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Eixo Temático – BANCA TCC/ERIC – 5º ANO DE DIREITO – sala nº 11

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Academic year: 2021

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XVI ERIC – (ISSN 2526-4230)

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XVI ERIC – (ISSN 2526-4230)

ANÁLISE SOBRE MASCULINIDADE TÓXICA

Nathália Portolan Alves Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari E-mail: portonati@hotmail.com Rodrigo Eder Felício Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari E-mail: rodrigofelicioadv@hotmail.com COMUNICAÇÃO ORAL

RESUMO: O conceito de masculinidade é um tema bastante recorrente no campo

acadêmico, mas ainda assim, surgem críticas e dúvidas para compreender tal papel social. Este projeto tem o intuito de estudar os principais aspectos da masculinidade tóxica. Os objetivos propostos foram: compreensão da origem desse comportamento, seu desenvolvimento na história, a exposição das características e os efeitos presentes na sociedade moderna, e um breve paralelo da masculinidade com a legislação brasileira. Para tal, os objetos serão estudados em fontes secundárias como trabalhos acadêmicos, artigos, livros e afins. Assim sendo, o trabalho transcorrerá a partir do método qualitativo, visto que, utilizaremos conceitos e ideias de determinados autores, analisando e registrando as informações coletadas indicando a reflexão, principalmente masculina, como possível alternativa. O método em questão favorece a percepção dos valores culturais embutidos nos eventos histórico-sociais da sociedade moderna. Após esse mapeamento, analisou-se como a masculinidade exacerbada está preanalisou-sente cotidianamente desde a Grécia Antiga, carregada de transformações culturais, até a atualidade; a necessidade de diálogo e reflexão perante a temática tornam-se imprescindíveis.

Palavras-chave: masculinidade, gênero, machismo.

ABSTRACT: The concept of masculinity is a very recurrent theme on the academic

field, even so, critics and doubts still emerge to understand such social role. This project have the intention of studying the main aspects of toxic masculinity. The proposed objectives were: the comprehension about the consequences of this behavior, it's development through the history, the exposition of this outdated model of conduct's rooted features and a brief parallel of the masculinity with the brazilian law. For this purpose, those objects will be studied in secondary sources, such as academic works, articles, books and related. Therefore, this work will elapse using the qualitative method as it's base, whereas we will utilize concepts and ideas from other authors, only analyzing and recording the colected information indicating the reflection, mainly from a male perspective, as a possible alternative. The method in question favors the perception of the cultural values embedded in the historical-social events of the modern society. After this mapping, the ways that the exacerbated masculinity are existent on the daily basis since the Ancient Greece were analyzed, a process heavily loaded with cultural transformations yet still present; the urge of a dialogue and a reflection towards the theme makes itself essential.

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INTRODUÇÃO

O conceito de masculinidade tem influenciado estudos em vários campos acadêmicos, mas ainda assim, há críticas e dúvidas para compreender tal papel social. Este estudo vem justamente com esse propósito, esclarecer e reconsiderar uma ocorrência cultural histórica. O termo “masculinidade tóxica” é um julgamento a comportamentos desnecessários e destrutivos para o homem, e também para aqueles que o cercam. São comportamentos prejudiciais, interna e externamente, colocando o homem como ser superior em relação a mulher. Como é o caso do Código Napoleônico, em seu artigo 213, que defendia em nome da lei, a seguinte escrita: “o homem deve a sua mulher proteção, ao passo que ela deve a ele respeito e obediência”.

Podemos definir a realização da pesquisa situando nosso objeto no tempo presente, mas ao mesmo tempo recuando no tempo, procurando evidenciar a transformação histórica e cultural do fenômeno. O filósofo Jacques Derrida (1966), filósofo pós-modernista, denominou nossa admiração “falogocêntrica” pelo seu enaltecimento da identidade masculina, europeia, branca e heterossexual. Porém na Idade Média, o duelo entre os cavaleiros sempre esteve associado à honra masculina, bem como à coragem e o sangue-frio ao defendê-la, a espada foi o primeiro instrumento da civilização, o único meio encontrado pelo homem para conciliar seus instintos brutais e seus ideais de masculinidade.

O presente artigo visa indicar fragmentos históricos da construção social da masculinidade, destacar suas consequências utilizando as informações retiradas do documentário “O silêncio dos homens” iniciativa do PapodeHomem e Instituto Pdh, realizado em 2016; e relacionar superficialmente tal regramento com os direitos fundamentais (artigos 5º ao 17º) e a garantia da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) elencados na Constituição Federal de 1988. Como destaca Dirley da Cunha Júnior, esses direitos são consequência da própria evolução da humanidade, cujo ideal principiará a partir da concepção de direitos em razão da condição humana (2012 apud PÍTSICA; SILVA, 2018, p. 44). Trata-se de duas temáticas que se chocam socialmente, duas formas de regramento com efeitos diretos ao indivíduo, uma com o objetivo de proteger as pessoas de possíveis sofrimentos e outra que reafirma selvageria.

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Para respaldar tais afirmações buscamos o apoio basilar no livro “A Construção Social da Masculinidade” de Pedro Paulo de Oliveira e como complementação outras fontes secundárias, como artigos, livros e revistas; no que se refere aos textos acadêmicos científicos, foi observado o estabelecimento de padrões, o que proporcionou consistência à apresentação. Ademais, serão expostos de forma breve, trechos da lei e posicionamentos doutrinários para fundamentar legalmente a problemática e seus feitos na esfera judicial.

1 ORIGEM E CONTEXTO HISTÓRICO DA MASCULINIDADE

1.1 Origem

É uma palavra decorrente do termo latino “masculinus”, que começou a ser utilizada a partir do século XVIII, momento onde eram realizados esforços científicos para estabelecer critérios práticos de diferenciação entre os sexos. Pedro Paulo de Oliveira em seu livro “A construção social da masculinidade” expõe a masculinidade como uma significação social, um ideal culturalmente elaborado que aponta para uma ordem de comportamentos socialmente sancionados, ou seja, ela não existe enquanto característica, mas apenas como uma ideologia ou fantasia. Almeida (1996, p. 163) defende que a masculinidade é um modelo cultural ideal e não é atingível por nenhum homem, além de exercer um efeito controlador sobre todos os homens e mulheres.

Seus impactos articulam em diversos níveis da vida social: nacionalidade, religião, profissão, grupos de status, posição de inserção social, religião de origem, etnia, grupos de idade entre outros; esses significados que foram herdados do passado causam uma divisão do mundo entre homens e mulheres, constituindo uma dicotomia masculino-feminino (ALMEIDA, 1996, p. 161). Os indivíduos já nascem com o dever de seguir de acordo com as características estereotipadas impostas ao seu sexo (masculino ou feminino) e esse “código de conduta” – que varia de acordo com o contexto social – irá acompanhá-los ao longo de suas vidas (KEHL, 2008 apud BACARAT; NIGRO, 2018, p. 5).

Na teoria do “one-sex-model” ou monismo sexual, tinha-se a ideia da mulher como um homem invertido. O útero seria o escroto feminino, os ovários seriam os

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testículos, a vulva um prepúcio e a vagina um pênis (LAQUEUR, 1989 apud SILVA, 2000, p. 9). O modelo perfeito estava representado na anatomia masculina, o poder do “fálus”, diferenciava o domínio de superioridade dos homens – relação de capacidade reprodutiva – e a inferioridade das mulheres – consideradas menos desenvolvidas.

Mais tarde, ainda no século XIX, destacou-se a teoria “two-sex-model” ou dualismo sexual, que de acordo com Costa (1995 apud SILVA, 2000, p. 9): “o sexo político ideológico vai ordenar a oposição e a descontinuidade sexuais do corpo” e assim defender e estabelecer: “diferenças morais aos comportamentos femininos e masculinos, de acordo com as exigências da sociedade burguesa, capitalista, individualista, nacionalista, imperialista e colonialista nos países europeus”.

A mulher passa a ser o inverso do homem ou sua forma complementar, porém ainda há a presença do pensamento da mulher como inferior, tanto na esfera pública como privada.

Parker enfatiza esse pensamento ao dizer que:

As atividades do homem eram dirigidas para o mundo social mais amplo da economia, política e interações sociais, além do âmbito da família, enquanto os de sua mulher eram rigidamente restringidos, limitavam-se ao mundo doméstico da própria família (PARKER, 1991, citado por SILVA, 2000, p. 9). Seguidamente, o homem homossexual - aquele que não vive de maneira heteronormativa - é que passa a ser visto como um “invertido sexual”, destacando uma questão de anormalidade frente às subjetividades sexuais masculinas, a inversão era considerada uma doença passível de cura (FOUCAULT, 1984 apud BACARAT; NIGRO, 2018, p. 9). O rótulo de anormal representava uma ameaça aos ideais de família, esse estado de decadência não poderia ser tomado como uma nova norma social. O homem precisava ser devoto ao matrimônio para comprovar sua virilidade.

1.2 Contexto Histórico

A superioridade masculina pode ser observada já nos tempos da Grécia Antiga, onde a mulher possuía o mesmo valor que um escravo, e apenas o homem ateniense, não estrangeiro, detinha a liberdade e exercia funções políticas,

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filosóficas e artísticas (ALVES; PITANGUY, 1991 apud BACARAT; NIGRO, 2018, p. 6). Já para os nobres, o ideal de masculinidade apresentava algumas características como: lealdade, coragem, bravura, sobriedade e perseverança; que funcionava como um signo da reputação e dignidade do indivíduo, a honra de um homem girava sempre em torno da presença ou ausência de um caráter violento (OLIVEIRA, 2004, p. 22-23). Percebe-se uma imagem pretérita da nossa própria sociedade, por mais distorcida e deformada que a ideia possa parecer, o passado vive na consciência das gerações subsequentes.

O historiador George Mosse (1966 apud OLIVEIRA, 2004, p. 22) aponta que após o período medieval houve mudanças históricas relevantes para a configuração de um novo ideal masculino. Com a formação do Estado Nacional moderno, e a criação de instituições específicas, o monopólio do uso da força era fundamental para manter o poder (WEBER, 1966 apud OLIVEIRA, 2004, p. 18). Como por exemplo, o exército que causou um processo de disciplinarização, os soldados eram convocados por uma causa nobre: a defesa da pátria, sendo necessária a demonstração da sua devoção e virilidade – presença dos ideais medievais. Logo, o ideal masculino era baseado em: militarização, nacionalismo e masculinidade.

Em seu livro “A luta como experiência interior”, o alemão Ernst Junger, garante que a guerra converte os jovens em homens de aço, repletos de energia e sempre prontos para o combate. Sua aparência externa é o signo de suas vivências: corpos esguios, flexíveis, musculosos, faces impressionantes, com olhos que presenciaram milhares de mortes. Isto é, a masculinidade estava diretamente ligada ao sacrifício, que consequentemente levava à purificação pessoal (1926 apud OLIVEIRA, 2004, p. 29). Para Durkheim, nesse caso o indivíduo deseja o abandono do seu ser pessoal para se espelhar nessa outra coisa que considera como sua verdadeira essência (2000, apud OLIVEIRA, 2004, p. 31).

Em meados do século XIX, a mulher era associada ao espaço doméstico, mantenedora do lar, da educação dos filhos e submissa ao seu marido. E o homem, considerado racional, detinha o privilégio do domínio do espaço público, “ser homem” nesse tempo significava “não ser mulher”, e sobre todas as hipóteses jamais ser homossexual. Os traços que os descreviam, voltavam-se para forma de se vestir, de andar, de se comportar, entonação de voz etc. Assim como sua forma

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física e qualidades como a agilidade, a coragem, a bravura, o heroísmo (GAY, 1995 apud por SILVA, 2000, p. 11).

Durante o século XX, as questões de honra estavam em alta. O cântico de louvor à guerra e à força expressado nas obras de Nietzsche, segundo Norbert Elias, refletiam a adesão de vários setores da burguesia de um código guerreiro que tinha pertencido primeiro à nobreza (ELIAS, 1996 apud OLIVEIRA, 2004, p. 33). A Alemanha exaltava a glorificação à força, já sentimentos e empatia eram fraquezas. O nazismo teve papel importante na intensificação das características tidas como autenticamente masculinas: lealdade, camaradagem, obediência, disciplina, coragem, amor à ordem e o sacrifício pela pátria - os ritos fúnebres eram marcados por um tipo de adoração para reforçar e incentivar os outros jovens (OLIVEIRA, p. 36).

O fascismo italiano foi um movimento político similar, inspirava-se na grandeza romana para compor seu fundamento essencial: um novo homem fascista, o guerreiro conquistador romano. Giovanni Panini, nacionalista italiano, baseado em Nietzsche, prezava o ideal de um homem vigoroso, enérgico, duro e orgulhoso. Para ele, os homens deveriam ter a coragem e ser menos sentimental, nem que para isso tivessem que se comportar de modo mais brutal e bárbaro (PANINI, 1915 apud OLIVEIRA, 2004, p. 38).

Mesmo o socialismo, que defendia um ideal de igualdade, apresentava a supremacia masculina. Segundo Oliveira (2004, p. 40), Lênin e Stálin desaprovavam uma sociedade socialista que fosse permissiva, ambos destacavam a pureza moral como característica do verdadeiro trabalhador – eram devotos ao soldado guerreiro, porém em conjunto, o modelo do trabalhador exemplar e responsável como homem autêntico. A propaganda utilizada era bastante convencional, incluindo estereótipos masculinos e femininos – as mulheres apenas com o papel doméstico. Para representar a opinião comum machista que se tinha, o autor cita o ativista comunista alemão Willi Bredel que tomava os homens que se alinhavam com bandeiras feministas como não dignos de confiança.

Com a formação do Estado moderno, em instituições como o exército, foram conservados os elementos medievais do comportamento masculino da nobreza no ideal moderno de masculinidade. Apesar da diferença histórica entre nazismo,

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fascismo e socialismo, a virilidade ocupava um espaço considerável nesses movimentos, e ainda que não aparente, percebe-se o cultivo de tal ideal.

Durante o século XIX e início do século XX, já tomavam forma os efeitos dos movimentos feministas, os quais reivindicavam a autonomia das mulheres sobre seus corpos, em relação à reprodução, à igualdade no mercado de trabalho e à quebra do papel doméstico como padrão (MELLO, 2011 apud SILVA, 2015, p. 9). Nesse mesmo sentido, para Mosse: “A busca das mulheres por igualdade e independência representou o desafio mais efeito à oposição social dos homens” (MOSSE, 1998 citado por SILVA, 2000, p. 12). Com a saída das mulheres do espaço privado para o público, houve uma avalanche de pesquisas, discussões e redefinições de papéis sociais, passou-se a ficar mais fortalecida a representação da mulher como “ser social”.

2 MASCULINIDADE CONTEMPORÂNEA

Atualmente, as mulheres conquistaram espaço no meio público, segundo pesquisas compiladas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no 2º trimestre de 2018, as mulheres apresentaram um nível de instrução completo mais elevado em comparação aos homens. A presença feminina no mercado de trabalho formal já representa 44% do total. Porém a desigualdade de gênero ainda está presente no Brasil, mesmo com a taxa superior de frequência escolar no ensino médio de 63,2% e a maior proporção de mulheres com o ensino superior completo de 16,9% - comparado aos homens com 13,5% -, elas ainda dedicam mais tempo aos afazeres domésticos do que os homens, recebem salários menores, e representam apenas 10,5% da representação política na Câmara e 39,1% dos cargos de gerência ocupados nas empresas.

Contudo, com a maior participação das mulheres no mercado de trabalho, os papéis sociais, que determinavam valores e atitudes - e o que vinha a ser homem e ser mulher -, começaram a ser reconsiderados, e consequentemente, com esses questionamentos, as masculinidades começaram a ser discutidas (CECCHETTO,2004 apud ZANARDI, 2012, p. 15).

A dominação masculina é tida com naturalidade, um regramento universal quase invisível das sociedades humanas (BORDIEU, 2002 apud ZANARDI, 2012, p.

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15). A crença masculina é atribuída desde o nascimento do indivíduo, seu gênero é contextualizado através do meio social e cultural em que está inserido, e a partir de tudo e todos que o rodeiam: pais, escola, roupas, brinquedos, família, igreja entre outros. Com essa determinação social, a masculinidade é reiterada e defendida tanto pelos homens como pelas mulheres, visto que, os dominados incorporam a dominação (ALCADIPANI; ECCEL, 2012 apud ZANARDI, 2012, p. 15).

As características que compõem esse modelo, o dito homem de verdade, são: o dever de sustentar sua família; ser dominante em relação a outros homens, e principalmente a mulheres; ser sexualmente experiente e ativo; ter um corpo musculoso; ser heterossexual entre outros. Os sociólogos Falconnet e Lefaucheur (1977 apud ZANARDI, 2012, p. 15), esclarecem o que envolve ser homem de maneira sintetizada: “uma verdadeira vida de homem é uma constante de luta e busca da vitória, do poder”. Diante do conceito social e histórico, os homens que possuem os traços e seguem as regras que descrevem a masculinidade: ser branco, cristão, sem deficiências, hétero, viril, ativo e dominante, obtêm uma posição dominadora e detentora de privilégios na sociedade, dessa forma, aqueles que fogem deste regramento, são tidos como homens duvidosos e desprezíveis (CARRIERI, 2008 apud ZANARDI, 2012, p. 16).

Entretanto, a masculinidade não denota um estado homogêneo ou consistente, ela é passível de mudanças com o tempo, e as sociedades possuem desejos e condutas contraditórias entre si, dando origem, não apenas a uma masculinidade, mas a várias formas de masculinidade (CONNELL, 1995; ECCEL; GRISCI, 2011 apud ZANARDI, 2012, p. 16). A masculinidade é construída no meio social, porém se desenvolve de forma contínua por toda a existência do indivíduo; no seu trabalho, na sua classe social, onde reside, ou até por sua etnia (KIMMEL, 1998 apud ZANARDI, 2012, p. 16). Isto é, a dominação masculina se organiza e se estabelece de forma distinta em cada sociedade e contexto social (ALCAPIDANI; ECCEL, 2012 apud ZANARDI, 2012, p. 17).

Após estudos sobre gênero e sexo realizados nas primeiras décadas do século XX (DANTAS, 2012 apud ZANARDI, 2012, p. 20), o conceito de “homem universalizado” entrou em crise, tornou-se perceptível as diferenças entre as masculinidades, e a partir de tais pesquisas houve a desnaturalização da masculinidade e poder exercido pelos homens sobre as mulheres.

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Conforme o pensamento de Albuquerque Júnior (2003, p. 23 apud SILVA, 2015, p. 12) devemos superar essa visão “diádica dos gêneros”, pois não só homens devem protagonizar nossa narrativa histórica - mas também mulheres e homens considerados fora do modelo culturalmente e socialmente imposto:

Não mais como indivíduos ou partícipes de feitos coletivos, mas como gênero, não a história de homens como agentes do processo histórico, mas como produtos deste mesmo processo, a história de homens construindo - se como tal, a história da produção de subjetividades masculinas, em suas várias formas, a história da multiplicidade de ser homem.

A discussão acerca do assunto tem ganhado espaço em diversos locais, no meio familiar, social, acadêmico e corporativo. Os homens estão atentos e questionando suas realidades, e reformulando determinadas características de forma mais saudável, buscando empatia e igualdade. Para o psiquiatra e psicoterapeuta Fernando Duarte, diferente do feminismo empoderando as mulheres, o movimento masculino é mais tardio, e está tomando forma, principalmente por influência dessa “nova mulher” independente e confiante (O SILÊNCIO, 2016).

3 MASCULINIDADE TÓXICA E SEUS EFEITOS

Seguindo como referência o documentário “O silêncio dos homens”, iniciativa do PapodeHomem e Instituto Pdh, realizado em 2016, fruto de uma pesquisa nacional com mais de 40.000 homens e mulheres, de todas as idades, raças, classes e regiões, a respeito das masculinidades. Elaborado como uma iniciativa à transformação das masculinidades, o decorrer da trama conta com estatísticas, entrevistas e pontos de vistas de grupos de conversa de homens espalhados por todo o Brasil, e o presente tópico irá trabalhar e analisar as informações contidas neste documentário.

As pessoas envolvidas nesses projetos de grupos reflexivos de homens, visam criticar essa agressividade consigo, e as demais imposições feitas ao homem por essa masculinidade tóxica. Ao quebrar teorias e crenças ameaçadoras do que o homem tem quer ser: dominante, não sentimental, viril, competidor, trabalhador que sustenta a casa, que pensa na mulher apenas como dona do lar e etc. A quebra do silêncio do homem é a quebra de sua própria fraqueza, manifesta-se a construção

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de um homem melhor, mais humano, que sabe nomear o que sente, e não utiliza a violência como resposta. Houve uma mudança na sociedade e isso gerou dificuldades aos homens, o próprio homem começou a se perceber com outro olhar - então nomeada crise da masculinidade.

A percepção da masculinidade traz consequências para os próprios homens e para as pessoas ao seu redor. Os homens sofrem seus efeitos de forma dupla: podem apresentar comportamentos inadequados e violentos para corresponder a esse ideal, como podem se sentir inferiores e rejeitados quando não apresentam esses traços valorizados. O ser homem que se denomina socialmente, o homem normal, é branco, heterossexual, cristão, sem deficiências; sua masculinidade não é questionada todo tempo, diferentemente do homem negro, do homem deficiente e do homossexual, os quais são vistos como anormais do que se projetou sobre o gênero masculino, são estereótipos negativos perante um grupo (SIQUEIRA; ANDRADE, 2012 apud ZANARDI, 2012, p. 17). O “homem normal” sofre as consequências da masculinidade tóxica, mas ainda ocupa uma posição de poder e privilégios em relação aos outros.

A palavra “gay” continua sendo utilizada como um termo para menosprezar e diminuir outro homem, associando-o a imagem de fraco e inferior - observação retirada do estudo realizado pela professora Valeska Zanello, do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB) para revelar palavrões mais difamadores para um homem. Esse pensamento estimula a agressividade e violência contra homens homossexuais, dificulta o entendimento e aceitação da própria sexualidade e identidade entre os homens jovens. Alguns vão questionar tais imposições sociais e sofrer as consequências disso, outra parte vai se conformar e acatar as normas e traços heteronormativos. Os homens gays com comportamentos masculinos tendem a ser mais aceitos e desejados, enquanto os afeminados são rejeitados e sofrem preconceitos.

Já as mulheres sofrem com as consequências dos atos violentos e agressivos vindos dos homens - 71% dos feminicídios são provocados pelo atual ou ex parceiro -, e com a desvalorização de seus traços, reforçando o machismo e a misoginia. As mulheres lésbicas e bissexuais são vistas como objetos para a satisfação de desejos sexuais dos homens, e não são respeitadas, como se a única possibilidade de satisfação estivesse ligada ao relacionamento heterossexual. As pessoas trans não

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são vistas como homens e mulheres “de verdade”, são sempre alvos de violência e julgamento.

A maioria dos homens sofrem calados e sozinhos – 3 em cada 10 homens tem o hábito de conversar sobre seus medos e dúvidas com os amigos -, uma abertura emocional é sinal de fraqueza, eles são ensinados a se impor, interromper mulheres, ocupar posições de poder, e quando se comunicam estão ocultando camadas de profundidade emocional, sua fala sustenta uma imagem. 6 em cada 10 homens afirmam lidar hoje com distúrbios emocionais, em algum nível - muitos ainda não diagnosticados, pois evitam buscar ajuda -. Os mais comuns são: ansiedade, depressão, vício em pornografia e insônia. Mas outros vícios, como álcool, demais drogas, comida, apostas e jogos eletrônicos, são mais presentes.

Os homens se espelham em seus pais como referência de masculinidade - só 1 em cada 10 já conversou com o pai sobre o que significa ser homem e somente 2 em cada 10 dizem ter tido exemplos práticos de como lidar com suas emoções -, entre os ensinamentos paternos estão: ser bem sucedido profissionalmente (85%); não se comportar de modos que pareçam femininos (78%); ser fisicamente forte (73%); ser o responsável pelo sustento financeiro da família (67%); não expressar emoções (60%); e dar em cima de mulheres sempre que possível (48%). A falta de referência de outras possibilidades de ser homem – necessidade da figura paterna - e esse conflito interno de como pertencer a esse mundo masculino, são debatidos nesses espaços, com pluralidade de homens, de masculino.

O coletivo influencia como devemos ser, o ser humano é mais afetivo ou menos afetivo mediante as experiências que vivencia. Desde a primeira infância os meninos crescem praticamente sem ver uma figura masculina exercendo cuidado – 2% dos educadores nessa fase são homens. Nas escolas a masculinidade é reforçada, deles são aceitos e exigidos comportamentos brutos, devem ser ativos, dominadores, controladores, e quando expressam iniciativa de carinho são ensinados a reprimi-la – em função de uma vida interior cada vez mais sob controle e diminuída. O desempenho escolar dos meninos vem caindo em vários países desenvolvidos e também no Brasil. Eles estão desistindo mais dos estudos, entrando menos na faculdade e conquistando menos diplomas – 1 em cada 4 homens de até 17 anos se sente solitário sempre.

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Cada vez mais iniciativas como essa estão surgindo pelo país, mas o volume total ainda é pequeno - 1 em cada 10 homens já participou desses grupos reflexivos -. Movimentos como: Rodas sobre Masculinidades Negras (São Paulo), Centro Cultural da Favelinha (Belo Horizonte), Gestão e Parto para Homens (São Paulo), Encontro Nacional de Homens Trans da Invisibilidade à Luta (São Paulo); cada um com sua perspectiva, com sua masculinidade, com cunho espiritual, corporal, político ou que trabalham com o olhar da raça, da paternidade, entre outras possibilidades. Os benefícios surgem das pequenas transformações individuais que depois viram transformações sociais.

4 A MASCULINIDADE TÓXICA E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A masculinidade moderna é marcada por um início repressivo, porém está passando por uma intensa fase de análise e reestruturação desde o século passado. A legislação brasileira não possui nenhuma lei específica que prova direitos de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e outros, cabendo isso à doutrina e à jurisprudência pátria. O casamento entre as pessoas do mesmo gênero, por exemplo, não é expressamente regulamentado por nenhuma lei, mas sim por uma decisão apresentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) [ADI 4277 DF], o que indica claramente a presença da discriminação baseada em orientação sexual ou identidade de gênero no legislativo federal brasileiro.

Assim, o arcabouço jurídico conta com alguns dispositivos que implicam em proteção mínima a todos. A Constituição de 1988, representando o Estado Democrático de Direito, compromete-se com os direitos de sexualidade e gênero por meio dos direitos fundamentais – presentes do artigo 5º ao 17º - e a garantia da dignidade da pessoa humana – artigo 1º, inciso III -. Por exemplo, o artigo 3º, inciso IV, onde nossa Constituição Federal se refere ao objetivo fundamental do Estado brasileiro: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Bem como o artigo 5º, inciso XLI, determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, torna-se claro a questão da sexualidade assegurada nas normas.

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O caput do artigo 5º do mesmo instrumento constitucional dita que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, logo, os antes considerados como homens não normais – bem como as mulheres inferiorizadas -, não podem ser submetidos a um tratamento pior do que aquele reservado aos demais cidadãos. Para o filósofo Robert Alexy, os direitos fundamentais devem tratar de interesses e carências, os quais precisam ser protegidos pelo Direito de forma fundamental, estabelecendo-os na lei maior do país - a Constituição, afim de suprir tais interesses e necessidades (2007, p. 45 apud ÍTSICA, SILVA, 2018, p. 44). Segundo Dirley da Cunha Júnior, é importante destacar que os direitos fundamentais são consequências da própria evolução humana, e serão direitos inatos do homem, em razão de sua condição humana (2012, p. 585 apud ÍTSICA, SILVA, 2018, p. 44).

A dignidade da pessoa humana, para Chimenti, é o que une os direitos fundamentais essenciais aos indivíduos, uma referência constitucional dos direitos que apresenta a garantia do conforto e a proteção das pessoas, protegendo-as de possíveis sofrimentos (2008, p. 34 apud ÍTSICA, SILVA, 2018, p. 48-49). Os direitos fundamentais são inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, em decorrência das demandas da igualdade, fraternidade e liberdade entre os homens – as pessoas humanas; são obras das necessidades humanas, ampliando-se ou limitando-se dependendo do contexto social (BULOS, 2009, p. 69 apud ABREU, [2005?], p. 3)

Complementando a ideia, Ingo Wolfgang Sarlet, jurista e magistrado, expressa a dificuldade em se obter um conceito concreto de dignidade da pessoa humana, mas pontua que, ela pressupõe o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões, ou seja, ao negar ao indivíduo os direitos fundamentais que lhe pertencem estaríamos negando a dignidade desse indivíduo (2006, p. 39 apud ÍTSICA, SILVA, 2018, p. 49).

O gênero e a sexualidade são instâncias indissociáveis do homem, são trabalhados socialmente para se formar um determinado modelo de sexualidade; mas o próprio homem reage contra o papel imposto a ele pela sociedade, reivindicando reconhecimento e construindo novas formas de sexualidade. Na sociedade contemporânea, a observância dos direitos fundamentais se torna imprescindível para se reivindicar e defender a sexualidade. A liberdade, a autodeterminação e a não-discriminação são direitos de todos os homens, mesmo

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que para isso seja necessário ressignificar conceitos culturais. Não cabe a nenhum grupo social ou de moralidade determinar padrões de conduta ou formas de pensar, como entende Lara Vanessa Millon, para que seja respeitada a dignidade das pessoas, elas devem ser livres para desenvolver suas personalidades, de forma que não sejam submetidas a tratamento degradante, humilhante ou ofensivo à sua dignidade (2007, p. 24 apud ÍTSICA, SILVA, 2018, p. 50).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado os fatos expostos e analisados, a desnaturalização da masculinidade e a ressignificação do que é ser homem, é de suma importância para que se assegure os direitos de todos os cidadãos e, por conseguinte, seu bem-estar. Diante disso, para combater a intolerância sexual e de gênero, gradualmente, iniciativas já estão sendo tomadas, como é o caso das rodas de conversas para discutir e refletir a respeito das masculinidades e seus impactos individuais, porém mais pessoas devem realizar essa autorreflexão, não necessariamente participando desses grupos – eles facilitam e auxiliam o caminho -, mas refletindo sobre seu comportamento perante os outros – com ajuda psicológica, ou até mesmo com as próprias rodas de amigos próximos -, e como isso influencia a si próprio e se isso é construtivo e saudável.

A masculinidade exacerbada se perpetuou culturalmente na história por séculos, porém toda sociedade está destinada a passar por mudanças sociais, mesmo que nem todos percebam de imediato – pois ela acontece lentamente -, as transformações ocorrem, e em busca por direitos e respeito, as classes antes tidas como inferiores, portando seus valores, estão lutando e conquistando seu espaço de luta por igualdade e marcando um novo modelo cultural. No entanto, esse processo está ocorrendo gradativamente, as mulheres, por exemplo, ainda sofrem desigualdade no trabalho, esses e outros desafios enfrentados envolvem uma aproximação das sociedades, para que se tenha uma escuta adequada de suas necessidades e reinvindicações, caso contrário, o retrocesso irá ocorrer e o macho divinizado retornará.

Nessa perspectiva, a legislação brasileira poderia intensificar os esforços, criando leis específicas, defendendo tais direitos de forma expressa, e não somente pelos direitos fundamentais e a garantia da dignidade da pessoa humana.

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REFERÊNCIAS

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XVI ERIC – (ISSN 2526-4230)

ANÁLISE DA DESJUDICIALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE INVENTÁRIO MESMO QUANDO HOUVER TESTAMENTO

ANALYSIS OF THE DEJUDICIALIZATION OF THE INVENTORY PROCEDURE EVEN WHEN TESTAMENTIS

SILVA, André Luiz Guerino da1 BEDÊ, Judith Aparecida de Souza2

RESUMO: O presente trabalho objetiva realizar, através de pesquisas bibliográficas

e jurisprudenciais, a análise da desjudicialização do procedimento de inventário mesmo quando houver testamento deixado pelo de cujus, apontando as razões pelas quais se mostra necessária a forma de interpretação sistemática do art. 610 do Código de Processo Civil, o qual determina em sua literalidade que, havendo testamento, deve-se proceder ao inventário judicial. O desenvolvimento do trabalho observa a evolução histórica do procedimento de inventário, bem como a análise no que diz respeito às suas formas judicial e extrajudicial. Também contempla a atual conjuntura do judiciário brasileiro e a necessidade de desafogamento e desjudicializaçao de processos para maior efetividade do direito e garantia do acesso à justiça.

Palavras-chave: Inventário Extrajudicial. Desafogamento. Testamento.

ABSTRACT: The present work aims to carry out the analysis of the dejudicialization of the inventory procedure even when there is a will, through bibliographic and jurisprudential researches, pointing out the reasons why it is necessary the form of systematic interpretation of art. 610 of the Civil Procedure Code, which literally states that, if there is a will, the judicial inventory must be carried out. The development of the work observes the historical evolution of the inventory procedure, as well as the analysis with regard to its judicial and extrajudicial forms. It also contemplates the current conjuncture of the Brazilian judiciary and the need to relieve and dejudicialize cases in order to make the law more effective and guarantee access to justice.

Keyword: Extrajudicial Inventory. Release. Testamento

1 Graduando do curso de Direito da FAFIMAN – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari, endereço eletrônico: andreluizgsilva@gmail.com.

2 Doutora em Direito pela FADISP –Faculdade Autônoma de Direito, na cidade de São Paulo (2018). Mestre em Direitos da Personalidade (2009). Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná (2001); Graduação em Direito na Universidade Estadual de Maringá (2000) e em Letras (1991); Docente da FAFIMAN – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari; endereço eletrônico: judithbede@gmail.com

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por finalidade analisar a possibilidade de se proceder ao inventário por escritura pública mesmo quando houver testamento. Considerando a legislação vigente, mais especificamente o art. 610 do Código de Processo Civil; o qual dispõe acerca da obrigatoriedade do inventário na forma judicial, quando houver testamento, há que se levantar o seguinte questionamento: a existência do testamento, independentemente de sua natureza e função, deve constituir impedimento suficiente para a realização do inventário administrativamente?

Sabe-se que é recorrente a tendência da desjudicialização como forma de assegurar mais celeridade, eficiência, bem como concorrer para o desafogamento do Poder Judiciário. Na perspectiva da justiça brasileira, há que se ressaltar ainda, que tem sido cada vez mais comum o compartilhamento de procedimentos com os serviços extrajudiciais, tendo em vista a celeridade garantida pelos referidos serviços.

O trabalho foi desenvolvido através de pesquisas bibliográficas, bem como jurisprudenciais, dividindo-se, primeiramente, numa abordagem no que diz respeito aos aspectos gerias do inventário, base teórica, conceituação e classificação.

Em seguida foi feita uma breve análise delimitada no que diz respeito ao inventário extrajudicial, partindo de sua evolução histórica, destacando a Lei n. 11.441, de 2007, a qual instituiu a realização de determinados procedimentos através dos Tabelionatos de Notas, bem como foram expostos os seus requisitos e impedimentos.

Posteriormente, cuidou-se em compreender a atual conjuntura do judiciário brasileiro e a grande necessidade de desafogamento e desjudicialização de processos para maior efetividade do direito e a garantia do acesso à justiça.

Por fim, fez-se necessário correlacionar o tema com o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade de inventário extrajudicial mesmo havendo testamento.

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1 ASPECTOS GERAIS DO INVENTÁRIO

Para compreender, de forma mais abrangente, acerca do procedimento do inventário, primeiramente cumpre esclarecer, mesmo que brevemente, os aspectos da sucessão, no que diz respeito à sua conceituação, bem como peculiaridades, os quais são fundamentais para melhor delimitar e contextualizar o tema.

Assim, segundo Gonçalves (2017, p. 13-14) a sucessão trata-se do ato pelo qual uma pessoa se torna titular de determinados bens de outra. No direito das sucessões, o termo serve para designar a transmissão causa mortis, ou seja, a transmissão da titularidade de determinados bens em razão da morte de alguém, ora de cujus (autor da herança).

Desta forma, compreende-se, portanto, que a sucessão é aberta a partir da morte da pessoa natural, e é baseada no Princípio da Saisine, consagrado pelo art. 1.784 do Código Civil, que consiste na transmissão automática da herança aos herdeiros legítimos e testamentários do de cujus. (GONÇALVES, 2017, p. 13-14)

A respeito da massa patrimonial deixada pelo de cujus, GONÇALVES preceitua:

A massa patrimonial deixada pelo autor da herança denomina-se

espólio. Não passa de uma universalidade de bens, sem

personalidade jurídica. Entretanto, o direito dá-lhe legitimidade ad causam, sendo representado ativa e passivamente pelo inventariante (CPC, art. 75, VII, o que não ocorre, porém, se ele for dativo, conforme o § 1o) ou pelo administrador provisório, se o inventário ainda não tiver sido instaurado (CPC, art. 614). (GONÇALVES, 2017, p.14)

Desta forma, o espólio trata-se do patrimônio do de cujus, que por sua vez, se refere a massa indivisa, composta por Ativos e Passivos, e que não possui personalidade jurídica, de forma que é representado em juízo pelo inventariante.

Por conseguinte, compreendendo os aspectos da sucessão e o momento em que se dá o seu início, bem como os pontos referentes à massa patrimonial deixada pelo de cujus, se faz mister compreender os conceitos referentes ao inventário.

Para GAGLIANO e PAMPLONA, o inventário deve ser conceituado em duas perspectivas, a do Direito Sucessório e o prisma processual. Vejamos:

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Do ponto de vista do Direito Sucessório, o inventário pode ser conceituado como uma descrição detalhada do patrimônio do autor da herança, atividade esta destinada à posterior partilha ou adjudicação dos bens. Sob o prisma processual, outrossim, o inventário pode ser entendido como uma sequência ordenada de atos tendentes a um fim específico. (GAGLIANO; PAMPLONA, 2019, p. 426)

Depreende-se, portanto, que o inventário é o procedimento pelo qual é apurado o acervo de bens, direitos e obrigações da massa e são identificados os herdeiros e a parte que cabe a cada um. (GONÇALVES, 2017, p.152).

O inventário é classificado em judicial e extrajudicial, sendo que o primeiro é disciplinado pelo Código de Processo Civil a partir do artigo 610 até o artigo 673, onde disciplina os prazos, e o inventário extrajudicial é descrito no artigo 610, §1º, do Código de Processo Civil.

2.1 INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL

Com o advento da Lei 11.441/2007, a qual versa acerca da separação, divórcio consensual e do inventário extrajudicial, foi dado nova redação ao artigo 982 do Código de Processo Civil de 1973, trazendo a possibilidade de realizar o procedimento de inventário administrativamente em Tabelionato de Notas. Vejamos:

Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se

o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título

hábil para o registro imobiliário. (Redação dada pela Lei nº 11.441, de 2007).

§ 1º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. (Renumerado do parágrafo único com nova redação, pela Lei nº 11.965, de 20090)

§ 2º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei. (Incluído pela Lei nº 11.965, de 20090) grifou-se

Portanto, tornou-se possível o procedimento de inventário tradicional, arrolamento ou, até mesmo, a adjudicação pela forma administrativa, desde que atendidos os requisitos necessários. (GAGLIANO; 2019, p. 447).

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Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.

§ 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

§ 2 o O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

Art. 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.

No que tange às poucas mudanças que o art. 610 trouxe em relação ao artigo 982 do Código de Processo Civil de 1973, CASSETARI elenca:

a) para resolver o problema da lei anterior, que dizia ser a escritura pública título hábil apenas para o registro imobiliário, o que causou uma série de transtornos, pois os Bancos, o Detran e as Juntas Comerciais não queriam aceitar a escritura como um formal de partilha, a novel legislação estabeleceu, expressamente, que escritura pública de inventário é documento hábil para qualquer ato de registro, o que inclui os cartórios extrajudiciais (Imóveis, Registro Civil de Pessoa Natural e Pessoa Jurídica e Registro de Títulos e Documentos) e outras instituições (Detran, Juntas Comerciais etc.), bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras, resolvendo de uma vez por todas os problemas com os bancos;

b)retirou a expressão advogado comum ou de cada uma das partes, por ser questão óbvia, já implícita na norma, considerando que o ato é consensual; c)retirou a previsão de gratuidade das escrituras de inventário, o que acarretará a polêmica se a mesma foi extinta ou ainda permanece de outra forma. (CASSETARI, 2018, p. 144)

Desta forma, depreende-se que o artigo 610 do Código de Processo Civil, condiciona a possibilidade de proceder o inventário pela via administrativa, no tabelionato de notas, com o preenchimento de alguns requisitos, sob pena de nulidade da escritura se não forem respeitados.

São requisitos do inventário extrajudicial: não ter interessado incapaz na sucessão; haver concordância de todos os herdeiros capazes; e não ter o de cujus deixado testamento.

CASSETARI (2018, p.151), além dos requisitos já expostos no artigo 610, do CPC, também cita: a obrigatoriedade de partilhar todos os bens deixados pelo falecido, como forma de vedação da partilha parcial; a presença do advogado

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comum a todos os interessados, ou que cada um seja representado pelo seu de forma individual; a quitação dos tributos incidentes; e ser o Brasil o último domicílio do falecido.

Cumpridos os requisitos, a lavratura das escrituras de inventário poderá ser feita em Tabelionato de Notas, sendo que, segundo recomendações do Colégio Notarial do Brasil, não há competência territorial para a lavratura destas escrituras, sendo livre a escolha do tabelião de notas.

3. DO TESTAMENTO

Com o propósito de conceituar o ato do testamento, GONÇALVES preceitua da seguinte forma:

O testamento constitui ato de última vontade, pelo qual o autor da

herança dispõe de seus bens para depois da morte e faz outras

disposições. O Código Civil considera testamento o ato personalíssimo e revogável pelo qual alguém dispõe da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte (arts. 1.857 e 1.858) (GONÇALVES, 2017, p. 393)

Neste mesmo sentido, DINIZ conceitua:

(..) ato personalíssimo e revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, não só dispõe, para depois da sua morte, no todo ou em parte (CC, art. 1.857, caput), do seu patrimônio, mas também faz outras

estipulações” (DINIZ, 2007, p. 175) Grifou-se

Destarte, depreende-se dos conceitos acima mencionados, consoantes com a doutrina contemporânea, algumas das características que definem o testamento. Portanto, sabe-se que o testamento trata-se de a) ato personalíssimo, ou seja, ato unilateral de vontade que não pode ser praticado em nome de terceiro; b) revogável; c) solene, por ter validade somente se lhe forem observadas as devidas formalidades e d) gratuito pois não visa à obtenção de vantagens para o testador. (GONÇALVES, 2017, p. 75, 76).

Desta feita, conforme conceito de DINIZ supracitado, impende salientar que o testamento não destina-se, tão somente, à disposição do patrimônio do testador, bem como a outras estipulações.

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Neste sentido preceitua CASSETARI que é póssível verificar no Código Civil outras finalidades do testamento que não seja, meramente, a disposição patrimonial. Vejamos:

Vemos no Código Civil que ele possui outras funções, como permitir que o testador:

a) determine emancipação de filho com no mínimo 16 (dezesseis) anos , exclusivamente, por instrumento público se exercer o poder familiar com exclusividade, conforme permite o art. 5°, parágrafo único, inciso I, do Código Civil;

b) determine a instituição de uma fundação (art. 62 do Código Civil);

c) estabeleça a indivisibilidade de um bem divisível de seu patrimônio por um determinado prazo – art. 1.320, § 2°. do Código Civil – que será transferido a vários herdeiros, para impossibilitar que eles ingressem com a ação de divisão, descrita no caput, do citado dispositivo;

d) institua um condomínio edilício sobre bem de seu patrimônio, conforme o art. 1.331 do Código Civil;

e) institua uma servidão sobre um bem imóvel do seu patrimônio, nos moldes do art. 1.378 do Código Civil;

f) institua os direitos reais de usufruto, uso ou habitação sobre um determinado bem, sem modificar a destinação da propriedade para os herdeiros, que pode, mesmo assim, ser feita pelas regras da sucessão legítima;

g) reconheça filhos, independentemente de ter que efetuar disposição patrimonial (art. 1.609, inciso III, do Código Civil);

h) institua bem de família convencional, nos moldes do art. 1.711 do Código Civil;

i) reconheça a existência de uma união estável;

j) institua uma tutela testamentária, nos moldes do art. 1.634, inciso VI, do Código Civil. (CASSETARI, 2018, p.144)

4 DA UTILIZAÇÃO DOS SERVIÇOS NOTARIAS COMO FORMA DE DESJUDICIALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTOS

É sabido que o fenômeno da judicialização, ao longo do tempo, tem sido muito recorrente, seja pelos aspectos fundamentais e garantia do acesso à justiça ou seja pela falta de eficácia das políticas públicas na resolução das demandas, de forma que a prestação jurisdicional se tornou fundamental.

Em contrapartida, devido a incumbência deste papel ao Poder Judiciário e implantação da cultura da litigiosidade, como consequência constatou-se uma grande morosidade e ineficácia do sistema judicial, de forma que foi necessário a desjudicialização de procedimentos como forma de garantir mais celeridade na solução de litígios.

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Sabe-se que desjudicializar implica na faculdade de deslocar a competência de determinados procedimentos que eram, exclusivamente judiciais, para as vias extrajudiciais.

Ordinariamente, então, o fenômeno da desjudicialização significa a possibilidade de solução de conflitos de interesse sem a prestação jurisdicional, entendido que jurisdição é somente aquela resposta estatal. Todavia, há situações caracterizadas como exemplos de desjudicialização em que não havia, propriamente, conflito de interesses, mas em que o Estado – e aqui nos restringimos ao Brasil – previa a necessidade de atividade jurisdicional em razão da natureza da decisão. (RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Senado Federal, 2013. Judicialização e desjudicialização Entre a deficiência do legislativo e a insuficiência do

judiciário . Disponível em:

<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/502916/000991396.pd f?sequence=1&isAllowed=y.> Acesso em: 29 de Julho de 2020.)

A esse respeito, cumpre trazer à baila o entendimento de QUEIROGA:

[...] trata-se de um mecanismo legal que permite que determinadas querelas, diante de requisitos estabelecidos em lei, possam ser resolvidas no âmbito administrativo, evitando-se assim, que tais questões cheguem à seara do Poder Judiciário (QUEIROGA, 2012, p.8).

Portanto, resta insuficiente limitar o conceito de desjudicialização, tão somente, à transferência de soluções de conflitos em outras esferas que não seja a judicial, uma vez que o fenômeno se refere, da mesma forma, às hipóteses em que não há a existência de lide.

Com efeito, em razão da insuficiência e morosidade do sistema judiciário, a utilização de meios alternativos, para a resolução de casos práticos sociais, tem sido efetiva na garantia do acesso à justiça, neste sentido afirma LORENCINI (2009, p. 605):

Não para eximir o Estado dos seus deveres constitucionais e legais, tampouco para exigir de cada pessoa a não utilização da jurisdição estatal,

mas que lhe possibilite, quando isso for necessário, que a sentença judicial não seja a única resposta, já que os contornos das controvérsias

que aportam o Poder Judiciário não são iguais. Grifou-se

Neste sentido, não há que se falar em exclusão da competência do Poder Judiciário para apreciação de procedimentos, ora desjudicializados, e sim da faculdade atribuída às partes pela utilização de meios alternativos ao processo judicial, considerando as vantagens contempladas pelos referidos meios.

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De acordo com o Relatório Justiça em Números mais recente do Conselho Nacional de Justiça, cujo ano-base é 2018, é possível verificar que nos últimos anos o estoque processual foi reduzido significativamente, sendo que em 2018, houve queda em quase um milhão de processos judiciais.

Pelo Relatório, verifica-se que houve aumento de baixas de processos de pendentes e redução na entrada de casos novos, contudo o “Tempo de Giro do Acervo”, indicador que mede o tempo para zerar o estoque de demandas judiciais, continuaria expressivo, aproximando a 2 anos e 10 meses na Justiça Estadual, ou seja, mesmo considerando a agilidade na resolução de demandas judiciais constatada nos últimos anos, e não houvesse a entrada de novos processos, o Poder Judiciário careceria de certo tempo para a baixa dos casos pendentes.

Em que pese a desjudicialização tenha se iniciado há muito tempo, a Lei 11.441/07 constitui um grande marco desta tendência, haja vista que objetiva desafogar o Poder Judiciário, bem como garantir mais efetividade e celeridade às ações de separações, divórcios, inventários e partilhas. Vejamos:

Tratou-se de uma excelente inovação, muito esperada pela sociedade, que chegou em boa hora, visto que teve por objetivo facilitar a realização de separações e divórcios consensuais em que não havia filhos menores ou incapazes do casal, bem como do inventário quando os interessados fossem capazes e concordes. (CASSETARI, p.4)

Nota-se, portanto, que as serventias extrajudiciais cumprem um papel fundamental neste processo, visto que por estas é possível alcançar o resultado pretendido com a necessária segurança jurídica e maior celeridade.

Neste diapasão, obedecendo ao comando constitucional3, a lei 8.935/94 regula as atividades notariais e de registro, disciplinando, inclusive, as responsabilidades disciplinares e penais sujeitas aos notários e oficiais de registro.

A Lei 8.935/94 em seu art. 1° define que serviços Notariais e de Registro “são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.

No que se refere a importância dos serviços notariais, LOUREIRO assevera:

3 Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. (Regulamento) § 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

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No quadro dos sistemas constitucional e infraconstitucional brasileiros, estes profissionais jurídicos desempenham importante papel para a validade, eficácia, segurança e controle dos atos negociais. Tais profissionais do direito são encarregados de conferir maior transparência, estabilidade e confiança a diversos aspectos e situações da vida jurídica dos cidadãos (2014, p.31).

Compreende-se, portanto, que a atividade notarial, em uma visão mais ampliada, cumpre papel importante não somente beneficiando o Poder Judiciário em virtude da redução de demandas, como também na efetividade no exercício de direitos, garantindo mais celeridade aos procedimentos não olvidando a necessária segurança jurídica.

5 DA POSSIBILIDADE DE SE PROCEDER AO INVENTÁRIO POR ESCRITURA PÚBLICA MESMO QUANDO HOUVER TESTAMENTO (ANÁLISE DO PODER JUDICIÁRIO)

Em se tratando de hermenêutica jurídica, ressalta-se a sua relevância no processo de subsunção do fato à norma jurídica, e na total anuência do indivíduo ao texto legal, de forma que não é suficiente, meramente, a sua disposição literal, bem como é necessário observar aspectos históricos e elementos sociais na interpretação da lei. Neste sentido dispõe DINIZ:

Uma disposição poderá parecer clara a quem a examinar superficialmente, ao passo que se revelará tal a quem a considerar nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito na sua aplicação a relações que, como produto de novas exigências e condições, não poderiam ser consideradas, ao tempo da formação da lei, na sua conexão com o sistema geral do direito positivo vigente. (DINIZ, 2002, p. 145-146)

Para tanto, são utilizados métodos pelos quais é possível compreender a norma jurídica e, consequentemente, fazer a sua aplicação correta, quais sejam: a interpretação lógica; histórico evolutiva; e método sistemático.

A respeito da interpretação sistemática, MAXIMILIANO leciona:

Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto Confronta-se a prescrição positiva com outra de que proveio, ou que da mesma dimanaram, verifica-se o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular, e deste modo se obtém esclarecimentos preciosos. O preceito, assim submetido a exame, longe de perder a própria individualidade, adquire realce maior, talvez inesperado. Com esse trabalho de síntese é mais bem- compreendido. (MAXIMILIANO, 2011, p. 104)

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Neste sentido, em que pese, em sua literalidade, o art. 610 do Código de Processo Civil faça a disposição acerca da obrigatoriedade do procedimento judicial havendo testamento deixado pelo de cujus, é sabido que há algum tempo a doutrina movimenta-se numa discussão concernente à mens legis do dispositivo que regula o procedimento do inventário extrajudicial, ou seja busca compreender a intenção do legislador na criação do dispositivo legal.

Buscando compreender se a mera existência de testamento, deixado pelo de cujus, deveria por si só constituir impedimento suficiente para a realização do procedimento de inventário administrativamente, o assunto foi arduamente repercutido por entidades representativas da atividade notarial, bem como em congressos e eventos da Justiça Federal, favorecendo a edição de enunciados a respeito do tema.

Em 2014, em evento realizado pelo Colégio Notarial do Brasil, foi aprovado enunciado favorável ao inventário por escritura pública nesta hipótese, condicionando esta possibilidade ao registro prévio do testamento, ou homologação posterior por Juízo competente:

1. É possível o inventário extrajudicial ainda que haja testamento, desde que previamente registrado em Juízo ou homologado posteriormente pelo Juízo competente.

Disponível em:

<https://www.cnbsp.org.br/pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NzM 0NA==&filtro=1&Data=> Acesso em: 25.08.20

Logo em 2015 o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM durante a realização do X Congresso Brasileiro de Direito de Família, aprovou o Enunciado 16 com o seguinte teor:

Enunciado 16 - Mesmo quando houver testamento, sendo todos os

interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial.

Neste mesmo sentido, o Centro de Estudos da Justiça Federal (CEJ) no curso da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, editou o Enunciado n. 600, editado em setembro de 2015:

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Enunciado 600: Após registrado judicialmente o testamento e sendo

todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o

inventário extrajudicial.

Como justificativa para o entendimento do supracitado Enunciado, alegou-se que por vezes, o testamento não faz disposições patrimoniais, bem como assentou-se que a intenção do legislador na extrajudicialização do procedimento, visa uma solução mais célere a questões que não necessitam da chancela judicia, de forma que mera existência de testamento não deveria ser considerado um óbice:

A só existência de testamento não serve de justificativa para impedir que o inventário seja levado a efeito extrajudicialmente. Muitas vezes, as disposições testamentárias não têm natureza patrimonial. Em outros casos, claros são os seus termos, não ensejando qualquer dúvida dos herdeiros e dos beneficiados quanto à última manifestação de vontade. Certamente esta é uma medida para

desafogar a já tão congestionada Justiça, não envolvendo os magistrados em processo no qual nada têm a decidir, além de assegurar às partes uma solução mais rápida a uma questão que não necessita da chancela judicial.

Posteriormente tal entendimento foi afirmado por meio dos Enunciados 77 da I Jornada sobre “Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios”, editado em agosto de 2016, e Enunciado 51 da I Jornada de Direito Processual Civil, editado em agosto de 2017.

Por conseguinte, o Poder Judiciário passou a ter o mesmo entendimento, um exemplo verídico, trata-se de apelação interposta em ação de cumprimento de testamento a qual indeferiu o pleito de processamento extrajudicial do inventário em razão da existência de testamento.

Não obstante o entendimento legalista do juízo a quo, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará seguiu o entendimento doutrinário exarado anteriormente nos enunciados do Conselho da Justiça Federal, ressaltando, inclusive, que por ser o notário o responsável por colher a vontade do testador, e em razão de possuir atribuições técnicas para tanto, isso por si só garantiria que não houvesse risco algum ao cumprimento do inventário e testamento pela via extrajudicial:

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DIREITO CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E SUCESSÓRIO. RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE TESTAMENTO. REQUERIMENTO DE

ABERTURA, REGISTRO E CUMPRIMENTO DE

TESTAMENTO. SENTENÇA QUE REJEITOU PLEITO DE INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL DOS BENS DEIXADOS PELO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 610, CAPUT, COM SEU PARÁGRAFO 1º, DO CPC. EXISTÊNCIA DE TESTAMENTO QUE NÃO AFASTA A POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DE INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL, NA HIPÓTESE EM QUE AS PARTES FOREM MAIORES E CAPAZES E HOUVER CONCORDÂNCIA ENTRE ELAS. INTELIGÊNCIA DO PROVIMENTO CGJ/CE N.º 18/2017; ENUNCIADO N.º 16, ELABORADO PELO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DA FAMÍLIA –IBDFAM; ENUNCIADO N.º 600, APROVADO NA VIII JORNADA DE DIREITO CIVIL. PRECEDENTE DO STJ. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJ-CE - APL: 01540683320188060001 CE 0154068-33.2018.8.06.0001, Relator: FRANCISCO MAURO FERREIRA LIBERATO, Data de Julgamento: 07/08/2019, 1ª Câmara Direito Privado, Data de Publicação: 07/08/2019)

Vejamos outra decisão, em caso análogo, que justificando a decisão nos princípios da razoabilidade e celeridade, o Tribunal de Minas Gerais autorizou a tramitação do inventário administrativamente:

EMENTA: APELAÇÃO - INVENTÁRIO - TESTAMENTO PÚBLICO - VIA EXTRAJUDICIAL - CASO CONCRETO - POSSIBILIDADE. Diante da necessidade de uma prestação jurisdicional eficiente/eficaz, em atenção aos princípios da razoabilidade e celeridade, e desde que cumpridas as exigências dos parágrafos 1º e 2º do art. 610 do CPC, justifica-se seja autorizada a tramitação de inventário, na via extrajudicial, mesmo havendo testamento envolvido.

(TJ-MG - AC: 10000190865584001 MG, Relator: Geraldo Augusto, Data de Julgamento: 10/11/0019, Data de Publicação: 19/11/2019)

Dessa forma, muito embora o entendimento jurisprudencial sobre o tema, tenha se amoldado com a realidade do Poder Judiciário Brasileiro, visando melhor aplicar o dispositivo legal à mens legis do dispositivo que regula o inventário extrajudicial, e visando promover a desjudicialização do procedimento, é sabido que

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