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CAPÍTULO II: UKKO E HORAGALLES, OS DEUSES FINO-ÚGRICOS DO

2.1 Horagalles, o deus sámi do trovão

Estudos sobre Horagalles são ainda extremamente escassos, mesmo considerando-se o cenário internacional. É possível que isso aconteça devido às poucas fontes disponíveis sobre o assunto, além do fato de que os dados por elas conferidos são muito fragmentados, e as menções à divindade, pontuais. Há ainda um outro aspecto que contribui para que haja uma menor circulação de estudos sobre o tema: grande parte dos estudos publicados, sejam artigos ou livros, não são disponibilizados em língua inglesa, mas em idiomas como, principalmente, o norueguês, o sueco e o finlandês. Obviamente que essa barreira idiomática termina por limitar o acesso às discussões e teorias em voga nestes locais, caindo num certo regionalismo. Podemos, apesar disso, traçar alguns dos mais clássicos estudos – que, por conta desses problemas elencados, não são muitos – que se debruçaram sobre a figura de Horagalles.

Bernard Picart132, em seu Ceremonies et coutumes religieuses de tous les peuples du

monde (1723), menciona alguns rituais dos povos sámi (na época, chamados de lapões).

Dentre eles, havia supostamente o culto a uma divindade dos trovões conhecida por

Horagalles, representado, entre esses povos, por uma estátua com um martelo no tronco,

como se o empunhasse, e um grande prego ou estaca fincado em sua cabeça133. Num manuscrito escrito pelos noruegueses Thomas von Westen e Johan Randulf134, também em 1723, são descritos diversos locais visitados pelos autores – luteranos –, que eram tidos por sagrados pelos sámi. São oferecidas, entre outras valiosas informações, ilustrações de tambores desses povos, onde são identificadas figuras humanoides portando dois martelos; possivelmente, o deus Horagalles. Por fim, outro pastor luterano, o norueguês Knud Leem, atuou como missionário entre os sámi e acabou escrevendo seus relatos numa série de obras. Em uma delas, Leem fornece a ilustração, também de um tambor sámi, em que dois martelos

132 Versado acima de tudo na arte das ilustrações, o francês Picart baseou -se em diversos relatos envolvendo os povos indígenas de várias religiões e elaborou, dos anos de 1723 a 1743, uma série 10 livros chamada Ceremonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde, em que narra, com objetividade – e, obviamente, com ricas ilustrações – rituais e crenças religiosas de vários povos do mundo. Conforme afirmam Hunt e Jacob (2009, p. 8), trata-se de uma das primeiras empreitas que visavam en xergar e narrar as religiões numa perspectiva globalizadora mais compreensível.

133 A ilustração da suposta estátua, que consta no livro de Picart, já foi reproduzida por nós na página 79. 134 Nærøymanusk riptet, o “Manuscrito de Nærøy”.

106 parecem estar cruzados. A imagem em questão recebeu atenção ao ser abordada pelo lapólogo norueguês Jens Andreas Friis, que alegou se tratar de uma representação do deus dos trovões,

Horagalles. Apesar disso, a tradição acadêmica prestou pouca atenção a esses materiais.

Figura 9: Ilustração de um tambor sámi segundo Thomas von Westen. A primeira figura humanóide à esquerda,

no quadrante superior, porta dois martelos e seria, supost amente, Horagalles. A divisão das ilustrações no tambor manifesta dois quadrantes bem delineados: um superior e outro inferior. A figura com os martelos encontra -se no quadrante superior, supostamente o mundo em que os deuses residem. Próxima a ele está uma rena e algum outro animal de menor porte (este, sem chifres). No quadrante inferior há a presença de inúmeras figuras humanóides, e, por isso, muito provavelmente se trate do mundo dos homens. Em seu centro há uma estrutura apontando para as quatro direções cardeais, em cujos polos estão ilustrações de pessoas com asas, fazendo possíveis alusões às viagens dos xamãs. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/N%C3%A6r%C3%B8y_ manuscript

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Figura 10: Ilustração de um tambor sámi, segundo Knud Leem. Em vermelho, os dois martelos cruzados que

denotariam, para Jens Andreas Friis , os martelos de Horagalles. Nesse tambor, ao menos na parte retratada, não há a presença massiva de figuras humanóides, ao contrário do exemplo visto anteriormente. Algumas delas estão na parte superior direita. Há a presença de duas renas, uma delas puxando um trenó. Próxima à suástica está uma igreja, denunciando que, de fato, trata-se de um tambor produzido já após as frequentes missões, principalmente luteranas, que já eram conduzidas há séculos visando os povos sámi. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sami_Thunder_god_as_doble_hammer_red_on_drum_Finnmark_Nor way_described_by_Knud_Leem.jpg

Recentemente, partindo da etnoastronomia, Johnni Langer (2018) retomou essas ilustrações e lhes conferiu um novo olhar. Para ele, o símbolo visto na figura 10 seria, na verdade, uma suástica, símbolo na maioria das vezes solar mas que poderia ter, entre os povos do Hemisfério Norte, uma relação com a estrela Polaris. Langer (2018, p.244) retoma a teoria de que o simbolismo da suástica, ao norte, teria sido originado pela percepção dos povos nórdicos a respeito do movimento circumpolar da constelação da Ursa Maior entorno da estrela Polaris, que é um ponto fixo no céu. A suástica seria um símbolo que denotaria essa movimentação ao redor de um centro fixo. Essa correspondência entre o símbolo da suástica e questões cosmológicas, ligadas à divindades, ocorre em diversos povos do mundo: no mundo helênico, céltico, chinês, budista, báltico e persa.

Mais especificamente, a relação entre o deus Horagalles, a suástica e a Polaris seria evidenciada, então, pelos relatos de que os sámi cravariam estacas ou pregos nas estátuas representando o deus, conforme visto na ilustração de Picart. Como se sabe, por ser um ponto fixo no céu, a Polaris era associada a um pilar ou prego cósmico. Há evidência disso na Edda

em Prosa, em que há a ocorrência da expressão Veraldar nagli (prego cósmico), fora a própria

108 alojada em seu crânio, algo surpreendentemente semelhante à estátua de Horagalles com um prego em sua cabeça. Além disso, Langer (2018, p. 232-233) demonstrou como diversas culturas ao norte possuíam nomes para designar a Polaris enquanto um prego cósmico: nórdicos, finlandeses, estonianos, bielorussos, chukchis e, por fim, os próprios sámi; e, ainda, que na área finlandesa, báltica e eslava, os deuses do trovão também estão associados de alguma maneira a esse prego cósmico. Certamente que é necessário compreendermos com mais profundidade e riqueza de detalhes o modo como essas relações se manifestavam no plano dos cultos e rituais, o que não torna menos relevante a constatação de que há uma relação entre a Polaris, o prego cósmico e os deuses do trovão (LANGER, 2018, p. 250).

Em História Noturna (1989), Carlo Ginzburg aborda brevemente a questão de

Horagalles, chamado por ele de “um deus lapão do raio, armado de martelo ou bastão”

(GINZBURG, 2012, p 151). Para o autor, o deus sámi dos trovões seria um empréstimo feito por esses povos do deus nórdico Thor, algo perceptível até mesmo em seu nome: Horagalles teria vindo de Thor. Nesse sentido, Tolley (2009, p.275) apresenta um argumento convergente, alegando com veemência, que Horagalles ou Hovrengaellis teve tanto seu nome quanto suas características derivados do nome de Thor em Nórdico Antigo, Þórr karl, cujo significado seria Thor, o homem velho. Ainda assim, Ginzburg (2012, p.151) não descarta a hipótese de que a situação do deus sámi possa ser um tanto mais complexa, embora insista que, assim como a deusa Ruto135, Horagalles muito provavelmente provém da Europa Setentrional.

Embasando-se em relatos de missionários dinamarqueses em solo da então Lapônia, durante o século XVIII, o autor recapitula a descrição de um cesto feito com ramos de bétula onde eram depositados ossos de animais sacrificados que haviam sido sacrificados. O cesto era encimado por um tronco em que estava esculpida a silhueta de Horagalles portando seu martelo. O historiador italiano faz uso dessa informação para defender que, da mesma maneira que Thor, Horagalles estaria relacionado à ressureição dos animais136. Seria difícil não visualizar, nesse fato, reflexos de mitos antigos do remoto passado euroasiático, em que uma divindade, por vezes masculina, mas grande parte das vezes feminina, encarna o papel de gerar e ressuscitar os animais (GINZBURG, 2012, p.151).

Turville-Petre (1975, p.84) também concorda com essa concepção, defendendo que a influência da figura de Thor sobre as populações sámi se deu em algum período entre o fim da

135 Deusa sámi associada à doença e à peste.

136 Conforme visto anteriormente, na Edda em Prosa, Thor usa seu martelo para trazer seus dois bodes de volta à vida após te-los comido.

109 Idade do Bronze e o começo da Idade do Ferro. Apesar de defender esse empréstimo feito por parte dos sámi, não só da figura de Thor, mas também de outros deuses do panteão nórdico, o autor não postula uma adoção irrestrita e total da figura do deus nórdico. Em outras palavras, não foi uma mera transposição de deuses. Uma vez incorporado, Horagalles teria começado a apresentar sua autonomia em relação à figura de Thor, já que começou a se desenvolver dentro da mitologia e dos cultos sámi de acordo com as necessidades culturais, sociais e espirituais peculiares desse povo.

Como consequência, Horagalles aparentemente não era um deus tão próximo dos humanos quanto seu correspondente nórdico: apesar de encarregado da fertilidade, tratava-se de um deus terrível, perigoso e temido, a quem sacrifícios deveriam ser feitos para que se evitassem problemas. Com uma das mãos ele direcionava os raios e trovões para longe e, com a outra, os direcionava aos inimigos de seus adoradores. É provável que Horagalles também presidisse sobre questões mais amplas como a saúde, a vida e a morte, além de se encarregar de matar trolls – já nisso vemos semelhanças com Thor – (TURVILLE-PETRE, 1975, p.84).

Dumézil utilizou-se do poema Hárbarðsljóð como ponto de partida para um polêmico argumento. Como se sabe, o poema trata-se de uma disputa verbal entre o deus Thor e Odin, disfarçado de balseiro. Em certo ponto, é dito que Odin mantinha para si os jarlar que morriam em batalha, enquanto que ficavam, para Thor, os þrælar, que seriam os escravos. Apoiando-se em um estudo de Jan de Vries (1954)137, quem alegou ser a palavra þrælar, no contexto desse poema eddico, uma caricatura, uma paródia sem maiores respaldos – porque, em segundo ele, em outras fontes mitológicas Thor não possui qualquer afinidade com a classe dos escravos -, a palavra correta nesse contexto seria, em oposição aos jarlar de Odin, os karlar de Thor, ou seja, os camponeses. Com esses sim Thor mantém uma série de laços em diversas das fontes, indo das Eddas às sagas, posicionando-se, sem grandes dúvidas, como patrono e protetor dessa classe.

Por conta dessa possível flexibilização da leitura do Hárbarðsljóð, Dumézil também postula que o nome Horagalles remeta à raíz karl, sendo um derivado de *Kar(i)laz, mas não advoga, com isso, que o deus sámi se trate de um empréstimo de Thor como o fizeram, por exemplo, Tolley (2009), Turville-Petre (1975) e Ginzburg (2012). Pelo contrário, notando a possibilidade de atribuir a Thor o controle dos karlar e, percebendo que o mesmo substantivo em sua forma singular, karl, encontra-se na raíz do nome de Horagalles, o francês afirmou que o nome dado a Thor na mitologia sámi (DUMÉZIL, 1973 p.124). Em outras palavras há,

110 aqui, a ideia de que se tratem de nomes diferentes conferidos a uma mesma divindade.

Uno Holmberg, um dos pioneiros em pesquisas envolvendo os povos fino-úgricos, alega que Horagalles era cultuado especificamente entre os sámi escandinavos138, mas que eles curiosamente também chamavam seu deus do trovão de Tor ou Tora-galles, e o representavam, em seus tambores, portando um martelo em cada mão.

Figura 11: Ilustração de Horagalles conforme consta em tambor sámi encontrado na Noruega. As

ilustrações foram copiadas dos tambores sámi pelo padre Thomas von Westen durante o século XVIII. A figura claramente porta dois martelos: um menor, de formato diferente na ponta, tendo uma das extremidades mais curta e fina do que a outra, e um maior, cuja ponta é uniforme. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Horagalles. Acesso em 09/10/2018.

Contudo, o pesquisador afirma que, em sua própria língua, os sámi chamavam seu deus do trovão de Tiermes e atribuíam a ele um arco (tiermaz-juks, associado ao arco-íris) e flechas como arma (HOLMBERG, 1964, p. 230-231). O pesquisador também defende que o deus era encarregado de proteger os homens contra espíritos malignos – ressaltando, de novo, esse paralelo com Thor -. Conforme veremos posteriormente, a questão dos diferentes nomes atribuídos a Horagalles constitui um problema ainda sem resolução, cujos ecos foram, inclusive, perceptíveis já na obra de Johannes Schefferus.