• Nenhum resultado encontrado

1 Introdução geral. pp BOUZON, M., Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, In: AtTeo, 3, 1998,

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "1 Introdução geral. pp BOUZON, M., Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, In: AtTeo, 3, 1998,"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

1

Introdução geral

Em meados de 2005, durante a etapa de cumprimento dos créditos na pós-graduação, junto ao Departamento de Teologia, PUC-Rio, li uma breve resenha sobre o Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, elaborada pelo professor Emanuel Bouzon1. A narrativa de Bouzon versa sobre o encontro da “Society of Biblical Literatur”, ocorrido na cidade de Münster, entre os dias 28 e 27 de julho de 1993. “A leitura deste volume trará, certamente, novos impulsos e novos pontos de discussão para todo aquele que se propuser a estudar Dt 12-26”, era a frase final da resenha. Confesso que fiquei inquieto diante dos possíveis “novos impulsos”, como afirmava o eminente historiador, ao concluir o artigo. A partir desse momento, comecei a aproximar-me, de modo mais crítico, dessa obra que é um divisor de águas no conjunto do Antigo Testamento. Mas como dar sequência às borbulhantes idéias?

Em nova conversa com o professor Emanuel Bouzon, com o objetivo de colher as primeiras propostas de tema para um trabalho de doutoramento, tive conhecimento da obra A Torá: Teologia e História Social da lei do Antigo Testamento, do exegeta alemão Frank Crüsemann. Como sempre, muito fiel à sua área de pesquisa, de exegeta e historiador do Antigo Oriente, Bouzon acenou para a possibilidade de pesquisar um determinado conjunto de leis no Antigo Testamento, sem deixar de lado seus aspectos históricos, sociais e teológicos. Abracei a proposta. Terminada a leitura da obra de Crüsemann, surgiram os primeiros rabiscos sobre a possibilidade de concentrar esforços em torno do livro do Deuteronômio. Mas como subtrair um determinado tema num dos livros bíblicos mais estudados nas ultimas décadas, por diferentes abordagens e escolas exegéticas? Sobravam questões, diante da urgência de escolher um viés de análise.

1 BOUZON, M., Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, In: AtTeo, 3, 1998, pp. 99-103.

(2)

No início de 2006, é publicado o livro de Pedro Kramer, Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. O texto é uma síntese de sua tese doutoral, elaborada a partir dos escritos de dois dos mais relevantes estudiosos do Deuteronômio: N. Lohfink e G. Braulik. Ao debruçar-me sobre essas páginas, descobri a existência de um grupo social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva, citada não mais do que seis vezes ao longo do livro do Deuteronômio. Pronto! Acabava de encontrar parte do sujeito da tese, num conjunto de leis bem especificadas no corpo jurídico do Antigo Testamento: a defesa de grupos violados em seus direitos e justiça. A parte complementar do tema busquei na tradição judaica. Não queria negligenciar anos de estudos vividos em Israel. Desejava, caso fosse possível, conciliar, os textos deuteronômicos com algum período relevante do judaísmo.

Numa nova rodada de conversas, veio a idéia de relacionar o conjunto de leis em defesa do estrangeiro, órfão e viúva com a época dos Tanaítas. Na oportunidade, indagávamos, entre outras coisas: as reflexões presentes na obra deuteronômica foram consideradas pelas comunidades israelitas? Os sábios judaicos debruçaram-se sobre tais normas? As leis em defesa dos pobres foram observadas na prática do dia-a-dia das comunidades do II século, após a guerra de 135 d.C.? Tais questões deveriam acenar para uma determinada época. Escolhemos os anos vividos por dois brilhantes sábios e fundadores de duas distintas escolas rabínicas. Shamai e Hilel representam as duas tendências do movimento farisaico do I século, época do movimento literário erigido em torno do centro cultural de Yabneh, quando as controvérsias legais começaram a adquirir um conjunto redacional e, considerando as vicissitudes históricas, estava em formatação a Mishná .

Da Bíblia não foi difícil selecionar o material. Bastou uma apurada leitura, com o apoio da concordância de Lisowsky, para selecioná-lo os textos desejados. Encontrei seis grupos de textos: 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. A pesquisa tem como eixo as análises das perícopes voltadas para a defesa do direito dos grupos desfavorecidos, personificados no que é chamado Trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva.

Separadas as perícopes bíblicas, surgiu uma dificuldade maior: quais os textos a serem priorizados, provenientes da tradição judaica, e qual o critério para selecioná-los. De posse da concordância הרוסמהו הבותכה :הרות, “Tora: Haketuvah

(3)

Vehamasorah”, do professor Aharon Hymin, o critério foi destacar todos os textos

da época dos Tanaítas, que fazem referências à trilogia social apresentada pelo Deuteronômio. Chegamos à soma de setenta textos provenientes da Mishná, dos Midrashin e dos respectivos Talmudes: Jerusalém e Babel.

A conclusão não poderia ser outra. Diante de um cenário literário gigantesco, é salutar, não somente diminuir a área da pesquisa, mas, também, redefinir o número de textos. Alia-se a esta dificuldade, meu caráter de neófito – no senso comum da palavra – diante do vasto e qualificado universo literário de tradição judaica. Diante dos textos judaicos, optamos por realçar os textos da Mishná, tendo como período histórico a época dos Tanaítas, estabelecida cronologicamente entre dois períodos pré-tanaítico – conhecido como período dos

zugot “pares” – 200 a.C a 20 d.C., e a época tanaítica, somando as seis gerações,

20 d.C a 200 a.C. São analisados os respectivos tratados em seus versículos: 1) Seder Zeraim: Pe`ah 4,3; 6,4; 7,7; Demay 1,2; Shebiit 7,1; MSh 5,10. 2) Seder Mo`ed: Meg 2,5. 3) Seder Nashim: Ned 11,3; Git, 5,8; Sot 9,10. 4) Seder Neziqin: BM 9,13 e Ab 5,9.

Mas por que estes e não outros versículos? A escolha recai sobre este conjunto de versículos exatamente por que eles justificam a aplicação de uma

ֲה

ָל

ָכ

ה

“halachá” – norma de conduta, regra de como agir – nos textos do Dt, onde é citada a trilogia social. Assim, buscamos comprovar se a defesa incondicional do estrangeiro, órfão e viúva, em realce no conjunto da obra, foi ou não evidenciada, posta em prática pelas comunidades judaicas em meados dos anos em que é composta a Mishná.

Sinalizando os caminhos percorridos

Ao tratar do tema Trilogia Social – estrangeiro, órfão e viúva, grafado no Deuteronômio, a pesquisa volta-se, no primeiro momento, para uma análise literária em torno dos textos selecionados, com a finalidade de compreender o contexto redacional em que a Trilogia se insere. Pensa-se que, por meio deste termo técnico - Trilogia Social – seja possível compreender, não apenas o contexto literário das perícopes, mas também, o seu sentido originário e os

(4)

motivos de incluí-la em diferentes narrativas, partindo sempre do contexto literário, onde encontramos as referidas citações.

Foi com espírito de busca e entendimento que nos propusemos a realizar este trabalho, considerando a especificidade de um determinado grupo de textos jurídicos, realçando normas legais em defesa de uma categoria social e sua recepção nos textos da Mishná.

Diante dos novos conceitos impostos ao grupo dos livros que compõem o Pentateuco2, o livro do Deuteronômio não poderia, em hipótese alguma, passar incólume nas recentes pesquisas exegéticas e descobertas arqueológicas. No universo da ciência bíblica, são inúmeras as pesquisas e resultados apresentando verdadeiras avalanches de variedades e resultados3. O Dt é uma obra literária de inúmeras facetas. Um livro que, uma vez visto a partir de sua redação final, está repleto de inúmeras outras redações e fases literárias. Não há possibilidade de se imaginar que o texto encontrado e utilizado por Josias, em sua reforma religiosa e política, é o mesmo Dt manuseado em nossos dias4. As opiniões sobre a formação do Dt se dividem em diferentes escolas, quando o esforço é dirigido à compreensão das diversas fases redacionais5.

Primeiramente, como já era possível imaginar, com base na fala de Moisés, inserida no conjunto do livro do Dt, uma leitura mais minuciosa se depara com uma variedade de teorias e escolas que, nas últimas décadas, revolucionaram

2 Sobre os acalorados debates em torno das origens e composição do Pentateuco conferir algumas introduções aos cinco primeiros livros. NARDONI, E., Normas de justicia en las leyes de la

alianza. In: Revista Bíblica, 58, pp. 81-118; DE PURY, A., O Pentateuco em Questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, Petrópolis,

Vozes, 2002; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999; SKA, J. L.,

Introdução à Leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia, São Paulo, Loyola, 2003.

3 KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem

empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 11: ˝A pesquisa atual sobre o

Deuteronômio revela que não há consenso, entre os seus peritos, sequer quanto aos pontos básicos, como sua origem, formação e composição˝.

4 Cf. McConville, J. G., Singular Address in the Deuteronomio Law and the Politics of Legal

Administration. In: JSOT 97, 2002, 19-36. A simples alternância entre a primeira pessoa do

singular e a segunda do plural, legitima as inúmeras redações e camadas literárias presentes ao longo do livro (Dt 6,1-2; 4, 1; 5,1; 6.3, 4; 9,1; 10.12; 27.9).

5 Entre os autores há relativo equilíbrio na percepção estrutural do livro, um eixo central no formato de uma estrutura concêntrica, originária dos capítulos 12-26. Cf. SCHMIDT, W. H.,

Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994, p. 120; BLENKINSOPP, J., Deuteronomio. In: BROWN, R. E., FITZMYER, J. A., MURPHY, R. E. (Eds.), NCBSJ, São

Paulo, Academia Cristã/Paulus, 2007, pp. 225-226; BRAULIK, G., Deuteronomium II,

16,18-34,12, Echter Verlag, 1980, p. 98; SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario,

Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 45-46; NAKANOSE, S., Para entender o livro do Deuteronômio.

Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, pp. 186-187.

(5)

o estudo do Pentateuco e, consequentemente do livro do Dt. No capítulo II, sobre o Status Quaestionis, apresento, de modo sintético, os caminhos pelos que seguem as recentes pesquisas no Dt, tendo como eixo a trilogia social. Preferimos dividir esse parágrafo em temas que julgamos ser relevantes na compreensão do livro, descobertos durante o estudo da bibliografia e que, sem dúvida alguma, utilizamos como princípios norteadores ao longo de todo trabalho. Com base em diferentes escolas de exegese e teologia bíblica, chegamos a um consenso de que os grupos sociais desfavorecidos jamais foram, em momento algum da história de Israel, negligenciados. Pelo contrário, encontra-se em qualquer período da existência de Israel uma clarividente defesa dos pobres em diferentes conjuntos jurídicos. A proteção, por parte da administração da justiça, implica em que a comunidade religiosa de Israel defenda e garanta a prática dos direitos desses grupos.

A defesa desses grupos é apresentada, numa espécie de redoma jurídica, capaz de garantir o sucesso ou o infortúnio ao conjunto da sociedade que está por detrás da elaboração do texto. Em outras palavras, é dada tanta ênfase a este grupo que o leitor há de se perguntar: a sociedade, ou grupo social que produziu tal conjunto de normas chegou, de fato, à vivência plena, radiante do javismo defendido nas páginas do Dt? Os grupos em relevo, historicamente, viram seus direitos defendidos, ou o que temos, como redação final, não passa de um forte ensinamento ideológico forjado por um grupo de sacerdotes ou escribas, na Jerusalém dos séculos VI e V a.C.?

No capitulo III, segue a análise exegética das seis perícopes. Buscamos compreender o Gênero Literário (Forma e Estrutura), antes de tudo, percebendo os recursos retóricos, os estilos utilizados pelo escritor bíblico, e só depois debruçamo-nos na Análise Semântica. O conjunto de textos ai selecionados é compreendido considerando o que inúmeros estudiosos intitulam uma releitura teológica e histórica do Israel conhecido até então, por parte dos sacerdotes e sábios instalados em Jerusalém, provavelmente, no período pós-exílico, isto é, uma espécie de aprimoramento de antigas leis, em vigor em Israel, então, melhor compreendidas ou completadas nas palavras que falou Moisés (cf. Dt. 1,1), num contexto de uma literatura não acabada, mas pedagógica. Em todo o conjunto do livro, o primado é dado a Moisés. O narrador prioriza a pessoa do profeta, tomando o lugar de YHWH, como bem apresenta o Código da Aliança: E disse YHWH a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel (cf. Ex 20, 22). Na pessoa de

(6)

Moisés, a lei se torna mais atual. Os discursos são para o presente, nunca reminiscência de um passado, onde Deus, um dia, dirigiu sua fala à nação escolhida.

Visto sob a ótica da religião de Israel, o cumprimento do suporte legal adquire o desejo de garantir o projeto do Criador. Os suportes legais recebem uma nova compreensão, quando vistos na hermenêutica religiosa do Antigo Israel. A prática do Direito e da justiça, após longo processo no interior da sociedade, é compreendida como um forte apelo ideológico, quando considerada como desejo d`Aquele que nos libertou da terra da escravidão. Tornaram-se leis sagradas que, uma vez observadas, aproximam a sociedade dos ideais divinos. Os textos bíblicos exaltam a divindade de um javismo, cuja personificação não está na pessoa do rei, mas este se vê implicado no cumprimento da vontade do Criador6. Há possibilidade de levantar os seguintes princípios na pesquisa:

• Perceber a natureza e contexto histórico da lei: Sabemos, e são facilmente comprovados a influência e o intercâmbio cultural entre Israel e os povos vizinhos, sobretudo a Babilônia e o Egito. Diante de tal consideração, julgamos ser útil realçar, ainda que de modo tangencial, a ressonância de certos textos jurídicos presentes nas narrativas bíblicas. Quais seriam as semelhanças entre as leis contidas no Dt quando comparadas com textos legais provenientes do Antigo Oriente? Considerando-se a praticidade da lei, os conceitos utilizados são idênticos nos dois universos literários? O que se pode notar, logo num primeiro momento, é que no Dt a pessoa, o grupo familiar está sempre em evidência. A defesa incondicional da pessoa está sobre os valores materiais. Seria esta uma novidade introduzida no livro pelos sábios judeus ao apresentarem a fala de Deus intermediada por seu representante Moisés?,

6 GONÇALVES, F. J., A Bíblia na História do Povo de Deus, Bíblica (série científica), 13, 2004, pp. 34-35: ˝Nesta concepção de realeza, o rei invocava a autoridade de um deus criador. A título de seu representante, o rei recebia desse deus a missão de manter a ordem do mundo por ele instaurada com a sua vitória contra o Caos. O rei exercia essa missão assegurando o culto do seu deus e fazendo reinar a justiça entre os seus súditos˝.

(7)

• O século VIII é tido como um período áureo para a política expansionista do rei assírio Teglat-Falasar III (745-727a.C.): a dominação imposta aos países vizinhos não tardou a atingir as fronteiras de Israel. É imposto o regime político de vassalagem aos reinos conquistados. Como compreender neste contexto, as estratégias e resultados da reforma promovida no reinado de Ezequias ao opor-se contra os assírios? Não estaria neste período a perda do direito da posse da terra e, consequentemente, no agravamento da crise que se abateu sobre os pobres. Em outras palavras, os que antes possuíam a terra, agora tem, como garantia de sobrevivência, parte do dízimo, das festas e das colheitas. Diante de tais considerações, as leis expressas no Deuteronômio foram elaboradas com finalidade de equacionar o fosso social criado no interior da sociedade israelita, mas não de devolver a terra aos seus antigos e legítimos proprietários.

• Para alguns exegetas, o conjunto dos textos selecionados, no livro do Dt, são de um período recente. Os destaques dados aos estrangeiros, órfãos e viúvas datam do período exílico, momento em que a comunidade religiosa busca entender as vicissitudes históricas, sobretudo a destruição física do Templo, somada à destruição das tradições religiosas, projetando-se no passado. Como transmitir a história às futuras gerações? Com entender a relação Deus e Comunidade a partir da calamidade exílica? Neste ambiente de releituras, o Dt é uma ocasião de procurar relativa compreensão da estrutura literária no conjunto geral do pós-exílio.

• Por qual motivo não encontramos o termo ָעי ((pobre) ou ִנ ֲע

ִנ ִיּי

ם (pobres) tão freqüentes no livro do Deuteronômio (Dt 15,11; 24,12.14.15; 16,3), e de suma importância na pregação profética (Am 2,7; 8,4; Is 32,7; 49,13; 58,7; Ez

(8)

18,12; 22,19), junto à trilogia estrangeiro, órfão e viúva, no conjunto dos textos escolhidos? Seria a categoria ָעי ִנ diferente do termo םֺות ָי na época da redação do texto? Pensamos que o Dt, por constituir-se num livro de princípios legais, volta a essas categorias os olhares divinos. Possibilitar segurança, justiça e acesso ao direito é sinônimo de agradar a YHWH.

A autoridade máxima é a ה ָוה ְי ת ַרֺותּ “Lei de YHWH”. A ela estão submetidas todas as autoridades e instituições. Tem-se a impressão de que coube ao redator final da obra, no período pós-exílico, enaltecer a Lei, como elemento catalisador da comunidade religiosa. Não é em vão que o livro retoma a proposta da felicidade ou da desgraça completa, compreendida no modo como a comunidade religiosa cumpre ou não os preceitos nela estampados (cf. Dt 6,25).

O Deuteronômio é o livro escrito essencialmente para ensinar crianças e jovens, reis e servos (Dt 4,9-10; 6,7, 20-25; 11, 19; 31,13). Sua teologia tem como idéia central a fidelidade absoluta a YHWH e a prática da justiça e do direito7. Tal fidelidade teve seu pleno significado na experiência do êxodo e da aliança. Seguindo o projeto de um deus oposto às demais divindades, Israel descobre, na história, o conceito de um deus incapaz de compactuar com a vontade humana. A comunidade se depara com uma divindade que existe por si mesmo, sem nenhum mérito humano (cf. Ex 3,7), e a bondade deste Deus é pensada a partir da experiência do êxodo, onde viram a ação preferencial por Israel. A idéia da aliança8 surge e é transmitida às futuras gerações como força divina capaz de garantir a coesão e identidade da comunidade religiosa ao longo de sua história.

No capítulo IV são apresentados doze textos da Mishná. As leis consideram as diferentes realidades, nas quais se inseriam as comunidades. Todas

7 Cf. SÁNCHEZ. E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 35.

8 RENDTORFF, R., A fórmula da aliança, São Paulo, Loyola, 2004, p. 75: ˝As grandes primeiras seções da história de Israel residem no passado: a geração dos pais, a quem foi prometida a terra, lembrada pelas primeiras frases da fala de Moisés no Deuteronômio (1,8); a saída do Egito, que tem, em vários aspectos, uma função constitutiva para a situação atual e auto-imagem de Israel (4,20; 7,8)...o caminho através do deserto, a tentativa frustrada de conquistar a terra a partir do Qadesh, a perambulação por quarenta anos no deserto, o triunfo sobre os reis do Jordão Oriental e a tomada de sua terra (1,19-3,17) até o ponto além do Jordão, na terra de Moab˝ (1,5), onde Moisés começa a expor a Lei. Tudo o que é anterior a esse período é objeto de reflexão retrospectiva˝.

(9)

as normas são fundamentadas nos princípios provenientes da Torá. Isso revela o desejo que os sábios fariseus tinham em levar uma vida social em conformidade com as tradições transmitidas pelas Escrituras. Afinal, o Senhor não doou a Israel normas temporais, passageiras a serem praticadas por uma determinada realeza. São palavras eternas.

Uma leitura da Mishná revela o grau de sensibilidade social. Os pobres, nas comunidades judaítas, nos primeiros séculos d. C., não assistem, de modo passivo, a negligência de seus direitos. Ocorrida a violação do Direito, a convivência social fica ameaçada. Há riscos de desintegração e desequilíbrio da “harmonia” social. As normas jurídicas buscam meios para superar os conflitos. Há uma urgência em recorrer ao suporte da jurisprudência, no desejo de equalizar e projetar relativa sensação de harmonia entre interesses antagônicos.

Os sábios tanaítas não leram de modo aleatório as Escrituras. As normas, no estudo da Torá, foram forjadas pelos tanaítas. Hilel é citado no desejo de verificar o grau de comprometimento e seriedade diante das tradições orais e escritas. As regras citadas comprovam tal seriedade. As regras exegéticas não se furtam em comprovar o nível do amor a Deus que envolve todo o coração. A Escritura, a Lei, não é entendida de modo individualista, repleta de conceitos genéricos, sem destinatários. A disponibilidade na realização do projeto divino está no ensinamento e transmissão da Torá, fazendo com que, de geração em geração, seja conhecido o nome do Senhor.

No capítulo V, ocorre a interação entre os textos do Dt e a Mishná. Procuramos compreender o grau dessa interação. A comparação expõe três práticas muito comuns nos anos que se seguiram após a destruição do segundo Templo. São elas: 1) O dever de disponibilizar os dízimos; 2) O direito dos pobres pela respiga; 3) A violação do direito dos pobres. Não oferecer comodidade frente às normas provenientes da Torá pode ser uma justa equação levada adiante pela tradição judaica na época Tanaítica. A ortopraxis é justificada pelos textos bíblicos. Neste sentido, cabe, no desenvolvimento da pesquisa, identificar quais realidades sociais, os diferentes casos, que são normatizados na Mishná considerando sempre as perícopes em que ocorre nítida referência à trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva.

A análise está centrada em 12 diferentes capítulos da Mishná. Vale realçar que a sequência à trilogia social ( ֵגּ ר , םוֹת ָיe ה ָנ ָמ ְלאַ) comum no livro do Dt

(10)

19; 14,29; 16,11; 24,17.19.20.21; 26,12.13; 27,19) não é encontrada nas páginas da Mishná. Na pesquisa, o critério de escolha dos textos considerou, especificamente, textos do Deuteronômio que oferecem suporte a uma determinada halakhah. Por esse critério, são relacionados as seguintes perícopes: 14,28-29; 16,9-12; 24,17.18.19.21; 26,13-15 que fundamentam, diante de uma determinada realidade social os desafiu imposto à comunidade, a preocupação com o direito social de grupos desfavorecidos ou que estão disputando a defesa de seus direitos expressos na Torá. Foram selecionados apenas os textos em que, explicitamente, é citada a trilogia social, como critério argumentativo na justificação de uma determinada pratica adotada pela comunidade9.

Relevância do tema e contribuição à ciência bíblica

O método histórico-crítico, levado adiante nos últimos dois séculos, por diferentes escolas exegéticas, tem possibilitado um conhecimento, cada vez mais real, da gênese de um determinado texto, bem como o seu processo redacional quando somado aos demais livros que compõem a Bíblia. O uso do nome Bíblia faz jus a esta série de leituras e releituras. O avanço da ciência bíblica, somado às áreas da teologia, parece ter recuperado o pleno sentido santo da Escritura e das demais esferas da ciência teológica10.

Existe um considerável número de trabalhos no mundo da exegese moderna que acena, cada vez mais, para um constante diálogo com narrativas históricas ou jurídicas provenientes do universo mesopotâmico e egípcio. A comunidade religiosa israelita foi de, um modo direto, influenciada por pensadores, culturas e regimes que a circundavam. Tal influência foi determinante na redação dos textos bíblicos. O que pretendemos verificar é que, a partir de

9 “A Mishná cita, relativamente, poucos versículos bíblicos, e estes em partes foram acrescentados posteriormente. Inclusive uma prova do tipo bíblico (“como está escrito”) é rara. Em geral, a Mishná dá a impressão de um cuidado consciente em manter-se independente da Bíblia. Porém uma consideração mais atenta de alguns tratados deixa ver uma distinta relação com a Bíblia”. STRACK, H. L., e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y

midrásica,Valencia, Instituición S. Jerónimo para la Investigación Bíbica, 1998, p. 192.

10 O que outrora causou estranheza e mal-estar no seio da Igreja Católica é, hoje, visto com bons olhos. Recupera-se o sentido original do sensus bíblico no interior da comunidade de fé. Não é em vão que o Concílio Vaticano II foi, não um ponto de chegada, mas uma legítima base de lançamento para a ciência bíblica. Presenciamos nos últimos anos não uma revolução, mas uma volta às origens no estudo das Sagradas Escrituras. Cf. DV. n. 6.8.

(11)

normas jurídicas de relatos históricos e de convivência social, há séculos em voga no Oriente antigo, e expostas entre grandes impérios e inúmeras culturas que se sobrepuseram a Israel, é inconcebível não perceber a herança herdada destas experiências, mesmo aquelas de aparência contraditória como o imposto exílio babilônico, nos relatos bíblicos. De posse de um conjunto de textos considerados como ˝vontade divina, palavra inspirada pelo Criador˝, buscamos, na fase conclusiva, perceber como os sábios judeus, do final do primeiro século, leram tais normas jurídicas em defesa dos pobres.

As leis em defesa dos fracos, dos menos favorecidos, das vítimas do processo escravagista foram colocadas em prática ou foram manuseadas como mero discurso ideológico? As escolhas feitas pelas escolas de Hillel e Shammai são exemplares para compreender o grau da interpretação e praticidade dada à Escritura. Julgamos tal período essencial para compreender, não somente o judaísmo na época tanaítica, como também o cristianismo do primeiro século. Ciente do risco de ampliar demasiadamente o campo de pesquisa, não me debruçarei sobre o cristianismo do século I e II, porém, delinear o movimento dos sábios judeus deste período será uma relevante ajuda à ciência teológica, sobretudo, considerando que este é um dos temas inquietantes e desafiadores na exegese bíblica contemporânea. Afinal, a comunidade judaico-cristã, ao redor da pessoa de Jesus Cristo e a sua primeira geração de discípulos, inquieta, interessa e incomoda gerações de pesquisadores, que demonstram como a literatura bíblica foi construída paulatinamente ao longo de sua história.

Para os leitores creio necessária e inovadora abordagem inter-cultural e, ao mesmo tempo histórica, a fim de ajudá-los na compreensão, quer da história da comunidade, quer na formação do que hoje chamamos tranquilamente de Cânon. Coube a uma determinada comunidade religiosa encontrar soluções frente às vicissitudes históricas, nas quais o caminhar, nas ordens do Criador, foi sempre uma máxima, garantindo coesão e identidade à comunidade religiosa de Israel. Consideram-se, de modo fundamental, os inúmeros esforços realizados, desde a publicação do documento Nostra Aetate11, no diálogo entre a teologia e exegese cristã e a tradição judaica.

11 Após 40 anos da declaração Nostra Aetate há muito que se fazer para que desejos, muitos deles, suspirados nos bastidores ou penumbras da sociedade, nãos destruam o caminho percorrido.

(12)

A tese se desenvolve segundo a seguinte estrutura, exposta em duas partes, que se desdobram em mais subdivisões:

Introdução

1- O estado atual da pesquisa, considerando a trilogia social 2- Apresentação da perícopes do Dt relacionadas com a trilogia 3- Percepção da trilogia nos textos da Mishná

4- Relação entre os textos do Dt e sua ressonância na Mishná 5- Conclusão

Referências

Documentos relacionados

mos dar, com a luz, a este espaço ? Pelas questões acima, vemos que, qualquer que seja o sistema adotado, ele deverá sempre ser escolhido de uma forma intimamente ligada à função

cadastrais, especificamente seu correio eletrônico(e-mail), telefone e endereço, sob pena de serem considerados válidos os atos de comunicação procedidos para os dados

Art. 5º - Os animais a serem licitados estarão à disposição dos interessados para vistoria a partir do dia 19 de novembro de 2015 no RECINTO DE LEILÕES DO PARQUE DE EXPOSIÇÕES

Nilza Damia II TE YIN Handy de Raízes Diagrama da Várzea Favorita da Várzea Dahi FIV Caravana da Várzea Nyazza TE da Sabiá Diamba da Várzea Freda TE da Fort.VR Eldora da Várzea

O próprio Moisés disse: “Já houve um deus que tentou ir tomar para Si um povo do meio de outro povo, com provas, com sinais, com milagres, com lutas, com mão poderosa, com

O Equipamento Minibloqueio é um equipamento de controle de acesso tipo pedestal para controle de fluxo de usuários em ônibus (igual ou inferior a 2.000 ciclos*/dia), podendo

A partir de 2009, todas as entidades de previdência complementar ligadas ao Banco Itaú passarão a utilizar o Sistema Itaú Previtec para operacionalizar e administrar seus planos

mais desequilibradas; a domesticação mútua na interassistencialidade; a liderança cosmoética a partir da compreensão da ignorância humana quanto à evolução;