, 2018); Circum-Baltic mythology? The strange case of the thunder theft instrument (Frog, 2011); The notions of Model, Discourse, and Semantic Center as Tools for the (Re)Construction of Old Norse Religion (Schjødt, 2013); Pre-Christian Religions of the North and the Need for Comparativism: Reflections on Why, How, and with What We Can Compare (Schjødt, 2017); Understanding diversity in Old Norse religion: tak ing Þórr as a case study (Taggart, 2015); Scandinavian-Saami Religious Connections in the History of Research (Rydving, 1990); Myths and symbols in pagan Europe (Davidson, 1988); The ask r and embla myth in a comparative perspective (Hultgård, 2006); O céu dos vik ings (Langer, 2013); Where does Old Norse Religion end? (Bertell, 2006).

4“Além dos estudos teóricos, o livro se concentra em três grupos de análises temáticas (entre genéticas e tipológicas): os que envolvem investigações concentradas em fontes nativas de um ponto de vista internalista (comparando deuses nórdicos, como, por exemplo, o capítulo de Tery Gunnell sobre os Vanes); os que analisam os mitos nórdicos em relação com os mitos da região circumpolar e báltica (portanto, tradições vizinhas, a exemplo de Thomas DuBois, John Lindow e Olof Sundqvist); comparação dos mitos nórdicos com tradições eurasiáticas, mas algumas distantes da Escandinávia (Richard Cole analisando Snorri e os judeus; Joseph Nag comparando o mundo nórdico com os irlandeses e persas; Michael Witzel refletindo o mito de Ymir com a China e a Índia)” (LANGER, 2018, p. 252).

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17 evidenciando os dados qualitativos contidos nessas afirmações. Nossa análise envolverá, também, o próprio contexto histórico e social em que essas obras foram escritas, constituindo uma tentativa de enxergamos os fatores históricos envolvidos no surgimento de cada uma das obras. Consequentemente, nos esforçaremos o tempo todo para externar o fato de que essas divindades eram unidades presentes em complexos sistemas mítico-religiosos que apresentavam manifestações concretas e encarnadas no devir histórico e diacrônico.

Fontes primárias sobre Thor, Ukko e Horagalles

Thor, Ukko e Horagalles são, respectivamente, as divindades nórdica, finlandesa e sámi do trovão. As principais fontes primárias que tratam dos mitos de Thor são a Edda em

Prosa, manual de poesia escáldica e de mitologia escrito pelo historiador, político e monge

islandês Snorri Sturluson por volta do ano de 1220 (BOULHOSA, 2004, p.15); e alguns poemas específicos da Edda Poética - esta de autoria anônima -, como Thrymskvida;

Hárbardsljód; Hymiskvida; Völuspá; Alvíssmál; Lokasenna e Grímnismál (LANGER, 2015,

p. 497). É importante ressaltar, conforme aponta Langer (2015, p. 144), que, apesar de não apresentar os mitos de maneira pura, neutra e original, Snorri Sturluson foi a primeira pessoa a tratar a mitologia nórdica de uma perspectiva acadêmica, selecionando e reunindo o material que nela seria disposto.

Ao abordarmos a questão do deus Thor na Escandinávia pré-cristã, o primeiro problema surge na dificuldade de tomarmos todas as formas de paganismo da região por uma única religião que, consideradas suas variações geográficas, regionais, cronológicas e de organização e estruturação social, não era de forma alguma uniforme e homogênea (NORDBERG, 2012, p.121). Ainda assim, segundo Brink (2014, p.125), o culto a Thor, o deus do trovão, era compartilhado por todo território nórdico, conforme apontam estudos toponímicos e de cultura material. Trata-se de uma das mais importantes e presentes divindades para o paganismo nórdico. Todas as origens e etimologias de seu nome são palavras que designam e significam trovão (LANGER, 2015, p.496).

Apesar dessa imagem de Thor enquanto deus do trovão ter sido a que se perpetuou mais fortemente até os dias de hoje, há um estudo recente questionando tal concepção. Após exame detalhado das principais fontes primárias (literárias) que retratam o deus, Taggart (2015) demonstrou que, nas narrativas mitológicas de Thor, apesar da sua força descomunal ser um conteúdo representativo que o caracteriza quase que em sua totalidade, sua relação com os raios e o trovão, pelo contrário, não o são. Levando em conta principalmente as fontes

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18 escritas provenientes da Islândia medieval, Taggart (2015) defende que, nelas, as figuras de linguagem, descrições e epítetos referentes a Thor estão muito mais relacionadas a fenômenos como terremotos e vulcanismos do que a raios e trovões.

Certamente que tal afirmação caminha na direção oposta de todo um campo de estudos envolvendo Thor: Hilda Ellis Davidson afirma que, em seus mitos, “Ele [Thor] é associado às tempestades e ao vento, mas acima de tudo aos raios e trovões” (DAVIDSON, 1994, p.80); para Johnni Langer, Thor é o “Deus germânico do trovão, o mais forte dos deuses ases e deidade matadora de gigantes” (LANGER, 2015, p. 496); Turville-Petre se refere ao deus como “Thor, o trovoador” (TURVILLE-PETRE, 1975, p.75); Dumézil escreve que a própria palavra empregada no nórdico antigo para designar trovão serviu também para dar o nome de

Thor (DUMÉZIL, 1973, p.66). Contudo, Taggart (2015, p.69) afirma que, no corpus da

mitologia nórdica, ligações entre Thor e os trovões não vão muito além da etimologia do nome do deus e alguns kenningar5 utilizados para descrevê-lo. Abordaremos mais profundamente essa questão no Capítulo I.

Nos mitos apresentados por Snorri Sturluson, Thor é sem dúvidas um dos deuses que mais se destacam. Suas narrativas acontecem, na grande maioria das vezes, enquanto progride pelos reinos dos deuses, homens e gigantes, derrotando continuamente estes últimos, seus adversários, utilizando seu martelo Mjöllnir (DAVIDSON, 2004, p. 61-62). Seus mitos geralmente enfatizam seus poderes sobre o mundo natural, ou então suas disputas e lutas contra adversários sobrenaturais, sendo por meio dessas narrativas que o deus conquista a posição de protetor dos deuses e homens, matando os gigantes (DAVIDSON, 1984, p. 80).

Sobre Horagalles, divindade sámi do trovão, questiona-se que o deus seja fruto de intercâmbios interculturais entre os povos sámi e os vikings noruegueses/suecos: o deus teria assimilado os atributos de Thor. Derivaria daí seu nome, Horagalles, que teria vindo de Thor

karl, cujo significado é “amigo de Thor” (TOLLEY, 2009, p. 275). É provável que os sámi

também tenham adotado um modo de representar seu deus do trovão similar ao nórdico, pois em várias localidades são encontradas estátuas representando Horagalles com pregos cravados em sua cabeça, assim como suecos e noruegueses faziam nas representações de Thor (SIBLEY, 2009, p. 254). Conforme aponta Karsten (1955, p. 24), Horagalles também é

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Figura de linguagem empregada pelos poetas escaldos que consistia na utilização de circunlóquios utilizados para descrever sobretudo os deuses de maneira metafórica. Na tradição poética da Escandinávia medieval, os poetas não nomeavam os seres e coisas pelos seus nomes próprios, mas por essas metáforas (k enningar) ou sinônimos (heiti). Esses sinônimos e metáforas traziam temas relacionados ao corpus da própria mitologia nórdica, narrados em grande parte no capítulo Gylfaginning da obra de Snorri Sturluson, a Edda em Prosa. O segundo capítulo da obra, o Sk áldsk aparmál, ilustra e elucida precisamente esses aspectos da arte poética escandinava, exemplificando vários heiti e k enningar (BOULHOSA, 2004, p. 16).

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19 relatado portando uma arma semelhante a uma clava ou martelo, além de caçar trolls – estes não muito diferentes dos gigantes-. Encontramos, dessa forma, prováveis indícios de que o deus teria surgido na lapônia como resultado de um empréstimo dos vizinhos nórdicos.

Contudo, argumenta-se que estes são apenas dados periféricos acerca de Horagalles e eles não permitem que se negue tratar-se de um deus genuinamente sámi. Além disso, ao contrário de Thor, que é visto como um amigo próximo que os homens devem ter por perto, na cultura indígena dos sámi Horagalles, apesar de ajudar os homens, deve ser sempre “tratado com espanto e reverência” (RYDVING, 1990, p.366).

Localizamos Horagalles no livro Lapponia, escrito por Johannes Schefferus por volta de 1673. Apesar de ser um tratado relativamente completo sobre religiosidade da Lapônia, abordando questões como o xamanismo e os rituais pagãos, o olhar fortemente cristão e missionário do autor acabou por obviamente influenciar sua neutralidade enquanto observador (KISNLEY, 1995, p. 110-111).

Ukko é descrito em uma lista de divindades da Carélia e Häme escrita por Mikael Agricola em sua tradução finlandesa do Salmo de Davi, em 1551. Na ocasião, além de citar os deuses da religião finlandesa pré-cristã, o autor logo em seguida os sujeita à censura cristã. Apesar disso, Agricola foi o primeiro sistematizador e teórico da religião finlandesa antiga (SALO, 2014, p. 92). O deus também é personagem mítico na Kalevala, epopeia finlandesa compilada por Elias Lönnrot durante os anos de 1828 – 1844, onde inclusive recebe o papel de deus supremo (HONKO, 1990, p. 9).

Descrito pela primeira vez nos escritos do linguista Mikael Agricola (Häkkinen, 2016, p.31), Ukko - conhecido também por Ukkonen, era o deus do trovão presente na antiga religião finlandesa. Seu nome significa “homem velho” ou “velho amigo”, o que acaba por ressaltar seu relacionamento com os humanos, como no caso de Thor. Seu domínio seria o das nuvens; é também dito que o deus é capaz de fazer o vento surgir e os raios caírem, além de controlar o clima, principalmente no que diz respeito a tempestades com trovões. Ukko também era invocado para aumentar a fertilidade em termos agrícolas e sexuais.

Encontram-se, neste aspecto, características muito semelhantes às de Thor, englobando atuações sobre os fenômenos naturais e da fertilidade. Apesar da recente tese de Taggart6 (2015) que questiona a relação de Thor com os trovões, toda uma tradição mitográfica

6

“(...) the wide range of sources that have been consulted have shown that thunder and lightning could not have played a more than superficial role in the transmission of Þórr and narratives about Þórr in Iceland or outside of it” (TAGGART, 2015, p.199).

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20 defende a relação do deus com os raios, os trovões e a fertilidade7. Outra semelhança é o fato de que Ukko também é descrito portando armas semelhantes às do deus nórdico, como clavas e martelos (SALO, 2014, p. 106-107). Pentikäinen (1999, p. 138) afirma que na epopeia finlandesa compilada por Elias Lönnrot, a Kalevala, Ukko é a deidade suprema. Posicionando o deus na narrativa de criação do universo, Lönnrot fez de Ukko o deus soberano de todo o cosmos, uma propriedade que, no caso nórdico, não costuma ser conferida a Thor.

Ukko, enfim, compartilha com Thor muitas semelhanças, mostrando-se também estar relacionado à chuva e à fertilidade. Além disso, a influência escandinava na área finlandesa é percebida pela presença de artefatos tipicamente nórdicos e pela adoção, naquela região, de casas e sepulturas também tipicamente escandinavas. Dessa forma, não há porque negar uma possível influência deste povo também na sociedade e religião finlandesas (SALO, 2014, p. 158 – 159).

Considerando-se o contato entre as populações a proximidade geográfica das áreas onde existiram deuses com atributos tão semelhantes, cogitam-se as influências entre os povos. A ideia mais antiga seria a de que os nórdicos foram os grandes responsáveis por influenciar a religiosidade da área sámi e finlandesa. No entanto, esta constatação advém de um olhar julgador que tomaria a cultura sámi como inferior, visto suas raízes indígenas (fino-úgricas) e não indo-europeias. Ressalta Rydving (1990, p. 359) que é este o costume desde o fim do século XIX, quando ressurgiu o interesse pela religião escandinava antiga: notando-se suas semelhanças com a religião e mitologia sámi, concluiu-se instantaneamente que estes segundos só poderiam ser os que haviam absorvido os traços da religião nórdica, superior por natureza. Desde então, todas as semelhanças entre as duas religiões eram explicadas como reflexo da religião nórdica.

Para Bertell (2013, p. 47), mesmo ao regressarmos na linha cronológica é difícil definir qual destes povos, em plena Escandinávia da Idade de Ferro, teria influenciado os outros, mas com certeza este tema nunca deve ser abordado unilateralmente. É inverossímil assumir que, em meio a um choque cultural, apenas uma cultura tenha sido capaz de influenciar a outra. Leva-se em conta o fato de que, quaisquer sejam tais acontecimentos e intercâmbios, suas marcas permaneceram nas fontes escritas.

Embora sejam retratados cada um por suas respectivas fontes primárias, são inegáveis os paralelos que existem entre os três deuses. Sejam nas suas atribuições e poderes, nas armas

7

As relações entre o deus Thor e os trovões, as questões climáticas e a fertilidade foram evidenciadas por diversos autores, entre eles: Davidson (2004; 1988; 1984); Langer (2015); Dúmezil (1973); Turville -Petre (1975); Perkins (2001); Johanson (2005); Motz (1997).

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21 que usam ou na relação que suas mitologias e religiões estabelecem entre eles e os humanos,

Thor, Ukko e Horagalles possuem vários pontos convergentes – bem como alguns

divergentes, certamente - que merecem ser sistematizados e analisados.

Os nórdicos, os sámi e os finlandeses

Os nórdicos são vários povos de origem indo-europeia que habitavam a região da

Dinamarca e da Península Escandinava8. Do século VIII ao XI, esses povos aparecem nas fontes ocidentais sendo descritos como colonizadores, invasores, saqueadores e conquistadores. Eles chegaram a saquear extensivamente as Ilhas Britânicas e o Império Franco, chegando até lugares como a Península Ibérica e o norte da África. Os povos que se depararam com os nórdicos conferiram a eles diversos nomes: os francos os chamavam de

daneses ou homens do norte; os ingleses, de daneses ou pagãos; até o século IX os irlandeses

se referiam a eles como pagãos e depois passaram a chamá-los simplesmente de estrangeiros; no leste europeu eram conhecidos como Rus, nome surgido de uma palavra finlandesa para nomear os Svear (nórdicos da parte sueca) que posteriormente desceram até o rio Volga, na Rússia. Somente os ingleses utilizavam a palavra viking9 para se referir aos nórdicos, termo que, nos dias de hoje, possui uma abrangência muito maior (SAWYER, 1997, p.2).

A palavra viking (em nórdico antigo, víkingr) propriamente dita não consta em nenhuma fonte escrita em nórdico antigo até fim do século X, o que na verdade não é surpreendente, visto que existem pouquíssimas fontes escritas anteriores a essa data. Sua primeira aparição é em inglês antigo do século VIII, onde é empregada para se referir a nórdicos envolvidos em saques ou comércios na Inglaterra. A etimologia da palavra é incerta e as teorias são várias. Segundo Holman (2003, p. 277), existem duas principais teorias. A primeira delas alega que o termo poderia ter se originado da palavra vík, que, em nórdico antigo era usada para se referir aos fiordes. A outra teoria defende que ela teria se originado do inglês antigo wic, que significa “campo” ou “forte”. Ao acrescentar o sufixo –ing, atribui-se a ideia de pertencimento a algum grupo ou categoria. Dessa forma, viking poderia significar “aqueles que vêm dos fiordes” ou “aqueles que acampam”.

No entanto, Eldar Heide (2005) discorda dessas afirmações, que são, segundo ele,

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Península ao norte da Europa que engloba os territórios das atuais Noruega, Suécia e a parte mais ao norte da Finlândia.

9

Discussões sobre a etimologia e o significado do termo são um tanto quanto polêmicos. Basicamente, a palavra é empregada com duas conotações: étnica, para se referir a qualquer habitante da Escandinávia durante a Era Viking; ou ocupacional, se referindo a ações náuticas específicas efetuadas por alguns nórdicos (LANGER, 2018, p.706).

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22 insatisfatórias. Para ele, já que vários outros povos também, ao atracarem seus barcos, preferiam dormir em abrigos temporários (cabanas/barracas) do que na baía, esse fator dificilmente caracterizaria os vikings como diferentes dos outros a ponto de conferir a eles um nome embasado nessa atividade. O autor defende que a palavra viking tenha surgido ainda no Período das Migrações, quando as embarcações dos nórdicos ainda não possuíam a tecnologia das velas e deveriam contar, portanto, somente com a força braçal que mexia os remos. Nesse período, ele explica, a única forma de propulsão eram os remos. Durante as longas viagens era necessário que houvesse turnos para que os remadores revezassem entre si, substituíndo aqueles que estavam exauridos por um remador descansado. Os nórdicos enxergavam esses turnos e alternações, então, como uma própria medida náutica que indicava a distância e a duração de um percurso marítimo: quanto mais turnos e trocas fossem necessários, obviamente maior era a viagem (HEIDE, 2005, p.49).

Nesse contexto, a palavra viking teria sido derivada de víka, que significa “a distância percorrida entre um turno e outro”. Este verbo originalmente significava, em sentido literal, “ir para o lado, mover-se para o lado”, que era exatamente como a troca de turnos costumava ser feita. Como essa alternância deveria ser feita sem que se parasse de remar, aquele que estivesse descansado se posicionava ao lado do remador prestes a trocar; este deslizaria para o lado enquanto o outro assumia seu posto. Por conta disso o verbo víka teria passado, aos poucos, a significar “trocar”10

, e vikings teria sido derivada desse verbo para se referir àqueles que, na época, locomomiviam-se em seus barcos fazendo trocas de turno (HEIDE, 2005, p.50-51).

Com o tempo, os nórdicos do oeste emigraram para fazer seus assentamentos nas Ilhas Britânicas, nas Ilhas Faroé e na Islândia, bem como em algumas ilhas inabitadas espalhadas pelo Atlântico. Próximo ao fim do século X, os nórdicos começaram a colonização da Groenlândia e exploraram a América do Norte (atual território canadense), mas sem estabelecer assentamentos definitivos nestes últimos. O ápice dessas invasões foi no século XI, quando ocorreram grandes conquistas dinamarquesas sobre o reino inglês. Já os Svear, nórdicos localizados sobretudo ao leste da Suécia, foram em direção ao leste Europeu. Lá, acumularam grandes riquezas fazendo comércio de escravos e de peles, cobrando tributos ou simplesmente tomando cidades à força (SAWYER, 1997, p.1).

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Figura 1: Mapa da Península Escandinava e os países mais próximos. Como vemos, sua posição

geográfica favorece o contato com os povos das Ilhas Britânicas, do Báltico e do Norte da Rússia. Fonte: http://twixar.me/wlMK. Acesso em 09/10/2018.

Diferentemente dos nórdicos, os povos sámi são de origem fino-úgrica, e não indo-europeia. Atualmente, eles são o único grupo étnico europeu reconhecido oficialmente como aborígenes. Os sámi nunca tiveram um território ou nação própria, tendo vivido em pequenos grupos e comunidades (siidas) espalhados pelo norte da Europa desde antes da Idade Média. O termo sámi não designa um único povo, ele é utilizado para se referir a várias etnias que possuem traços genéticos, linguísticos e culturais em comum11. Além disso, o nome sámi (sápmelaš, conforme um de seus dialetos) é um elemento de auto-identificação entre os próprios sámi, identificando-os e diferenciando-os etnicamente de etnias e culturas vizinhas, colonizadoras e dominantes em vários aspectos. Já que se encontram dispersos por vários territórios, criou-se o termo Sápmi12 para se referir aos territórios por eles habitados

(LEHTOLA, 2004, p.10).

Visto que os sámi não possuíam um sistema de escrita, os registros históricos que encontramos sobre eles foram feitos por estrangeiros. Obviamente que a visão desses autores sobre os sámi era fortemente influenciada pelos seus respectivos contextos culturais, sociais,

11

Existem, ainda hoje, ao menos nove etnias sámi. Cada uma possui seu próprio dialeto e suas particularidades. As etnias sámi mais conhecidas são: Sámi do Sul, Ume Sámi, Pite Sámi, Lule Sámi, Sámi do Norte, Skolt Sámi, Kildin Sámi e Ter Sámi, mas existem outras (LEHTOLA, 2004, pp. 10-11).

12

Também chamada de Lapônia. Esse nome não remete a uma nação com territórios demarcados, mas conceitua as áreas onde os diversos povos de etnia sámi habitam, englobando quatro países: Noruega, Suécia, Finlândia e a Península de Kola no norte da Rússia (KENT, 2014, p.3).

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24 históricos e religiosos. Aliás, muitas das fontes tardias de que dispomos sobre a religião sámi pré-cristã foram escritas por cristãos com olhares missionários e proselitistas, como Olaus Magnus (1.500 d.C) e Johannes Schefferus (1673 d.C). Nessas obras e em outras que as precederam, os sámi eram chamados de lapões13 e as terras que habitavam, ao extremo norte, de Lapônia. Essas obras descreviam os sámi visando satisfazer um público e uma tradição oriundos do sul da Europa: dessa forma, os sámi foram ora descritos como selvagens pagãos que necessitavam aprender os costumes do homem cristão civilizado, ora como remanescentes exóticos da forma mais primitiva e primordial do ser humano (LEHTOLA, 2004, p.16).

O termo Lapp, no começo, se referia a essas pessoas que viviam nas periferias de grandes centros e rotas de comércio nórdicos. Vivendo em regiões marginais, esses povos que não praticavam uma agricultura fixa não eram, portanto, civilizados. É exatamente o caso dos sámi, que viviam ao extremo norte da Noruega e Suécia, por exemplo, e praticavam o nomadismo. O mesmo termo também passou a ser utilizado no século XII para nomear pessoas que praticassem atividades econômicas tidas por “lapônicas”, como a caça, a pesca e o pastoreio de renas. Em fontes mais antigas, as palavras fenni e finn também eram utilizadas em muitas ocasiões para denominar povos sámi (LEHTOLA, 2004, p.10). Vale lembrar que em várias fontes, principalmente nas de origem escandinava, os sámi eram confundidos com os finlandeses e, muitas vezes, empregavam-se os mesmos termos para se referir a ambos os povos sem distinção.

Figura 2: Mapa da área englobada pela noção de Sápmi. Um olhar para o mapa rapidamente evidencia

que os sámi habitavam principalmente a área costal da Noruega e seu extremo norte, bem como o norte da Suécia e da Finlândia, além de uma Península, atualmente pertencente à Rússia, chamada Murmansk. Fonte:

http://twixar.me/9lMK. Acesso em 09/10/2018.

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25 Definir a identidade sámi não é tarefa fácil. Por muito tempo foram utilizados somente critérios linguísticos e genéticos, negligenciando uma série de outros fatores que pareciam importantes como critérios de identificação segundo os próprios nativos. Apesar de ainda existirem controvérsias nesse campo, Broadbent (2010, p.3) elenca diversos aspectos constituintes da identidade sámi, embora ele próprio afirme que eles não estão terminados ou completos. Reunindo diversos outros estudos sobre a questão o autor chegou à conclusão de que, além das questões genéticas e linguísticas, outros fatores servem não somente para os sámi, quanto para separá-los dos nórdicos: economia (pastoreio, caça e nomadismo seriam sámi, enquanto que a prática da agricultura seria tipicamente escandinava); expressões da religiosidade, como práticas funerárias e morfologia das sepulturas, sítios de oferenda e outros tipos de locais sagrados; cultura material (artefatos, ferramentas, vestimentas); organização social, principalmente no caso das siidas14; tipos de habitações, como as kåta ou as goahte15; e, por fim, os territórios habitados.

Por sua vez, os fínicos (ou finlandeses) são povos também de origem fino-úgrica. Suas origens remontam, provavelmente, ao período da Cultura do Pente em Cerâmica II16 (3.300-2.800 a.C), visto que, segundo a teoria mais aceita, essa cultura é que teria trazido o idioma proto-urálico17 até a Finlândia. Assim, a Cultura do Pente em Cerâmica teria se espalhado por todo o território finlandês e da Carélia russa, subindo até a região do Círculo Ártico, bem como na Estônia, na Livônia e na área litorânea do Golfo da Finlândia. Teria ocorrido posteriormente um encontro destes com a Cultura da Cerâmica Cordada (2.500-2.000 a.C)18, constituída por povos que haviam migrado do sul para a região. Costuma-se afirmar que estes sejam indo-europeus e haviam trazido, com eles, algumas formas de agricultura, apesar de que os registros mais antigos que se tenham sobre agricultura na região da Finlândia seja de 2.000 a.C (TOLLEY, 2009, p.32).

A Cultura da Cerâmica Cordada teria então se fundido à Cultura do Pente em Cerâmica, originando a cultura Kiukainen, predominante no sudoeste da Finlândia. Os povos da cultura Kiukainen receberam paralelamente influências do sul da Escandinávia e da Estônia, bem como o oposto: foram encontrados vestígios materiais desse povo em lugares nórdicos como

14

Siidas são os nomes dados, em próprio dialeto sámi, às pequenas comunidades e assentamentos dos povos sámi, que podem estar localizados em regiões costeiras e litorâneas, em montanhas ou em densas florestas rumo ao interior.

15

Kåta em sueco, ou goahte/goahti em sámi, é o nome dado às cabanas usadas como moradia pelos sámi. Basicamente, havia três tipos distintos de acordo com o material do qual elas eram feitas, podendo ser de madeira, tecido ou barro de turfa.

16

No original, Comb Ceramic Culture II.

17 Idioma que teria dado origem às línguas fínicas. 18 No original, Corded Ware Culture.

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26 Hälsingland e Gotland, indicando possíveis assentamentos Kiukainen em território nórdico. Durante a Idade do Bronze (1.500 a.C), os povos da Finlândia estavam divididos entre os agricultores na área costeira e os caçadores no interior: há fortes evidências de contato dos finlandeses com povos do leste e do oeste neste período, dentre eles, os nórdicos. Muito provavelmente havia nórdicos vivendo entre os finlandeses neste período, principalmente como comerciantes. Seu objetivo deveria ser o de procurar produtos valiosos como peles, por exemplo, os quais eles poderiam comercializar em troca de metais vindos da Europa Central para alimentar a indústria escandinava do bronze (TOLLEY, 2009, p. 33).

Também dizendo respeito às questões de identidade, é importante apontarmos como elas se davam no contexto medieval e da antiguidade, ainda que brevemente. Conforme dito anteriormente, muitos povos fino-úgricos não eram caracterizados de acordo com suas identidades étnico-culturais e, dessa forma, por muito tempo tomou-se os sámi por fínicos e vice-versa. Temos a ocorrência, em fontes gregas e latinas, das palavras Fenni e Finni (como na obra de Tácito19, o primeiro a chama-los pelo termo Fenni); em inglês antigo, Finnas e

Finne; em nórdico antigo, Finnar, mas nenhuma dessas palavras era utilizada para se referir

aos fínicos, e sim aos sámi. Em nórdico antigo, as fontes que temos (basicamente, sagas20) se referem continuamente aos sámi por meio da palavra Finnar, enquanto que os fínicos eram chamados de Kvæner21. É possível que os suecos, durante a Idade Média Tardia, fizessem uso da palavra *Fennoz para denominarem tanto fínicos quanto os sámi, tendo posteriormente acrescentado um composto que resultou em *Skriðiffinoz (“sámi esquiadores”) para se referirem especificamente aos sámi (TOLLEY, 2009, p.40).

Interações entre nórdicos, sámi e finlandeses

Davidson (2004, p.126) já havia levantado a hipótese de que haveria um intercâmbio

cultural entre a Escandinávia e o leste sámi/finlandês. Analisando traços xamânicos e de êxtase na figura de Odin, a autora alega a possibilidade. Sua hipótese era de que alguns

19

A menção a esses povos encontra-se em sua obra Germania. 20

As sagas são um tipo de narrativa literária onde são descritas a história de uma família ou a linhagem histórica da Islândia Medieval, em especial os feitos guerreiros acontecidos entre os anos de 874-1.300 d.C. O termo foi originado do verbo em islandês antigo segja, que significa recontar, dizer. As sagas são uma exclusividade desta região e do período medieval e dividem-se em vários subtipos de acordo com a temática: sagas lendárias (fornaldarsögur); sagas de reis (k onungasögur); sagas de família (íslendingasögur); sagas dos bispos (bisk upasögur); sagas de cavalaria traduzidas (riddarasögur) e sagas de cavalaria nativas (lygisögur) (LANGER, 2015, p.442).

21

Na Saga de Egil, há a ocorrência dos termos Kirjálar e Kylfingar para se referir a tribos fínicas da região da Carélia. Tal fato pode sugerir que, até meados do século XIII, não havia um termo para se referir aos fínicos de forma generalizada (TOLLEY, 2009, p.40).

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27 elementos da mitologia nórdica, como Sleipnir - o cavalo de oito patas de Odin – seriam produtos da influência da religião sámi, xamânica por excelência22, sobre os nórdicos. Hultkrantz (1996, p.5), também ressaltou alguns aspectos dessa influência: a ocorrência, na Escandinávia, do culto a um pilar do mundo – o veraldarnagli – teria surgido graças à influência Sámi, povo esse que cultuava um pilar do mundo e temia que ele caísse.

Nas áreas costais de Helgeland, norte da Noruega, o apogeu das interações entre nórdicos e sámi foi em algum ponto entre os anos de 300-600 d.C.. Vestígios arqueológicos apontam que assentamentos vikings espalharam-se brandamente pela região conforme a agricultura ia tornando-se viável e o comércio, mais lucrativo e conveniente. Paralelamente, os sámi da costa retiraram-se rumo aos fiordes do interior, principalmente os menores, na região de Tysfjord. Esse fato garantiu grande proximidade e interação entre eles e os nórdicos, criando um ambiente fértil para que ocorressem diversas simbioses culturais, linguísticas e religiosas. Com isso, os sámi da costa passaram a servir também como intermediários entre os nórdicos e outros povos sámi, do interior, havendo até mesmo relatos de casamentos entre os dois povos (KENT, 2014, p.22).

Durante a Era Viking, o mundo nórdico foi cenário de intensos encontros, interações, intercâmbios e influências mútuas entre nórdicos, finlandeses, sámi, bálticos e até mesmo eslavos. Quando nos propomos a analisar todo o contexto da Fennoscandia23 durante a Era Viking, precisamos enxergar as tradições religiosas desses diversos povos que a habitam não

22 Nesse aspecto, a religião sámi pré-cristã possuía uma série de características xamânicas que não são detectadas no caso dos nórdicos, ou que então demonstram ser, na primeira, muito mais recorrentes e marcantes. Ao contrário das sociedades nórdicas, as comunidades sámi contavam com uma figura de alta relevância social e espiritual, que seria a do xamã. Chamados de noaidi ou noaide, os xamãs eram os especialistas religiosos, conhecidos por possuir as técnicas e o conhecimento necessários para se comunicarem com outros mundos e seres. Os noaidi, então, eram capazes de entrar em estado de transe enquanto entoavam suas preces ou sacrifícios, acessando os planos espirituais . Uma vez imersos nesse estado, os xamãs eram capazes de trazer mensagens, advertências e presságios em prol d e ajudar na sobrevivência da comunidade. Também acreditava-se que fossem capazes de mudar sua aparência e forma, transformando -se em animais (ursos, lobos, renas, peixes) ou então assumindo formas de manifestação da natureza, como rajadas de vento. Sendo assim, as práticas mágicas e ritualísticas, bem como as cerimônias coletivas, eram lideradas pelo xamã (noaidi). Segundo as fontes primárias, o xamã também era responsável por passar adiante e coletivizar o conhecimento de toda a tradição religiosa e visão cosmológica dos sámi, atuando como uma espécie de poeta mitológico e guardião da tradição oral. Também eram tarefas do xamã o diagnóstico e a cura de enfermidades, a adivinhação do tempo mais propício para a caça e pesca e o resgate de objetos importantes que foss em perdidos. Tudo isso tornava-se acessível ao noaidi graças à sua comunicação com os deuses, animais e seres do outro mundo, por meio da experiência do transe. Visando atingir esse transe, o xamã entoava canções específicas, denominadas de joik ou yoik . Apesar das palavras serem importantes, nesse tipo de canção o ritmo detinha maior importância, apresentando predominância de uma melodia monótona que, junto da s batidas de tambores, o induziam ao transe. As três principais fontes primárias que oferecem detalhes e descrições sobre o xamanismo entre os povos sámi são as obras de Olaus Magnus (Historia de gentibus septentrionalibus, 1555 d.C); Johannes Schefferus (Lapponia, 1673 d.C); e, por fim, Lars Levi Laestadius (Fragments of Lappish Mythology, escrito entre 1838-1845 d.C, mas publicado somente em 1997 d.C).

23Fennoscandia é o nome utilizado para designar a região que engloba a Península Escandinava, a Finlândia, a Carélia e a Península de Kola, no norte da Rússia.

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28 como unidades isoladas, mas, pelo contrário, como elementos abrangentes divididos entre esses diversos povos que, por meio de interações econômicas, ecológico-ambientais e culturais, estiveram em regulares intercâmbios. É necessário nos esquivarmos de estudos que foquem no fenômeno religioso apenas dentro de uma única família linguística ou cultural, num viés, por exemplo, Germânico-Escandinavo, Indo-Europeu ou Fino-Úgrico. É necessário explorarmos as interações geográficas que, certamente, não obedecem a esses enquadramentos (DUBOIS, 1999, p.7).

Somente ao levarmos em conta o contexto do norte da Europa como palco de intensas trocas e processos interculturais é que abandonaremos progressivamente a falsa concepção de que a transmissão de ideias religiosas acontece de maneira estritamente linear, de uma geração de crentes para a próxima. Segundo DuBois (1999, p. 7-8), para entendermos o modo como a transmissão de ideias religiosas funciona, é preciso examinar as inter-relações entre os diversos povos que compartilhavam o território nórdico durante a Era Viking. Para o autor, compreender a transmissão de conceitos trans-culturais (como, por exemplo, elementos míticos e religiosos, como deuses e rituais) é abandonar análises que agrupem e separem os povos do norte da Europa apenas em termos linguísticos, já que a transmissão destes elementos não conhece barreiras linguísticas ou genéticas. Ao contrário do que a tradição de estudos sobre o assunto tem feito, separando esses povos de acordo com afinidades linguísticas (indo-europeus, fino-úgricos, germânico-escandinavos, etc.), talvez seja mais interessante pensar uma perspectiva geográfica que possibilite visualizarmos a maneira como todos esses povos dividam o Norte durante a Era Viking (DUBOIS, 1999, p.9)24.

Não só durante o momento de expansionismo nórdico da Era Viking, mas também em meados da época de conversão ao Cristianismo (estamos nos referindo, então a um período que engloba do século XII ao XVII), todos esses povos habitando a área nórdica mantiveram contato e exerceram influências mútuas por meio de laços e trocas econômicas, maritais e religiosas. Os vikings nórdicos comerciantes, especialmente oriundos da Suécia, Dinamarca e Gotland, viajaram frequentemente rumo ao leste, até a Finlândia, os países bálticos e a Rússia, mantendo contato frequente com esses povos. Nórdicos e povos Fino-Bálticos competiam entre si pelo acesso ao comércio de peles e outros produtos do extremo norte, apontando para um sistema de comércio na região que era altamente descentralizado. Assim, é possível que

24“By looking at the interrelations between the various peoples who shared the Viking-Age North, we can perceive broad commonalities of worldview that served as conceptual bases for the comparison and exchange of more specific religious ideas: underlying views of death, for instance, which facilita ted the shift from cremation to inhumation burial among Nordic pagans well before the actual adoption of Christianity, the ultimate source of the new custom itself” (DUBOIS, 1999, p.9).

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29 Nórdicos, Fino-Bálticos e provavelmente também Eslavos, circulassem entre a área das siidas sámi, buscando comércio ou então modos de extorsão (DUBOIS, 1999, p.25).

O contato entre finlandeses e nórdicos começou ainda na Idade do Ferro (1.200 a.C). Certos achados datados deste período demonstram forte influência germânica sobre os povos fínicos, o que pode ser um indício de chefes locais se beneficiando de comércios e trocas com os nórdicos e atuando, quando podiam, como intermediários entre estes e os fínicos do interior. Os intercâmbios entre estes povos continuaram sem cessar até atingirem novo ápice durante o período Merovíngio (600-800 d.C), quando ocorreram novamente vários assentamentos nórdicos e rotas de comércio em território finlandês. Já dos anos 800 a 875 d.C a cidade sueca de Birka tornou-se um grande centro de comércio, recebendo até produtos da China e moedas árabes. Costuma-se atribuir o sucesso comercial da cidade às rotas de comércio que a ligavam aos búlgaros do rio Volga, pois quando esta rota foi fechada Birka pereceu. O fato que nos é interessa é que em Birka foram encontradas várias peças de cerâmica finlandesas, indicando presença destes povos na região ou, ao menos, intensas relações de trocas e comércio entre eles e os nórdicos (TOLLEY, 2009, p.33).

Ainda segundo Tolley (2009, p.34), uma rota comercial utilizada pelos vikings rumo ao leste passava pelo Golfo da Finlândia, onde muitas moedas escandinavas foram encontradas, principalmente na costa sul, e em menos quantidade no norte da região. Como foram encontradas, nesses locais, poucos vestígios da presença finlandesa, a principal hipótese é a de que os povos fínicos do interior se dirigiam esporadicamente até a costa para negociar com os nórdicos, mas não possuíam assentamentos definitivos na região

Em meio a este cenário torna-se possível a hipótese de que Ukko tenha sido adorado no oeste da Finlândia até os finlandeses terem encontrado os nórdicos, que traziam também seu deus do trovão: tais encontros fizeram com que Ukko e Thor se tornassem cada vez mais similares. Isso explicaria a facilidade com que um dos deuses poderia ser aceito na comunidade onde estava chegando. Parece que Ukko permaneceu um deus violento a quem os finlandeses antigos rezavam para ajudar em questões práticas como cultivo de plantações, ajuda na caça, benção de nascimentos e garantia de fertilidade, já Thor, fortemente adorado pelos camponeses, tinha algumas de suas histórias modificadas para que fossem contadas para reis em grandes salões pelos poetas escaldos. Por meio desses entremeios envolvendo as divindades, provavelmente houve uma influência recíproca entre os dois deuses, já similares. Contudo, Ukko seria mais parecido com Thor cultuado pelos camponeses suecos para fins pragmáticos, e não com o Thor das sagas, de feitos heroicos cujas peripécias entretinham a

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