PALINDROMO INCERTO
Marta Martins Lindote
Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina - CEART/UDESC e doutoranda em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
RESUMO: Este artigo investiga, comparativamente,a tematica do palfndromo na novela Avalovara de Osman Lins e na instalac;ao Palfndromo Incestodo artista plastico Tunga, como elemento que discute0 circuito de inserc;ao de suas obras.
PALAVRAS-CHAVE:arte, literatura, palfndromo.
ABSTRACT: This article investigates comparatively, the thematic ofpalindrome in Osman Lins's novel, Avalovara, and Palfndromo Incesto, an installation by visual artist Tunga, as an element that points the insertion of their works in circuit.
KEY-WORDS:Art, literature, palindrome.
Jlha de Santa Catarina - 10semestre de 2005
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!,,<xedi"""'l"e se pergunta sobre0 futuro de sua propria cria<;ao, esta colocado entre estas duas formas. Na indetermina<;ao do papel que elas teraoa cumprir,0 autor, ao mesmo tempo em que as
cria, as ira desvendando, ao longo da obra. Por esse motivo, assim as interroga0 narrador
ja na primeira pagina do livro:
A espiral e
0quadrado
Surgem onde, real mente - vindos, como todos e tudo, do prindpio das curvas - esses dois personagens ainda larvares e contudo ja trazendo, nao se sabe se na voz, se no silencio ou nos rostos apenas adivinhados,0 sinal do que sao e do que Ihes incumbe? A porta junto
a
qual se contemplam ou avaliam, face a face, rodeados de sons, cheiro de po e obscuridade, e limiar de que?3Algumas paginas adiante, quando esta estrutura narrativa retorna,0 narrador nos revela0
seguinte:
Pouco sabe do invento0 inventor, antes de0 desvendar com0 seu trabalho. Assim, na constru<;ao aqui iniciada. So um elemento , por enquanto, e claro e definitivo: rege-a uma espiral, seu ponto de partida, sua matriz, seu nucleo.4
Na proxima apari<;ao deste fio narrativo, que ira conduzindo0 texto, ele detem-se mais
acuradamente sobre a natureza infinita da espiral, onde "nem a eternidade bastaria para chegarmos ao terminG da espiral - ou sequer ao seu princfpio. espiral nao tem come<;o nem fim". Com efeito,0 fato de a seccionarmos nas extremidades, e, para0 narrador, uma
maneira de nos guardarmos da loucura. A infinitude monstruosa que a forma espiral evoca depara-se com as circunscri<;6es e limites da expressao humana,0 que0 leva a buscar um
contraponto no quadrado, esta forma de delimita<;ao muito precisa e racional, que vira em seu auxflio deste modo:
Sendo a espiral infinita, e Iimitadas as cria<;6es humanas, 0 romance inspirado nessa
figura geometrica aberta ha que socorrer-se de outra, fechada - e evocadora, se posslvel, das janelas, das salas e das folhas de papel, espa<;os com limites precisos, nos quais transita0 mundo exterior ou dos quais0 espreitamos. A escolha recai sobre0 quadrado:
ele sera0 recinto,0 ambito do romance, de que a espiral e a for<;a motriz.S
Quando a espiral gira novamente ressurgindo em mais uma repeti<;ao do capftulo com este nome, a narrativa emerge em carater de fic<;ao historica, desbordada, pois, justamente no ponto de cruzamento entre0 quadrado e a espiral, se inscreve como um eterno enigma da
linguagem, um palfndromo latino: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que determinara o motivo pelo qual Osman Lins interroga sobre seu proprio offcio de escritor (Fig. 2). 0 palfndromo pode ser traduzido como: "0 lavrador mantem cuidadosamente 0 arado nos
sulcos", tem origem anonima e misteriosa e coloca-se como um segredo milenar que permite a sua ficcionaliza<;ao.
Por essa razao, a narrativa nos conduz, retrospectivamente, ao ana 200 AC. Tempo em que teriam vivido, em Pompeia,0 comerciante Publius Ubonius e seu escravo loreius, a quem
o primeiro prop6e a liberdade em troca da cria<;ao de uma frase que, lida da esquerda para a direita, ou vice-versa, fosse palfndroma, isto e, tivesse0 mesmo sentido. Porem, sao
palfndromas tambem cada uma das palavras que comp6em a frase,0que gera uma vertlgem
sobre0 significado da Iinguagem. A senten<;a que0 servo inventa, sera, entao, na estrutura
de
Avalavara,
a frase sabre cujas letras dispostas cada uma dentro dos quadrados, faz girar a espiral que conduz oleitor dentro da narrativa.o
escravo, apos anos de trabalho, pensando a cria<;ao do palfndromo perfeito, quando final mente0 concebe de todo, se embriaga e conta 0 segredo de sua liberdade para umacortesa, que, por sua vez,0 transmite a seu amante que vende as cinco valiosas palavras ao
comerciante, 0 que leva loreius a cometer suicfdio.
IIha de Santa Catarina - 10semestre de 2005
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[Fig.21 lIustrat;ao deAva/ovarade Osman Lins. Extrardo da edit;ao da Companhia das Letras de 2001.
Esta ordem derevela~aodo segredo, propria de todaconstru~aonarrativa e Iiteraria, e, ainda, uma parabola, que, segundo Ana Lufsa Andrade, Hidentifica-se aconfigura~aoromanesca da espiral sobreposta ao quadrado no dialogo crftico entre aescraviza~aoda mente e sua Iiberta~aoatraves dacria~ao."6Por essa via, a liberdade do escravo, corresponde ao sonho tornado realidade do comerciante, onde a liberdade romanesca equivale ao proprio sentido do palfndromo, Hcuja magia consiste no poder do lavrador, ou, como e0 caso de lins, do
artesao que devolve0 sentido as palavras, trabalhando com elas. 0 lavrador nao e, pois, um
escravo das palavras, mas seu criador, aquele que as controla no texto."7 Para Ana Lufsa "tanto a imagem cosmica do escritor como lavrador de palavras textuais", quanto a do unicornio, animal fantastico presente em uma das outras narrativas de
Avalovara,
Hligam-se a fertilidade c6smica primordial: afor~acriadora". Essa ordem cosmologica, que talvez tenha uma matriz poetica no projeto constelacional de Mallarme, evocaria ainda, segundo a ensafsta:Um retorno a visao medieval de um espa~o romanesco que se origina da poesia: projetando0 espa~o romanesco como um plano criativo semelhante ao plano divino
que 0 homem medieval projetava sobre as coisas, Osman lins procura realizar um
regresso as origens poeticas romanescas.8
o
aspecto regional dentro da obra de lins, remete a antiqufssimastradi~oesculturais, que se mantiveram no Nordeste brasileiro. Porem, falar, de fato, propriamente de uma estetica medieval, e levantar uma problematica sobre0 estatuto da arte e da literatura vinculada a fragmentos edefini~oesdispersas no conjunto de escritos dos pensadores do perfodo, pois o conceito de arte que se apresenta em muitos textos medievais, quando nao estritamente Iigadoa
questao da hierarquia das artes liberais, define-se de modo bastante abrangente, como exemplifica Sao Tomas na "Suma Teologica", ao dizer que Ha arte e0 bom conhecimentodo que se deve fazer"; uma frase bastante pertinente, tanto no caso de Osman lins quanto de Tunga. Referindo-se ao problema da imagem na estetica medieval,0 pesquisador frances
Jean-Fran~oisGroulier ira se referir a sua dimensao simbOlica nas seguintes palavras: Compreender a natureza da imagem, que nos separa de Deus e que dele nos aproxima na qualidade de vestfgio, signo, sfmbolo, equivale tambem a determinar0 sentido do
mundo visfvel e da visao do homem. A frase de Sao Paulo tantas vezes citada, HVemos agora atraves de um espelho como num enigma (Cor 13, 12), e precisamente um desses paradigmas, assim como asHsemelhan~asdessemelhantes" de que fala Pseudo-Dionfsio Areopagita, que permitem acomposi~aoderepresenta~oessimbolicas ate0 seculo XVII.
Na qualidade de cria~aode Deus, a totalidade do universo fala a linguagem de seu Criador: ela a expressa por meio de uma infinidade de signos, figuras e formas que tem a opacidade do sfmbolo. Aesperan~ade se atravessar0 espelho e aceder finalmente
a
luz divina nao pode se realizar senao no alem.9
Quanto
a
concep~aotextual, Groulier observa que a vontade de captar e de expressar as realidades invisfveis estimula a inven~ao de varios sistemas simbOlicos frequentemente inspirados no modelo dos Hquatro sentidos da escritura". Estes modelos remetem aos metodos especfficos da escrita medieval. Decifrar0 significado da escritura sagrada pressupunhade carater anagogico, ou seja, de arrebatamento espiritual; uma terceira, alegorica, e uma quarta, espiritual. Segundo Groulier, este modelo de interpreta-;:ao dos textos sagrados, que se tornou um alegorismo proprio aplicado
a
Escritura, produziu tambem um grande numero de homologias estruturais nas artes plasticas. A rela-;:ao de um texto com uma imagem, explicitada pela iluminura e pelo vitral, e um procedimento medieval que tem prolongamentos inesperados nos emblemas e hieroglifos do seculo XVI. Nesse sentido, nao ha um corte abrupto no perfodo do renascimento, e esta heran-;:a simbolica come-;:a a ser renegada no seculo XVII I.10Os conhecidos estudos de Walter Benjamin, sobre a crftica doperfodo romantico alemao e sobre0 drama barroco, iran retomar, desde um campo reflexivo
paralelo a procedimentos de vanguarda, 0 valor dos elementos simbOlicos (repreendidos pela leitura c1assicista), que aglutinam texto e imagem. Estudos que sao congeniais aos do historiador de arte Aby Warburg, que havia se dedicado desde os ultimosded~niosdo sec. XIX a pensar os processos sintomaticos de sobrevivencia diferida das formas.ll Tudo isto
leva a pensar que os conteudos desbordantes e barrocos nas obras, tanto de Osman Lins, quanta de Tunga, se pautam por uma especie de "recusa" da assimila-;:ao de determinados modelos da modernidade racionalista ocidental. Nesse sentido, emAvalovara,Osman Lins revela a consciencia das tensoes existentes na produ-;:ao culta periferica, ao percorrer uma problematica da forma na modernidade, que se encontra estritamente aderida a dois modelos distintos, com os quais as vanguardas trataram de operar, e que e discutida, em sua novela, atraves das imagens do quadrado e da espiral.
o
"quadrado" se encontraria em consonancia com0 projeto ideologico do alto-modernismo, atraves do crftico americana Clement Greenberg, onde ha uma a posic;ao formal que se baseia na discrimina-;:ao dos limites de cada categoria artfstica. 0 valor que este tipo de avalia-;:ao atribui ao trabalho artfstico, tem uma rela-;:ao estreita com0 estatuto de autonomiada arte. Assim, 0 quadrado, uma forma concebida pela razao humana e inexistente na natureza, forneceria0 proprio cerne da estrutura do romance modernista, autonomo e nao
representativo
Simultaneamente, uma outra face da reflexao crftica moderna iria apostar num vfnculo estreito e permanente da arte com outras manifesta-;:oes do contexto cultural e social em que ela e produzida. Enquanto a defesa te6rica do alto modernismo, no modelo greenberguiano, implica a aceita-;:ao hierarquica de uma produ-;:ao da cultura "alta" em oposi-;:ao direta com a "baixa", produzida no interior da sociedade industrializada, uma outra parte das vanguardas iria se deter numa rela-;:ao direta com0 universo fabricado no interior da cultura de massas.
Esta problematica, que aponta a uma reflexao que distinga melhor as diferen-;:as de carater entre a vanguarda e 0 alto-modernismo,-que sao muitas vezes colocados em opera-;:ao
conjunta, do ponto de vista da ruptura com a representa-;:ao- ocupou um lugar importante nos temas de pensadores como Adorno e Benjamin. No entanto, era continua em suspensao. Evidentemente0 enfoque se torna mais diversificado por conta da acelera-;:ao das mudan-;:as
da sensibilidade decorrentes dos processos de industrializa-;:ao, entre outros. Mas0 problema
encontra-se tambem ligado, no campo mais especffico da estetica, a uma discussao sobre a oposi-;:ao dicotomica entre a razao e os afetos. 12
A "espiral" estaria disposta do lado de uma leitura crftica da arte, que tenta retomar a imagem em consonancia com a historia e com 0 texto.13Estas leituras crfticas, apostam
na possibilidade de que as estruturas ficcionais possam gerar conteudos de verdade, e se aproximam de um modelo que formula a existencia de um inconsciente historico, que admite as recorrencias ou as sobrevivencias de certas form as e estruturas narrativas ao longo de distintos processos culturais. Estas potencias de retorno sao proprias das imagens e da poetica de Tunga e de Lins, onde os elementos espiralados, que produzem circuito, dominam o proprio procedimento inventivo de cada um. 0 quadrado e a espiral de Lins parecem tecer um comentario sobre estas distintas apreensoes do carater da arte na modernidade. Estas duas form as, se moyem em dire-;:ao ao infinito da linguagem de maneiras diferentes, e nao contem em si um sentido unfvoco, pois sao ambas alguns entre muitos outros vefculos de atravessamento da linguagem na potencia infinitamente criadora da arte e da Iiteratura. Sendo0 "quadrado" uma forma tfpica dos movimentos abstracionistas das primeiras decadas
do seculo XX, onde a primazia se encontra no valor autonomo da arte, se poderia dizer que Osman Lins coloca em discussao 0 problema da verossimilhan-;:a do objeto artfstico,
IIha de Santa Catarina - 10semestre de 2005
que embora nao mais vinculado ao estatuto de representac;ao naturalista encontrar-se-ia, paradoxalmente, a servic;o de uma determinada ideia ou conceito filosofico, que, por mais abstrato que seja, leva a uma enfase na mimese. Embora esta mimese nao se vincule mais com a representac;ao no caso da arte moderna abstrata, - cujo exemplo emblematico da tendencia artlstica podemos encontrar no trabalho de Mondrian -esta tendencia abstrato-construtiva da arte, sustenta0 sentido da obra em sua patencia de substituic;ao.Temos entao,
deste modo, um objeto material que estaria colocado como substitutivo de uma determinada "ideia",0 que gera uma~preensaodo objeto artlstico como se este se colocasse num espac;o
onde nao ha perda, mas substituic;ao de um dado do esplrito por um da materia. 0 saber da historia se apresentaria aqui, na aceitac;ao de uma linearidade progressiva e acumulativa. Consequentemente, esta tendencia da arte,encontra-se estritamente relacionada com 0
problema do limite, colocando em funcionamento um ideario no qual os meios artlsticos devem atuar circunscritos em si mesmos, bem como de modo evolutivo.14
As obras dos dois criadores brasileiros, aqui citados, colocam em funcionamento um debate sobre estas duas concepc;oes culturais da modernidade, mas, por outro lado, acionam, tambem, um sofisticado circuito de discussao sobre a inserc;ao de suas obras, em distintas esferas de recepc;ao. Estas, incluem desde a questao da obra enquanto mercadoria, ate seus distintos nlveis de leitura e fruic;ao.
Pallndromo Incesto,15
pode ser lida em consonancia com0
pallndromo deAvalovara,do ponto de vista da operac;ao formal feita pelo artista, no sentido em que a obra, ao abordar o tema comum a ambas, do pallndromo,0 desloca de sua origem textual. 0 mecanismo decirculac;ao posto em ac;ao parTunga parece ser, voluntariamente, associado a palavra incesto, tambem no sentido de abrir uma discussao que se opae a tendencia de leitura de obra de arte, que enfatiza a Iinha progressiva e linear das inftuencias. Em algumas versoes de
Pallndromo
Incesto,
algumas camadas a mais de limalhas de ferro e imas sao adicionados aquelas formas que remetem a baldes e dedais, Ihes emprestando uma aparencia de cestaria. ~ quando podemos ler a bem-humorada transposic;ao do pallndromoincesto
a pallndromo(in) cesto.
Oeste modo, se poderia dizer que e como se Tunga dispusesse0 pallndromo deAvalovara,
em movimento ativo, e 0 tornasse um objeto tridimensional atraves de sua materialidade
artesanal e efetiva.~como se0 pallndromo fosse um objeto que se pode guardar literalmente
dentro de uma trama, nao apenas textual, mas em uma trama literal,0 proprio cesto, na qual ele pudesse ser carregado no espac;o flsico que nos circunda.
Pallndromo Incesto,
trabalha ainda, e simultaneamente, a problematica entre alto-modernismo, em sua versao abstrato-construtiva, e alguns movimentos de vanguarda, como 0 Surrealismo, vinculado a culturade massas, num procedimento semelhante ao do quadrado e da espiral na novela de Lins. A cestaria e "incestuosa" no sentido de se realizar dentro de uma trama, mas, ao mesmo tempo, de seguir um caminho em sua consecuc;ao que e circular e, portanto, espiralado. Um cesto, tal como a espiral pe que nos fala Osman Lins, e, tambem, virtual mente infinito e a determinac;ao arbitraria de seu inicio e de seu fim se da de forma arbitraria, relacionada a sua func;ao de guardar, de armazenar alguma coisa.
Voltando ao pallndromo de Osman Lins, vemos que seu interesse pelo pallndromo nao e fortuito. A literatura latino-americana do seculo
xx
iria se deter sobre este tema recorrentemente. Assim, 0 pallndromo na literatura latino-americana vai "desde umaconcepc;ao magica com0 idioma", segundo Julio Cortazar, ate a definic;ao de Severo Sarduy que0
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como um jogo de "esconde-esconde onosmatico". Em companhia de Osman Lins,estes escritores latino-americanos, demonstram, atraves dos exercfcios palindromicos, seu peculiar foco de interesse no cerne da linguagem escrita pasta a nu. Trata-se de um impulso de escrita que ostenta os trac;os do procedimento fonetico e grafico das palavras, cujo resultado nada mais e do que mostrar0 trabalho de duplicac;ao no qual toda Iinguagem escrita ja e, por si mesma, submetida ao sentido designativo.
Oa mesma maneira, Tunga reflete sobre0 carater duplice da arte, nas suas "instaurac;c3es", que sao uma categoria na qual 0artista reune a instalac;ao com a ac;ao ou happening. Este aspecto da obra de Tunga, remete a um estagio primordial da Iinguagem, operando a partir dos gestos do corpo, em detrimento das disciplinas mais contemplativas das artes plasticas. As "instaurac;oes" percorrem um movimento dentro da visualidade, que vai da
gestalt
ao gesto. A remissao ao gesto na ordem estetica, e um procedimento de duplicac;ao, que envolve tanto uma soma, atraves dos cruzamentos e adic;oes dos meios expressivos, quantaumasubtra~ao,par dispor em cena uma especie de jogo sensorial noespa~oda falta. Este jogo sensorial, porem, nao esta emrela~aodesubstitui~aoou dereposi~aodo"estado de falta", mas mais propriamente indica a marca de exaustao e0 retorno de um mesmo dado da linguagem.
A marcante referencia de Lins para a espiral e 0 quadrado, aponta, tambem, para essa
interrup~aoou impossibilidade da a~aode narrar. Isto ocorre na medida em que ha um atravessamento sofrido pela linguagem literaria, atraves da entrada efetiva das formas visuais na palavra escrita. Nesse sentido,"0quadrado e a espiral" pertencentes ao conjunto narrativo
deAvalovara,nao tratam apenas de uma remissao ou de uma referencia a um procedimento visual, mas antes, ao invadirem0campo narrativo, daf em diante,0determinam. Este processo vertiginoso, inquieto, se da nas palavras de Ana Lufza, como:
Uma constante volta ao gesto inaugural ou seja, ao meio deprodu~aocultural que e a literatura, no registro da passagem humana que parte da inscrir;ao na pedra para um escrever que se molda pela mao, anterior
a
concretiza~aoem palavra, parece indicar a voltaa
materia de que ela e feita: "argila antes do sopro". A palavra, em Osman Lins, resulta do ato de insuflar0seu espfrito, do "sopro na argila", mistura ca6tica de agua e terra da qual nasce como artefato material,concretiza~aodo seu fantasma. Este, substituto do que foi recalcado de um mundo sagrado, se resgata como palavra de uma segunda natureza industrial e humana cuja principal testemunha e a obra de arte. Procedente desta dobra sobre si, este gesto se revela em series de obras do mesmo artista.16Acita~aoacima caberia, legitimamente tambem para Tunga, no sentido de que sua obra procura estabelecer um tempo e umespa~oritualfsticos para a arte. Pois0 artista compartilha
com0 escritar de um desejo em comum que se reformula constantemente: umaaproxima~ao
ao gesto primitivo da transgressao onde a arte e0 jogo se colocam como contrapartida da mera lei de sobrevivencia.
NOTAS
1SANTIAGO, Silviano.110Entre-Iugar do discurso latino-americano. In:Uma Uteraturanostr6picos. Ensaios sobre dependencia cultural.SP:Perspectiva. Col. Debates; volume 155. 1978.
2Nossa prodUl;ao cultural, permeada das ambivalencias citadasporSilviano Santiago, se elaboram, no presente, no caso da circula"ao internacional das obras dos artistas brasileiros reconhecidos internacionalmente, de urn modo mais ambivalente ainda, do que0 era nossa produ"ao cultural inserida no Primeiro Mundo, nos anos em que Santiago observa0fenomeno. A atual inclusao de obras de artistas brasileiros no circuito contemporaneo hegemonico, faz com que seus trabalhos operem duplamente: por urn lado; numa pratica baseada na assimila"ao e negac;ao do modelol Ioriginal" conforme postulava0proprio Santiago, mas tambem na recusa em se manterem marginalizadas sob a cunha doIIneo-exotismo".Segundo0crrtico cubano Gerardo Mosquera a arteIIcu lta"do Terceiro Mundo nao e0resultado das mesclas evolutivas das culturas pre-coloniais cujas trajetorias teriam sido dramaticamente modificadas pelo colonialismo. A arte contemporanea dos parses perifericos, segundo Mosquera, formaria parte da gerac;ao de conceitos e praticas ocidentais da arte como atividade desinteressada, ou auto-suficiente. Dirigida, portanto, a uma produc;ao e a uma recepc;ao muito especializadas e sendo entao urn produto colonial. Para esta problematica Mosquera coloca a seguinte pergunta: IIExiste alguma experiencia contemporanea que nao0 seja? A arte ocidental tambem e produto colonial, so que desde0 outro lado".
Cf. Gerardo Mosquera: IIEI mundo de la diferencia. Notas sobre arte, globalizacionyperiferia.n
In: http.uni versesinuniverse.magazinlmarco-polo-mosquera.htm.
3L1NS, Osman.Avalovara.SP: Companhia das letras, 2001.p13. 4ldem. p 15.
5ldem. p 18.
6_ANDRADE, Ana Lursa.Osman Lins: Crftica e criar;ao.SP: Hucitec, 1987.p 176. 7ldem. p. 176.
8ldem. p. 178.
9GROULlER, leanJran"ois. In: L1CHENSTEIN, laqueline.IIAteologia da imagem e0estatuto da pintura.nIn
: APintura. Textos essenciais.SP:34, 2004. vol. II.
lOOp.Cit,p. 14.
lief.WARBURG, Aby.Images from the region of the Pueblo Indians of North America.(traduzido ao ingles com um ensaio interpretativo por Michael Steinberg). NY: Cornell,1995.
12No pensamento de Nietzsche este problema e abordado atraves dos conceitos deapolfneoedionisfaco,
no de Walter Benjamin com os decivilizar;a.oebarbarie,e no historiografia cultural de Aby Warburg entre
civilizar;a.o racional e paganismo primitivo.
13Poderlamos pensar aqui sobre0percurso de Roland Barthes que vai "da obra ao texto" , e da obra
a
sua inoperancia, passando pelas analises de Foucault sobre a natureza do ser da Iinguagem.14A posi<;ao de Clement Greenberg continua a ser elucidativa conforme podemos ler em trechos de "A pintura modernista", de1971: "A essencia do modernismo, tal como0vejo, reside no uso de metodos caraeterlsticos de uma disciplina para criticar essa mesma disciplina, nao no intuito de subverte-Ia, mas para entrincheira-la mais firmemente em sua area de competencia. (...) A autocrltica do modernismo tern origem na crltica do lIuminismo, mas nao se confunde com ela. 0 lIuminismo criticou do exterior, como0 faz a crltica em seu sentido usual;0modernismo critica do interior, mediante os pr6prios procedimentos do que esta sendo criticado." (...) Logo ficou claro que a area de competencia unica e pr6pria de cada arte coincidia com tudo que era unico na natureza de seus meios." Cf. GREENBERG, Clement. "A pintura modernista." In:Clement Greenberge 0 debate crltieo.Organiza<;ao,apresenta<;ao e notas de Gloria Ferreira e Cecilia Cotrim. RJ: Funartel Jorge Zahar.1997.
lsA primeira versao desta obra foi apresentada em1991 na galeria Milan em Sao Paulo.Posteriormente no seguiu para0 Rio de Janeiro, sendo exibida na GB arte Galeria(91);Na Kulturhusset em Estocolmo(91);no Jeu de Pomme em Paris(92); na esta<;ao Plaza de Armas de Sevilha (92); no Museu Ludwig de Colonia (93) ;no Moma de NY(93); e tambem em The Contemporary NY (95).
16ANDRADE, Ana LUisa. "Reciclando0 engenho: Osman lins e as constela<;Oes de um gesto epico.".In: ALMEIDA, Hugo.Osman Lins:0sopro na argila.SP:Nankin,2004.