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CAPÍTULO III: UM OLHAR COMPARATIVO

3.1 Breve panorama do intercâmbio mitológico-religioso entre nórdicos, sámi e

As interações entre esses três povos se deram desde um período muito antigo – isso sem considerarmos seus frequentes encontros ainda com outros povos, como os bálticos (lituanos, letônios e antigos prússios) e os eslavos -. Durante a Era Viking, a Península Escandinava certamente não era ocupada apenas pelos nórdicos, no sentido estrito e étnico do termo (dinamarqueses, suecos e noruegueses). No mencionado período, essa área já abrigava uma enorme quantidade de povos Sámi, além de ser, também, uma grande zona de povos urálicos que dividiam entre si afinidades linguísticas, étnicas, religiosas, culturais e cosmológicas, dentre os quais se encontravam os fínicos. Não é sem razão que diversos materiais literários medievais em Nórdico Antigo - principalmente sagas, que também descrevem o período por nós chamado de Era Viking - se referem constantemente à área habitada pelos sámi. Eles se referiam a essa área, na época, como Finnmark, “terra dos

finnar”, se referindo na verdade aos sámi, e não aos fínicos (ZACHRISSON, 2008, p.32).

O termo finnar em Nórdico Antigo foi utilizado em larga escala para se referir, então, aos povos sámi, enquanto que o termo Fenni ou Finni, em latim, é que foi empregado para se referir aos fínicos, algo que só aconteceu em 1171, na bula Gravis admodum do Papa Alexandre III. Os finlandeses demoraram para que fossem percebidos como unidade populacional mais ou menos uniforme e distinta dos sámi. Na Saga de Egil, por exemplo, além de finnar, há a presença de termos como kirjálar e kylfingar para designarem especificamente os finlandeses da Carélia. De certa forma isso não é surpresa, considerada a falta de proximidade, unidade e identidade política, cultural e geográfica entre os inúmeros povos fínicos da época, que ainda levariam muito tempo para se tornarem os finlandeses no sentido que conferimos atualmente. Por outro lado, esses materiais apontam para a dificuldade dos povos nórdicos em compreenderem e identificarem os vários povos fino-úgricos que os cercavam: lembremos que os idiomas destes são radicalmente diferentes das línguas indo- européias herdadas pelos nórdicos, e que seu modo de vida semi-nômade baseado no pastoreio de renas e na caça não era capaz de proporcionar a organização em comunidades tão grandes como a de seus vizinhos. Dessa forma, os sámi e os finlandeses demoraram até que fossem percebidos como distintos entre si, ou então em termos de maiores unidades

151 comunitárias, “os finlandeses”, “os sámi” (TOLLEY, 2009, p. 40-41).

Talvez o maior identificativo linguístico que tenhamos advenha dos suecos, que inicialmente se referiam a ambos esses povos como *Fennōz e depois formaram o composto

*Skriðfinnōz (“sámis esquiadores”) que, conforme se percebe, passou a designar

especificamente os sámi, que faziam uso dos esquis como meio de transporte. Este se trata do primeiro indício de uma característica que foi percebida e passou a atuar como marcador cultural e identitário que os diferenciava dos finlandeses (TOLLEY, 2009, p.41). O que desejaríamos ressaltar é que, ao menos desde a Era Viking, sámis e fínicos – principalmente os primeiros – foram alvos de uma empreita colonizadora dos nórdicos. Conforme as próprias sagas narram, as pequenas tribos espalhadas por Finnmark eram obrigadas a pagar impostos e outras taxas para que não tivessem seus territórios invadidos ou saqueados. Certamente que esse aspecto não resume toda a interação entre eles: havia também um laço econômico- comercial que dava aos sámi a possibilidade de venderem peles de foca, presas de leão marinho e outras coisas do tipo. Essas não eram de forma alguma relações estritamente conturbadas: os noruegueses, por exemplo, sabiam que dividiam seu “país” com outro povo. Ambos os povos viviam numa espécie de simbiose que, se por vezes foi conturbada, por outras também engedrava possibilidades de comércio, trocas e até mesmo casamentos. Mas o essencial de se manter em mente é que eles nunca se viram como iguais: diversos pequenos reis noruegueses forçavam os sámi para que trabalhassem a seu serviço (ZACHRISSON, 2008, p.34).

Portanto, há, desde esse passado, um etnocentrismo no modo como as relações entre nórdicos, sámi e fínicos se desenrolaram, obviamente pendendo para a superioridade desses primeiros: tal etnocentrismo, veremos, foi herdado pela tradição acadêmica da Idade Moderna e ofuscou por muito tempo o estudo honesto desse fenômeno interativo. Enfim, o que gostaríamos de argumentar com isso é que, se por um lado as sabidas e confirmadas inteirações entre esses povos nos forçam a imaginar intercâmbios culturais, religiosos, simbólicos e mitológicos, por outro é difícil saber, nesses aspectos, quem influenciou quem, ainda mais sem eleger um olhar etnocêntrico (BERTELL, 2013, p.47). A resposta certamente será qualquer coisa, menos unilateral. Como bem postulou DuBois (1999, p.7), é preciso abandonarmos antigas terias difusionistas que se embasavam na ideia de uma cultura superior se disseminando por entre outras e influenciando-as, para adotarmos um referencial comparativo que explore as interações geográficas que, certamente, não obedecem a enquadramentos étnicos.

152 O impacto desse etnocentrismo e sua ocorrência nos estudos das relações entre nórdicos, sámis e fínicos são explorados a fundo por Håkan Rydving (1990). Conforme o autor explica, uma nova fase se iniciou nos estudos Nórdicos quando outras ciências foram eleitas para auxiliar e complementar as análises filológicas dos textos em Nórdico Antigo. Nessa onda vieram a arqueologia, a toponímia e uma perspectiva comparativa empolgada por eleger os sámi como segundo objeto. O principal objetivo era preencher, por meio dessas outras áreas, as lacunas deixadas pelas fontes literárias que vinham sendo estudadas até então. Foi a partir desse momento que características da religião sámi passaram a ser utilizadas para explicar as lacunas percebidas a respeito da religião nórdica pré-cristã, em trabalhos como os de Johan Fritzner (1877) e Axel Olrik (1905)170.

A partir desse ponto principal, as religiões sámi e nórdica viriam a funcionar por décadas como fontes de analogia para clarificar e explicar elementos uma da outra. Nesse contexto, a religião nórdica servia para elucidar sobre as origens da misteriosa religião sámi e esta, por sua vez, era vista pelos estudiosos da religião nórdica como unidade preservadora e fidedigna de símbolos, conceitos e rituais nórdicos pré-cristãos que, apesar de mencionados nas fontes literárias, já haviam desaparecido há muito tempo. Em décadas posteriores, a tendência era usar explicações de “empréstimos” religiosos de maneira mais e mais esparsa e cautelosa. Assim, evitando alegar influências adotadas de maneira tão passiva, os sámi e os traços na sua religião tidos por nórdicos passaram a ser explicados num contexto dos povos fino-úgricos, enquanto que elementos na religião nórdica que costumavam ser percebidos como empréstimos oriundos dos sámi começaram a ser tratados como herança de um estrato Euro-asiático em comum (RYDVING, 1990, p.358-359).

Mas, para que entendamos o contexto etnocêntrico no qual esses estudos se embasaram, é necessário nos determos por um instante nas teorias de empréstimos. Quando o estudo da religião escandinava se intensificou no século XIX, as semelhanças entre ela e a religião sámi não somente alegavam uma teoria de empréstimos como veículo dessas similitudes, como concluíam que os sámi, certamente, é que haviam feito empréstimos da religião dos nórdicos, indo-europeus conquistadores e superiores por natureza. Havia também certo interesse epistemológico nessa afirmação: ao defender que os sámi emprestaram muito da religião nórdica, eles e sua religião poderiam, então, ser estudados enquanto portadores das idéias e costumes religiosos dos nórdicos pré-cristãos (RYDVING, 1990, p.359).

O ápice desse tipo de interpretação talvez seja, diz Rydving (1990, p.360) o artigo de

170 Infelizmente, não conseguimos qualquer acesso aos trabalhos de nenhum dos dois autores. Ao que tudo indica, parece não haver versões digitalizadas de seus artigos.

153 Krohn (1906), cujo sintomático título é “Contribuições Lapônicas para a mitologia Germânica”. O nome do artigo já nos confere uma ideia da premissa que ali se esconde: a de que a religião sámi fez grandes empréstimos da religião germânica e, portanto, permanece hoje como mantenedora dessa identidade. O autor chega, inclusive, a considerar que a religião sámi possa servir como critério para que se julgassem os conteúdos supostamente religiosos contidos no material Eddico. Ainda em pleno ano de 1942, a opinião quase que unânime dos estudiosos da mitologia nórdica era a de que suas concepções religiosas pré-cristãs podiam ser encontradas em forma mais original nos empréstimos que as religiões sámi e finlandesa haviam dela feito – e que ainda mantinham -.

As comparações mitológicas foram as que atraíram mais atenção. Assim, buscava-se identificar deuses análogos e paralelos entre os diferentes sistemas mitológicos. Thor, Frey e

Njord e Odin da mitologia nórdica foram equiparados respectivamente a Horagalles, Vearalden Olmmái, Bieggaggális e Rota da mitologia sámi. Consequentemente, como era de

se esperar, essas divindades sámi passaram a ser estudadas para que se obtesse maior conhecimento sobre os deuses nórdicos, como se fossem, de fato, as mesmas divindades apenas com outra roupagem. O caso do deus do trovão, que aqui é de nosso maior interesse, evidentemente não foi diferente. No começo, a divindade sámi dos trovões e suas várias facetas – Tiermes, Horagalles – eram consideradas por Fritzner (1877) um empréstimo do deus nórdico Thor, embora o autor alegasse que isso não significasse necessariamente que um deus do trovão não existisse a princípio entre os sámi. Contudo, um estudo posterior de Krohn (1906) viria a levantar a questão se, de fato, haveria um culto original e nativo ao deus do trovão entre os sámi (RYDVING, 1990, p. 360).

Essa visão etnocêntrica era tudo, menos nova. Lembremos da obra de Schefferus e sua agenda que defendia, nas entrelinhas, o direito sueco de colonização interna dos sámi (BALZAMO, 2014, p.36): Schefferus, ao se deparar com afirmações de que havia cultos a uma divindade do trovão entre esses povos, a chama, antes de qualquer outro nome, de Thor (SCHEFFERUS, 1674, p. 22). Mas esse etnocentrismo conhecia também outras formas de expressão, que por vezes exaltavam a religião sámi de uma maneira fetichista, vangloriando um outro “exótico”. É o que percebemos nos escritos de Ernst Manker (1950), por exemplo, que se propôs descrever e analisar as ilustrações nos tambores sámi. Enquanto que teorias dos séculos XVII e XVIII defendiam haver nesses tambores figuras que remetiam a situações pragmáticas como a caça, a pesca e o pastoreio, Manker se esforçou para enxergar significados cúlticos e mitológicos que, nesse povo indígena, teriam que estar presentes. O

154 dono de um dos tambores, conforme registra o próprio Manker, explica uma figura dizendo ser “o sol que, se brilhar, trará um bom tempo”, enquanto que o autor alega ser “a divindade dos ventos, Bieggolmai” (RYDVING, 1991, p.37). Como podemos notar, os olhares direcionados a essas religiões estiveram quase sempre enviesados de alguma maneira.

Já o oposto ocorreu muito pouco. A maior expressão de uma teoria postulando um empréstimo feito pelos nórdicos e advindo dos sámi talvez seja a de Strömbäck (1935) de que o xamanismo por eles praticado teria influenciado as práticas nórdicas do seiðr. Essa concepção ainda encontra respaldo nos dias de hoje, e muitos estudiosos enxergam, na figura de Odin (LANGER, 2015, p. 345-346) traços xamânicos que poderiam depor a favor de tais influências. O problema do etnocentrismo, assim, se fez presente desde muito tempo no estudo comparativo dessas religiões. Isso sem considerarmos problemas de origem metodológica. As comparações eram feitas entre uma religião bem conhecida, já há anos estudada e rica em materiais literários (a nórdica) e uma pouca conhecida, de um povo minoritário, colonizado e a cujo respeito somente estrangeiros haviam escrito (os sámi). Muitos desses hipotéticos “empréstimos” que os sámi teriam feito de seus vizinhos não eram acompanhados de questões críticas, feito “como” e “por que” tais empréstimos haveriam sido feitos no decorrer da história e interação entre esses povos. Explicar as semelhanças entre as duas religiões dessa maneira parece uma saída fácil, mas que aos poucos revela ser traiçoeira (RYDVING, 1990, p.365).

Por muitos anos, ao longo da história dessa tradição acadêmica, diversos desses pesquisadores eram originalmente estudiosos da religião nórdica pré-cristã. Isso implica em dizer que os documentos e textos em Nórdico Antigo eram analisados com muito mais escrúpulos do ponto de vista filológico do que aqueles provenientes dos sámi: esses acadêmicos grande parte das vezes não tinham o conhecimento linguístico das tradições sámi e, consequentemente, tiravam suas informações de literaturas secundárias, ou então de um número pequeno de fontes que de forma alguma poderia representar a religião desse povo como um todo. As comparações eram feitas, na melhor das hipóteses, entre elementos isolados percebidos como análogos nessas culturas, sem que se considerasse seu contexto e significado mais amplos dentro de cada sistema religioso. Graças a esse problema metodológico, muitas vezes pegaram-se elementos periféricos da religião e o tomaram por centrais, na busca de força-las a se encaixar num esquema analógico (RYDVING, 1990, p. 369-370).

155 nosso, de perspectiva comparativa, explicações simples e relacionadas a conjecturas de empréstimos precisam constantemente ser olhadas com certa desconfiança. O próprio histórico de estudo das interações e intercâmbios religiosos/culturais entre esses povos é permeado por etnocentrismos e desvios metodológicos que precisam ser evitados. Evitando esses dois problemas estruturais, concordamos com a máxima de Rydving:

“A história religiosa da região é, portanto, muito complexa. O encontro entre religiões na Fenno-Scandinavia pré-cristã – envolvendo Fínicos, Carelianos e Russos, bem como Escandinavos e Sámis – não era uma simples troca de empréstimos facilmente definíveis entre unidades sócio -culturais bem demarcadas, mas uma multiplicidade de diferentes processos dinâmicos. Não até que muitos desses processos tenham sido descritos a um nível micro, será possível oferecer uma síntese toleravelmente correta dessas religiões” (RYDVING, 1990, p. 371-372, tradução nossa).171