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CAPÍTULO II: UKKO E HORAGALLES, OS DEUSES FINO-ÚGRICOS DO

2.5 Mikael Agricola e sua obra

A primeira menção ao deus Ukko se dá num período já tardio. Ele consta em uma lista oferecida por Mikael Agricola no momento em que fez a tradução do Salmo de Davi para o finlandês: Davidin Psalttari, em 1551.

Os primeiros anos da vida de Agricola são um tanto quanto nebulosos. Sabe-se que ele nasceu na vila de Torsby, pequeno distrito rural de Pernå, e que foi filho de uma família significativamente abastada. Não se sabe qual teria sido sua língua mãe, visto que a maioria dos falantes do vilarejo falava sueco. Contudo, considerando-se o nível do finlandês erudito alcançado por Agricola, e de um de seus amigos de infância, Martinus Teit, que posteriormente foi ensinar finlandês para os membros da corte de Estocolmo, é altamente

127 provável que ambos tenham recebido uma educação bilíngue, falando tanto o sueco quanto o finlandês (HÄKKINEN, 2016, p. 31-33).

Agricola foi realizar seus estudos na escola de Vyborg, onde recebeu uma educação ainda embasada nos moldes da Idade Média Tardia: as disciplinas ensinadas eram o Latim, a Dialética e a Retórica. Vyborg era uma cidade agitada, multilingual e palco de intensas atividades mercantis, principalmente com o Báltico. Era possível encontrar, lá, falantes do alemão, russo, finlandês, sueco e, esporadicamente de outros idiomas. Até mesmo os mercadores com melhores condições financeiras enviam, da extinta Livônia, os seus filhos para estudarem idiomas em Vyborg. Agricola, então, recebeu uma educação erudita para os moldes da época, além de ter experienciado situações que sempre o colocaram em contato com a questão linguística, de seu nascimento e infância bilíngue em Pernå, à empreita educativa na agitada e multicultural Vyborg. Posteriormente, ele ainda viria a estudar na Universidade de Wittenberg, na Alemanha, um grande centro da tradição luterana da época (HÄKKINEN, 2016, p. 34-35).

Ainda segundo Häkkinen (2016, p. 35-48), Agricola tornou-se assistente do bispo de Turku por volta de 1529. Sendo o erudito que era, não demorou muito para que recebesse progressivamente mais e mais tarefas e atribuições, ainda mais porque, nas palavras do próprio Agricola, “a grande maioria dos assistentes são homens tolos, sem qualquer conhecimento do latim ou sequer do sueco”. Em 1550, foi ordenado bispo de acordo com os moldes da tradição luterana.

Como se sabe, a Reforma Luterana reivindicava um acesso às Escrituras Sagradas que estivesse na língua do povo, e não mais em idiomas como o latim, uma língua que, fora dos círculos do alto clero, já estava morta. Conforme apontado de maneira assertiva por Lavery (2006, p.40), tal exigência teve um impacto particularmente forte em línguas que, até então, não tinham uma tradição escrita ou literária, como o próprio finlandês. Foi justamente nesse aspecto que Agricola interveio e foi eleito, por unanimidade, como o “pai do finlandês literário”: o bispo se encarregou de passar a “Palavra de Deus” para o finlandês.

O próprio idioma finlandês, até então, nunca tinha sido sistematizado gramaticalmente e, por mais que já houvesse se tornado o que podemos chamar de um único idioma, ainda assim havia inúmeras variações regionais. Grande parte das pessoas, lembremos, viviam em pequenos vilarejos como os da infância de Agricola, espalhados por toda a Finlândia. Seria irreal não pensarmos que esses regionalismos e diversidades não implicassem em “idiomas finlandeses”, assim mesmo, no plural. O trabalho de sistematização e normatização gramatical

128 e ortográfica coube na empreita de Agricola. Ao todo, o bispo traduziu nove grandes obras bíblicas para o finlandês, dentre as quais se encontram O Salmo de Davi, O Novo Testamento,

O Livro de Orações da Bíblia, dentre outros (HÄKKINEN, 2016, p. 70).

Particularmente importante para nós é sua tradução d’O Salmo de Davi, o Davidin

Psalttari, publicado em 1551. No material em questão, antes de partir para a tradução

propriamente dita, Agricola oferece um prefácio onde supostamente elenca uma série de divindades que ainda estavam sendo veneradas nas áreas da Carélia e da Tavastia (SARMELA, 2009, p. 586). Sua lista inclui vinte e três entidades mitológicas, fora o próprio Diabo, citado por ele ao fim. Obviamente que, após elencar todas essas divindades, Agricola os rejeita à censura cristã, implorando para que abandonassem o culto a esses falsos deuses e começassem a reverenciar a Santíssima Trindade. Ao enumerar essas divindades ainda adoradas, o bispo pretendia construir uma espécie de argumento teológico que demonstrasse à elite erudita de sua própria época o quanto a Igreja Católica, que estava entre esses povos desde o século XII, havia falhado em guiar o “homem comum” para o caminho de uma vida religiosamente correta e verdadeira; tratava-se, de última instância, de reivindicar essa empreita para as mãos da Igreja Luterana. Apesar disso, o material escrito por Agricola é uma incontornável fonte para que se entenda o papel da religião popular147 na vida social dos povos dessas províncias que, apesar de já estarem, na época, convivendo com o cristianismo havia séculos, ainda ressignificavam seus deuses antigos e os traziam para seu cotidiano (ANTTONEN, 2012, p. 186-187).

Ainda que com uma agenda predominantemente Luterana, Agricola não deixou de manifestar um interesse em registrar a religião popular dos finlandeses. Segundo Anttonen (2012, p.188-189), apesar da retória empregada pelo bispo para recriminar os resquícios de qualquer traço não ortodoxo cristão, certa empreita humanista é identificada no seu trabalho, no sentido de preservação dos costumes antigos de seu povo. É muito possível que tais costumes não somente dialogassem com sua infância na pequena cidade de Torsby, mas também que Agricola tenha desenvolvido certa simpatia pelos camponeses de províncias rurais durante suas muitas viagens enquanto bispo. Claro que o interesse em preservar esses agentes mitológicos ainda vivos no cotidiano dos finlandeses não poderia ver sem qualquer recriminação, ainda mais sendo Agricola um representante da Igreja Luterana. Além desse fato, o pensamento teológico alinhado ao humanismo tinha, na Idade Média Tardia e no começo da Idade Moderna, esse caráter hostil em relação às crenças e costumes populares,

147 Sabemos das possíveis complicações envolvendo o termo religião popular. Traduzimos conforme o autor o empregou no original: folk religion.

129 que ganhariam importância e reconhecimento entre as elites europeias somente nos séculos seguintes.

De qualquer maneira, é necessária cautela ao nos aproximarmos das informações dispostas por Agricola. Não só por conta de seu enviesado olhar luterano frente à permanência de vestígios pagãos num povo que deveria, àquela altura, estar cristianizado – o que por si só já desperta inúmeras problemáticas -. O modo como o bispo dispõe suas informações denota que ele pressupunha uma “teologia pagã” integrada e organizada que permeava os vários mitos, divindades, tradições e práticas religiosas populares. Na verdade, o que acontece é exato oposto. Em se tratando de religião finlandesa pré-cristã, embasada completamente em tradições orais e sem nenhum corpus dogmático, diversos folcloristas, etnólogos e cientistas da religião que nunca houve um sistema integrado, coerente, homogêneo e sistematizado de uma mitologia e religião finlandesa pré-cristã. Essa suposição levou Agricola, por exemplo, a afirmar que todas as criaturas mitológicas elencadas em sua lista eram deuses e deusas quando, na verdade, muitos eram entidades menores com outros tipos de propósitos e funções, não sendo tidos, portanto, como pertencentes ao panteão divino (ANTTONEN, 2012, p.194- 196).

Apesar disso, o prefácio fornecido por Agricola é o primeiro registro da religião finlandesa pré-cristã e algumas de suas divindades e entidades. Ele constitui, por isso, uma fonte primária incontornável para quem deseje abordar qualquer tema relacionado a essa mitologia e religião, conforme o faremos com o deus Ukko.