• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III: UM OLHAR COMPARATIVO

3.3 Papéis, poderes e atributos dos deuses: convergências e divergências

Neste subcapítulo, nosso intuito é o de evidenciar de maneira definitiva, tanto quanto possível, aquele que é o objetivo primeiro e principal da investigação por nós proposta. Apresentaremos um panorama geral envolvendo os poderes, atributos e papéis que cada uma dessas divindades recebeu em suas respectivas fontes, esmiuçando alguns de seus aspectos quando necessário. Feito isso, oferecemos uma perspectiva comparativa que seja capaz de apontar para as convergências e divergências surgidas entre esses deuses no que diz respeito aos seus centros semânticos nas obras analisadas.

Primeiramente, reunimos e sintetizamos os principais e mais presentes aspectos e atributos de Thor conforme retratados pelas fontes primárias. Gostaríamos de apresentá-los de maneira sistematizada na tabela que segue, comentando-a em sequência. O objetivo é evidenciarmos os centros semânticos recorrentes a respeito de cada divindade, conforme a proposta de Schjødt (2013). Esses centros semânticos são categorias de identificação dentro do discurso mítico/religioso para onde convergem e se agrupam significados a respeito de uma unidade mitológica, como uma divindade ou um ritual. Tais significados e sentidos passam a atuar como elementos caracterizadores e qualificadores dessa unidade, que passa, dessa forma, a ser prontamente reconhecida graças a eles. Esses significados passam a ser sempre esperados pela audiência da sociedade em que os mitos em questão circulam, esperando, dessas figuras (no caso dos deuses), que elas recorrentemente manifestem quase como que imanentes as características e significados que essa própria sociedade construiu em torno deles184 (SCHJØDT, 2013, p.12).

Mito Fonte primária Atributos destacados

Descrição/Apresentação feita ao deus

Gylfaginning (Edda em Prosa)

Força/Inimigo dos gigantes

Jornada ao reino de Útgarða-Lok i Gylfaginning (Edda em Prosa) Força/vitalidade/vigor; Proximidade com os

184 Também é importante ressaltar que, na caracterização dos deuses nórdicos, uma vez estabelecidos esses centros semânticos, eles viriam depois a se tornar resistentes a mud anças. Isso implica em afirmar que, se por um lado eles atuam como elementos caracterizadores de identidade que permitem a audiência reconhecer prontamente os sentidos e qualidades de uma unidade, por outro lado os centros semânticos atuam de maneira paralela restringindo e delimitando a representatividade narrativa das divindades (TAGGART, 2015, p.37). Uma exibição de força extrema vinda de Thor seria algo perfeitamente esperado, pois tal elemento constitui grande parte dos significados que compõem seu cen tro semântico, mesmo motivo que não permite, por exemplo, que Thor seja reconhecido como um deus da poesia e das artes, elementos estes estranhos à composição de sentidos em torno do deus.

181 humanos;

Inimigo dos gigantes (apesar de não chegar a matar

nenhum deles); Papel cosmogônico Pesca de Jörmunganðr Gylfaginning (Edda em

Prosa)

Força/coragem; Inimigo dos gigantes (especificamente da serpente) Apresentação de

heiti/k enningar para se referir ao deus

Sk áldsk aparmál (Edda em Prosa)

Inimigo/eliminador dos gigantes;

Defensor dos deuses e Homens

Duelo contra Hrungnir, seguido pelo episódio com

Aurvandil

Sk áldsk aparmál (Edda em Prosa)

Inimigo dos gigantes; Função criativa/cosmogônica;

Força;

Domínio do ar e atmosfera

Haustlöng Poema escáldico, mas

presente no Sk áldsk aparmál (Edda em Prosa)

Fenômenos meteorológico/geológicos;

Função criativa/cosmogônica;

Inimigo dos gigantes; Raios/trovões. Duelo contra Geirröðr Sk áldsk aparmál (Edda em

Prosa)

Inimigo/eliminador dos gigantes;

Agente cultural (relação com o trabalho dos ferreiros);

Þrymsk viða Edda Poética Inimigo/eliminador dos

gigantes;

Gênero (travestimento); Martelo para abençoar; Vitalidade/vigorosidade;

Vulcanismo

Hárbarðsljóð Edda Poética Eliminador de gigantes;

Força; Proximidade com os

camponeses.

Hymsk viða Edda Poética Eliminador de gigantes;

Coragem; Força.

Tabela 2: Principais atributos conferidos a Thor nas fontes primárias investigadas.

Na Edda em Prosa, obra de Snorri Sturluson, o vínculo entre Thor e os fenômenos meteorológicos sem dúvidas não é o que mais se destaca. A própria apresentação do deus, feita pelo autor no capítulo Gylfaginning, não se preocupa em evidenciar qualquer conexão entre ele e os raios ou trovões. Apesar de citar até mesmo o martelo Mjolnir e outros dos artefatos do deus, Snorri não aproveita essa oportunidade textual para apresentar à sua audiência, mesmo que de maneira sucinta, que Thor conecta-se à regência meteorológica ou

182 que se faça conhecido graças a algo nesse aspecto. E não podemos apontar essa omissão como falta de espaço ou conveniência, pois o autor aproveita para caracterizar Thor nesse momento como uma divindade de força extrema cuja principal tarefa é eliminar os gigantes com seu martelo. É possível que a caracterização elencada por Snorri esteja de fato preocupada em ressaltar ou os elementos qualificadores pelos quais Thor ainda era (re)conhecido e lembrado na Islândia do século XVII, ou em resumir, de fato, tudo o que em suas pesquisas ele havia encontrado sobre o deus, pesquisas essas que o teriam revelado o lado da força e da inimizade de Thor em relação aos gigantes. De qualquer maneira, o trovão, os raios e fenômenos afins não se mostraram importantes o bastante para Snorri a ponto de que os citasse em sua pequena introdução a Thor.

Durante sua jornada a Útgarða-Loki, o deus nos propicia diversas pistas sobre outros de seus atributos. Sua proximidade para com os humanos, sustentando a posição de protetor destes, é inegável. No caminho, Thor é acolhido por um camponês e sua família, para quem esteve disposto a matar os próprios bodes para que os pudesse dar de comer a todos. E ressaltemos que, mesmo tendo sua ordem descumprida, fazendo com que um de seus bodes ficasse manco, Thor ainda assim não se vingou de maneira violenta, como é de se esperar de um deus em estado de ira. Se o fizesse, estaria violando por completo seu papel de protetor dos humanos.

Posteriormente, já na companhia de Thialfi e Roskva, o grupo se depara com um gigante. Uma vez tendo ele dormido, Thor tenta abrir a bolsa de provisões do gigante, almejando pegar comida para todos, mas não consegue fazê-lo. Ele cai, então, em estado de fúria, fúria essa que de fato pode estar relacionada à percepção de que sua incrível força não foi o suficiente para abri-la, mas, por outro lado, também pode ser fruto da frustração ao constatar que havia falhado em prover comida para suas companhias humanas (LINDOW, 2000, p.176). Esta seria a outra manifestação simbólica, no episódio de Útgarða-Loki, do vínculo entre Thor e a comunidade humana, da qual ele era o protetor e o assegurador do bem-estar.

Outro sentido presente em torno de Thor nessa narrativa, e que mais se destacam é sua rivalidade contra os gigantes. Ele tenta por três vezes afundar seu martelo na cabeça do primeiro gigante que encontram e, em seguida, apesar de ter sido avisado dos perigos em

Útgarða-Loki, resolve mesmo assim continuar sua jornada rumo ao dito reino para provar sua

superioridade frente a essa raça inimiga. Apesar de o deus não eliminar efetivamente nenhum deles nessa narrativa, há, sim, elementos indicadores dessa rivalidade que se fazem presentes.

183 Há também uma curiosa função criativa exercida por Thor nesse mito, conforme destacado por Lindow (2000, p.181). Os três golpes que o deus desferiu na cabeça do gigante

Skrymir, apesar de não terem atingido diretamente seu alvo graças a magias ilusórias das

quais Thor foi alvo, acabaram resultando na criação de três montanhas. Talvez esse aspecto presente na jornada do deus Útgarða-Loki, por mais que o retratem como inapto para o mundo da magia, lhe conferem certa reivindicação como detentor de habilidades que também o permitem ser parcialmente criador do cosmos (LINDOW, 2000, p.181).

Mas o seu atributo que mais se destaca nesse mito diz respeito à sua força e vitalidade, aspectos pelos quais o deus é tão conhecido em outras das fontes. É verdade que os acontecimentos em Útgarða-Loki tratam, grosso modo, de uma série de fracassos de Thor ao enfrentar desafios e obstáculos relacionados à força, satirização que levou autores como Frog (2014, p.138) e Davidson (1990, p.74) a defenderem que esse mito não pertencia a uma tradição verdadeiramente religiosa ou mítica. Aqui, encontramos o deus sendo constantemente humilhado por não conseguir atingir uma série de objetivos, quase todos relacionados à força. Lembremos que, ao término da narrativa, é revelado a Thor (e ao leitor) que todas as vitórias concecidas aos gigantes haviam sido atingidas por uso da mágica, âmbito ao qual Thor não pertence. Portanto, o mito não se tratava de evidenciar uma suposta fraqueza do deus no sentido físico. Aliás, não faria sentido que algo do tipo constasse na obra de Snorri, que já em sua introdução o autor alega ser Thor o mais forte e poderoso dos deuses (STURLUSON, 1995, p.22).

No entanto, mesmo que o mito se trate de alguma espécie de paródia a Thor numa época em que o culto a ele não possuía mais grande relevância, é interessante notar quais foram as ferramentas escolhidas para satiriza-lo. Por que justamente a oposição força x fraqueza? Se a fraqueza de Thor é memorável – e risível - ao longo dessa narrativa, é precisamente devido ao fato de que, dos elementos constituintes do núcleo semântico do deus, é a força sobre-humana e excessiva que o caracteriza. Espera-se que Thor seja forte, pois fraqueza não é parte integrante de seu centro semântico (um breve olhar na tabela acima tornará isso explícito) e, assim, ao encontrarmos uma narrativa em que o deus é constantemente humilhado por conta de uma ausência de força e suposta fraqueza, o enredo torna-se memorável e inesperado justo por conta dessa quebra na expectativa em torno do deus. Tanto é que o próprio fim do episódio revela que somente a magia ilusória é capaz de enganar o deus, e não qualquer superioridade física de algum gigante em relação a ele: por meio de tal revelação é devolvido a Thor, então, o status de sua incrível – e ainda imbatível – força.

184 Considerando o que acaba de ser exposto, não nos parece exagero afirmar que a característica mais ressaltada de Thor no episódio de Útgarða-Loki, embora de maneira negativa185, seja sua força extrema. Também há, conforme indicado, conteúdos relacionados a um pontual papel cosmogônico-criativo do deus, além de serem salientados seus laços de proteção para com a comunidade humana. Novamente, não há qualquer manifestação de um vínculo seu para com fenômenos meteorológicos.

Ainda no Gylfaginning, o episódio da pesca de Jörmunganðr contribui ainda mais para que se evidencie o papel de Thor enquanto inimigo da raça dos gigantes. Seu único e principal objetivo era o de eliminá-la. Obviamente que, quase que como condição sine qua non para que tal embate ocorresse, Thor se mostra como corajoso, bravo, e faz, em seguida, uso de sua grande força para que conseguisse puxar para acima do nível d’água essa serpente cuja extensão era tamanha que, lembremos, circundava Midgard inteira. Há, mais uma vez, presença marcante de sua força extrema, desacompanhada de raios, trovões ou ventos.

Movendo adiante para o segundo capítulo da Edda em Prosa, o Skáldskaparmál, Snorri concede uma lista de heiti/kenningar para se referirem a Thor. Também nessa parte constatamos que nenhuma das possíveis figuras de linguagem listadas pelo autor relaciona

Thor a fenômenos atmosféricos de qualquer espécie. Ao invés disso, eles terminam por

declarar uma vez mais sua função de protetor/defensor dos deuses e homens, além de inimigo e eliminador da raça dos gigantes. Nas poesias escáldicas buscadas por Snorri, ou não haviam

heiti/kenningar relacionados à regência atmosférica, ou o autor, por algum motivo obscuro,

resolveu não citá-los em sua lista. O mesmo acontece com sua super força, que também não foi mencionada como sendo constituinte dessas estratégias poéticas: trata-se de um dos poucos casos em que sua característica da extrema força não se faz presente.

No próximo mito exposto no Skáldskaparmál, Thor duela contra Hrungnir e, em seguida, nos é narrado o episódio da estrela de Aurvandil. A própria razão-de-ser da narrativa nos revela um conhecido centro semântico do deus: seu papel como eliminador dos gigantes. John Lindow (2002, p.287) defende ser esta uma dentre tantas outras narrativas que consolidam Thor como entidade especializada em eliminar os gigantes. Além disso, Hrungnir é descrito como sendo o mais poderoso de sua raça. Ora, se Thor foi capaz de fazer frente ao gigante, enfrentá-lo e derrotá-lo186, então logicamente que estão implícitos seu grande poder e

185 Por “maneira negativa”, referimo-nos ao fato de que sua força é evidenciada não ao atribuir narrativamente e de maneira direta a Thor feitos que exigem força sobre-humana, mas ao fazer parecer que, de maneira súbita, a força do deus aparentemente não era mais o suficiente.

185 força pois, do contrário, ou ele teria sido vencido pelo gigante, ou então o duelo não teria ocorrido.

Ainda no contexto específico do momento do combate, pode ser que tenhamos uma alusão ao raio. Thor arremessa seu martelo, que vai de encontro à pedra amoleira arremessada pelo gigante. Do choque entre os dois objetos, faíscas são criadas. Como Mjolnir foi lançado, fez toda uma trajetória no ar e, ao chocar-se com a pedra de Hrungnir, produziu faíscas, pode ser que esta se trate de alguma concepção de raio sendo atirado por Thor. Ademais, como todo o episódio em questão se constrói outorgando ao deus, aos poucos, o domínio dos ares e da atmosfera187, é provável que realmente tenhamos aqui, de maneira mais clara e segura, o retrato de fenômenos meteorológicos regidos e controlados por Thor (LINDOW, 1996, p.17).

Somada esta à segunda parte da narrativa, podemos identificar alguns motivos etnoastronômicos na figura de Thor, conforme proposto por Langer (2018, p.236-238). O dedo do gigante Aurvandil, ao ser transportado por Thor em uma cesta188, ficou para fora da mesma e congelou. O deus, em sequência, arremessa o dedo em direção ao céu, que se torna uma estrela conhecida como “o dedo de Aurvandil”. Trata-se novamente de uma reivindicação de Thor enquanto deus capaz de executar atos criativos e cosmogônicos; afinal, nessa parte da narrativa, o deus dá nascimento a nada menos que uma estrela.

Além disso, é importante também frisar que Thor termina o duelo com uma lasca de pedra cravada em sua cabeça, motivo pelo qual busca a ajuda da feiticeira Groa. Se aliarmos a esse detalhe o fato de haverem estátuas de Thor retratadas com pregos na cabeça – algo que outros povos da região báltica, finlandesa e eslava também manifestavam em suas estátuas de deus do trovão -, podemos relacioná-lo à noção de prego cósmico, que seria um ponto fixo no céu, visível para povos do Norte do globo, conhecido hoje em dia por ser a estrela Polaris. mãos o parceiro de Hrungnir (uma espécie de boneco animado que havia sido construído a partir do barro) também foi o responsável por ludibriar o gigante com um falso conselho que possibilita ria que Thor o atingisse sem defesa.

187 “Então Hrungnir cravou o escudo embaixo de seus pés e ficou em cima dele, e segurou a pedra amoleira com as duas mãos. Em seguida ele viu raios e escutou trovões. Então ele viu Thor em sua fúria divina, viajando em enorme velocidade, ele balançou seu martelo e o arremessou em Hrungnir a uma grande distância” (STURLUSON, 1995, p.79, tradução nossa).

188 Gostaríamos de apontar um detalhe intrigante: em sua lista de 1555 d.C, Agricola menciona um “cesto” de Uk k o que aparentemente está relacionado à fertilidade dos campos. Holmberg (1964, p.299) menciona u m relato de inspeção eclesiástica escrito em 1670 que menciona Uk on vak at, ou seja, “cestas de Uk k o”, levantando a hipótese de que realmente existiram essas cestas feitas visando alguma conexão ou vínculo com o deus dos trovões finlandês (provavelmente por alguma questão de fertilidade). Curiosamente, quando Thor performa um de seus atos cosmogônicos mais marcantes, a estrela criada a partir do dedo de Aurvandil, o deus o está transportando justamente dentro de uma cesta. Ou seja, se Uk k o parece estar vinculado às cestas num contexto de fertilidade, Thor está conectado à cesta precisamente durante um ato criativo de sua parte. A semelhança é relevantíssima e ainda carece de estudos detalhados, visto que não encontramos nada sobre o tema – ao menos não nos idiomas a nós acessíveis -.

186 Essa estrela, conforme abordamos anteriormente, está relacionada a crenças cosmológicas dos povos da área circum-polar, que acreditavam na existência de um axis vertical sustentador do mundo: a estrela polar seria justamente o ponto fixo, elevado e central, que sustentaria essa crença. Portanto, sendo a Polaris percebida por esses povos como um axis, um “prego do mundo”, a existência das estátuas de Thor portando pregos na cabeça e a narrativa do deus contra o gigante Hrugnir - em que Thor termina com uma lasca de pedra cravada em sua cabeça – pode-se defender a existência de motivos astronômicos relacionados à figura de Thor (LANGER, 2018, p.237-238).

Na versão dessa narrativa conforme o poema Haustlöng, diversos desses motivos se repetem. Também há a criação da estrela a partir do dedo de Aurvandil, revelando o papel cosmogônico de Thor; sua função de eliminar os gigantes, pois ainda trata-se de um duelo contra Hrungnir; sua aproximação com os humanos, já que está acompanhado de seu escudeiro Thjálfi; sua função de protetor dos deuses e homens e, por fim, há manifestações, ainda mais presentes do que na versão anterior do mito, de sua conexão com fenômenos atmosféricos e meteorológicos189.

Embora seja inegável que diversos fenômenos meteorológicos e geológicos sejam descritos em Haustlöng (terremotos, deslizamentos de terra, trovões, erupções, chuvas de granizo), autores como Taggart (2017a) os enxergam com certo cetismo, alegando ser necessária cautela para não tirarmos conclusões precipitadas. O autor reconhece que no poema há de fato uma passagem fazendo alusão direta aos trovões, mas esta seria, segundo ele, uma descrição do barulho feito pela carruagem de Thor e nada que aponte para uma manifestação direta do trovão enquanto causado ou criado pelo deus (TAGGART, 2017a, p.103). Portanto, não se trata de negar que exista uma relação entre Thor e estes outros fenômenos ou calamidades naturais, principalmente em Haustlöng. O autor, contudo, defende veementemente que a ocorrência de tais fenômenos não os apontam enquanto pertencentes a algum domínio regido ou governado por Thor, funcionando, na verdade, como recursos narrativos utilizados pelos poetas para enfatizar à sua audiência o tamanho da força e dos poderes de Thor (TAGGART, 2017a, p.110)

O fato de que no poema Haustlöng o deus Thor causa trovões, raios e desencadeia outros fenômenos naturais não permite alegarmos que se trate de uma alusão clara e segura a

189 “O filho de Iord [Thor] conduziu rumo ao jogo de ferro [batalha] e o caminho da lua [céu] trovejou abaixo dele”; “Todos os santuários de falcões [céus] começaram a queimar por conta do padrasto de Ullr [Thor] e o solo estava coberto de granizo”; “O irmão de Baldr [Thor] não poupou aquele ambicioso inimigo dos homens [Hrungnir]. Montanhas tremeram e pedras foram esmagadas; o céu, lá em cima, queimou” (STURLUSON, 1995, p.17, tradução nossa).

187

Thor como um “deus dos trovões”, mas simplesmente uma atestação do impacto que o poder,

as dimensões e a força do deus exercem sobre o ambiente, algo que, inclusive, é pontualmente atribuído também à movimentação outros deuses (TAGGART, 2017a, p.115-116). Contudo, Davidson (1990, p.76) manifesta uma opinião diferente, dizendo que as manifestações de fenômenos naturais e calamidades presentes no poema indicam que a relação entre Thor e a violência das tempestades não estava de forma alguma esquecida na Islândia medieval, seja para Snorri, seja para sua audiência. Visando não descartar nenhuma das duas perspectivas, consideraremos esses aspectos no poema como estando relacionados tanto a uma relação entre

Thor e os fenômenos naturais, quanto recursos ilustrativos de sua força e poder colossais.

A última aparição de Thor na Edda em Prosa, seu duelo contra Geirröðr, o posiciona uma vez mais como inimigo definitivo dos gigantes – e, mais especificamente no caso dessa narrativa, também de gigantas -. Sua força também se destaca, visto que o deus acaba por vencer todos os seus inimigos, mesmo desprovido de seu martelo.

O que torna essa narrativa distinta das outras é o papel de Thor como uma espécie de agente cultural conectado ao trabalho do ferreiro. Lembremos que, quando o deus vê o pedaço de ferro fervente, que havia sido arremessado pelo gigante, vindo em sua direção, ele consegue agarrá-lo e arremessá-lo de volta ao gigante, matando-o no ato. É possível que