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Os Silêncios de Eça 1

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Academic year: 2021

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Os Silêncios de Eça

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1. Num momento a vários títulos decisivo d’A Correspondência de Fradique

Mendes, pode ler-se:

Logo que comecei a coleccionar as cartas dispersas de Fradique Mendes, escrevi a Madame Lobrinska contando o meu empenho em fixar num estudo carinhoso as feições desse transcendente espírito – e implorando, se não alguns extractos dos seus manuscritos, ao menos algumas revelações sobre a sua natureza. A resposta de Madame Lobrinska foi uma recusa, bem determinada, bem deduzida, – mostrando que decerto sob «os claros olhos de Juno» estava uma clara razão de Minerva. «Os papéis de Carlos Fradique (dizia em suma) tinham-lhe sido confiados, a ela que vivia longe da publicidade, e do mundo que se interessa e lucra na publicidade, com o intuito de que, para sempre, conservassem o carácter íntimo e secreto em que tanto tempo Fradique os mantivera: e nestas condições o revelar a sua

natureza seria manifestamente contrariar o recatado e altivo sentimento que

ditara esse legado…» Isto vinha escrito, com uma letra grossa e redonda, numa larga folha de papel áspero, onde a um canto brilhava a ouro sob uma coroa de ouro esta divisa – «Per Terram Ad Cœlum».1

Poucos textos de Eça (talvez nenhum outro texto de Eça) seriam tão expressivos como este para encetarmos uma reflexão sobre os seus silêncios. Porque o que aqui está em causa é, de facto, a história de um silêncio, história em que habilmente se inscreve uma ponderação de largo alcance, acerca da posteridade do escritor, do destino póstumo da sua obra e dos silêncios que esse destino gera ou pode gerar. E como noutros casos consabidamente aconteceu – por exemplo, n’A Ilustre Casa de Ramires, a propósito da escrita da narrativa ou da questão do plágio –, também aqui o escritor soube insinuar, em inscrição metaficcional, uma doutrina que indirectamente o envolve sem expressa ou directamente o comprometer.

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In R. Zilberman et alii, Eça e outros: diálogos com a ficção de Eça de Queirós. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, pp. 21-35.

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De Fradique Mendes conhecemos, então, pouco mais do que aquilo que alguém – Madame Lobrinska, investida da condição de legatária - quis revelar; e por isso, a imagem cultural de Fradique ficou condicionada, para todo o sempre, por uma vontade outra, que não a sua, vontade que postumamente tratou de o silenciar.

Não entrarei aqui na questão tortuosa de discutir a legitimidade desse gesto de ocultação que Libuska protagonizou; do mesmo modo, não aventarei hipóteses, por mais engenhosas que sejam, para tentar discernir o que se encerra no “cofre espanhol do século XIV, de ferro lavrado, que Fradique denominava a vala comum”, para onde arrojava os seus manuscritos de publicação sempre adiada.Como se sabe, essa foi uma questão largamente discutida pelos amigos de Fradique e, depois deles, por António Sardinha, num interessante ensaio não isento de propósito ideológico2.

Em vez disso, direi que, como Fradique Mendes (mas não, evidentemente, na mesma dimensão e com diferentes implicações), também Eça de Queirós foi um escritor se não deliberadamente silenciado por outros, pelo menos abundantemente póstumo. E foi-o como resultado de um auto-silenciamento que pode e deve ser questionado, conforme aqui farei; o que daí resultou foi, como se sabe, uma história editorial complexa e, no mínimo, controversa, cujo edifício desigual só há pouco tempo começou a ser reparado – até onde isso é possível, evidentemente – por estudos de crítica genética e por uma edição crítica em curso de preparação. Em resumo: se Eça publicou muito em vida, muito também deixou por publicar; o que daí resultou foi, paradoxalmente, o ensurdecedor silêncio de textos que não puderam ficar calados, mesmo quando foram publicados (como quase sempre aconteceu) de forma muito precária e até não isenta de gestos censórios. Os herdeiros do escritor e, depois deles, editores pouco escrupulosos respondem por isso.

2. Aquilo que costuma fazer-se, no que à criação literária diz respeito, é explicar ou tentar explicar as razões pelas quais um escritor escreve e publica um texto. Seja de um ponto de vista histórico-literário, socioliterário, psicanalítico ou de outro qualquer ângulo de abordagem, tentamos entender por que razão ou razões o escritor diz uma palavra cuja sorte depois é confiada à comunidade cultural. Poucas vezes interrogamos as razões do silêncio: o silêncio dificilmente sondável do que fica por escrever ou o

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silêncio mais acessível, mas ainda assim não raro problemático, do que, tendo sido escrito, fica por publicar. E contudo, penso que os silêncios de um escritor constituem um terreno de indagação potencialmente muito fértil, para melhor entendermos o que na sua obra autorizada se enuncia.

Eça de Queirós foi um escritor, passe o paradoxo, abundante em silêncios. Atravessa a sua obra – a que publicou, mas sobretudo a que não publicou e, antes dela, a que não chegou a escrever - uma espécie de síndrome do silêncio, em função do qual pode mesmo afirmar-se que, nele, no princípio não era o verbo, mas a sua ausência. Só com considerável esforço (e mesmo com algum sofrimento) ao silêncio fundador se seguiu uma palavra literária criada e assumida como tal; depois – quer dizer: depois da morte física do escritor –, reinstaurou-se, por um tempo breve, o silêncio que ele de certa forma procurara e que outros, com maior ou com menor legitimidade, vieram a superar.

3. Para bem entendermos o alcance e a dimensão dos silêncios de Eça importa dizer que, se há escritor que, no seu tempo e sob o signo dos paradigmas culturais que o regeram, viveu uma árdua aprendizagem da escrita, esse escritor foi, por certo, Eça de Queirós. As notícias que, neste aspecto, dele temos começam por falar de tentativas frustradas que, na prática, correspondem a silêncios: o jovem Eça parece, de facto, ter sido fértil em projectos falhados, que provavelmente pouco mais foram do que isso mesmo. De uma História de um Lindo Corpo testemunhada por Jaime Batalha Reis,

pouco mais se sabe do que esse testemunho3; e do relato Uma Conspiração em Havana,

atestado na correspondência do mesmo Batalha Reis não ficou praticamente nada mais, a não ser essa atestação.

Antes disso e depois disso, Eça de Queirós tarda em afirmar-se na plenitude de uma autoria inteiramente assumida nos planos estético, ideológico e jurídico. A este propósito, convém lembrar que, embora sob o signo de uma encenação textual de recorte romântico, o primeiro texto publicado que de Eça se conhece traduz uma experiência de apocrifia: “Na margem do papel marcado, onde se viam ainda estes restos de uma velha cantiga, alguém escreveu estas notas desordenadas e bizarras.” Estes “restos de uma velha cantiga” com que abre o folhetim “Notas Marginais”, em 1866, possuem consabidamente um tom heiniano que precede a palavra queirosiana propriamente dita,

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palavra, de resto, reduzida àquela breve informação4; o que se lhe segue são as “notas desordenadas e bizarras” que ocupam todo o resto do folhetim, como se o jovem Eça permanecesse refugiado sob a ocultação de um texto apresentado como de autoria alheia. Uma autoria alheia que, assim, acaba por funcionar como factor de silenciamento.

A isto seguem-se parcerias, estratagemas vários e mais mistificações: em 1867, no Distrito de Évora, cenário de experiências fundadoras de desdobramento, que mais tarde hão-de dar frutos saborosos; nas páginas da Revolução de Setembro e d’O Primeiro

de Janeiro, em 1869, quando, com as cumplicidades de Batalha Reis e Antero de

Quental, emerge o primeiro Fradique Mendes, tentativa de alteridade agora mais consistente do que a daquele jornalista que no Distrito de Évora assinava com as iniciais A.Z. as correspondências do Reino; em 1870, nova parceria e nova mistificação, desta vez com Ramalho Ortigão, nas páginas do Diário de Notícias, quando se publicam as cartas que, ainda nesse ano, originam a publicação de um romance epistolar chamado O

Mistério da Estrada de Sintra: é esse o primeiro a que Eça dá o seu nome de autor, mas

não ainda de forma inteiramente individualizada, do mesmo modo que a autoria d’As

Farpas, em 1871-72, é ainda compartida; e no que às responsabilidades autorais diz

respeito, a destrinça só acontece com a publicação dos dois volumes de Uma Campanha

Alegre, em 1890-91, o que não impede Eça de ceder à tentação do silenciamento,

traduzido na supressão de textos d’As Farpas originais.

Tarda muito, então, em aparecer um autor de livros literários chamado Eça de Queirós: só em 1876 isso ocorre, quando se publica a segunda versão d’O Crime do

Padre Amaro. É caso para dizer, que, aos 31 anos e comparado com outros, Eça não era

talvez, em livro, um autor serôdio; mas para quem tanto tinha já escrito não se pode dizer que fosse cedo para aparecer nessa condição. Por detrás da demora estava o que tenho vindo a sugerir: uma quase inelutável tendência para a ocultação, mesmo para o silêncio, ambas evidenciando uma espécie de retracção de uma adiada capacidade de afirmação autoral. E contudo, essa afirmação autoral era quase obrigatória em quem viveu as solidariedades geracionais e as vinculações ideológicas que são conhecidas e que quase impunham maior ousadia e desenvoltura autoral.

É certo que, imediatamente antes da versão de 1876, Eça publicara (mais certo seria talvez dizer que fora publicada) uma primeira versão d’O Crime do Padre Amaro.

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Nesse caso e por razões que têm que ver com a publicação quase tentativa daquele relato nas páginas da Revista Ocidental, o silenciamento foi subsequente e processou-se de forma por assim dizer mais drástica: o jovem romancista procurou rasurar o erro (erro de que não foi único responsável, aliás), reescreveu o romance e inscreveu no seu fronstispício a expressão “Edição definitiva”. Também por isso, aquela incipiente primeira versão deve ser considerada um texto não-autorizado, o que explica a sua exclusão de uma edição crítica que o entenda como tal; mas além disso, a superação da primeira pela segunda versão mais não faz, neste momento decisivo da formação do romancista, do que inaugurar um processo muitas vezes reiterado ao longo da vida literária de Eça e, por estranho que possa parecer, mesmo depois da sua morte. Por outras palavras: ao escrever uma nova versão, com intervenções estruturais e semântico-pragmáticas que em muito transcendem a revisão estilística de curto alcance textual, Eça busca cancelar a versão anterior e reduzir ao silêncio uma palavra já enunciada. Isso mesmo veio a acontecer, como se sabe, com essa “Edição definitiva” d’O Crime do

Padre Amaro, logo anulada por uma terceira versão, essa sim definitiva, em 1880.

4. A problemática do silêncio em Eça de Queirós, nos termos em que tenho vindo a analisá-la, envolve estádios e motivações muito diversas, de que a atribulada história literária d’ O Crime do Padre Amaro é apenas um episódio.

O bem evidente lugar de representação desses vários estádios e motivações de silenciamento da palavra literária encontra-se no espólio do escritor. É verdade que todos os espólios podem ser considerados, por aquilo que encerram, testemunho de dúvidas, de hesitações e, em última instância, atestação do silêncio, entendido como suspensão da publicidade daquilo que chegou a ser escrito; um silêncio que é tanto mais expressivo e mesmo dramático, quanto mais adiantado (por vezes até acabado) se encontra o texto confinado à vala comum de um espólio. No caso do espólio de Eça de Queirós, a situação é, como se sabe, complexa e diversificada, uma vez que nele se encontram materiais que cobrem um arco de atitudes e de momentos escriturais muito amplo. Da recolha incipiente e informe de elementos estruturantes da narrativa (como as personagens apenas elencadas e mal caracterizadas) à transcodificação pela escrita de uma adaptação teatral de um romance, são variadas as situações que se nos deparam5.

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Várias delas correspondem a esboços (digamos assim) que estariam, pela sua natureza, condenados a permanecer para todo o sempre materiais de trabalho reservados, muito aquém de qualquer hipótese de publicação; outros encontram-se em momento de elaboração já consideravelmente adiantado, mas ainda assim não isentos de problemas e de dificuldades, como é eloquentemente evidenciado pelas desastrosas publicações póstumas d’A Capital, d’O Conde d’Abranhos, do Alves & Ciª (todos em 1925) e d’A

Tragédia da Rua das Flores, mais recentemente.

É verdade que não se encontra no espólio queirosiano (no que é conhecido, entenda-se) nenhum texto que possa dizer-se inequivocamente acabado e, por isso, objecto de um silenciamento atribuível apenas e só a auto-censura moral, ideológica ou estética. Não é necessário, contudo, que o texto esteja acabado para que o escritor o reduza ao silêncio. Em Eça, aliás e como é sabido, esse momento de acabamento irreversível nem com a última prova tipográfica estava consumado, pois que, conforme se viu, uma nova versão frequentemente reabria o processo de escrita. O episódio d’A

Batalha do Caia mostra que a decisão de não publicar o que se escrevera (ou até de não

escrever o que fora projectado) era uma decisão problemática e não isenta de ponderações sinuosas.

Relembre-se esse episódio, nos seus traços largos. Tendo concebido um relato que narraria a invasão de Portugal por Espanha, Eça consulta o amigo Ramalho Ortigão e pede-lhe ajuda, colocando-o perante a hipótese de não publicar esse texto provavelmente ainda nem escrito, quando muito apenas esboçado; uma tal mutilação deveria, contudo, ser devidamente compensada pelo poder político a quem a catástrofe chocaria, para mais sendo relatada, mesmo que como invenção ficcional, por um funcionário do Estado com responsabilidades diplomáticas. As palavras de Eça, na carta a Ramalho, não podiam ser mais explícitas: “Além do escândalo, quero dinheiro”. A proposta não primava, como parece claro, pela lisura ética e, por isso, a resposta de Ramalho a um tal enredo só podia ser uma indignada recusa e a acusação de chantagem6.

O que daqui me interessa reter não são, contudo, as divergências éticas entre dois amigos, por causa deste episódio lamentável. O que importa sublinhar agora é que, por causa dele, um escritor expressamente declara o seguinte:

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Ma pensé [sic] intime é esta: que o livro (sendo útil como meio de

mostrar ao País as consequências de prolongar uma tão horrorosa condição de abaixamento) – é, por um lado, inoportuno, por outro um ataque de folha em folha à vizinha Espanha: e serve portanto apenas para criar irritação. Por isso era talvez melhor que se não publicasse.7

Falar, como Eça faz, de um “livro” é certamente um exagero. A verdade, porém, é que algo mais ficou deste projecto do que o “plano-argumento” a que a carta citada se refere: ficou um relato já relativamente circunstanciado, em 34 páginas a lápis, que é o que conhecemos com o título A Catástrofe.

Seja como for, estamos aqui perante uma situação realmente singular: a situação de um romancista que, num tempo pessoal de grande energia criativa e num tempo cultural e social em que as práticas literárias existiam em função de um público amplo, concebe um romance e enceta a sua escrita desde logo pensando não na sua publicação, mas na sua suspensão. Exagerando um pouco (mas não muito) poder-se-ia até dizer que o projecto d’A Batalha do Caia se assemelha ao daquelas armas temíveis, que existem para não ser utilizadas, representando, por isso mesmo, uma ameaça com considerável peso estratégico.

É cedo, por certo, para se falar numa estética queirosiana do silêncio; mas não é desajustado entender este episódio d’A Batalha do Caia como um estádio importante de maturação do trabalho literário queirosiano, estádio que envolve não só componentes e decisões estéticas, mas também (ou até sobretudo) componentes e decisões políticas, projectadas num fundo com fortes implicações éticas. No termo dessa maturação, reencontraremos Fradique Mendes e a sua vocação para o silêncio.

O que A Batalha do Caia sugere, antes de lá chegarmos, é que existem, em Eça, motivações para o silêncio que importa indagar. Obedece-se assim à intuição de que os silêncios do escritor, não sendo certamente mais significativos do que os discursos que assumiu plenamente - isto é: os textos que concebeu, que escreveu e que, pela publicação, autorizou -, evidenciam preocupações estéticas e éticas que podem iluminar os textos autorizados e, em geral, a estética queirosiana enquanto filosofia artística orientada para uma prática cultural de feição literária.

Para bem atingirmos o alcance desta hipótese de trabalho, torna-se necessário relembrar aquilo que, com uma frequência não destituída de ligeireza, parece esquecido:

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do conjunto da obra literária usualmente reconhecida como da autoria de Eça, vários títulos não o são, em absoluto rigor. A Capital, O Conde d’Abranhos, Alves & Ciª e A

Tragédia da Rua das Flores, bem como diversos outros textos de menor notoriedade -

por exemplo, as Lendas de Santos –, foram objecto de publicações póstumas, de muito duvidosa factura e em termos que não é forçado supor distantes de uma vontade autoral que, nos casos citados, optou pela omissão. As edições póstumas trataram de ignorar essa omissão, pagando para isso o preço de intervenções cujo alcance e consequências são agora patenteadas pelas edições críticas já publicadas8.

Em vida, a vontade autoral queirosiana contemplou e consumou, até às últimas consequências, um conjunto relativamente escasso de títulos: de exclusiva autoria queirosiana, foram publicados, antes de 1900, quatro romances e uma novela: O Crime

do Padre Amaro, O Primo Basílio, O Mandarim, Os Maias e A Relíquia; o romance O Mistério da Estrada de Sintra é um texto a quatro mãos (contando com as duas de

Ramalho Ortigão) e a sua última publicação em vida de Eça revela, por parte deste seu co-autor, sérias dúvidas quanto à bondade estética de uma empresa conjunta quase desautorizada: “O que pensamos hoje do romance que escrevemos há catorze anos?” interroga-se Eça, dando voz também a Ramalho; “pensamos simplesmente – louvores a

Deus! – que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual.”

Aos Contos não chegou Eça de Queirós a dar corpo de livro, esse livro em que o escritor teria que tomar decisões macro-compositivas e paratextuais, que deveriam ir da ordenação dos relatos ao título, sem esquecer, antes disso, a escolha daquilo que valeria ou não valeria a pena consagrar em volume. Para além disso e como se o Destino se empenhasse em coadjuvar a vocação queirosiana para a publicidade póstuma, mesmo obras em curso de publicação à data da morte, acabaram, em rigor, por ser póstumas: aconteceu assim com A Ilustre Casa de Ramires, com A Correspondência de Fradique

Mendes e com A Cidade e as Serras, textos em que aquilo que pertence a Eça e o que

proveio de intervenções estranhas, efectivamente existentes, apareceu fundido, a desafiar o labor de editores com capacidade e com coragem para, finalmente, separarem, até onde isso é possível, o trigo do joio. Com razão, Guerra da Cal classificou estes três títulos como semi-póstumos, remetendo, com essa expressão, para a existência de uma tensão

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entre responsabilidade autoral e responsabilidade editorial, tensão que, sobretudo nestes casos, parece inevitável.

Perante o que fica dito, é importante notar o seguinte: depois de 1888, ano da publicação d’Os Maias, e até à sua morte (ou seja, durante doze anos), Eça não voltou a publicar qualquer obra ficcional nova. O romancista Eça de Queirós, publicado em livro e por si só, começa apenas em 1876, com a segunda versão d’O Crime do Padre Amaro, e acaba logo em 1888, com Os Maias; e se aceitarmos que a terceira versão do Crime (a de 1880) cancelou (quer dizer: desautorizou) a segunda versão, então o tempo de vida do Eça romancista com obra publicada e por ele autorizada dura os curtos dez anos que medeiam entre O Primo Basílio (1878) e Os Maias.

Tudo isto ganha uma dimensão e um significado mais complexos, quando verificamos que, como foi já sugerido, Eça publicou pouco, mas escreveu muito. De certa forma, terá até escrito mais do que aquilo que viu publicado ou até do que aquilo que quis, efectivamente, publicar. E é por isso que a indagação sobre os seus silêncios faz sentido, também porque esses silêncios não são determinados por falta de oportunidades para publicar, eventualmente pela recusa de editores, coisa de que Eça não pode queixar-se. Mais: o silêncio queirosiano, consumado por suspensão da publicidade, é uma atitude que se não restringe a textos ficcionais, mas que atinge, num processo que envolve toda a actividade escritural queisosiana, outros textos que, como se verá, não são, deste ponto de vista, menos significativos. Antes de lá chegarmos, vale a pena observar os casos mais conhecidos (que são os dos textos ficcionais deixados inéditos) e aventar, para eles, explicações que neste momento não podem ser muito circunstanciadas.

5. D’A Batalha do Caia já se falou aqui. No que à motivação para o silêncio diz respeito, trata-se talvez do caso de menos problemática explicação, se fizermos fé no diálogo epistolar mantido com Ramalho Ortigão e, naturalmente, no que sabemos (e não é pouco) daquele projecto e do contexto em que ele aparecia. Pode, então, afirmar-se com alguma segurança: Eça de Queirós suspendeu A Batalha do Caia por razões políticas e ideológicas, adoptando um comportamento muito próximo da auto-censura, com o estímulo da reprimenda de Ramalho Ortigão e da reacção assustada dos escassos leitores

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(talvez só um e na posição de ouvinte) que tiveram acesso a alguma coisa do texto. Relembro um passo da carta a Ramalho:

Eu li o esboço ao Vaz, rapaz distinto, nosso attaché em Londres: estou a vê-lo no meu sofá, com as mãos apertadas na cabeça, murmurando com um ar azabumbado: - «Que escândalo! Que escândalo!» - Quando eu cheguei ao capítulo (li-o no plano-argumento) da fuga do rei, e da anarquia em Lisboa – o rapaz ergueu-se, pálido:

- Oh, amigo! Oh, amigo!

Et il avait des larmes dans la voix!

Despediu-se de mim, dizendo com um tom lúgubre: - Queime isso! Queime isso!9”

No caso d’A Tragédia da Rua das Flores a questão é talvez mais complexa, sobretudo se tivermos em conta que se trata agora de um texto mais desenvolvido e elaborado do que A Batalha do Caia. Ainda assim, não é certamente arriscado supor que a condenação do manuscrito à vasta gaveta dos projectos para sempre inacabados teve que ver com cautelas de ordem moral, que são as inerentes ao tema que estrutura o relato. O testemunho de Eça a este propósito é elucidativo, testemunho expresso numa carta de 1877 ao seu editor, em que o escritor parecia querer contrariar os riscos da “imoralidade” que para outros eram evidentes: “Uma das novelas está quase pronta – é só copiá-la: chama-se O Desastre da Travessa do Caldas ou, talvez, não sei ainda, O Caso Atroz da

Genoveva. Trata-se dum incesto involuntário. Alguns amigos a quem comuniquei a ideia

dela e parte da execução, ficaram impressionados, ainda que um pouco escandalizados. – Não quer dizer que seja imoral. É cruel…”10

Além de silenciado, o romance-virtual A Tragédia da Rua das Flores foi compensado (ou redimensionado, em registo menos chocante) n’Os Maias, romance em que reconhecemos algumas situações e personagens recuperadas da Tragédia e o mesmo tema, reduzido, contudo, a um patamar menos chocante e talvez menos “absurdo” (expressão de João da Ega), se tal é possível: incesto entre irmãos.

Bem diferente deste é o caso d’A Capital!, a começar pelo facto de estarmos agora perante um texto que chegou a ter fronstispício impresso e provas já paginadas, embora, como sempre, muito emendadas. Porquê, então, o cancelamento ou (talvez melhor) o fracasso da publicação? Provavelmente por razões puramente acidentais, como

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se novos projectos e mesmo transformações da poética e da prática literária queirosianas, em movimento evolutivo acelerado, tivessem prejudicado o acabamento e a consumação plena dessa que poderia ter sido a grande obra de Eça de Queirós.

Vale a pena citar, a este propósito uma carta de Eça a Ramalho Ortigão, de 20 de Fevereiro de 1881, em que o escritor declara: “Quando eu estive em Lisboa, o Malheiro pediu-me que escrevesse para o «Diário» um romance […] Para o satisfazer, interrompi a «Capital», estragando-a para sempre, creio eu, porque vejo agora que não poderei recuperar o fio de veia e de sentimento em que ela ia tratada”. O romance prometido ao

Diário de Portugal, substituído depois pel’O Mandarim e adiado para as calendas de

1888, é, evidentemente, Os Maias; e o preço pago por Eça para dar forma a esse vasto e complexo projecto foi o “estrago” provocado n’A Capital! que é talvez, do ponto de vista que tenho vindo a contemplar, o caso menos interessante, porventura da mesma família, neste aspecto, de Alves & Ciª.

Bem mais interessante é o processo d’O Conde d’Abranhos. O que dele nos chegou foi um manuscrito a lápis, com o aspecto de ter sido escrito de um jacto, certamente em 1879 e relatando a biografia ficcional de um homem de Estado a quem um zeloso secretário paga o tributo de admiração que esse relato biográfico, de coloração panegírica, bem traduz.

Tematicamente, O Conde d’Abranhos pouco acrescenta à produção literária queirosiana provinda da militância realista e socialista de um escritor vocacionado para fazer o processo crítico dos costumes políticos, culturais e sociais do constitucionalismo português; do ponto de vista da estratégia narrativa perfilhada, a situação é, contudo, um tanto melindrosa: o retrato de um político medíocre e corrupto, traçado por um secretário servil, parcial e mesmo imbecilizado implica uma relação comunicativa cuja funcionalidade crítica requer uma leitura que deduza do depoimento de Zagalo o inverso do que ele afirma. A propensão radicalmente irónica que rege a narrativa aponta, então, mais longe do que era usual nos romances de narrador anónimo, heterodiegético e distanciado, até onde isso era possível. De forma porventura um tanto redutora, pode afirmar-se que O Conde d’Abranhos encena um desajustamento: o arriscado desajustamento entre a componente semântica da narrativa (enquanto crítica a um sistema social) e a sua funcionalidade pragmática, solicitando uma leitura sinuosa e não linear dos

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juízos do narrador fanatizado por essa contrafacção do talento que em vida se chamou Alípio Severo Abranhos. Eça de Queirós apercebe-se, por certo, disso mesmo; e, sendo o escritor o que era em 1879, entre a publicação d’O Primo Basílio e a da terceira versão d’O Crime do Padre Amaro, o resultado do que chamei desajustamento entre semântica e pragmática do relato só podia ser o silenciamento da palavra de Zagalo.

6. Não serão considerados neste momento outros silêncios queirosianos, com forte incidência no plano doutrinário. O que neles observamos é o esboço, logo seguido de suspensão e cancelamento, de reflexões metaliterárias e metaculturais. Textos como “Idealismo e Realismo” (texto de 1879, assim designado pelo filho de Eça, que o incluiu nas Cartas Inéditas de Fradique Mendes e mais Páginas Esquecidas, de 1929), “O ‘Francesismo’” (provavelmente de 1887) ou a carta de Fradique Mendes “A E…” (também publicada postumamente no mesmo volume de 1929) carecem de uma análise alongada, que agora não pode ser feita, análise que, por outro lado, faz derivar a questão dos silêncios de Eça para esse campo doutrinário que, sendo por assim dizer paralelo (e interactivo) com o campo da criação literária propriamente dita, não se confunde com ele. Isto sem embargo de reconhecermos que a carta de Fradique “A E…” constitui um documento que, deste ponto de vista, é um tanto híbrido, uma vez que a sua condição ficcional surge estrategicamente desvanecida por ser o destinatário quem é: Eça de Queirós.

Com Fradique Mendes, com o fradiquismo entendido como pensamento e como poética dele deduzidos, chega, no tempo do que chamamos o último Eça, o momento culminante do silêncio e, por isso, termo de chegada de um fundamental veio evolutivo da obra e da estética queirosianas. Silêncio agora condividido, de forma algo ambígua, por Eça e por esse outro que dele tenta autonomizar-se, mas silêncio que, em registo de ironia trágica, juntará numa única a morte do escritor e a falência da palavra literária, quando, em 1900, morre Eça e se conhece de Fradique Mendes o escasso legado que são as suas cartas, mas não a obra que ele, afinal, não tinha.

A vocação para o silêncio que em Fradique Mendes surpreendemos é, como se viu no início, confirmada por alguém que se assume como legatária, mas também como executora cúmplice de uma atitude estética e de uma ética da criação literária. Depois de

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tantos outros silêncios, assumidamente queirosianos e motivados por razões variadas, o silêncio em que se resolve a poética fradiquista surge inequivocamente enunciado em vida pelo próprio Fradique, num contexto em que antes de mais se questiona a possibilidade da representação do real e, perante a sua falência, a própria legitimidade da literatura. No fundo, é já a impossibilidade do livro (ou o absurdo do seu excesso, parodicamente encenado n’A Cidade e as Serras) que no final da sua vida literária Eça de Queirós traz à cena literária do seu tempo, juntamente com outros que, voluntária ou involuntariamente, viveram essa impossibilidade, logo então ou mais tarde: Cesário Verde, Mallarmé, Camilo Pessanha, os “poetas complementares” de Antonio Machado ou Bernardo Soares.

Um dia o biógrafo de Fradique pergunta-lhe: “– Fradique! porque não escreve você toda essa sua viagem à África?” O espanto com que Fradique acolhe esta sugestão prenuncia uma resposta em que se esboça exactamente uma poética do silêncio:

- Não tenho sobre a África, nem sobre coisa alguma neste mundo, conclusões que por alterarem o curso do pensar contemporâneo valesse a pena registar… Só podia apresentar uma série de impressões, de paisagens. E então pior! Porque o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual ou reproduzir a simples forma de um arbusto…11

Aquém da “absoluta beleza” que logo depois Fradique evoca, o verbo humano parece talhado para um destino de imperfeição. O corolário inevitável desse destino era, evidentemente, o silêncio, esse mesmo silêncio que um Fradique sem obra legou à posteridade. Um silêncio cuja amargura e sentimento de falência mal se disfarçam sob um programa que soa a melancólica compensação: a “sublime ambição de só produzir verdades absolutamente definitivas, por meio de formas absolutamente belas.”12

Como Fradique, mas também diferentemente dele – num jogo de ambivalências, de sombras e de disfarces que talentosamente soube encenar -, Eça de Queirós está próximo e está longe de uma poética do silêncio. Está próximo, porque também ele, porventura de forma doutrinariamente menos elaborada (mas também menos artificial, é certo), viveu, entendeu e consumou o silêncio como forma de evitar a imperfeição da palavra literária, a sua inoportunidade ou até a sua ilegitimidade. Mas Eça distanciou-se de Fradique Mendes – e nesse distanciamento vai muito de uma afirmação da autonomia

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de Fradique, mais do que da de Eça, que disso não carecia -, porque foi capaz de publicar o publicável, de conviver com a imperfeição e de resolver os seus dramas. Nesse sentido, ele preferiu estar ao lado dos Michelet, Balzac, Renan, Taine, Flaubert ou Goncourt que Fradique desdenhava pela suas alegadas limitações e, com eles, ousar uma palavra libertadora. Libertadora de quem a enunciava, libertadora dos seus contemporâneos e também dos que hoje continuamos a lê-lo; uma palavra que, contudo, só ganha a magistral expressividade que lhe reconhecemos, porque ecoa na caixa de ressonância dos silêncios de Eça, da poética que difusamente os enquadra e de uma incontornável ética da responsabilidade artística.

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Notas

1

Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 100-101.

2

Cf. A. Sardinha, “O espólio de Fradique”, in Eloy do Amaral e Cardoso Martha (orgs.),

Eça de Queiroz. In Memoriam, 2ª ed., Coimbra, Atlântida, 1947, pp. 346-376; para uma

discussão mais alargada e com outras implicações, cf. o nosso (e de M. do Rosário Milheiro) A Construção da Narrativa Queirrosiana. O Espólio de Eça de Queirós, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, pp. 47 ss.

3 Batalha situa o episódio em 1870, aproximadamente. “Um dia veio mostrar-nos, ao Antero de Quental e a mim, o primeiro esboço, muito desenvolvido — tão extenso que levou várias noites a ler — de um romance intitulado «História de Um Lindo Corpo».” (Cf. “Na primeira fase da vida literária de Eça de Queirós”, in Prosas Bárbaras, Lisboa, Livros do Brasil, s/d., p. 44.

4

Cf. Maria Manuela Gouveia Delille, A recepção literária de H. Heine no Romantismo

português (de 1844 a 1871), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 265

ss.

5

Cf. Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro, op. cit., passim.

6

Cf. cartas de Eça de Queirós a Ramalho Ortigão, de 10 e 28 de Novembro de 1878, in

Correspondência; leitura, coord., prefácio e notas de Guilherme de Castilho; Lisboa, Imp.

Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp. 160-175.

7

Loc. cit., p. 166.

8

Vejam-se as edições críticas d’A Capital! (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992) e de Alves & Ciª. (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994), por Luiz Fagundes Duarte e por este mesmo e Irene Fialho.

9

Correspondência, ed. cit., p. 164.

10

Citada por José Maria d’Eça de Queirós, na introdução a A Capital, 9ª ed., Porto, Lello & Irmão, 1971, p. 12.

11

A Correspondência de Fradique Mendes, ed. cit., pp. 104-105.

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