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HELLBLADE: LOUCURA E PERFORMANCE EM VIDEOGAMES

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Academic year: 2020

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JOSÉ GUILHERME ABRÃO FIRMINO**

O

riginalmente lançado para PC e PS4 em agosto de 2017, Hellblade: Senua’s Sa-crifice é um jogo desenvolvido pelo estúdio britânico Ninja Theory e chama a atenção por dois motivos: seu desejo de representar a loucura e a forma narrativa encontrada de explorar esta temática na mídia dos vídeo games. Falar sobre insanidade ou doença mental em produtos culturais não é uma novidade: desde o teatro grego o tema já foi explorado de várias formas e em mídias diferentes, de Édipo Rei a Hamlet ou mesmo em Don Quixote e no cinema, como em Um Estranho no Ninho e tantos outros longas e curtas.

A loucura se estende para além do meio médico de várias formas. Ela permanece uma forma recor-rente de fascínio para escritores e artistas e para suas audiências. Romances, biografias, autobiogra-fias, peças, filmes, pinturas, esculturas – em todos estes reinos e mais, o Insano continua a assombrar a imaginação e a emanar de maneiras poderosas e imprevisíveis (SCULL, 2017, p.15).

Hellblade é, em grande parte, fruto dessa criatividade imprevisível, que busca retra-tar a loucura em novos meios e formas. Mas em vídeo games, uma mídia jovem, o tema da sa-nidade mental ainda não foi muito explorado. Alguns jogos recentes, como Darkest Dungeon

Resumo: este trabalho tem como foto o jogo eletrônico Hellblade: Senua’s Sacrifice e em como

a loucura é representada nele e qual seu papel central na narrativa ste jogo. Neste artigo refletimos sobre esta representação a partir de uma relação entre vídeo games e performances culturais nos apoiando em conceitos de história, folclore e do imaginário.

Palavras-chave: Performances culturais. Mídias. Vídeo games. Loucura. Imaginário.

* Recebido em: 27.07.2018. Aprovado em: 27.10.2018.

** Mestre em Performances Culturais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFG. E-mail: jgabrao@gmail.com

DOI 10.18224/frag.v28i3.6587

HELLBLADE: LOUCURA

E PERFORMANCE

EM VIDEO GAMES*

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(2015) já arriscaram sua própria forma de representar a insanidade nesta mídia interativa. O que diferencia Hellblade: Senua’s Sacrifice (2017) dos demais é o quanto a loucura é parte central deste vídeo game, não apenas em seu tema, mas em suas mecânicas centrais de jogo, suas regras e, especialmente, sua narrativa.

O game acompanha a história de Senua, uma guerreira celta da Antiguidade em uma jornada provavelmente suicida até Hel, o inferno da cultura nórdica, para resgatar a alma do seu amado, Dillion, morto durante uma invasão de escandinavos que destruiu a sua aldeia. A cena inicial do jogo encontra Senua navegando em uma canoa, seguindo os rastros dos seus inimigos nórdicos até uma praia distante. Mas logo fica claro que há algo mais: Se-nua é atormentada pelo que ela chama de “Escuridão”. Imediatamente o jogador percebe o primeiro efeito da Escuridão: ela faz com que Senua ouça vozes. Elas estão constantemente em sua cabeça e raramente se silenciam. Muitas delas são indistintas, mesmo para o jogador, que parecem apenas provocá-la e depreciá-la conforme ela tenta ignorá-las, como as Fúrias que perseguem Orestes.

Em meio às vozes, o jogador logo descobre duas que se destacam e que se opõem: a Narradora e a Sombra. Ambas recontam e comentam a jornada de Senua, mas enquanto uma a percebe como heroína a outra a vê como uma pessoa fraca e desprezível. Conforme o jogador avança no game, ele irá aprender mais sobre quem é Senua, sua vida, seus traumas e como ela foi parar ali.

Senua, como muitas pessoas no mundo, sofre de esquizofrenia, mas é uma personagem a séculos de distância de qualquer terapeuta ou medicação. Pior: ela acaba de passar pelo trauma de ver o seu parceiro morrer e sua aldeia ser destruída por invasores. Ela então resolve partir em busca de vingança. Quando a história começa, Senua está no começo de uma crise, um episódio completo de psicose que se torna mais intenso ao longo da história e cabe ao jogador acompanha-la nessa jornada e tentar fazer com que eacompanha-la saia vitoriosa do outro acompanha-lado. Sua descida até Hel, tal qual em A Divina Comédia, de Dante, é uma longa descida em direção à loucura.

DESENVOLVIMENTO

É uma estória complicada e rica e que lida com um assunto muito sério e delicado. Como criar uma narrativa coerente sobre trauma e doença mental sem ser ofensivo e como fazer com que estes temas sejam bem trabalhados em uma mídia interativa como a dos jo-gos? Talvez percebendo os riscos, outra fonte interessante que entra na nossa reflexão são os próprios diários de produção de Hellblade. Toda cópia do jogo possui um making of com o criador e roteirista da Ninja Theory, Tameem Antoniades, e que se aprofunda nos bastidores e no trabalho de pesquisa do game. Felizmente, todo o material está disponível no YouTube1,

no canal da Ninja Theory. Para desenvolver o jogo, o estúdio contou com a colaboração de 40 consultores formados principalmente de pacientes esquizofrênicos, psicólogos e psiquiatras.

“Em Don Quixote, o herói vê o mundo através da loucura, vendo gigantes no lugar de moinhos de vento. Da mesma forma, quando você jogar o jogo, você verá o mundo pelos olhos da mente de Senua” (Ninja Theory, YouTube, 2017), explica Antoniades nesta série de vídeos. Muitos elementos simbólicos e folclóricos, a reinterpretação de Senua do mundo, entram na representação do mundo do jogo assim como no próprio controle da personagem e no que o jogador vê e escuta. Pelos olhos de Senua é impossível diferenciar o que é real do que não é e o jogador experimenta isto em primeira mão.

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O resultado é que o mundo do jogo de Hellblade é uma mistura do mundo real com o mundo construído por Senua, composto por traumas, magia e mitologia tanto do povo celta quanto dos vikings invasores. Estes elementos da doença mental de Senua e seus sintomas se tornam intrínsecos à experiência do jogador, como alucinações auditivas e visuais ou a capacidade de encontrar padrões ou fazer associações e atribuir significado a elementos ao seu redor que outras pessoas não veem. “Um dos indivíduos que entrevistamos nos falou sobre como todo dia era um quebra-cabeça, cheio de símbolos, peças e cores ao seu redor” (Ninja Theory, YouTube, 2017), conta Antoniades.

Estes sintomas são combinados com elementos mitológicos e folclóricos como, dando exemplos simples, o poder mágico atribuído às runas nórdicas ou a forma como Senua percebe os guerreiros invasores: como homens enormes com máscaras de caveiras e com sons estranhos, quase bestiais. Trauma, cultura e a própria doença mental se unem na jogabilidade. Outras passagens possuem referências mitológicas diretas que são incorporadas de alguma forma ao jogo. Deuses são citados, como Odin, Loki e Freya, enquanto outros elementos fa-zem parte do jogo, como um confronto direto com Hela e o lobo Fenrir, a obtenção da espada mágica Gramr, do herói Sigurd, entre outras.

Loucura, Mitologia e Magia

Nesta primeira parte vamos falar sobre como estes três elementos se juntam para compor o mundo reconstruído em Hellblade: Senua’s Sacrifice. Para tanto, propomos uma breve revisão e reflexão sobre a história da loucura na Antiguidade e especialmente sua relação com a mitologia e o folclore dos povos celta e viking, retratados no jogo. Em Madness in Civilization, o historiador Andrew Scull (2017) reconta a História da loucura a partir de uma perspectiva cultural: “A loucura é uma parte inegável da civilização e não uma parte externa. É um problema que invade constantemente nossa consciência e nossa vida diária. Ela é, ao mesmo tempo, liminal e não-liminal” (SCULL, 2017, p.10). O autor percebe um fator cultural inerente em relação à doença mental que afeta e é afe-tada pelo mundo ao redor do paciente, da mesma forma em que o mundo ao redro afeta Senua e seus sintomas.

Para ele, há uma ligação profunda entre a loucura e o imaginário, uma fronteira borrada entre o real e o imaginado, ao mesmo tempo em que a doença mental é uma prisão. Scull chama atenção para o quão tabu o assunto foi e ainda é em mais de dois milênios de História, destacando como o termo “loucura” é malvisto hoje em dia, mas que revisitar histo-ricamente a loucura é também estudar o significado deste termo ao longo dos anos. A loucura por quase todo o tempo esteve associada ao isolamento referido acima, a algo maligno a ser removido ou escondido. O motivo para isto é que a insanidade vai além da condição médica, estando enredada na ordem social e sendo tema recorrente das Artes, da religião e da mídia em geral. Estas representações perpassam, naturalmente, o folclore e a mitologia. Para falar sobre loucura é preciso compreendê-la em seus diferentes estágios na História: “Corremos riscos enormes [...] ao projetarmos nossas categorias de diagnóstico contemporâneas e com-preensão psiquiátrica no passado” (SCULL, 2017, p.14).

O autor destaca que a loucura está presente e é retratada de diferentes formas na Antiguidade, muitas vezes presente como punição, mas às vezes até mesmo como dádiva, marca ou sinal divino.

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Todos os aspectos do mundo natural e suas funcionalidades estão ligados com os reinos dos deuses e sua influência totalizante era inescapável. O estranho, o diferente, o outro, o aterrorizante da loucura – onde isto se originaria senão no universo invisível povoado pelo divino e pelo diabólico? (SCULL, 2017, p. 24).

Tanto que em muitos casos a mitologia cruza o caminho da loucura, mesmo na religiosidade judaico-cristã. Scull destaca Saulo, primeiro rei dos hebreus e Nabucodonosor: ambos ofenderam Javé e enlouqueceram. “Os hebreus, como muitos povos da Antiguidade, se viraram para a possessão por espíritos malignos para explicar a assustadora degradação que se abatia sobre os loucos” (SCULL, 2017, p.17). Loucura era uma maldição visitada sobre os hereges, infiéis e desobedientes. Sendo assim, a forma de tratamento muitas vezes também passava pela lente de tentar acalmar os espíritos malignos. No caso de Saulo, o pastor Davi era o único que podia aplacar o seu tormento, muitas vezes com música.

Scull chama a atenção para o fato de que outros profetas, como Ezequiel ou Josué, mui-tas vezes manifestam a loucura como sinal da graça divina, e não punição. Eles alucinavam, entra-vam em frenesis e transes, tinham visões. O autor destaca que é difícil traçar a linha que separava os profetas dos meramente loucos. E ser louco em Israel, assim como em todo o mundo Antigo, não era fácil: “Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros” (FOUCAULT, 1978, p.13), mesmo para os profetas: “Zombaria e isolamento era o destino mais comum, mas muito pior poderia acontecer. Quando Jeremias profetizou a des-truição iminente de Jerusalém, ele foi considerado um traidor, espancado e colocado no tronco” (SCULL, 2017, p.18). A ligação entre a loucura e o divino, para o bem ou para o mal, também se fez presente em toda a tradição grega, desta vez sendo o ponto central de muitas peças e lendas helênicas e, novamente, de modo geral sendo caracterizada como punição para os mortais.

Hércules, por exemplo, se torna louco momentaneamente por um feitiço de Hera, matando brutalmente os próprios filhos em um surto com direito a risadas maníacas, olhos arregalados e espuma pela boca, maldição momentânea que o força a se lançar em seus famo-sos Doze Trabalhos, para purificar seus pecados. A loucura na Grécia antiga era trabalhada, de forma um tanto aterrorizante e catártica, no centro da vida cultural grega: o teatro. “A vida parava pelo teatro, literalmente. As lojas fechavam e faziam isso por dias de cada vez [...]. A narrativa unia a comunidade” (SCULL, 2017, p.23). Há uma coleção de personagens que possuem pelo menos uma passagem de insanidade em suas histórias, como Orestes e Édipo.

Em Hellblade, a presença do divino, do mágico e do folclórico permeia toda a vida de Senua. Os desenvolvedores da Ninja Theory equilibram o que se sabe de doença mental hoje com que seria a reação do povo picto. No jogo, Senua e os membros de sua aldeia se referem à sua doença como “Escuridão”. No início, pouco se sabe sobre a Escuridão de Senua e sua origem, mas para olhos contemporâneos, alguns elos já se formam, como o fato de que é revelado que a mãe de Senua também possuía a Escuridão.

O oculto, a magia, está enraizada tanto na cultura celta quanto na nórdica, ambas retratadas em Hellblade. Sua mitologia e folclore eram recheados de elementos mágicos que influenciavam no dia-a-dia da população e marcavam suas superstições e costumes.

No norte distante da Europa, algo diferente estava acontecendo. Lá, celtas e mais tarde os povos ger-mânicos da Escandinávia estavam criando a sua própria forma de magia e ritual, tipicamente ligada à natureza e enraizada na paisagem hostil. [...] As estórias épicas dos povos celtas das ilhas britânicas e da Gália estão cheias de animais mágicos, bruxas e feiticeiras, maldições e encantamentos. [...] Os

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celtas galeses e irlandeses são particularmente ricos de magia em suas tradições, com as lendas artu-rianas surgindo em Gales (DELL, 2017, p.104).

A figura central da sociedade celta estava também no centro de sua tradição religio-sa: os druidas. Eles eram líderes tribais ao mesmo tempo em que eram sacerdotes, magos e curandeiros. Suas visões e profecias não eram vistos como devaneios, pois para os celtas, todo elemento da natureza possuía um espírito (DELL, 2017). O “druidismo” é a religião dos povos celtas da Antiguidade e geralmente envolviam grandes rituais, com sacrifícios animais e círculos mágicos, como as pedras de Stonehenge. Fora isto, pouco se sabe sobre a religião celta além de que também acreditavam em alguma forma de reencarnação.

Estes elementos estão representados em Hellblade na personagem de Senua e de sua aldeia. Embora o jogador não chegue a conhecer a tribo antes do ataque, personagens do pas-sado de Senua aparecem para ela em visões e flashbacks. Desta forma, sua origem e seu paspas-sado são recontados para o jogador. É desta forma que o jogador descobre que Senua é filha do druida de sua tribo, o ermitão Zynbel, e de uma de suas sacerdotisas, Galena, assim como o fato de que seu amado, Dillion, é um guerreiro celta estrangeiro, vindo do povo da Irlanda.

A mitologia e a magia nórdica entram em contato com Senua através de outro personagem: Druth. O jogador aprende pelos flashes que no passado Druth fora um bardo, outra posição de destaque na sociedade celta (DELL, 2017). Porém, sua aldeia também foi atacada e ele passou anos vivendo como escravo dos vikings, até conseguir escapar, indo parar na aldeia de Senua, em que é tratado como louco. Ela é a única que ouve suas histórias e as-sim aprende sobre os nórdicos. Conforme o jogo se desenvolve, o mundo ao redor de Senua engloba características dos invasores, como as já mencionadas runas e deidades vikings.

Assim como na cultura celta, para os nórdicos, o mundo dos deuses e dos mortais estavam sobrepostos. Odin, Thor, Freya, Hela e outras deidades e criaturas míticas de Asgard podiam caminhar por Midgard com a mesma naturalidade que os humanos: “Magia é um fator chave da mitologia nórdica com dragões, anões, ouro amaldiçoado e armas mágicas combinados para um mundo em que nada é o que parece ser” (DELL, 2017, p.127). Um dos principais fatores mágicos da cultura nórdica e que aparece com frequência em Hellblade são as runas que muitas vezes eram usadas para descrever fórmulas mágicas ou dotar objetos com poderes sobrenaturais e até mesmo curar doenças ou invocar proteção.

Um elemento recorrente em ambas as culturas são objetos mágicos, especialmente espadas: nas lendas celtas, existe a espada mágica Dyrnwyn da mesma forma que na mitologia nórdica há Gramr e ambas as lendas acabaram combinadas na cultura cristã na forma da Exca-libur (DELL, 2017). Em Hellblade não é diferente: Senua possui um espelho mágico em sua jornada que permite ao jogador entrar em um modo slow-motion e em dado momento a guer-reira bota as mãos na própria Gramr em busca de uma arma para derrotar o lobo Fenrir e Hela. Outras deidades e elementos mitológicos nórdicos dão as caras no jogo como a ponte para Hel e os deuses Surt, do fogo, e Valravn, do vento e da ilusão, geralmente repre-sentando como um corvo mágico.

Narrativa, imaginário e risco

O imaginário é composto por diversas categorias como ficção, fantasia, devaneio, romance e mesmo a religião, as produções artísticas e a construção de mundos fantasiosos

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tanto de um indivíduo quanto coletivamente na forma do imaginário de um povo (WU-NENBURGER, 2007).

No caso do mito e da religião, o imaginário muitas vezes terá um caráter formativo e explicativo sobre o que rege a sociedade, como fenômenos naturais, a moral e as leis. Ambos são as formas mais elaboradas de imaginário, pois envolvem toda uma cultura popular e suas tradições. “O imaginário serve para dotar os homens de memória fornecendo-lhes relatos que sintetizam e reconstroem o passado e justificam o presente” (WUNENBURGER, 2007, p.63). O imaginário é composto por uma relação entre realidade e simbólico que permeiam culturalmente a vida do imaginante e possui esta natureza dúbia do real e do imaginado.

Este imaginário construído, estruturado, é sentido com facilidade em Hellblade e na sua representação da loucura. A reação às alucinações e comportamentos de Senua é baseada na forma como a loucura era percebida culturalmente pelo seu povo picto. Em uma cultura bastante ligada à magia como a celta e à religião, como nos exemplos dados no tópico ante-rior, faz parte do imaginário retratado no jogo que Senua seja percebida como amaldiçoada pelos deuses. Como escreve Wunenburger, a construção do imaginário está ligada também à construção de sentido e é regido por uma lógica interna, própria. É este raciocínio que baseia a ideia de Zynbel, o sacerdote, de que Senua é odiada pelos deuses e deve ser isolada, não muito diferente do destino da maior parte dos doentes mentais da Antiguidade.

Ao falar sobre imaginário mítico, Malrieu (1995) escreve que o caráter coletivo do mito ao mesmo tempo que não sobre grandes mudanças faz com que ele seja sempre renova-do, pois o mito só permanece vivo se for contado e ainda fizer parte do imaginário, o que é feito individualmente na mente do imaginante: “Um mito coletivo não pode sobreviver sem as comoções e invenções individuais que o consolidam, autenticam e recriam incessantemen-te” (MALRIEU, 1995, p.58). Por este caráter de renovação que o autor vê a permanência das lendas e a sua “função” de retomar temas recorrentes: “A invenção é aí canalizada para os quadros de crenças reguladoras definidas, que ‘explicam’[...] a experiência vivida por meio de [...] um esquema de correspondências entre o visível do presente e o invisível imutável” (MALRIEU, 1995, p.61).

Para o autor, o imaginário mítico possui um caráter de reconciliação e de partici-pação: são um bálsamo para a alma frente ao terror existencial: “Não é possível compreender as correspondências do mito, se ignorarmos as múltiplas angústias que atravessam a vida dos homens” (MALRIEU, 1995, p.74). O amor, o trabalho, a morte: o mito traz a apaziguamen-to necessário para estas questões e medos.

Porém, é aí que está a diferença de Senua em Hellblade. O imaginário mítico não é apaziguador para ela, e sim fonte de mais terror, pois a resposta do mito e da religião para as suas perguntas (porque ela é tem visões e é diferente dos outros) é a de que ela é amaldiçoada e de que não pertence à vida em sociedade da aldeia. Sem este conforto, há uma quebra na construção de sentido, uma abertura para o desespero.

Giddens (2002) escreve sobre o fator de risco na sociedade moderna. Embora em seu livro o autor se refira à sociedade contemporânea, ele destaca que o risco sempre foi um fator presente em todas as sociedades de todas as épocas e ele também pode ser observado na trajetória de Senua.

O risco de que fala Giddens (2002) é uma ansiedade social gerada entre a balança desfavorável das expectativas do indivíduo e as expectativas da sociedade. Quanto maior a discrepância, maior o risco e maiores as chances do indivíduo se encontrar em uma situação

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de desconforto mental e físico. O autor argumenta que em tempos mais antigos este risco era menor: o filho de um padeiro, padeiro seria; a expectativa era baixa e o objetivo supostamente fácil de ser atingido: “Pensar em termos de risco é vital para aferir até que ponto os resultados reais poderão vir a divergir das previsões do projeto” (GIDDENS, 2002, p.11). É um concei-to simples, mas que se concei-torna mais complexo conforme é extrapolado.

No caso de Senua, como uma celta da Antiguidade, o risco de que Giddens (2002) fala seria baixo: filha de um sacerdote e uma sacerdotisa, o destino da protagonista está su-postamente selado antes mesmo de seu nascimento. Porém, Senua possui um fator de risco enorme: sua doença mental que altera todo o seu destino e afeta todo o contexto social ao seu redor. O aumento do risco, argumenta Giddens e no caso de Senua, leva à perda de sentido: amaldiçoada, ela não seria adequada para ocupar nenhuma posição ou cumprir nenhum des-tino entre seu povo:

As circunstâncias sociais não são separadas da vida pessoal, nem são apenas pano de fundo para ela. Ao enfrentar problemas pessoais, os indivíduos ativamente ajudam a reconstruir o universo da atividade social à sua volta. [...] A ansiedade é o correlato natural dos perigos (GIDDENS, 2002, p.18-9).

O risco leva à ansiedade existencial que leva à exclusão presente na sociedade desde sempre, impedindo indivíduos como Senua de ter uma vida normal:

Os loucos, os criminosos e os doentes graves são fisicamente segregados da população normal [...]. A segregação da experiência significa que, para muitas pessoas, o contato direto com eventos e situa-ções que ligam a vida individual a questões mais amplas de moralidade e finitude são raras e fugazes (GIDDENS, 2002, p.15).

Os elementos de risco, mitologia e loucura de Senua fazem parte da sua história, que é uma narrativa de ficção em vídeo games e faz uso da narrativa fantástica para costurar a doença mental de Senua, seu folclore e mitologia e sua crise existencial.

Em As Estruturas Narrativas, Todorov (2006) relembra o enredo de O Diabo Apaixonado, de Cazotte. Ele fala sobre o protagonista Alvare que ao longo da trama não consegue separar o que é real do que é imaginado (e, por extensão, o leitor também não sabe). A ambiguidade perdura por toda a trama e o fantástico ocupa este espaço da incerteza em que aquele que vive a dúvida (geralmente o personagem principal) possui apenas uma quantidade limitada de formas de atribuir sentido e controlar a ambiguidade ou senão acei-tar que perdeu a razão e, portanto, está louco. “Ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação, e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida por leis desconhecidas por nós” (TODOROV, 2006, p.146).

O autor separa estas narrativas em fantásticas, estranhas ou maravilhosas, dependendo de como e qual é a relação estabelecida com o sobrenatural. Estas narrativas, por natureza, lidam com o imaginário e com a construção do sentido. O estranho é classificado como uma narrativa em que tudo é perfeitamente explicável, porém insólito. O estranho-fantástico, por outro lado, é uma narrativa com elementos sobrenaturais que são explicados ou desmascarados no final da história. Já o fantástico-maravilhoso é uma narrativa com elementos sobrenaturais que se tornam ou se provam reais. Para que algo seja fantástico ele precisa necessariamente entrar em contradição com o ordinário dos significados e da “realidade” estabelecidas pelos

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indivíduos, nestes casos de mídia, seja filme, livro ou vídeo game, de seus personagens e também seus leitores.

A principal marca do fantástico na narrativa é a hesitação do personagem: “A fé absoluta, como a incredulidade total, nos leva para fora do fantástico” (TODOROV, 2006, p.148). Para Senua em Hellblade não é diferente: sua narrativa – e seus jogadores – são guia-dos por ambos estes elementos: a ambiguidade, a dúvida sobre o real, e a hesitação. Porque Senua, como o jogador, sabe que sua mente, seus sentidos e mesmo suas vozes não são apenas parcialmente confiáveis. O jogador sabe que Senua é uma personagem que sofre de alucinações, mas conforme ele navega pelo mundo de Senua, ele só possui o olhar dela para se guiar, tornando impossível determinar, objetivamente, o que é o mundo real e o que é imaginado. E isto vale para todos os elementos do mundo de Hellblade: uma porta pode parecer totalmente sólida ou um incêndio perfeitamente mortal, apenas para que Senua e o jogador descubram em breve que não existia porta ou incêndio, mas conforme o jogador (e Senua) vivem estes momentos, o falso incêndio e a falsa porta parecem tão reais e concretos como todo o resto.

Todorov escreve que ao voltar para a sua realidade, ou seja, quando o leitor/jo-gador sai do contato com a mídia, o fantástico pode ser ameaçado pela incredulidade. Há casos mais óbvios do que outros: ele cita por exemplo estórias com animais falantes em que o leitor já sabe que não deve levar ao pé da letra, pois sabe que animais falantes não exis-tem. Para nós, jogadores contemporâneos de vídeo game, é fácil sentir esta ameaça jogando Hellblade: além de partimos do conhecimento e que é um jogo eletrônico de ficção, a nossa tendência é descartar de primeira a presença de Surt, Fenrir e outros elementos mitológicos na trama como alucinações de Senua. Escreve Todorov: “é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados” (TODOROV, 2006, p.149).

Porém, o estúdio Ninja Theory encontrou uma forma interessante de envolver o jogador de forma permanente na hesitação entre real/imaginado do jogo. Logo após o início do jogo, o jogador descobre que a Escuridão de Senua está se espalhando: uma mancha negra toma sua mão direita. Logo depois um texto aparece na tela avisando o jogador que sempre que ele falhar (morrer) a Escuridão vai aumentar, escalando o braço de Senua. Se ela chegar à sua cabeça, é game over2.

Esta é uma mecânica conhecida no mundo dos jogos como permadeath (morte per-manente) e geralmente está presente em jogos de terror ou do gênero roguelike, o que não é o caso de Hellblade. O nome é bem explicativo: ao contrário da maior parte dos jogos em que o jogador pode sempre tentar de novo se falhar, em jogos permadeath o jogador retorna para o início do jogo em caso de game over, perdendo tudo o que fez. Assim, quando Hellblade estabelece a Escuridão como forma de morte definitiva, o jogador hesita e fica na dúvida da mesma forma que Senua: talvez a Escuridão e a morte permanente não sejam reais, mas ele vai ter a coragem de arriscar e descobrir se é um blefe? Assim como a personagem, o jogador não sabe se aquilo é real.

Parece real, o jogo rompeu a imersão para lhe avisar sobre isso com um texto e, ao longo da jornada, é bastante difícil não ficar tenso conforme a Escuridão escala o braço de Senua a cada falha e derrota. Falaremos mais sobre isso no tópico seguinte quando falarmos sobre performance e vídeo games. O ponto de encontro entre narrativa, imaginário e doença mental se dá pela performance do jogador e pela forma de narrativa única dos vídeo games.

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Video Games e Performance

O que torna o vídeo game uma mídia única é sua capacidade interativa. Para o de-senrolar de um jogo, é necessário o input constante do jogador, o que é muito diferente de um mero apertar de botões. A ação do jogador interfere e modifica o cibermundo do jogo. É na combinação entre a programação do vídeo game e a ação humana que está a performance e sua unicidade: na interação com o mundo digital.

É a ação do jogador que irá ditar qual será sua experiência e sua narrativa naquele vídeo game combinada à intencionalidade de seus programadores e para além dela. No caso de Hellblade, o estúdio Ninja Theory possuía uma ideia bastante autoral: representar uma protagonista esquizofrênica em um jogo de aventura sobre celtas e vikings. Como o jogador absorveria estes elementos? Como os vídeo games são interativos eles naturalmente dialogam com as performances. Como ponto de partida podemos citar o mostrar fazendo, de Schech-ner (2006): “Performances marcam identidades, dobram o tempo, remodelam e adornam o corpo e contam histórias” (SCHECHNER, 2006, p.28). O jogador de Hellblade não verá apenas o drama de Senua, mas irá tomar parte dele: através de suas ações, a narrativa do jogo se torna performatizada, uma experiência, na qual o jogador é agente na trama e no drama.

O autor interpreta jogos como sendo performance por suas características. Jogos envolvem regras e práticas que serão exploradas e repetidas. O mesmo vale para rituais e peças de teatro, por exemplo. O que torna estas performances especiais é que, mesmo sendo com-portamento restaurado, a experiência nunca é a mesma. Em uma partida eu posso me sair muito bem e na outra posso falhar repetidas vezes; as regras do jogo estão estabelecidas, mas o que pode acontecer é imprevisível. Aqueles envolvidos na performance não terão os mesmos sentimentos e interpretações.

No jogo controlamos um avatar. Através dele, nossas ações passam a tomar parte no mundo digital para o qual somos transportados. Pelo avatar, assumimos um novo papel. Schechner chama isto de transporte e transformação: pela performance somos levados a um outro lugar e podemos voltar transformados dele (SCHECHNER, 2011).

Denomino performances os eventos em que os performers são ‘transformações’ modificadas e àque-les em que os performers são levados de volta aos seus lugares de origem, ‘transporte’ [...]. O perfor-mer vai do ‘mundo habitual’ ao ‘mundo performativo’, de uma referência de tempo/espaço à outra, de uma personalidade à outra (SCHECHNER, 2011, p. 162-3).

Ao assumirmos o papel de Senua, abrimos mão da nossa realidade, nosso mundo, para experimentar o mundo transformado do jogo. O fator de transformação em Hellblade se apresenta na possibilidade de ver o mundo pelos olhos da doença mental de Senua. Não é uma mera representação visual: o jogador precisa interagir com diversos elementos que se manifestam objetivamente.

Antes de entrarmos em maiores detalhes sobre isto, é importante relacionar Schech-ner com o conceito de liminaridade de TurSchech-ner (1974). A performance do jogador é liminar, caracterizada por se dar em uma fronteira, “nem aqui nem lá”. O jogador nesta fronteira está separado, em um tempo-espaço único e específico (o do jogo) e desprovido do seu status an-terior (ele deixa de ser ele mesmo para se tornar, temporariamente, Senua). Além disso, vale ressaltar que Hellblade ainda possui uma característica particularmente interessante: a própria jornada de Senua é um rito de passagem liminar. Sua passagem é superar o trauma da perda

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de sua aldeia e de Dillion e para tanto ela é levada aos confins de sua doença mental em um estado completamente liminar, uma fronteira densamente borrada entre o real e o não-real.

Ligando a noção de risco dada por Giddens (2002), a protagonista também passa por outro conceito de Turner (1996), o de drama social, descrito em quatro fases pelas quais Senua passa ao longo do jogo: ruptura (Senua perde seu amado e seu povo); crise e intensi-ficação da crise (suas alucinações se tornam cada vez piores e ela vai a Hel); ação reparadora (ela enfrenta a Escuridão e Zynbel); e, por fim, desfecho (Senua supera o trauma e aceita sua doença mental).

Embora Turner descreve o drama social como um fenômeno coletivo, neste caso, suas características e suas fases casam com a jornada narrativa de Senua e do jogador em per-feita sincronia.

A performance dos jogadores ocorre através de sua participação no jogo e seu enga-jamento direto. Esta performance ganha significado para nós a partir dos conceitos de agên-cia e imersão (MURRAY, 2004). A agênagên-cia é a capacidade de realizar ações significativas no jogo, impactando o cibermundo, gerando transformações. Agência envolve intencionalidade e mesmo uma intencionalidade narrativa por parte do jogador: é viver o papel e determinar como se quer que o personagem/avatar progrida naquele ciberespaço, interferindo naquele cibermundo ativamente. Já a imersão são as características do jogo capazes de levar o jogador para o mundo digital, desde os seus gráficos até a sua trilha sonora, dando ao jogador a sen-sação de estar “submerso” nesta outra realidade.

Esta relação de performance com o jogo nos leva a Fink (2016) que defende play como um ato de criação de significado: “Enquanto joga [playing], o ser humano não perma-nece em si mesmo, não permaperma-nece em um domínio fechado de seu interior psíquico – na ver-dade, ele sai para fora e além de si mesmo” (FINK, 2016, p. 46). É através da performance do jogador, ou seja, jogando, que ele explora o mundo digital e aprende a narrativa, construindo--a com suas ações. Para Murray (2004), o grande diferencial dos vídeo games é que a narrativa não acontece simplesmente com um personagem ou ator, mas com o jogador: o que acontece em tempo real na tela é uma resposta direta das ações de cada jogador.

É através do espaço do jogo que a narrativa se manifesta: é movendo seu perso-nagem por aquele mundo que se avança no jogo: “A história está amarrada à navegação do espaço. Conforme avanço, tenho uma sensação de grande poder, de agir significativamente, que está diretamente relacionada ao prazer que sinto com o desenrolar da história” (MURRAY, 2004, p. 131). Por isto que, para Jenkins (2011), a arquitetura do jogo é narrativa. O autor de-fende, como Murray, que é pela exploração do jogador no cibermundo que toda a informação e a história do vídeo game se expressam.

A narrativa do ambiente cria as pré-condições para uma experiência narrativa em pelo menos uma de quatro formas: histórias espaciais podem evocar associações narrativas pré-existentes; elas podem fornecer um palco no qual eventos narrativos são exercidos; eles podem elencar informação narrativa na mise-en-scène; ou eles fornecem recursos para narrativas emergentes (JENKINS, 2011, p. 5). Hellblade, portanto, tira vantagem do mundo construído por Senua, em que o que vemos não é real objetivo, mas o real pelo olho de sua mente. Seu mundo é único, uma reflexão de sua mente e não da realidade: “Nesta adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir sua loucura como uma miragem. [...] A loucura não diz tanto respeito à verdade e ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo” (FOUCAULT, 1978, p. 29-30).

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Em Hellblade, o jogo deixa claro desde o início que o mundo de Senua, seu trauma, suas ilusões, são inescapáveis. Esta perspectiva um tanto sinistra da loucura está presente em algumas outras obras de ficção, como Don Quixote: “Em Cervantes ou Shakespeare, a loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de que ela não tem recurso. Nada a traz de volta à verdade ou à razão” (FOUCAULT, 1978, p.43). No caso de Senua, a melhor representação disto é na escuridão em seu braço que só aumenta: a loucura se espalha e se torna mais pro-funda e a única certeza é que se a escuridão chegar à sua cabeça, ela morrerá.

Toda esta jornada irá se manifestar no mundo de Hellbade, ligadas às ações dos jogadores. Para Laurel (2008), ao navegar o espaço com seu avatar, é como se o jogador esti-vesse em uma peça ou filme. Em uma estrutura narrativa clássica, um incidente leva a outro, movendo a trama, sendo os plot points os pontos-chave. Em um jogo, o jogador irá explorar os limites daquele universo e suas ações irão desencadear estes pontos-chave.

Nos jogos o progresso narrativo está ligado à ação do jogador no cenário. Enquanto no teatro um ator irá dizer as suas falas em uma determinada ordem, o jogador irá fazer isso pelo espaço: “Barreiras materiais podem ser colocadas de forma sutil através de exposição durante a ação. As pessoas descobrem aspectos comportamentais e ‘físicos’ do mundo mimé-tico, seus personagens e eventos dessa forma” (LAUREL, 2008, p.109). O espaço, no caso de um jogo com um foco mais narrativo como é Hellblade, irá direcionar a ação do jogador de maneira sutil, para que ele encontre o seu caminho. Há portanto uma camada de intencio-nalidade por parte dos programadores, como um roteiro de cinema, mas quem irá desenrolar esta trama é o jogador.

Isto é feito em Hellblade pelo formato clássico de obstáculos. Conforme o jogo avança, o jogador se verá barrado várias vezes de algumas formas sutis (não conseguir subir ou passar por uma barreira, como uma parede lisa ou um arbusto denso) e outras mais óbvias (como portas trancadas). No jogo, a narrativa do cenário e suas barreiras também incorporam parte dos desafios do jogo e de sua temática.

Uma das maneiras mais recorrentes que as alucinações de Senua se manifestam no jogo estão no desafio e no combate. Fica implícito que os guerreiros vikings que ela enfrenta na verdade não estão lá, mas isto não os torna menos fatais: todo o combate do jogo é baseado em se defender, atacar e desviar dos nórdicos, ligeiramente maiores que a protagonista.

Outra manifestação recorrente são as vozes. Senua (e o jogador) escutam várias vozes o tempo inteiro e elas não está lá apenas como fator estético. Além de provocações, as vozes também irão motivar o jogador, gritando, por exemplo, “Levante-se!” quando o jogador cair ou “Você consegue” e “Não desista”. As vozes também dão dicas, às vezes informando o jogador sobre o que fazer ou dando sugestões, dizendo “Olhe para cima” ou “Não olhe pra baixo” ou “Ataque agora!”. Desta forma, o jogador pode ter, até certo ponto, as vozes como aliadas, assim elas não são apenas ruídos de fundo ou zombaria, mas tendo um papel que o jogador pode escolher não ignorar.

Mas a manifestação mais interessante está nos desafios. Durante a pesquisa, a Ninja Theory aprendeu que os pacientes muitas vezes tinham alucinações visuais com formas e cores e que muitas vezes procuravam criar padrões e significados no que viam (Ninja Theory, Youtube, 2017). Assim, ao longo de todo o jogo, Senua precisa encontrar as formas de runas no mundo ao seu redor para que possa passar por portas trancadas e outras ilusões que ela atribui ao deus Valravn e outras divindades nórdicas. O jogador então precisa explorar o ambiente ao seu redor em busca destas formas. Como isto funciona às vezes muda, para aumentar o desafio.

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Por exemplo, quando Senua se prepara para enfrentar Surt, deus do fogo, ela pre-cisará resolver quebra-cabeças de runas, procurando pelo cenário runas que que fecham as portas. Ao encontrá-las, as portas se abrem e o cenário entra em chamas. Cabe ao jogador guiar Senua pelo fogo sem que ela se queime.

Os pesquisadores também relataram alucinações ligadas à uma certa confusão men-tal. Um desafio visual recorrente mais para o final do jogo é que às vezes a realidade aparece embaralhada à Senua/jogador, que precisa então se reposicionar para que as imagens fragmen-tadas se encaixem e façam sentido, permitindo que ele possa avançar.

A nossa performance como jogador se dá por essa relação com o mundo digital que extrapola a noção simples de apertar botões sendo, assim, uma experiência. Neste estado liminar e de transporte, nos é útil a noção do dasein (a presença), de Heidegger (2011). O mundo vem de encontro ao ser que lhe atribui sentido pela ação, através da unwelt, uma noção de “mundanidade” ou “ambiência”: “Mundanidade é um conceito ontológico e sig-nifica a estrutura de um momento constitutivo de ser-no-mundo. Este, nós o conhecemos como uma determinação existencial da presença [dasein]” (HEIDDEGER, 2011, p.111). Novamente, devemos nos lembrar de Murray (2004): a narrativa do jogo, através das ações do jogador, acontece com ele.

Há uma relação com o corpo do avatar no ciberespaço que não é possível em outros meios, pois esta relação oferece a sensação de espaço vivido. É isto o que é mais interessante na representação da doença mental em Hellblade: devido à performance do jogador, ele se torna participante, não apenas vendo como Senua experimenta o mundo, mas experimentando ele mesmo e tendo que superar ele próprio os desafios que este mundo impõe sobre o jogador-personagem.

CONCLUSÃO

A performance do jogador está ligada à estrutura narrativa que usa o imaginário e a fantasia da mitologia para retratar e trabalhar o tema complicado da loucura, ao mesmo tempo em que o embasamento cultural e histórico da loucura ajuda o jogador a compreender o risco e a falta de sentido na vida de Senua em sua aldeia. Estas características e a estrutura narrativa fantástica também ajudam a reforçar a posição de Senua como heroína: ela não é retratada como uma vítima da sua doença nem como indefesa, mas como uma guerreira que está disposta a superar a Escuridão para trazer Dillion de volta.

A performance do jogador é o grande diferencial na representação da loucura em Hellblade e o que diferencia este vídeo game de outros produtos midiáticos. Ao jogar, o jogador vai para um espaço liminar em que passa para uma condição de transportado, um não-não-eu, no qual assume o papel de jogador-personagem através do avatar de Senua. Nesta posição, ele não irá ler um livro ou ver um filme, e sim construir e interpretar ativamente o mundo digital ao seu redor e lhe atribuir sentido e significado através de sua experiência com o mundo e a ambiência (unwelt).

Através do mostrar fazendo de Schechner (2006), o jogador performa, aprenden-do sobre Senua, seu munaprenden-do, sua cultura e sua aprenden-doença mental, interpretanaprenden-do-o. Elementos folclóricos, mitológicos e mesmo a loucura da personagem são inseridos no sistema de jogo, em seus desafios e mecânicas. O jogador-personagem não é apenas testemunha, mas agente, interferindo com estes elementos e vendo o resultado dessa interferência.

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Pela performance o jogador também abandona o seu status externo, embarcando no mundo liminar para assumir o manto de Senua e assim, ao acompanhar a sua jornada e ver o mundo por seus olhos, enfrenta o drama social se sua crise mental, do início ao seu desfe-cho. Destacamos, entre as experiências de Senua e do jogador, o risco de permadeath, escolha de design que deixa o jogador e Senua efetivamente unidos pelo medo da morte, sem saber quando será o fim e temerosos do que irá acontecer com o espalhar da Escuridão.

Espaço performado é usado na construção de significado: para contextualizar e melhor representar a doença mental de Senua, elementos de seu folclore e sua mitologia são inseridos no mudo do jogo e precisam ser explorados e enfrentados para que o jogador avance. Hellblade é bem-sucedido em sua intenção de se diferenciar como representação da loucura na mídia por este contexto cultural e folclórico e por sua narrativa engajar este tema e sua representação na ação do jogador e na sua experiência como avatar.

HELLBLADE: MADNESS AND PERFORMANCE IN VIDEO GAMES

Abstract: this work has as a photo the electronic game Hellblade: Senua’s Sacrifice and on how the madness is represented in it and what its central role in the narrative ste game. In this article we reflect on this representation from a relation between video games and cultural performances supporting us in concepts of history, folklore and the imaginary.

Keywords: Cultural Performances. Media. Video Games. Madness. Imaginary. Notas

1 Disponível em: <https://www.youtube.com/playlist?list=PLbpkF8TRYizaT6GfMcKBG-RoUOQ6BJRXp>. 2 O site IGN fez um vídeo mostrando a primeira meia hora do jogo. É possível ver esta parte sobre a Escuridão

a partir do minuto 21. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=iZuI_hFYxlg>. Referências

DELL, Christopher. The Occult, Witchcraft and Magic. Princeton: Thames & Hudson, 2017.

FINK, Eugen. Play as symbol of the world and other writings. Indianápolis: Indiana Universi-ty Press, 2016.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. HEIDDEGER, Martin. Ser e tempo. 16.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JENKINS, Henry. Game Design as Narrative Architecture. 2011. Disponível em: <http:// interactive.usc.edu/blogold/wpcontent/uploads/2011/01/Jenkins_Narrative_Architecture. pdf>.

LAUREL, Brenda. Computers as Theatre. 15. ed. Laflin; Addison-Wesley, 2008. MALRIEU, Philippe. A construção do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Edunesp, 2004.

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SHCECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. Nova York, 2006.

SHCECHNER, Richard. Performers e espectadores – transportados e transformados. Revista Moringa, João Pessoa, v. 2, n. 1, p. 155-185, 2011. Disponível em: <http://periodicos.ufpb. br/ojs2/index.php/moringa/article/viewFile/9993/5473>.

SCULL, Andrew. Madness in civilization. Princeton: Thames & Hudson, 2017. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974.

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WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007.

YOUTUBE, Ninja Theory, Hellblade Development Diaries. Última atualização em 7 de agosto de 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/playlist?list=PLbpkF8TRYiza-T6GfMcKBG-RoUOQ6BJRXp>.

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