O
REENCONTRO
Texto de Volker Ludwig
Tradução de Heloísa de Andrade
PERSONAGENS HENRIQUINHO DONA ÂNGELA, A MÃE
Henriquinho em casa, sentado à mesa, fazendo os deveres escolares. Interrompe o que está fazendo, bate com o lápis
em um copo. A seguir, em uma garrafa. Escuta o som. HENRIQUINHO – Blip! (Contente, bate novamente no copo; na garrafa; e, então, na mesa, na pasta; de novo na garrafa, descobrindo assim, um ritmo e uma melodia para as sílabas que ele vai dizendo.) Blip, blip, schnubel, baf, baf, póin. (Descoberta a melodia, repete-a várias vezes. A pasta cai no chão. Surge Dona Ângela, mãe de Henriquinho, com sacolas de compras.).
MÃE – Boa noite, Henriquinho! (Deixa as compras no chão, vai até o corredor e veste um avental.) Não deixe a pasta aí,
jogada no chão. Anda, agora é melhor que você me ajude a guardar as compras. (Vai retirando as compras das sacolas.).
HENRIQUINHO – Mas eu quero é tocar tambor.
MÃE – Tambor, tambor: que tambor? (Curva-se sobre as compras.) Ui, minhas costas!
HENRIQUINHO – Olhe: meus tambores da selva! (Orgulhoso quer mostrar o que descobriu.) Blip, blip, schnubel, baf, baf,
póin.
MÃE – Eu já te mostro o tambor! (Henriquinho põe o lápis na boca.) E tire esse lápis da boca, que isso pode lhe machucar! (Volta a ocupar-se com as compras.).
HENRIQUINHO – Mas eu ponho a parte sem ponta: aí não pode
acontecer nada.
MÃE – Que bobagem! Que idade você tem, afinal? E ainda nem
terminou os deveres. Afinal, o que é que você tem na cabeça, hein?
HENRIQUINHO – Ora, uma porção de lições. Uma porção de A,
com mais uma porção de B, dividido por uma porção de C... Qual o resultado?
MÃE – E sou eu que sei? (Quer apanhar um caderno e derruba um copo de leite, molhando-o.) Ih, que droga!
HENRIQUINHO – Mas desta vez foi você.
MÃE – Pra que você fica bebendo enquanto faz os deveres de
casa? Olha só a porcaria! (Pega um pano para enxugar a
mesa.).
HENRIQUINHO (Tomando-lhe o pano) – Não. Deixe: é melhor
que eu enxugue, senão você acaba derru...
MÃE – Atrevido! E ainda por cima é atrevido! Preguiçoso, tolo e
desorganizado! E a mim - que levo uma vida destas, sem tempo nem mesmo para respirar, que estou simplesmente acabada -
vem com desrespeito, como se eu fosse a pior vagabunda!
(Bate-lhe com o pano.) E que bilhete é esse aí?
HENRIQUINHO – Hoje de manhã a gente chegou tarde. Está aí
no bilhete. (Enquanto fala, dobra cuidadoso, o pano.).
MÃE (Senta-se e lê o bilhete) – “Prezada Senhora: seu filho
Henrique chegou novamente atrasado à escola. Peço tomar conhecimento e providências futuras, para que o fato não se repita. Caso seu filho não se corrija, gostaria de solicitar o seu comparecimento à escola, a fim de conversarmos a respeito”. Taí! E o que mais? Quer afinal repetir o ano? (Aos berros.) Arrume a mesa, para que se possa jantar. Ande, mexa-se um pouco!
HENRIQUINHO – E por que é que você vive assim, gritando? MÃE (Gritando) – Eu não estou gritando, não senhor!... Eu não
estou gritando: eu estou é muito nervosa! (Puxa, nervosa, a
gaveta do armário, que se prende. Puxa mais ainda, impaciente, arrancando-a do armário, e facas, garfos e colheres caem ao chão.) Mas que droga! Tudo saindo pelo
avesso! (Ajoelha-se ao chão. Henriquinho vai ajudá-la a pôr
de novo os talheres na gaveta.) As colheres ficam aqui. (Mostra onde devem ficar as colheres.).
HENRIQUINHO – Por que é que você só vive nervosa?
MÃE – Você não entende dessas coisas. Ainda é muito
pequeno. (Henrique volta a sentar-se.) E por que tanta pergunta? Isso é interrogatório?
HENRIQUINHO – Não. É que hoje, quando a gente vinha da
escola, prometemos perguntar aos pais por que é que eles só vivem nervosos, e gritam e xingam tanto. Amanhã cada um ia contar o que ficou sabendo.
MÃE – E de quem foi essa idéia? Quem é que botou isso na
cabeça de vocês?
HENRIQUINHO – Só fomos a Vivi, a Beth e eu. E o Bobby
também estava com a gente.
MÃE – O Bobby? Aquele que é filho do dono da fábrica? HENRIQUINHO – É sim.
MÃE – E a ele você conta que sua mãe se comporta como uma
louca, para que ele vá contar ao pai, que é para quem eu tenho que trabalhar?
HENRIQUINHO – Não, não. O Bobby só foi chegar bem mais
tarde.
MÃE (Começa a estender a toalha sobre a mesa) – O que eu
aqui faça, ou deixe de fazer, meu querido, a ninguém interessa: nem aos seus amigos. E a esse Bobby, de jeito nenhum! (Vai ao
armário.).
HENRIQUINHO – Interessa sim!... A mim interessa. E à Beth
também. E à Vivi também. E a qualquer garoto, se os pais ficam brigando com a gente o tempo todo.
MÃE (Em pé à frente dele, tendo nas mãos os pratos e a cesta de pão) – Pois eu vou dizer a você, por que é que os pais
consideração aos pais... e são malcriados! Por isso! (Põe os
pratos sobre a mesa.) E agora, vamos jantar.
HENRIQUINHO – Mas isso não é verdade. Você já chega em
casa nervosa demais e gritando. Como é que eu posso ter culpa? Em mim você não pôs os olhos o dia inteiro! (Dona
Ângela, calada, serve o jantar.).
MÃE – Você acha que um dia na fábrica é brincadeira? (Assusta Henriquinho com um gesto em sua direção.).
HENRIQUINHO – Pois é o que eu pensava: numa fábrica de
brinquedos...
MÃE – Brinquedos!... Eu levo o dia inteiro fazendo a mesma
coisa! (Enche um copo de água.).
HENRIQUINHO – É: eu sei. Você monta os robôs.
MÃE – Não... Eu faço instalar os aparelhos da voz, nas barrigas
dos robôs... Com isso é que eles podem falar.
HENRIQUINHO – E como é que você faz?
MÃE (Fazendo-se um pouquinho de rogada) – Sete
manejos...
HENRIQUINHO – Sete manejos, só?
MÃE – Só?... Está bem. Preste atenção... (Com movimentos que evoluem, vai mostrando os manejos.) No meio da esteira
de produção, vão passando os troncos dos robôs. E, junto a mim, ficam os aparelhos de voz. Assim... Primeiro, pego o tronco, ponho em minha mesa. Depois o aparelho de voz: coloco dentro dele... Tomo dois pinos, coloco dentro... Puxo a
perfuradora e prendo os pinos. Então, eu tampo... e ponho tudo novamente na esteira. Então... (Agora em seu ritmo normal de
trabalho.) Pego tronco, ponho aparelhinho, ponho os pinos,
puxo a perfuradora, prendo os pinos, fecho e mando o tronco.
HENRIQUINHO – Pois parece que até é divertido! MÃE – Divertido? Tá: então faça você. Venha! HENRIQUINHO – Ora: então eu faço sim.
MÃE (Levanta-se. Henriquinho senta-se em seu lugar. Ela coloca-se atrás dele, toma-lhe os braços e o conduz) –
Vamos ver: tronco... põe aparelho... põe pinos... puxa perfuradora... prende pinos... fecha... manda tronco. Assim. Agora, faça sozinho!
HENRIQUINHO – Sozinho?
MÃE (Mais uma vez, devagar) – Pega tronco... põe aparelho...
põe pinos... puxa perfuradora... prende pinos... fecha... manda tronco. (Henriquinho bate com a mão na mesa, e se
machuca.) Se você fizer um errinho só, o aparelho é apanhado
da esteira e por isso você ganha menos dinheiro. Faça: eu ajudo você de novo. (Toma-lhe novamente os braços.) Pega tronco... põe aparelho... põe pinos... puxa perfuradora... prende pinos... fecha... manda tronco. (Deixa-o fazer sozinho.) Até agora, você não ganhou nem um centavo. Assim! Pega tronco... põe aparelho... põe pinos... puxa perfuradora... prende pinos... fecha... manda tronco.
HENRIQUINHO – Todo o mundo tem que trabalhar depressa
MÃE – Está achando depressa? Pois faça isso duas vezes mais
rápido, assim como eu tenho que fazer na fábrica! Olhe! (Em pé,
como um Chefe, atrás de Henriquinho.) E um, e dois, e três, e
quatro, e cinco, e seis e sete. E um, e dois, e três, e quatro, e cinco, e seis e sete. E... (Toma o ritmo e repete a ordem mais
três vezes. Henriquinho se atrasa e se confunde.). HENRIQUINHO – Não agüento mais, não.
MÃE – E isso, depois de dois minutos! Pois faça isso, oito horas
seguidas, na fábrica. (Senta-se e canta.) Labutando, se esgotando / Agüentando o rojão / Bem cedo já a trabalhar / Sem direito a se atrasar. / Correndo atrás dum salário / E a contar qualquer tostão / Fim do mês, conta chegando / Mas o salário, não chega não. / Trabalho, trabalho! / E a vida encarecendo / Trabalho, trabalho! / E o aperto que é tremendo! / No dia em que a força se acabar / Que é que pra gente há de restar? /
HENRIQUINHO – Diga uma coisa: você não podia deixar um dia
de ir à fábrica e ficar em casa descansando?
MÃE – Mas, meu filho, eu tenho que ganhar dinheiro. Eu não
sou o César Labão, o dono da fábrica.
HENRIQUINHO – E ele não tem que ganhar dinheiro, não?
MÃE – Claro que tem... Mas ele tem tanto, que quando estiver
cansadinho pode viajar, se der vontade.
HENRIQUINHO – Por que é que ele tem tanto dinheiro?
MÃE – Porque ele vende tantos robôs, que fica cada vez mais
HENRIQUINHO – Mas é você quem faz os robôs. Por que é que
nós não ficamos ricos?
MÃE – Eu não faço sozinha. Há ainda uma porção de operários
na fábrica.
HENRIQUINHO – Hmmm... E eles ficam cada vez mais ricos? MÃE – Não. Eles também não.
HENRIQUINHO – Então vocês montam os robôs e só o dono da
fábrica é que fica rico?
MÃE – É. É assim.
HENRIQUINHO – Pois eu acho errado.
MÃE (Cantando) – Como besta a trabalhar / Que vida que a
gente agüenta / E o jeito é suportar / Pra quê? Pra quê? / E quando o salário aumenta / Que alegria dá na gente / Mas no fim do mês conta chegando / E o salário não chega, não / Trabalho, trabalho / Lá se vai a graça da vida / Trabalho, trabalho / E a cabeça, como é que fica? / No dia em que a força se acabar / Que é que pra gente há de restar? /
HENRIQUINHO – Então, na verdade, não é só por mim que
você fica zangada assim?
MÃE – Não... É porque eu já chego cansada do trabalho. (Henriquinho começa a tamborilar em seu ritmo: Blip, blip, schnubel, baf, baf, póin.) O que é isso que você está fazendo? (Henriquinho toma a faca e o garfo, e brinca. Dona Ângela imita-o, enquanto a luz vai caindo em resistência.).