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Um a reflexão s o b r e a t r i b u i ç ã o d e i d e n t i d a d e política

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Academic year: 2021

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* Correspondencia a / Correspondence to: Desirée de Lemos Azevedo. Universidade Federal de São Paulo (Brasil). Estrada do Caminho Velho, n.º 333 - Jd. Nova

Cidade - Guarulhos - SP - CEP: 07252-312 – desireelazevedo@gmail.com – http://orcid.org/0000-0002-0266-6258.

Cómo citar / How to cite: De Lemos Azevedo, Desirée (2019). «Os Mortos Não Pesam Todos o Mesmo. Uma reflexão sobre atribuição de identidade política às

o ssadas da Vala de Perus»; Papeles del CEIC, vol. 2019/2, papel 218, 1-20. (http://dx.doi.org/10.1387/pceic.20389). Recibido: noviembre, 2018; aceptado: febrero, 2019.

ISSN 1695-6494 / © 2019 UPV/EHU Esta obra está bajo una licencia

Creative Commons Atribución 4.0 Internacional

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The Deceased Don’t All Weight The Same.

A reflection on the political identification of bones

from the Perus mass grave

Desirée de Lemos Azevedo

*

Universidade Federal de São Paulo (Brasil)

Palabras clave

Desaparecimento Identificação Violência política Direitos humanos

Resumo: Em 2014, foi criado no Brasil o Grupo de Trabalho Perus (GTP), uma equipe

fo-rense multidisciplinar dedicada à identificação dos remanescentes ósseos exumados, em 1990, da Vala de Perus. Por este nome, ficou conhecida a sepultura coletiva clandestina lo-calizada no Cemitério Municipal Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo. Descoberta no final dos anos 1970, ela é a mais importante das valas comuns denunciadas como des-tino final de militantes desaparecidos pela Ditadura (1964-1985). É também a única a rece-ber atenção científica e institucional. A partir de pesquisa etnográfica realizada junto ao GTP, este artigo analisa o processo de identificação posto em curso pela equipe, decom-pondo suas etapas, procedimentos, práticas e documentos. A partir dos dados apresen-tados, argumento que o objetivo da identificação é escrutinar o conjunto ósseo para dele destacar alguns corpos aos quais serão atribuídos identidade política. Discuto três aspec-tos do processo: a humanização dos remanescentes a partir de seu tratamento científico; a identificação como um processo classificatório; e a materialidade como geradora de ver-dades científicas relacionadas a processos de formação do Estado Nacional e de gestão de populações. Keywords Disappearance Identification Political violence Human rights

AbstRAct: In 2014, the Perus Working Group, a multidisciplinary team of forensic

ex-perts, was created in Brazil to identify the human remains exhumed in 1990 from the Perus Grave. By this name came to be known a clandestine mass grave in the Dom Bosco Munici-pal Cemetery, in Perus district, São Paulo. The Perus Grave was discovered in the late 1970s and still is the most important mass grave reported as the final destination of activists vic-tims of forced disappearance during the Dictatorship (1964-1985). It is also the only one to have received institutional and scientific attention. Drawing from ethnographic research, this paper analyzes the GTP identification process, decomposing its stages, procedures, practices, and documents. I argue that the overall purpose of the process is to scrutinize the ensemble in order to select the remains that will be taken as political ones. I discuss three aspects of the process: the scientific treatment of the remains as humanization; the identification as a classification process; and the relation between the scientific fact pro-duction and the State Building and Nation Building process.

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São Paulo, 04 de setembro de 1990. Autoridades estaduais e municipais, ex-presos e familia-res de mortos e desaparecidos durante a Ditadura (1964-1985), repfamilia-resentantes da imprensa nacional e internacional e populares estão reunidos no Cemitério Municipal Dom Bosco, no bairro de Perus. Sob as lentes das câmeras de TV e os flashes dos fotógrafos, a pequena mul-tidão acompanha a abertura de uma vala comum, onde estão reinumados mais de mil rema-nescentes humanos, exumados de covas individuais do próprio cemitério em meados dos anos 1970. Comum no Serviço Funerário Municipal, o procedimento não justificaria tamanha atenção, não fosse o fato de que aquela era uma vala clandestina. Conhecida apenas por fun-cionários mais antigos que vinham guardando em segredo sua existência e localização. Os acontecimentos desse dia tornariam a Vala de Perus mundialmente conhecida, rom-pendo os muitos silêncios que a envolviam. De destino coletivo de corpos «indigentes», abrigo da irrelevância das mortes não reclamadas, a vala passava a espaço de denúncia do assassinato de sujeitos que vinham sendo reivindicados como desaparecidos políticos desde a Ditadura. Buscando por eles, familiares e companheiros de militância política chegaram ao cemitério, ainda nos anos finais do regime, onde ouviram confidências de um funcionário so-bre a existência de uma vala comum sem registro oficial. Mais de uma década depois, a exu-mação viria como conquista do movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos. Articulação nascida da coletivização dessas buscas entre as famílias e sua transformação em uma luta política por imprimir nova dinâmica ao tratamento até então dispensado às violên-cias cometidas pelo Estado naquele período.

Uma vez exumados, os corpos adquiriam condição de evidências materiais de suas denún-cias, forçando instituições do Estado a reconhecer, pela primeira vez desde a abertura polí-tica, direitos e responsabilidades decorrentes daquelas violências. Duas ações mais imedia-tas foram realizadas: uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara de Vereadores, e um convênio com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para a identificação.

A primeira iniciativa revelou a participação do Serviço Funerário Municipal e do Instituto

Mé-dico Legal (IML) no desaparecimento de pessoas assassinadas pelos órgãos repressivos,

lo-calizando testemunhas e importantes documentos referentes ao encaminhamento de seus corpos a Perus via burocracia funerária. A produção de uma narrativa sobre a Vala de Perus como dispositivo criado para ocultar desaparecidos políticos foi fundamental para a conso-lidação política e social dessa categoria, cinco anos depois institucionalizada por lei federal de caráter civil reparatório (Lei N.º 9.140/95). A segunda iniciativa rendeu algumas identifica-ções, mas logo foi abandonada. Após 24 anos, foi criado o Grupo de Trabalho Perus (GTP) para retomar e finalizar o trabalho.

Em 2014, instalada no laboratório do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da

Uni-versidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), a equipe forense recebeu a custódia de 1047

caixas plásticas com remanescentes ósseos, para os quais desenvolveu protocolos e

pro-cedimentos de análise. A partir de pesquisa etnográfica realizada junto ao GTP1 este artigo

irá decompor e descrever tal processo de identificação em suas etapas. Na primeira parte do texto, o situo entre as técnicas de identificação civil do Estado brasileiro, nossas políti-cas reparatórias e o humanitarismo internacional. Entre a segunda e a quinta partes,

aden-1 Pesquisa iniciada em fevereiro de 2017, no âmbito do pós-doutoramento realizado junto ao PPGCS/Unifesp,

com financiamento Fapesp. Agradeço à Marina Di Giusto, Isabela Mayá, Talita Máximo, Camila Souza, Lorrane Campos, Roxana Enriquez, Cynthia Sarti, Fabiana de Andrade e aos pareceristas de Papeles del Ceic pelas valio-sas contribuições. O título do artigo é extraído de passagem de A longa Viagem, de Jorge Semprún.

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tro o laboratório e mergulho nas etapas propriamente ditas, procurando destrinchar os pro-cedimentos e as maneiras pelas quais tomam a materialidade dos corpos como espaço de enunciação de verdades. Nas três últimas, argumento que a identificação só pode ser pen-sada como construção que se expressa na complexa rede de relações na qual os mortos se inserem com o Estado, o fazer científico e os familiares, na medida em que se constitui como tecnologia de governo.

1. IdentIfIcAção cIvIl e HumAnItARIsmo foRense

«Identificar é individualizar aquilo que foi totalizado, devolvendo nome, história e dignidade.»

Com estas palavras, Rebeca, odontóloga forense do Comitê Internacional da Cruz

Verme-lha (CICV), concluiu sua apresentação sobre identificação de pessoas. Com o auxílio do po-wer point, ela exibia casos de seus mais de vinte anos de prática forense, sustentando o

argu-mento de que a identificação é um fenômeno de duas faces: de um lado um desaparecido, de outro um corpo não identificado. Um nome sem corpo e um corpo sem nome. Quem busca o primeiro pergunta: onde está? Quem se encontra diante do segundo: quem ele era? Identificar é reconciliar nome e corpo através da comparação entre informações produzidas a partir de diferentes metodologias científicas sobre um e sobre outro, chegando a um resul-tado interdisciplinar. É um processo técnico, objetivo e interpretativo, cujo sucesso está

vin-culado à qualidade dos profissionais envolvidos2.

A oportunidade de ouvir Rebeca me foi dada em uma manhã em fevereiro de 2017. Em minha segunda visita ao CAAF, tive a sorte de acompanhar a equipe em uma de suas iniciativas de diá-logo com atores internacionais experientes na identificação de vítimas de violações de Direitos Humanos. Durante sua fala, Rebeca referia-se a técnicas forenses desenvolvidas em atenção a vítimas de violência em contextos críticos, muitos deles marcados pelo fenômeno do desapa-recimento forçado, e que tomam como base padrões globalizados de intervenção humanitá-ria. Tipificado internacionalmente, tal fenômeno é caracterizado por sua relação com violência decorrente de instabilidade política e social, permitindo aplicação a uma variedade de contex-tos em que se observam atípicos desaparecimencontex-tos de pessoas e/ou, seu contraponto, o apa-recimento de ossadas/cadáveres desconhecidos. É diante da emergência coletiva destes últi-mos, que Rebeca fala da identificação como individualização daquilo que foi totalizado.

O processo de identificação no GTP define-se por estes mesmos pressupostos. De um lado, a equipe está diante de um conjunto de mais de 1.000 ossadas sem nome. De outro, se insere na trama institucional criada em torno à figura jurídica dos mortos e desaparecidos políticos

que, na conta do reconhecimento oficial, são 434 pessoas em todo o país3. Na intenção de

re-2 Os nomes dos profissionais citados são pseudônimos.

3 Seu o objetivo é a «identificação de mortos e desaparecidos políticos assim reconhecidos pela Lei n.º 9.140/95»

(p. 2), segundo o Acordo de Cooperação Técnica N.º001/2014 celebrado entre: a então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a qual se vincula a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polí-ticos (CEMDP) criada pela Lei 9.140/95; a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, que custodia as ossadas; e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que estruturou o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense. Outras instituições do Estado estão representadas no Comitê Científico e Comitê de Acompanhamento. Neste último também há familiares.

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lacionar aqueles corpos com estes nomes, o GTP ouve e compara o que têm a dizer os ossos, as famílias, e os documentos. Nos termos mobilizados naquela mesma manhã por Sérgio, geneticista forense da polícia brasileira, o GTP trabalha com base em «processos científicos de identificação humana», comparando informações ante mortem e post mortem, produzi-das segundo protocolos elaborados em articulações institucionais e consultoria internacio-nal, asseguradas por cadeia de custódia e extensa documentação.

Apesar de atuarem em instituições com natureza, escala e objetivos distintos, desde especia-lidades diferentes, Rebeca e Sérgio são profissionais que exercem atividades voltadas à cha-mada identificação humana. O diálogo entre eles, mesmo atravessado pela maneira como as

mencionadas diferenças os posicionam no campo forense4, flui pela compreensão comum

de que a identificação é um processo em que a aferição de dados inerentes à materialidade dos corpos permite a constatação da realidade de suas identidades. A presente reflexão se distancia dessa posição. Ao destacar pressupostos e relações sociais subjacentes aos proces-sos que conformam a identificação, argumento em favor de seu caráter mais criativo do que propriamente verificador.

Entre as reflexões que me informam, a de Letícia Ferreira (2007), sobre a designação de corpos como não-identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1940 e 1960, é a mais inspiradora e inquietante comparativamente. Em sua pesquisa, a autora fala de corpos que aparentemente passaram pelo processo inverso ao que pretendo analisar. Corpos que, após darem entrada na instituição, sujeitados ao escrutino de especialistas em uma sequ-ência prevista de procedimentos, de lá saíram como desconhecidos. Um fato intrigante se con-siderarmos a lógica que intui o cadáver exposto ao exame como espaço próprio à enunciação de verdades. Essa aparente incongruência permite questionar: o que é um corpo não-identifi-cado? Do que decorre e no que implica sua existência? Ao perseguir estas e outras questões, Ferreira apresenta proposições que ajudam a pensar a identificação no GTP (ibidem). Razão pela qual inicio a discussão refletindo com a autora e parte da bibliografia que mobiliza.

Remontando à genealogia do método clínico de Foucault (1980), Ferreira lembra como a dis-secação de cadáveres para estudos de anatomia e patologia marcou um ponto de inflexão metodológica com implicações profundas sobre o campo médico e além (ibidem). A partir dele, o corpo morto foi tornado espaço discursivo, permitindo o pronunciamento sobre fatos concretos da vida física do corpo, sua individualidade, doenças e morte. É porque os saberes e as práticas mobilizados para produzir esses conhecimentos revelam possibilidades de ser-vir à gestão da vida em sociedade que eles adentram a dimensão legal, informando técnicas forenses institucionalizadas em órgãos da administração do Estado.

No Brasil, a identificação firmou-se como fazer policial. Conforme mostra Carrara (1984), uma «ciência e doutrina da identificação» surgiu da estreita relação estabelecida entre um discurso sobre a identidade individual como fato biológico passível de ser objetivamente

au-ferido e a construção de tecnologias de governo. Datando do século xix, tal estreitamento

re-fletia um movimento de penetração da Medicina no campo do Direito, particularmente na área penal, onde a figura perturbadora do criminoso começava a encontrar explicação na ideia de constituição biologicamente anômala. Qualificação construída pela Medicina Legal

4 Pensando campo com Bourdieu (2011: 50) como sistema relacional de agentes e instituições que se voltam

di-reta ou indidi-retamente para um fazer, se defrontando segundo interesses específicos e as posições relativas ocupadas.

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na própria medida em que se institucionalizava como campo do saber e fazer profissional es-pecializado.

Segundo Carrara (ibidem), a crescente crença nos fatores patológicos da criminalidade gan-hava força, levando a uma aposta na prevenção e regeneração que se refletia na medicali-zação da polícia e da justiça. Característica comum às modernas sociedades disciplinares, nas quais a vida como corpo biológico se tornava objeto da racionalidade governamental (Foucault, 1999). Como bem nota o autor, por um lado, tal ideologia levava à classificação por categorias patológicas dos cidadãos e grupos sociais considerados «desviantes», implicando em sua totalização; por outro lado, para lhe dar consequência, as técnicas deviam se pres-tar a olhares individualizados que permitissem identificá-los para atuar em sua regeneração. Surge assim o ímpeto de buscar na anatomia humana os traços distintivos de criminosos, cu-jos comportamentos desviantes deveriam ser alvo de intervenção.

Entre as técnicas desenvolvidas, o sistema datiloscópico, a partir da descoberta da singula-ridade das impressões digitais, alçou a identificação a outro patamar. Distinguir, a partir de uma característica física observável não apenas criminosos, mas todo cidadão foi, conforme ainda argumenta Carrara (1984), evento que a transpôs para aplicações civis, abrindo a pos-sibilidade de imaginar uma nova ordem social organizada por um Estado apto a conhecer e classificar sua própria população. Dá-se, assim, o surgimento da identificação civil obrigató-ria sob a responsabilidade policial. Segundo o autor, o projeto de desenvolvimento de uma polícia científica é firmado, nesse contexto, sobre uma doutrina segundo a qual a represen-tação da ameaça social estaria no «homem desconhecido». Sintetizador da percepção da so-ciedade como caos a ser organizado.

Condizente com o processo de urbanização vivido na primeira metade do século xx, a

socie-dade (ameaçada e ameaçadora) generaliza a suspeição sobre o anonimato diante das cliva-gens políticas e sociais que se aprofundam, procurando demarcar critérios mais claros de in-clusão/exclusão na cidadania (Corrêa, 2013). Daí a aposta na identificação total da população pelo conhecimento e catalogação de suas individualidades propriamente biológicas para constituir o indivíduo como personalidade civil ao afastar o anonimato pelo sistema que atri-buí à sua digital única um número de série também único (Carrara, 1984). Materializado pelo documento de identidade que, em nosso cotidiano, tanto afasta suspeitas, quanto garante direitos da cidadania, indexando toda uma carreira documental que cada personalidade civil constitui do nascimento até sua morte. Ao tornar-se o principal ordenador de deveres, res-ponsabilidades, direitos, e bens, o documento de identidade concretiza o sucesso da identi-ficação no Brasil como técnica de governo que, como bem lembrou Ferreira (2007), será exi-gida até mesmo aos mortos.

Como tarefa assumida pelo Instituto Médico Legal, a identificação foi incorporada aos pro-cedimentos médicos e burocrático cartoriais levados adiante na instituição, como mostra Medeiros (2012), para transformar cadáveres em mortos. Isso é, em individualidades aces-síveis ao Estado através de sua linguagem documental. A necrodatiloscopia e a antropolo-gia (para as ossadas) nomeiam dois departamentos do IML (ibidem) onde técnicas homôni-mas são mobilizadas para gerar documentação em torno ao cadáver, constituindo assim sua morte. Caso não possa ser associada a uma personalidade civil constituída (a identificação por nome próprio), tais técnicas permitem produzir um eu civil post mortem, inscrevendo da mesma maneira a individualidade empírica examinada nos mecanismos da racionalidade burocrática como um corpo não-identificado (Ferreira, 2007).

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Os não-identificados nos interessam porque desconcertam as proposições de Rebeca e Sér-gio, já que tal categoria não é uma constatação da realidade de suas individualidades. Isto é, não existe algo como corpos «essencialmente destituídos de identidade» (ibidem: 2). Assim, o fato de corpos serem efetivamente enterrados com essa designação sugere que «proces-sos científicos de identificação humana» também se prestam à totalização. Conforme bem argumenta a autora, se no decurso do processo ao qual são submetidos os corpos no IML um conjunto específico é destacado e nomeado a partir desse denominador genérico comum, isso que poderia ser chamado de uma não-identificação implica igualmente na construção e atribuição de uma identidade. Ou seja, uma identificação. Daí que o processo seja definido como criador, uma vez que apresenta capacidade de produzir realidade ao categorizar.

Tal reflexão ilumina os procedimentos que eu pude observar na identificação das ossadas de Perus, conforme detalharei nas próximas seções. Os processos desencadeados pela equipe compartilham com os realizados no IML mais do que certas técnicas, práticas e profissio-nais forenses. Igualmente assentada na visão da materialidade como reveladora de verda-des, a identificação no GTP não prescinde de totalização. Ao contrário, seus procedimentos lidam com uma forma de individualizar que passa pela inserção em categorias. Identidades coletivas existentes apenas na medida em que são atribuídas. A comparação sugere que, em ambos os casos, estamos diante de processos classificatórios que apresentam menos rela-ção com a materialidade dos corpos do que com a importância conferida aos mortos em sua existência simbólica (Verderey, 1999). Importância definida na dinâmica entre as relações in-terpessoais e o luto e a disposição estatal de governar (e se produzir governando) a transição entre e a vida e a morte (Stepputat, 2014).

Historicamente, essa dinâmica ampara a documentação de corpos como não-identificados pelo IML e seu envio ao setor dos cemitérios destinados ao enterramento por órgãos públi-cos. Nestes setores, exumações são obrigatoriamente feitas para dar lugar a novos

sepulta-mentos. Os ossos são enviados para ossários (valas comuns)5, onde a indistinção é

rapida-mente alcançada, concretizando sua totalização categórica prévia. Ao mostrar a existência de um caminho traçado pela racionalidade burocrática até o sepultamento anônimo e cole-tivo, Ferreira (2007) destrincha também a lógica impressa no trabalho médico cartorial que converge características como: descuido material, economia de esforços, e generalidade no apontamento de informações. Elas assentam a banalidade de corpos não reivindicados, cujas mortes são tratadas como ordinárias e recebem o carimbo genérico, embora não ofi-cial, da «indigência». Marca levada por terem sido deixadas a cargo do poder público. O que a autora consegue nos mostrar é que assumir tal encargo não é um recurso meramente assis-tencial, mas uma forma do Estado ordenar a vida social segundo sua racionalidade e policiar o espaço público, movendo esforços apenas suficientes para remover estes corpos indeseja-dos e torná-los acessíveis a sua linguagem burocrática que, baseada em um modelo de vida fixa e envolta em laços duradouros, deixa restar inúmeros desviantes (ibidem).

Em conjunto, os citados trabalhos de Ferreira (2007), Carrara (1984) e Corrêa (2013) mostram o quanto as técnicas de identificação, desenvolvidas no âmbito de uma Medicina Legal infor-mada pela necessidade de governar corpos (vivos e mortos) e controlar ameaças à ordem

so-5 As legislações funerárias municipais estabelecem tempos para este procedimento administrativo. A de São

Paulo define-as como compulsórias para «indigentes», pessoas falecidas em hospitais, enfermarias, prisões ou remetidos pela polícia, e válidas para sepulturas privadas, quando não renovada a concessão.

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cial, são parte dos mecanismos estatais que governam distribuindo desigualmente a preca-riedade (Butler, 2017). Pensar o não-identificado e a vala comum como lugares (categórico e de fato) historicamente destinados às vidas precárias —o escravo, o liberto, o índio, o vadio, o mendigo, o pobre, o favelado, o marginal, o criminoso, o louco, a prostituta, o natimorto, o feto abortado— levanta questionamentos sobre as razões que levaram a Ditadura a ter utili-zado preferencialmente os caminhos do IML e dos cemitérios públicos para desaparecer os corpos de seus inimigos políticos assassinados. Inserindo a «subversão» entre as ameaças

es-tabelecidas nessa relação dialética entre anonimato e identificação6. Observar os caminhos

burocráticos que levaram os militantes à vala comum pressupõem admitir que ela já estava presente no destino de outros indesejados. Perspectiva com potencial para embaralhar cer-tezas sobre o que se entende por desaparecimento político no Brasil. Mas que, ao contrário, se fixam nas clivagens que o GTP reafirma ao observar, quando assenta seu fazer nas linhas dadas por uma legislação reparatória exclusivamente direcionada à «violência política». Chave para a compreensão do passado ditatorial, «violência política» é a categoria que

sus-tenta, permitindo que convivam, tanto a Lei de Anistia7, quanto as políticas reparatórias

construídas, a partir dos anos 1990, como resultado da pressão exercida pelas memórias e lutas por direitos protagonizadas pelos opositores sobreviventes. Segundo o relatório Brasil

Nunca Mais (1985), o perfil da oposição vitimada era masculino, jovem, urbano, branco e

pro-veniente das classes médias.

O movimento de familiares foi o responsável por descobrir que muitos desses militantes bus-cados como desaparecidos haviam sido sepultados como «indigentes», com mortes docu-mentadas por laudos e atestados de óbito. A Vala de Perus pesou significativamente para que seus reclames rompessem interdições comumente atribuídas à Anistia, abrindo uma era de reconhecimentos. Marcada, contudo, por uma timidez reativa às movimentações des-tes grupos. Como fenômeno histórico e legal, o desaparecimento político restou circunscrito às vítimas buscadas pelos movimentos sociais: os militantes políticos. Em uma dinâmica que veio a correlacionar estreitamente o fenômeno social a um tipo social de vítima. O que é o desaparecimento político a quem são os desaparecidos políticos. Pois esbarrou no limite das forças, das redes e da imaginação social do movimento de familiares que, ao investigar e construir um a um, com evidências documentais e testemunhais, os casos que lhes garanti-riam direitos individuais, também demarcaram a violência que nós seríamos capazes de

no-mear como sociedade contra uma persistente negação estatal (Azevedo, 2018)8.

Contudo, a Ditadura fez da violência uma prática social extensiva, operada largamente no es-paço entre a legalidade e a disciplinação dos corpos (Das e Poole, 2004). Por isso, a categoria

6 Refiro-me ao fato de que a identificação é técnica que tanto tenta evitar o anonimato de tipos sociais

ameaça-dores, quanto permite sepultá-los anonimamente.

7 A abertura política é marcada pela Lei de Anistia (1979) que, em um primeiro momento, silenciou o debate ao

perdoar «crimes políticos e conexos». Incluindo neles tanto as ações de grupos de resistência, quanto a violên-cia de Estado.

8 Iniciado pelos mortos e desaparecidos políticos, o reconhecimento surgiu restrito às dimensões civil e

indi-vidual do dano. Perspectiva não modificada o suficiente para que nosso processo não seja dito incompleto e atrasado quando interpelado pelo pacote transicional global. Contudo, como argumenta Castillejo Cuéllar (2018), talvez a inadequação esteja na própria imaginação desse contexto ideal e controlado de ruptura no qual, sob a promessa de novo futuro, seria possível confinar a violência no passado. Tanto mais se considerar-mos os limites à compreensão do que se constitui como violência em sociedades rasgadas por desigualdades sociais profundas que, historicamente, estruturam o cotidiano e enraízam tecnologias de governo, confor-mando a normalidade do funcionamento da sociedade e das instituições.

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«violência política» carrega clivagens sociais. Ela contém desigualdades ao excluir a possibi-lidade de reconhecimento para pessoas vitimadas em função de outros processos normali-zadores desencadeados em nome de coisas como: a ordem pública, o desenvolvimento, ou a moralidade. Ou mesmo por defenderem: direitos sociais, diversidade cultural, modos de vida, ou territórios. Enquanto as violências contra as vidas destas populações historicamente marcadas pela precariedade são relegadas à ordem cotidiana, voltaram-se extraordinárias aquelas significadas pelas narrativas sobre a resistência ventiladas por sobreviventes, parti-dos políticos e movimentos sociais com eles identificaparti-dos. A condição de vítima pôde ser al-cançada por atores que até a Ditadura eram admitidos nas arenas políticas, cujo banimento causa horror e indignação. A relevância atribuída a suas vidas por estes setores permitiu que suas mortes, dignas de luto, fossem colocadas no centro das memórias nacionais da violên-cia e admitidas como ofensas à democraviolên-cia e à humanidade por tecnologias de governo ela-boradas em sua atenção.

Tais tecnologias respondem, simultaneamente, à inserção do país no compromisso

huma-nitário internacional que marca a transição para o século xxi (Torpey, 2006). Permitindo que

gramáticas e agendas globais fossem mobilizadas para elaborar categorias capazes de cir-cunscrever e denunciar o caráter excepcional daquelas violências que se exigia serem des-dobradas em problemas sociais. Apoiando-se nos amplos parâmetros e vasta aplicabilidade das categorias humanitárias. Conforme mostra Gatti (2017), o sucesso da tipificação inter-nacional do desaparecimento forçado converteu o que era um fenômeno carente de expli-cação em uma «variável que explica» (ibidem: 27), possibilitando tanto dar vazão a deman-das locais contra Estados violadores, quanto totalizar um fenômeno mundial, a despeito de

suas conformações contextuais9. Como instrumento de governança global, o

desapareci-mento forçado sustenta políticas, projetos e organizações, além de mover pessoas, saberes e valores.

Um movimento que não pode ser separado da ação de equipes forenses que, atuando a par-tir dos anos 1980 em contextos transicionais, projetaram o corpo ao centro da ação huma-nitária, produzindo um impulso global por localizar, identificar e judicializar. A eficácia legal de sua discursividade científica vem promovendo seus profissionais a aliados preferenciais das famílias, em contraponto a órgãos oficiais nacionais perpetradores ou coniventes. Além de recuperar remanescentes, sua atuação celebra a materialidade como traço objetivo da realidade e evidência mais acurada do que os testemunhos, produzindo um giro forense no campo humanitário. A emergência desse paradigma no qual a materialidade assegura a pro-dução da verdade, tornando-se veículo preferencial para medidas diversas, como: o proces-samento penal, a interpretação do passado, a promoção do luto e da memória, e a transfor-mação do futuro, em uma perspectiva fortemente triunfalista (Anstett e Dreyfus, 2015). Tantas atribuições dotam o humanitarismo forense de um impulso alquímico e emergencial (Moon, 2014), validando-o pelo que seria sua ampla capacidade de oferecer limites ao exer-cício do poder, sem nunca se confundir com ele. Criado no auge do discurso transicional no Brasil, durante o funcionamento da comissão da verdade, o GTP goza destes predicados. O amparo dado a ele pelo campo humanitário veio a equilibrar as desconfianças que o

movi-9 As convenções internacionais o definem como privação de liberdade, perpetrada pelo Estado ou com sua

co-nivência, seguida da recusa em admitir e informar o paradeiro. O desaparecimento político difere dessa for-mulação por ser uma categoria de direito civil, restrita a um período e tipo de vítima, e por igualar o desapare-cimento à morte (Azevedo, 2018).

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mento de familiares mantém em relação o Estado10. Assim como a confiança na capacidade

das técnicas científicas de extrair as verdades guardadas pelos ossos ameniza a emergência de um protagonismo forense que, pela primeira vez, desloca o movimento da centralidade na lida com os desaparecidos, ao encerrá-los no laboratório. Mas esta perspectiva resistiria a um olhar aproximado?

Em face da normatização do humanitarismo forense como projeto global, pesquisas recen-tes vêm iluminando os modos diversos pelos quais a materialidade pode ser constituída como fato em distintos contextos. Considerando as múltiplas questões abertas e tramadas por seus dispositivos entre as dimensões profissional, científica, religiosa, política, legal, his-tórica, afetiva e ética (Dziuban, 2017; Rosenblatt, 2015). Elas também chamam atenção para as variadas maneiras pelas quais tais dispositivos são capazes de, a um só tempo, responder e impactar atores e dinâmicas locais. Pensando suas inscrições nas densas redes sociais e jo-gos políticos nos quais são mobilizados como parte constituinte dessa conformação mun-dial (Ferrándiz e Robben, 2017). Lidas na esteira das reflexões abertas por Verdery (1999), tais análises me sugerem que, ao buscar restabelecer remanescentes ósseos à condição de su-jeitos diante de comunidades políticas, os mecanismos forenses podem ser mais comuns do que sua proclamada excepcionalidade anuncia (Lefranc, 2017).

O mesmo parece se passar com o GTP, cujos processos científicos não podem ser apartados dos regimes burocráticos e de poder que instauram a identificação humanitária como uma tecnologia de governo. Assim como na identificação civil, a humanitária visa (re)estabele-cer vínculos entre individualidades biológicas e o Estado, projetando representações sobre o anonimato e agentes políticos ameaçadores. Ao trabalhar com o princípio de que diferença biológica original faz indivíduos perante a lei e a burocracia, os teóricos da identificação civil brasileira implantaram técnicas capazes de classificar indivíduos segundo ordens específicas e hierarquias convenientes ao governo de populações (Foucault, 2007). Conforme mostrarei nas próximas seções, tal argumentação pode ser transposta para o GTP, cujos procedimen-tos buscam nos corpos diferenças originadas em desigualdades sociais sobre as quais proje-tam «critérios diferencias de acesso à cidadania» (Carrara, 1984: 15). Para entender como isso ocorre, precisamos entrar no laboratório.

2. o lAboRAtóRIo

O CAAF/Unifesp ocupa um imóvel de dois pavimentos em rua residencial no bairro da Vila Mariana, na cidade de São Paulo. No subsolo, duas salas climatizadas acondicionam as 1047 caixas contendo os remanescentes ósseos exumados da Vala de Perus, uma terceira sala serve à secagem e, no espaço entre as três, ocorre a Limpeza.

As caixas estão registradas por uma série codificada. Um sistema alfanumérico composto pela sigla GTP seguida da sequência numérica atribuída outrora pela Unicamp. Para cada

có-10 Enquanto a Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF), chamada pelo movimento de familiares, foi

pedida de participar do processo no passado pela Unicamp, o GTP estabeleceu relações com três das mais im-portantes equipes forenses globais: a EAAF; a EPAF, Equipo Peruano, e oInternational Commission on Missing Persons; além do CICV.

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digo, uma pasta correspondente armazena os papéis gerados no decorrer da análise. Elas são guardadas em estantes de arquivo suspenso localizadas no andar térreo, acessado por uma escada interna.

Ao subi-la, chegamos em uma grande sala sem divisórias, cujas janelas, voltadas para o in-terior, conformam um vão central. Neste cômodo, as profissionais se distribuem entre três pias, quatro mesas de análise, uma bancada fotográfica, e cinco computadores. O único cô-modo separado é provido de uma pequena pia, um freezer que atinge 80 graus negativos, e uma capela de exaustão. É a sala do DNA.

Os espaços constitutivos do laboratório do GTP são definidos pela circulação contínua das caixas e suas respectivas pastas. De tal maneira que, iniciado o percurso de análise, a dupla atravessa as etapas/estações de trabalho, como numa linha de produção. Ao passarem de etapa, abrem vez às que aguardam o momento de serem trabalhadas. Um observador que adentre o laboratório em um dia qualquer, verá caixas e pastas acumuladas sobre mesas e bancadas ao lado de peritas que executam seus trabalhos, simultaneamente, em distin-tas posições. Com o passar dos dias, estes conjuntos se dispersam, dando lugar ao acúmulo de outros ao ritmo de um trabalho que, colocando tudo em circulação permanente, parece manter-se estagnado.

Assim, para acompanhar o fluxo da análise, faz-se útil assumir o ponto de vista de uma caixa

—a caixa GTP1234— e segui-la em seu itinerário laboratorial11. O que nos leva de volta ao

subsolo.

3. Resíduo e HumAno

Nos acompanham duas peritas: Tânia, responsável pela guarda das caixas, e Carolina, pela Limpeza. Como ato inaugural, a Cadeia de Custódia é transferida, abrindo a sequência de procedimentos e etapas, cuja validade, bem como a autenticidade de sua correspondência com a caixa, depende do registro datado de seu início e encerramento nesse documento, destinado ao controle do fluxo e encadeamento documental, assegurado pela autoridade in-vestida nas assinaturas das peritas.

A esta abertura, segue-se a da caixa lacrada. Defronte às salas de acondicionamento, Caro-lina trabalha entre uma bancada fotográfica e um suporte de meio tambor sobre o qual po-siciona uma peneira de aproximadamente 100 × 60 cm. Auxiliada pelo voluntário Pedro, ela traz consigo uma câmera digital; uma peneira extra; a pasta GTP1234 já com sua Cadeia de Custódia; uma escala; alguns códigos impressos em papel; e o Formulário de Limpeza.

11 O código é fictício. A descrição em sequência é recurso narrativo estruturado sobre dados etnográficos.

Em-bora limitadas pelos protocolos, variações nas formas de trabalho acompanharam o revezamento entre equipes de peritas contratadas temporariamente por editais do Programa das Nações Unidas para o Desen-volvimento. O laboratório conta ainda com: voluntários, peritos cedidos pelo IML, Polícia Federal (PF), e Univer-sidades. Representantes das instituições cooperantes compõem o Comitê Gestor. Representantes da Secre-taria Nacional de Segurança Pública, da PF e da Associação Brasileira de Antropologia Forense estão no Comitê Científico.

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Enquanto Pedro fotografa a caixa —lacrada, aberta, com conteúdo à mostra e do lado de fora—, Carolina inicia o preenchimento do Formulário pelos dados de identificação. Ela se-guirá nessa função, enquanto Pedro desembala o conteúdo, geralmente envolto em mais de um tipo de saco, íntegros e/ou fragmentados. Como camadas temporais, eles são vestígios materiais das subsequentes intervenções sofridas.

Carolina e Pedro trabalham em dupla conferência. Sobre a peneira, instrumento de seleção mecânica, os ossos e dentes íntegros são separados de resíduos como terra, insetos e pupas. É preciso atenção para visualizar ossos muito pequenos e os fragmentos com condições de serem reconstruídos, distinguindo-os de partes tão fragmentadas que também serão consi-deradas resíduos. Observação e registro são dois atos constitutivos do mesmo movimento: enquanto as partes ósseas vão sendo dispostas por conjuntos anatômicos na bancada e fo-tografadas por Pedro, ao lado da escala e do código, Carolina descreve detalhadamente todo o conteúdo ósseo encontrado, seu estado de conservação, e observações sobre eventuais cabelos, pelos e materiais de origem não-humana. Estes materiais, assim como etiquetas e outros objetos inseridos pela Unicamp, e as embalagens originais são armazenados. Afora os itens classificados como resíduos, nada é lixo. Curativos, pedaços de tecido, meias, dentadu-ras, e pedaços de embalagens de salgadinho são alguns dos objetos que vi serem arquivados na condição de evidências.

É também como evidências científicas que os ossos seguem adiante. Em nova peneira eti-quetada, eles são levados ao andar superior, onde entram na fila da lavagem. Com pouca água e uma escova de dentes, um voluntário se dedica a remover, em paciente trabalho, con-sideráveis quantidades de terra dos ossos um a um. Limpos, eles descem à sala de secagem, de onde subirão quando completamente secos.

Acompanhar a Limpeza é observar uma transformação no decorrer da qual um amálgama disforme começa a assumir forma humana. Mesmo que, nesse momento, uma forma mais classificatória do que anatômica, pois é sua separação dos resíduos e a introdução de uma ordem (Douglas, 2010) que parecem restituir a qualidade humana da qual a matéria parecia esvaziada. Como se os processos sucessivos que a trouxeram até o GTP tivessem suspendido uma fronteira ontológica (Bevilagua, 2010), exigindo das técnicas de identificação uma atua-ção no sentido de restituí-la.

4. os ossos fAlAm

Secos os ossos, a peneira GTP1234 é levada para a Análise Antropológica. Recebendo a cus-tódia de Carolina, Maíra, perita de análise post mortem, repassa o código à mesa e dispõe os ossos pela primeira vez em posição anatômica. Neste momento, observa ossos ausentes, so-bressalentes, e morfologicamente incompatíveis com o conjunto. Resultado de perdas e mis-turas ocorridas durante o histórico de circulação das ossadas. Algumas dessas incompatibili-dades pareciam muito nítidas ao meu olhar leigo, como diferenças de tamanho, ausências e sobressalências; outras desafiam olhares treinados. Por isso, Maíra costuma buscar opiniões entre suas colegas. Prática comum, os debates entre peritas com distintas formações e expe-riências sobre os casos em análise são, tanto quanto os protocolos e manuais de padroniza-ção, investimentos no rigor. Controles de «desvios interpretativos», me explicou Maíra.

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Enraizada no paradigma indiciário (Ginzburg, 1989), a prática forense entende a si mesma como decifrar as pistas de um enigma. Comparação feita por uma prestigiada antropóloga forense portuguesa durante uma de suas visitas ao laboratório. É interessante que a inquie-tação com a subjetividade seja parte constituinte de um fazer que, informado pelos sentidos, centralmente a visão, volta-se para o corpo morto como espaço privilegiado para entender o que está além do visível. Mas Maíra também me explica que, para alcançá-lo, são necessários exercícios de abstração: classificações e formação de totalidades. A questão é que «um osso sozinho não me diz nada», explicou em certa ocasião. Na dimensão do visível, é difícil relacio-nar objetivamente dois ossos fora do conjunto esqueleto. Em sua montagem, como em um quebra-cabeças, é preciso seguir o modelo anatômico para dispô-los em suas posições, res-peitando sequências e lateralidades, testar encaixes entre partes e articulações, e comparar os lados. É apenas na visão do todo que se pode ter certeza sobre o pertencimento das par-tes. Em alguns casos, como as costelas, chega a ser impossível determinar a posição anatô-mica de algumas de maneira não relacional. No decorrer do procedimento, além de separar elementos estranhos ao conjunto, Maíra reconstrói e cola os ossos fragmentados. E quando finalmente concluí estar diante de um único corpo, testa se é possível associar entre si os

os-sos considerados externos. Em seguida, os demarca por um perímetro e fotografa a mesa12.

Encontramo-nos agora diante dos remanescentes de um inconfundível corpo humano. Um esqueleto ainda que sempre incompleto ou fragmentado. As vezes faltam ossos como o crâ-nio, fundamentais tanto para a análise, quanto para nossa concepção de pessoa. Em todo caso, sua individualização seguirá em curso. Maíra agora busca as informações solicitadas pelas Fichas de Análise Antropológica, compostas por: Inventário de Esqueleto, Perfil Bioló-gico, Odontograma, Crânio: Vista (5 ângulos distintos), Esqueleto: Vista Anterior e Posterior, e Reporte Antropológico.

O Inventário de Esqueleto é uma relação minuciosamente discriminada. Todos os ossos de um esqueleto são apontados em uma tabela como presentes, ausentes, fragmentados ou in-completos. É avaliado seu estado de conservação geral, destacada a presença de outros ma-teriais, e apontadas intervenções humanas ou efeitos naturais sobre os ossos. Mesma tarefa cumpre o Odontograma, que conta com uma tabela e uma representação gráfica a ser colo-rida para apontar presença ou ausência de cada um dos dentes, o momento da perda em re-lação à morte, e específicas informações individuais e posicionais. O Perfil Biológico se refere ao levantamento de dados para estimar: sexo, idade e estatura no momento da morte. Con-siderando que o dimorfismo sexual não é evidente em ossadas humanas, o protocolo prevê o uso complementar de três metodologias aplicadas a diferentes ossos do corpo. Maíra deve atribuir números de 1 a 5, em uma escala de graduação do «mais feminino» ao «mais mascu-lino», para características observadas em 5 pontos do crânio, e três pontos da pelve. Depois, tira medidas do fêmur. Os números são lançados em fórmulas matemáticas calculando a probabilidade do sexo. Já a estimativa de idade é feita a partir de seis ossos diferentes, cujos resultados não são números precisos, mas faixas etárias, sobrepostas para alcançar a menor

12 Das 904 caixas analisadas até janeiro de 2019, 205 possuem ossos de mais de um indivíduo. O mais comum

é encontrar algumas unidades não compatíveis com um indivíduo mais íntegro. Caso não seja possível lhes aplicar os métodos de análise, essas unidades serão chamadas «avulsas» em relação ao «indivíduo principal». Este fica referenciado no código. Quando é possível estimar seu perfil biológico, são considerados outro(s) indivíduo(s), classificados com o código mais letra (A, B, etc.). Considerando que indivíduos podem estar dis-persos por várias caixas, ao final, seria necessário um esforço adicional para definir quantos indivíduos há no total nas 1.047 caixas.

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variação. O mesmo ocorre com a estatura, intervalo resultante de cálculos a partir da medi-ção de 5 ossos.

As fichas Crânio: Vista e Esqueleto: Vista inauguram a análise das lesões e patologias. Colori-das em silhuetas, elas são descritas em seguida no Reporte Antropológico, um resumo geral discursivo do conjunto dos dados auferidos, com destaque para o perfil biológico, as carac-terísticas odontológicas e físicas individualizantes, a descrição das patologias e das lesões, e seu momento em relação à morte, como fatos médico-legais, apontando origem e causas. A conclusão depende da articulação desse conjunto amplo de informações em direção à causa mais provável da morte de acordo com categorias médicas (Medeiros, 2012). Considerando que ela nem sempre é observável na ossada, não é incomum resultar indeterminada. O que também pode ocorrer com o perfil biológico. Para finalizar, Maíra vai à bancada fotográfica, onde captura as imagens das partes diagnósticas (perfil biológico, patologias e traumas), descrevendo tudo no Inventário Fotográfico. Toda essa extensa documentação é reunida à da etapa anterior na pasta. Os ossos são devolvidos à caixa, separados por conjuntos anatô-micos em sacos tipo ziplock, com conteúdo descrito por fora.

O material devolvido à Tânia já não é o mesmo. O código GTP1234 designa uma materia-lidade transformada pela intervenção forense em um conjunto científico composto por: papéis, dados, imagens, e um esqueleto higienizado, escrutinado, ordenado e classificado. Apenas ao ser tomada como base para a emissão de verdades médicas em registros do-cumentais é que a materialidade vem a constituir uma individualidade biológica. De con-junto ósseo indeterminado torna-se um esqueleto e, finalmente, um indivíduo morto: limpo, com sexo, idade, estatura, patologias, traumas e causa mortis estimados e docu-mentados em linguagem médico-legal. Processo que o traduz para um universo aberto no encontro entre conhecimento e registro. Contudo, esse indivíduo segue como evidência de uma identidade, que não pode ser alcançada apenas por aquilo que se perscruta nos ossos.

5. IndIvíduo e PessoA

Atribuir identidade, isto é estabelecer o dito elo entre corpo e nome, assim como na identifi-cação civil, significa conectar uma individualidade física irredutível, no caso dos ossos locali-zada nos genes, a uma personalidade civil.

É nesse momento do processo que surge um ponto de inflexão. Se todas as caixas chegarão à Análise Antropológica, nem todos os indivíduos que dela emergem serão submetidos aos exames genéticos. Por restrições orçamentárias alheias ao processo científico, tais exames foram contratados para 750 amostras junto ao International Commission on Missing Persons

(ICMP)13. Inferior ao total de indivíduos, essa quantidade exige selecionar aqueles que

segui-rão para as próximas etapas. Visando compor os lotes de amostras a serem enviados em sub-sequentes remessas internacionais.

13 Sem verba destinada à etapa, o GTP conta com recurso disponibilizado por emenda parlamentar da deputada

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Por isso, ao receber de volta o conjunto, Tânia lança os dados de cada indivíduo codificado na planilha sobre a qual são aplicados os chamados Filtros Restritivos. Estas ferramentas de se-leção são elaboradas a partir das características físicas das 41 pessoas que compõem o Uni-verso de Busca. Tal UniUni-verso foi depurado dos 434 desaparecidos políticos que o Estado bra-sileiro tem obrigação de localizar e identificar. São 37 nomes selecionados como prováveis de estar na vala a partir das informações disponibilizadas pela documentação e testemu-nhos que fundamentam seus casos. Narrativas produzidas pelos familiares e apresentados à CEMDP para reconhecimento oficial. Os 37 nomes estão divididos em 6 distintos «graus» de probabilidade. Outros 4 nomes foram acrescentados por solicitações de suas famílias à Uni-camp e mantidos pelo GTP.

Tal depuração e o levantamento das características físicas dos buscados foi feito pela equipe Ante Mortem junto às famílias e, para os casos existentes, à documentação produ-zida pela burocracia funerária acerca de suas mortes. Cada Filtro restritivo combina ca-tegorias referentes a sexo (ex: masculino), idade (ex: adulto jovem) e tipo de trauma (ex: lesão perimortem no crânio) associando os buscados em subconjuntos por semelhança física. A aplicação de cada Filtro respeita a ordem de prioridade definida pela divisão dos

nomes entre seis diferentes «graus de probabilidade de estar na vala»14. Ademais, existem

critérios de exclusão, na prática, mais determinante do que esta eleição por compatibili-dade. Tais critérios determinam o encerramento da trajetória analítica de indivíduos es-timados como: crianças, adolescentes e idosos, os com patologias graves, morfologias di-ferenciadas ou que sofreram cirurgias, por exemplo. Mesmo que apresentem lesões por

trauma violento15.

De todos os procedimentos classificatórios descritos até aqui, e que restam ocultos sob a ideia de materialidade verificável, o Filtro é o mais explícito quanto à criatividade e o cará-ter classificatório do processo. Pois deixa claro que a primeira pergunta feita diante de um indivíduo não é «quem é», mas «se é um desaparecido político». Ao buscar tal resposta nas individualidades biológicas, o procedimento trata diferenças sociais por incompatibilida-des físicas. A um só tempo, corporifica um conceito e cria corpos «essencialmente políti-cos».

Não é este o caso do indivíduo GTP1234. Razão pela qual será excluído nesse ponto do pro-cesso, sem alcançar a genética. Identificado pelo código, ele restará como personalidade

post mortem diante do agente identificador. Legível e descriminável por sua ordem de

inscri-ção em uma totalidade sequer nomeada, mas sempre designada pela negativa na prática co-tidiana. Do ponto de vista do processo —que mais do que nunca parece se opor pelo vértice ao descrito por Ferreira (2007)— também não se pode falar em não-resultado. Cada exclusão é um passo em direção a quem se busca em um processo que visa distribuir o corpus analí-tico entre dois conjuntos possíveis: os desaparecidos políanalí-ticos e aqueles que não o são. Iden-tificados por nomes próprios, os primeiros retornarão às suas famílias; enquanto o futuro dos que «não são» permanece, como eles, desconhecido.

14 Os graus são: 1. Pessoas com inumação e exumação registradas no livro do cemitério, sem informação sobre

local de reinumação; 2. Inumação, exumação e reinumação registradas no livro; 3. Desaparecidos com mações de que passaram por órgão de repressão na cidade; 4. Desaparecidos na Grande São Paulo sem infor-mações; 5. Desaparecidos em outros locais, cuja busca foi solicitada por familiares; 6. Desaparecidos não polí-ticos solicitados por familiares.

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Para os indivíduos selecionados, o processo tem sequência na Revisão com um perito dis-tinto. Se a Ficha de Revisão confirmar a análise, ocorre a transferência para o Corte. Etapa na qual Isadora, a perita da genética, corta duas amostras de um osso longo e extraí dois dentes, congelando-os até seu envio. Os lotes são compostos por uma amostra de cada tipo de cada indivíduo. No ICMP, elas serão comparadas com as amostras de referências de familiares dos buscados. Amostras de contraprova ficam reservadas no GTP, assim como as informações registradas na Ficha de Coleta de Amostras dos Restos Mortais para Exame Genético, e outro Inventário Fotográfico. O conjunto retorna, então, à Tânia na espera por resultados.

Após quase 5 anos de atuação, enviados três lotes no total de 550 amostras, o ICMP anunciou

dois matches16. Ambos os corpos seguiram para a Reconciliação, etapa em que, finalmente,

foram diretamente comparados a um nome. Os indivíduos documentados pelas análises

postmortem e genética são contrastados com Fichas Antemortem, também documentadas

pelos papéis que constituem suas personalidades civis. Nos dois casos, houve confirmação na Ficha de Identificação, em que os peritos responsáveis se pronunciam sobre a autentici-dade do vínculo entre corpo e nome, observando as dimensões Antemortem, Postmortem e Genética.

A referência no singular é, entretanto, imprecisa. Como evento que transborda o laboratório e a dimensão científica, a reconciliação se refere a múltiplos vínculos. Como bem argumenta Wagner (2008), identidade não é apenas um laço entre um corpo e um nome, mas também entre uma pessoa e um lugar, uma época e outros seres humanos. Nesse sentido, a reconci-liação é mais do que uma identificação por nome próprio. Ela é também um ato de

reconheci-mento.

A reconciliação resulta no retorno a uma comunidade enlutada. Não de uma individualidade biológica, mas uma pessoa. Um corpo sobre o qual foi exercido um trabalho de instituição (Bourdieu, 2011) no decorrer do qual não houve propriamente uma verificação da verdade, mas sua instituição pela inscrição simultânea de uma tecnologia entre a ciência e o Estado, e de um corpo em um universo político e social concebido na distinção entre indivíduo e pes-soa (Damatta, 1997). A identificação por nome próprio é o reconhecimento que reunifica as propriedades biológicas às políticas, sociais, jurídicas e morais. Produz pessoa na medida em que reconecta uma existência individual biológica a personalidade civil e sua carreira docu-mental, que tanto conforma uma existência individual perante o controle estatal, quanto comporta propriedades morais e relacionais (Peirano, 2006). Daí que a identificação surja aqui, tal como no IML, como garantia exclusiva das mortes choradas. De vidas envoltas por laços duradouros, reivindicadas e consideradas em sua dimensão biográfica. Condição de di-ferenciação a partir da qual acessos distintos à cidadania são proporcionados para corpos que, na realidade material, saíram de uma mesma vala.

16 O exame de DNA é uma comparação entre sequências genéticas nas amostras testadas e de referência. Como

não existe amostra de referência dos próprios indivíduos, a comparação é feita com a amostra de familiares. Por isso, é necessário calcular a probabilidade de haver coincidência sem que as amostras pertençam a paren-tes sanguíneos. Ou seja, a probabilidade de X ser parente de Y sobre a probabilidade de haver a mesma seme-lhança sem parentesco. Quando há um universo de busca fechado, calcula-se a probabilidade a priori, usando a proporção 1 sobre o número de pessoas buscado. Depois, é preciso decidir o Umbral: a partir de qual proba-bilidade a posteriori, após o cálculo, aceita-se como match.

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6. PolítIcos e AdmInIstRAtIvos

Transpondo livremente os argumentos de Bourdieu em A ilusão biográfica (2006), tentar ex-plicar a identificação de desaparecidos políticos como uma sucessão de procedimentos cien-tíficos sem outro vínculo senão a materialidade de seus corpos seria o mesmo que compre-ender sua trajetória como uma série de acontecimentos sucessivos sem outro vínculo que não a constância de um nome próprio.

Rebeca vê no nome a condição para atribuição de história e dignidade. Parece considerá-lo, tal como Bourdieu (ibidem), como princípio de irredutibilidade e estabilidade dos sujeitos, que unifica no tempo e espaço seus deslocamentos e possibilidades de manifestação como agentes no mundo social. Porém, como alerta o autor, o nome é também o rito de instituição inaugural. A constância que o permite encadear os acontecimentos de uma vida como tra-jetória —com sentido, projetos, relações e afetos— é a mesma sobre a qual se depositam os atestados jurídicos que articulam propriedades, benefícios e direitos e definem o cidadão pe-rante o Estado. Se os nomes próprios designam individualidades inseridas em relações e pro-cessos, ao constituir de forma indissociável a categoria jurídica desaparecido político, eles demarcam as memórias e trajetórias que projetam sobre o espaço político nacional, qualifi-cando sua relevância.

Assim, os nomes dos desaparecidos políticos carregam classificações e hierarquias como premissas das quais a análise forense não pode escapar. No passado, eles foram procura-dos pelo movimento de familiares nos livros de registro de entrada do cemitério. Revela-ram então seis casos que haviam sido exumados administrativamente, mas não havia da-dos sobre suas reinumações. À época, os familiares entenderam que a vala clandestina foi o destino final desses seis corpos, mantendo aberta a possibilidade de que outros «políti-cos», que talvez entraram no cemitério como não-identificados, também pudessem estar ali.

Quando assumiu a tarefa de compreender a formação da vala e delimitar o Universo de Busca, a equipe Ante Mortem realizou um levantamento amplo junto ao livro do cemitério, produzindo uma informação até então desconhecida: o total de corpos sem estes dados de reinumação. Eles seriam 1942, entre 1410 pessoas sepultadas com seus nomes próprios e 532

como não-identificadas17. De forma ambígua, o GTP usa esse total para seus cálculos

genéti-cos, mas suas investigações não se propõem a confirmar ou rejeitar a hipótese sobre a cor-respondência entre os corpos da vala e as inumações não registradas nos livros, assim como não admitiu tais nomes ao Universo de Busca. Assim fazendo, reafirma a violência de Estado como aquela que se abate sobre a militância, e mantém o reconhecimento reativo às suas demandas.

Sobre essa maioria de corpos que restará não-identificada, pouco se fala até o momento. Sa-bemos apenas que os profissionais da equipe Ante Mortem os consideram vítimas de outro fenômeno: o desaparecimento administrativo (Hattori et al., 2015). Fruto da economia ins-titucional da identificação no IML, marcada pelo desmazelo e contenção de esforços já des-crita por Ferreira (2007), mas esvaziada da violência persecutória que caracteriza o

desapa-17 A diferença entre este número e o total de indivíduos só poderá ser conhecido ao fim do processo. Sabe-se

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recimento político. Esta definição por contraste parece corresponder mais à diferenciação ética e metodológica que anima a equipe e a caracteriza como tecnologia humanitária do cuidado, empenho, padronização, e detalhamento documental, do que responder a diferen-ças na realidade material dos corpos da Vala de Perus. Ou mesmo na realidade de suas vidas, mortes e razões de desaparecimento, sobre os quais nada sabemos. Ao classificar os corpos entre duas categorias contrativas, o GTP afirma seu poder identificador, tornando-os acessí-veis a uma gestão governamental vigilante com as fronteiras que ergue em torno da cidada-nia.

7. RemAnescentes

Eu não poderia concluir esta reflexão sem mencionar a presença dos desaparecidos políticos no laboratório. No dia a dia, nada chama mais atenção do que o grande mural com suas fo-tos. Dificilmente se pode perdê-los de vista, enquanto eles parecem ser nossos observadores privilegiados. Há uma clara dinâmica: enquanto os ossos exigem saberes e técnicas, os mor-tos demandam compromisso. Simbolizando a luta de seus familiares que ali não estão. Essa sensação me veio já no primeiro dia de pesquisa, quando fui solicitada a colaborar com os voluntários na lavagem. Experiência que me exigiu superar receios de mútua contaminação, temendo que os ossos pudessem atuar sobre minha integridade, e eu sobre sua qualidade como objetos científicos. Mas, mais do que isso, sob o olhar congelado dos desaparecidos, era incontornável a sensação solene de manipular um objeto sagrado, cujas propriedades morais eu poderia ferir.

Apontando essa dupla presença, Verdery (1999) alerta sobre como a efetividade simbólica dos mortos reside justamente na concretude manipulável dos corpos que, parecendo encer-rar seus próprios significados, se abrem à polissemia. Como objetos apreciáveis pelos senti-dos e disponíveis à conveniência senti-dos vivos, a materialidade parece capaz de transcender o tempo, fazendo o passado presente. Contudo, o fato de estar ancorada em biografias e mo-ralidades indica que a relevância de sua materialidade não se encerra sobre si mesma, mas se refere àquela atribuída aos mortos.

Seja manipulando os ossos, seja observando o cotidiano do laboratório, a pesquisa me per-mitiu perceber como a dimensão simbólica não deixa de ser observada porque a material é objeto científico. Como bem observou Crossland (2009) sobre o fazer arqueológico, ou Fonseca e Garrido (2016) em outro contexto laboratorial, estas duas dimensões não são antagônicas. Ao contrário, o rigor científico pode ser entendido como uma forma de defe-rência ritual que implica em humanização. Ao traduzir, registrar, ordenar, construir e prote-ger a integridade dos ossos, o processo científico «mantém a singularidade de histórias in-dividuais. A individualidade documental (…) é o que garante que receberá um tratamento especial» (ibidem: 10). É o que parecem argumentar os membros da equipe Ante Mortem, quando vislumbram a possibilidade dos não-identificados receberem nomes próprios em futuros esforços. Conforme aponta Crossland (2009), o idioma empírico da objetividade aponta a neutralidade como meio ideal de observação e registro das evidências, canali-zando uma maneira específica de compreender a relação entre o simbólico e o material. Tal maneira controla a agência atribuída aos «ossos que falam» e o apelo mágico dos mor-tos que «testemunham» através deles, mas sem superá-los inteiramente. A expectativa de

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continuidade entre o símbolo e o objeto oblitera as relações e processos que se interpõem

entre eles para unificá-los18.

A agência atribuída aos ossos objetificados pela técnica seria melhor pensada como ele-mento que se expressa na complexa rede de relações na qual eles se inserem com as técni-cas forenses, o Estado, e o movimento de familiares. Como ato de reconhecimento, identifi-car significa inscrever verdades públicas sobre uma população assentada em desigualdades, atribuindo significado e lugar social a corpos hierarquizados. Assim, o que o GTP reconhece não é a materialidade em si, mas seus vínculos com atores legitimamente inscritos no jogo político nacional por meio de sua luta por direitos: os familiares de mortos e desaparecidos

políticos, que têm os desaparecidos absorvidos em sua substância moral (Bevilaqua, 2010)

como uma ausência incorporada (Azevedo, 2018). Porque remanescentes são tanto aquilo que sobra dos mortos, quanto aqueles que a eles sobrevivem.

8. RefeRêncIAs bIblIogRáfIcAs

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18 Como colocam Latour e Woolgar (1997), a percepção de veracidade do fato científico está ligada à

peculiari-dade de ser produto de um processo de construção que se concretiza como tal na medida em que apaga qual-quer traço de si próprio.

(19)

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Referências

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