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Os filhos de desaparecidos políticos da ditadura civil-militar da Argentina e sua produção cinematográfica : um olhar geracional

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BRUNA BORGES DA SILVA

OS FILHOS DE DESAPARECIDOS POLÍTICOS DA DITADURA CIVIL-MILITAR DA ARGENTINA E SUA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA:

UM OLHAR GERACIONAL

CAMPINAS 2016

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 134602/2013-7 Ficha Catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria

Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Silva, Bruna Borges da, 1987-

Si38f Os filhos de desaparecidos políticos da ditadura civil-militar da Argentina e sua produção cinematográfica : um olhar geracional / Bruna Borges da Silva. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

Orientador: José Alves de Freitas Neto.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Cinema argentino. 2. Ditadura. 3. Memória. I. Freitas Neto, José Alves de,1971-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The cinematography produced by children of the political disappeared in the civil-military dictatorship in Argentina

Palavras-chave em inglês: Argentine cinema

Dictatorship Memory

Área de concentração: Política, Memória e Cidade Titulação: Mestra em História

Banca examinadora:

José Alves de Freitas Neto [Orientador] Iara Lis Schiavinatto

Mônica Brincalepe Campo Data de defesa: 28-03-2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 28 de março de 2016, considerou a candidata Bruna Borges da Silva aprovada.

Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto (orientador)

Profª. Dra. Iara Lis Schiavinatto

Profª. Dra. Mônica Brincalepe Campo

Profª. Dra. Caroline Silveira Bauer (suplente)

Profª. Dra. Silvana Barbosa Rubino (suplente)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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AGRADECIMENTOS

A máxima de que a pesquisa é, antes de tudo, um trabalho solitário tem lá sua parcela de verdade. Foram horas na mais absoluta solidão e silêncio para que as ideias pudessem circular livremente. Porém, muitas vezes o que realmente precisamos para que nossos pensamentos cresçam e se transformem são doses cavalares de conversas, amor, paciência e carinho. Ao longo desses anos pude desfrutar de tudo isso, tive o privilégio de contar com muitas pessoas queridas durante esta jornada que esteve longe de ser somente solitária.

Primeiro meus mais sinceros agradecimentos à minha família, sem ela absolutamente nada do que sou e fiz seria possível. Aos meus amorosos e dedicados pais, Carlos e Irene, que sempre apoiaram meus sonhos e aventuras não importando o quão grandes ou insanos fossem. Ao meu irmão, Junior, meu companheiro de sempre, meu primeiro grande amigo e dono de um coração gigante. Ao meu sobrinho e afilhado, Gustavo, que trouxe muito mais luz e amor para essa família. Muito obrigada, com vocês a vida torna-se mais doce e simples.

Um especial agradecimento àquele que acompanhou de perto cada etapa deste trabalho, mesmo estando tão longe. Steven, muito obrigada pelo apoio e incentivo incondicionais. Obrigada por ser meu companheiro e confidente, por fazer a minha vida mais interessante e feliz, obrigada por sempre me ensinar tanto. Que o amor, carinho, dedicação e cumplicidade possam sempre guiar nossas vidas.

Aos queridos amigos, obrigada pelo carinho, apoio e, principalmente, pela paciência que cada um de vocês me dedicou, não só durante nestes anos de mestrado, mas ao longo da minha vida. Aos meus companheiros de graduação agradeço por tudo que conheci, vivi e aprendi com cada um de vocês, a “07” estará pra sempre na minha história e em meu coração. À Giovanna, minha historiadora companheira de pós; à Ana Carolina, minha parceira historiadora de congresso e à Ligia, amiga historiadora que sempre me inspira e tanto me ensina, muito obrigada.

Às Tonon, amigas de longa data, que a vida felizmente insiste em manter por perto. Às Marias Bonitas, quero expressar minha imensa gratidão, obrigada por cada conversa, por cada conselho, celebração, discussão, choro, riso, sou infinitamente grata por tudo. Amigas que se tornaram minha segunda família, vocês são minhas queridas, aquelas que desejo carregar no coração e na alma sempre.

Minha gratidão ao meu orientador, Profº. José Alves, que muito me ensinou e com quem tanto aprendi. Obrigada pela confiança e generosidade que enriqueceram minha vida e expandiram meus horizontes. Agradeço por ter me mostrado que, de fato, a vida de

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me acolheu com tanto carinho e com o qual pude aprender tanto. Um agradecimento especial ao Marcos que é o historiador mais generoso que já conheci.

Gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão da bolsa de estudos, que viabilizou esta pesquisa. Obrigada ao Departamento de Pós-Graduação de História, aos professores e funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp que foram primordiais para a execução do trabalho. Meus especiais agradecimentos à Profª. Iara Lis Schiavinatto e à Profª. Mônica Campo.

Por fim, agradecer por todos os caminhos que trouxeram até aqui. Agradecer pela vida ter tomado o curso que tomou e por ter me presenteado com uma família linda, com amigos queridos e com muito amor.

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RESUMO

A pesquisa tem como proposta central abordar e analisar a cinematografia produzida e idealizada por filhos de desaparecidos políticos da última ditadura civil-militar da Argentina (1976-1983). Foram selecionados dois filmes (Los Rubios, 2003 e Infancia Clandestina – 2012) que abordam a temática ditatorial, a partir das memórias de seus diretores, ambos são considerados marcos culturais e políticos no país, pois surgem como rupturas dos discursos memorialístico e cinematográfico previamente estabelecidos. Buscou-se analisar não somente as singularidades de cada narrativa, mas também as conjunturas políticas e sociais que pautaram as produções, quais são as representações criadas nas narrativas e quais discussões memorialísticas que estão presentes nas obras. Partindo da perspectiva de que cada diretor constrói em sua obra o seu olhar geracional, estas produções possuem uma força simbólica e política dentro da Argentina, principalmente por serem idealizadas por integrantes de uma geração que já possui suas pautas consolidadas dentro dos debates sobre memória do passado recente do país.

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The central proposal of the research is to analyse the cinematography which was produced and created by the generation of children of the disappeared in the last civil-military dictatorship in Argentina (1976-1983). The movies selected (Los Rubios, 2003 and Infancia Clandestina - 2012) they are about the dictatorship consequences and about the memories of their directors. Each of these two movies are considered to be political and cultural milestones in the country. They break from the cinematic discourse previously established on the subject. It seeks to analyse not only the uniqueness of each narrative, but also the political and social situations that guided the productions. Due the generational perspective of each director builds on their movies these productions have a symbolic and political force in Argentina, mainly because they are planed by members of a generation that already has its consolidated guidelines inside the debates of memories and the recent past of the country.

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Sumário

Introdução ... 10

Capítulo 1 – O passado recente argentino, suas representações e as políticas públicas de Memória. ... 19

A Ditadura civil-militar Argentina e seus desdobramentos ... 19

Políticas Públicas de Memória ... 22

Os primeiros governos democráticos pós-ditadura: seus avanços e retrocessos ... 26

Os governos Kirchner e a estatização da memória ... 34

As relações entre História e Memória ... 44

As memórias e sua importância na construção da história recente argentina ... 48

Capítulo 2 – O Cinema e Argentina pós-ditadura ... 55

O Nuevo Cine Argentino ... 62

Filhos de Desaparecidos Políticos: um olhar geracional ... 69

A produção cinematográfica da geração de filhos de desaparecidos ... 72

Capítulo 3 – Cinematografia dos Filhos de Desaparecidos Políticos ... 80

Los Rubios – Albertina Carri (2003) ... 83

A diretora ... 84

Jogos de Espelhos – A “impossibilidade” de representação. ... 87

O Jogo de Sombras: o fio geracional ... 92

Infancia Clandestina – Benjamín Ávila (2012) ... 98

O diretor ... 100

Dois nomes e um cotidiano ... 102

Duas gerações e um olhar ... 106

Considerações Finais ... 113

Ficha Técnica dos filmes ... 117

Los Rubios ... 117

Infancia Clandestina... 118

(10)

INTRODUÇÃO

A história recente argentina é um constante campo de disputa. A ditadura civil-militar deixou marcas traumáticas que transformaram aquela sociedade de uma maneira irreversível. Os sete anos de regime ditatorial foram mantidos perante uma série de crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado, foi criado um aparato repressivo que gerou o alarmante número de 30 mil desaparecidos, segundo a CONADEP e aproximadamente 500 bebês apropriados ilegalmente, segundo a organização de direitos humanos Abuelas de Plaza de Mayo. As sequelas dessa política trágica marcou a sociedade argentina e desde a redemocratização tornou-se pauta quase que cotidiana no país.

A partir dos anos de 1980 várias iniciativas estatais e sociais começaram a emergir na Argentina. Foi a partir desta década que as organizações de direitos humanos começaram a ganhar cada vez mais visibilidade nas lutas por justiça, memória e reparação. Desde a volta à democracia esta sociedade presencia avanços e retrocessos nas leis de reparação e nas lutas pelos direitos humanos, logo no governo de Alfonsín o país assistiu alguns avanços como a criação da CONADEP (Comissión Nacional sobre la Desaparición de Personas) que tinha como objetivo investigar os casos de desaparecimentos durante a ditadura. Além da comissão, logo nos primeiros anos do governo Alfonsín decretou o julgamento das Juntas Militares. Estes podem ser apresentados como os principais avanços da volta à democracia, porém no mesmo governo de Alfonsín o país viu serem decretadas leis que estabeleciam um retrocesso diante das conquistas alcançadas, como a Ley Punto Final – que extinguia as ações penais que ainda não haviam sido julgadas – e a Ley de Obediencia Debida – que inocentava os oficiais de baixo escalão, alegando que estes apenas cumpriam ordens de seus superiores.

Assim como as leis e pautas reparatórias, as artes contribuíram de forma pontual na luta e discussão sobre as temáticas ditatoriais. A produção cultural apresenta-se como um dos principais meios de difusão e criação de imagens sobre as sequelas geradas pela ditadura no país. Na sociedade argentina assistiu-se um crescente número de produções literárias e cinematográficas dedicadas à temática ditatorial, essa produção cultural tem um papel de extrema importância na criação de imagens e de um imaginário sobre esse passado recente.A produção cinematográfica dedicada ao período

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ditatorial logo teve seu reconhecimento com o lançamento de La Historia Oficial, em 1985. O longa-metragem logo tornou-se um sucesso de crítica e público, ganhando vários festivais, inclusive o Oscar de melhor filme estrangeiro no de 1986. O filme está fortemente vinculado ao momento em que foi produzido e contribuiu para criar uma imagem dos fatos traumáticos e violentos, a narrativa de La Historia Oficial de Luis Puñezo, segundo Gonzalo Aguilar não poderia ter sido construída sem os testemunhos da CONADEP1, e o sucesso do filme contribuiu para consolidar uma série de representações que ainda permanecem naquela sociedade.

La Historia Oficial ajudou a solidificar a imagem de uma sociedade vitimizada e incapacitada de revidar aos desmandos dos militares. Outras obras como La Noche de los Lápices (1986), contribuíram para criar a imagem de desaparecidos políticos privados de uma real dimensão sobre sua militância. Com o passar dos anos, uma série de novas representações criaram novas imagens e memórias em relação ao passado ditatorial argentino como, por exemplo, as obras idealizadas por filhos de desaparecidos, que buscam novas abordagens e perspectivas sobre esse passado e sobre quem o narra. Dentro desta nova forma de representação do passado recente, a geração de filhos de desaparecidos políticos tem um papel primordial, as representações dos traumas gerados pela ditadura modificou-se de forma contundente ao longo dos anos, motivada pelas questões políticas e socais que o país atravessou, pelas mudanças nas diretrizes cinematográficas e das formas de fomento além da ascensão política da geração dos filhos desaparecidos.

Não se pode deixar de salientar a carga política e simbólica que há na figura do filho de desaparecido. Em meados da década de 1990 a geração começa a construir uma trajetória a qual será vinculada à militância política, surgem, então, novas representações sobre esta “nova” categoria que passa a frequentar as pautas das lutas por justiça, verdade e reparação. A trajetória dessa geração sempre esteve marcada pelo estigma da militância, fosse a militância deles próprios ou de seus pais. Como salienta Beatriz Sarlo2, muitos desses filhos se reconhecem como herdeiros legítimos da militância de seus pais, e não haveria maneira melhor de honrar a memória deles se não pela militância.

1

AGUILAR, Gonzalo. Infancia Clandestina ou a vontade da fé. ALEA, Rio de Janeiro, vol. 17/2, p.246- 263. Julho-Dezembro 2015. P.249.

2

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. P. 108.

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Quando essa geração passa a mobilizar-se politicamente elege o cinema como um dos principais espaços de posicionamentos e disputas sobre o passado recente argentino e sobre seu próprio passado. Porém esse não foi o único campo de atuação e militância dessa geração, estes jovens uniram-se em agrupações cujas pautas eram direcionadas as suas reivindicações como, por exemplo, a organização de direitos humanos H.I.J.O.S., outros encontraram na carreira política seu espaço, como, por exemplo, de Juan Cabandié3, deputado da cidade de Buenos Aires. Aqui vale uma ressalva não há um consenso em torno das demandas, seja no interior do próprio movimento de direitos humanos seja na sociedade em geral, a geração de filhos também não possui um consenso sobre suas pautas e reivindicações, e a escolha do corpus documental dessa pesquisa enfatiza essa afirmação.

O cinema contribuiu para consolidar imagens e memórias de um passado traumático, é importante compreender os momentos posteriores a esta produção para ter uma melhor visão sobre o que este cinema representa, constrói e reconstrói. A geração de filhos de desaparecidos tem uma imagem e discurso sendo constantemente construídos, ao que interessa a essa pesquisa, o cinema contribuiu e continua contribuindo com a construção da imagem dessa geração e principalmente da memória dessa geração. Por geração entende-se o conceito de descendentes diretos de desaparecidos e não no sentido costumeiro de se pensar um grupo ou período que expressa uma mesma concepção política, cultural ou social. A vivência de um processo histórico traumático, as questões pessoais e os modos como filhos de desaparecidos atuaram no campo da produção audiovisual devem ser analisados como elaborações independentes e, nesse formato, escapa à ideia de “geração” como movimento. A produção cinematográfica e suas narrativas estão condicionadas ao momento que estas obras são idealizadas e produzidas, sendo assim, é impossível desvencilhar a obra de seu contexto. Por isso a importância de atenta-se ao momento que cada filme foi produzido, pois a partir deste ponto observa-se as demandas e pautas que vigoravam na sociedade que são apoiadas ou criticadas por seus produtores.

A partir da produção cinematográfica idealizada por filhos de desaparecidos políticos é possível observar o tipo de produção memorialística que esta geração executa, além de ser possível investigar quais são as demandas e as políticas sociais de cada um dos momentos de produção. É importante sinalizar que não se trata de uma 3

Juan Cabandié, neto restituído em 2003, tornou-se ativista de direitos humanos e elegeu-se deputado da cidade de Buenos Aires pela “Frente para la victoria” liderada por Néstor Kirchner.

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produção homogênea, que os filmes não estão, necessariamente, ancorados e em sintonia com as pautas dos organismos de direitos humanos assim como algumas obras não compõem o tipo de estrutura narrativa que certas instâncias reivindicam.

Los Rubios (2003) foi produzido durante um período de forte instabilidade política e econômica, a Argentina enfrentava um esvaziamento das discussões sobre as sequelas da ditadura, motivada pelos retrocessos nas leis de reparação. Ao mesmo tempo que a cinematografia do país passava por uma modificação que resultou na retomada da produção nacional com o surgimento de novos idealizadores e realizadores. Los Rubios expõe a insatisfação da diretora (Albertina Carri) com a leitura e representação cinematográfica feita até aquele momento sobre as sequelas ditatoriais.

Na mesma direção alinha-se Infancia Clandestina (2012), que fornece muitos indícios do momento em que foi produzido. É considerado por alguns críticos um filme “kirchnerista”,4 pois reverbera uma série de questionamentos e demandas que protagonizaram as discussões sobre as políticas públicas de memória na Argentina. A narrativa construída por Benjamín Ávila evidencia a tríade da militância que protagoniza as lutas por justiça, memória e reparação, as avós, os militantes dos anos de 1970 e os filhos de desaparecidos. Durante os governos dos Kirchner, estes foram os grupos sociais que tiveram suas vozes evidenciadas pelo Estado e que protagonizaram as pautas de justiça, memória e reparação.

O que se deve ter em mente é que as obras cinematográficas são, antes de tudo, fruto do momento em que são pensadas e executadas. Filmes como Los Rubios e

Infancia Clandestina revelam, além das posturas e posicionamentos de seus produtos, questões que estão em discussão naquele momento. A necessidade de inserção das obras fílmicas em seu contexto social de produção, excepcionalidade do cinema como fonte é que através da análise fílmica é possível investigar enunciados construídos e solidificados social e culturalmente.

A partir da década de 1970, o cinema foi elevado à categoria de “novo-objeto” de estudo e Marc Ferro foi um dos responsáveis por elevá-lo a tal categoria. Para Ferro o cinema é um testemunho singular de seu tempo que articula significados que não são somente cinematográficos tendo também a capacidade de alcançar vários setores

Depois do historiador, Marc Ferro, vários outros estudiosos passaram a

4

QUINTIN. (2012) “Llega el cine Kirchnerista” Perfil.com

http://www.perfil.com/ediciones/columnistas/-20129-715-0064.html (acessadoem 22/01/2016).

5

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992. P.87. sociais5.

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dedicar-se as possibilidades interpretar o cinema como um documento, um vestígio e fruto do período em que foi produzido. O cinema é uma fonte documental que apresenta possibilidades e indícios de interpretação da sociedade que o produz. No caso argentino, por exemplo, a produção cinematográfica sobre a ditadura civil-militar está em constante diálogo com o momento em que foi produzida, desde as primeiras representações cinematográficas sobre a ditadura pode-se observar quais eram as politicas públicas de memória vigente, quais eram as vozes que protagonizavam as lutas por justiça e reparação.

Pierre Sorlin6 salienta que há uma relação estreita entre cinema e sociedade e que os filmes podem revelar um juízo de valores sobre o fato/período que buscam representar. E neste sentido, o filme também pode influenciar a maneira como é feita a leitura histórica de dado período ou fato, os espectadores acabam tomando como

“verdade” aquela representação construída pelo cinema, neste sentido os filmes históricos tornaram-se uma seara importante e palco de disputas dos discursos históricos. Ao voltar o olhar para a produção fílmica dos filhos de desaparecidos na Argentina, além de construírem uma narrativa pautada numa temática que é cara àquela sociedade, eles também desfrutam do poder de narrar uma história pela qual eles vivenciaram na pele. Seus filmes têm um poder retórico muito grande, não só por construírem uma imagem de um período carregado de significados para a história política e social argentina, mas também por carregar posicionamentos de um ator político muito importante, dentro daquela sociedade, os filhos de desaparecidos.

Portanto não se pode deixar de salientar a força política e histórica que a produção cinematográfica dos filhos de desaparecidos políticos possui dentro da lógica memorialística da Argentina. Assim como existem disputas sobre qual posição política prevalecerá no discurso histórico há também disputas no campo cinematográfico, pois esta produção está associada ao momento em que foi produzida e os posicionamentos de seus produtores estão presentes na narrativa. Por isso o corpus documental desta pesquisa oferece uma amplitude de abordagens em vários aspectos, ao que se refere à trajetória e posicionamentos de seus realizadores, à repercussão de público e crítica, às escolhas narrativas, ao posicionamento sobre as memórias individuais e coletivas, às escolhas dos pais pela militância, entre outras.

6

SORLIN, Pierre. Sociologia del Cine: la apertura para la historia de mañana. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1985. P.98.

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***

A pesquisa esta dividida em três capítulos que buscam elucidar, primeiramente, a importância da construção de uma memória sobre a ditadura na sociedade – o dever de memória – quais as disputas políticas que envolvem a produção memorialística na Argentina e quais são os grupos que, ao longo dos anos ganharam mais legitimidade na construção das memórias, e, consequentemente, tiveram seus testemunhos privilegiados em relação aos outros. Salientando o importante papel desempenhado pelos governos democráticos para a criação de imagens e memórias sobre o passado recente argentino.

O primeiro capítulo contextualiza os anos da ditadura civil-militar argentina e depois desenvolve quais as principais políticas públicas dos governos democráticos para a consolidação de uma “memória oficial” sobre os anos ditatoriais. Ao buscar construir esta análise observou-se a importância dos organismos de direitos humanos que foram convertidos em protagonistas da produção memorialística argentina, principalmente pelos governos posteriores aos anos 2000.

O segundo capítulo é dedicado às relações entre História e Cinema, entre Cinema e Sociedade, a trajetória do Nuevo Cine Argentino e por fim à participação política, social e cultural da geração de filhos de desaparecidos políticos da última ditadura civil-militar argentina. Após reconhecer a importância das memórias dentro da sociedade argentina, parte-se para a tentativa de compreender o lugar de destaque que o cinema alcançou na Argentina a partir dos anos 2000, buscando refletir sobre qual o papel do cinema na construção de imagens e memórias sobre o passado recente e consequentemente quais são as disputas memorialísticas em torno da produção cinematográfica.

Ao longo do capítulo alguns filmes argentinos sobre a temática ditatorial são apresentados, estas breves análises visam fornecer uma maior apreensão sobre a trajetória do cinema argentino dedicado ao tema para que assim se observe as mudanças nas formas de representação, das narrativas, posicionamentos, interpretações e leituras sobre o passado recente. Para que se possa compreender como as obras dos filhos de desaparecidos surgem no cenário cultural e político argentino como uma ruptura não só nos padrões narrativos e linguísticos, mas, principalmente, nas questões de representações e posicionamentos políticos sobre as construções de memórias do passado recente argentino.

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O terceiro capítulo é dedicado aos filmes que compõem o corpus documental da pesquisa. Nele as obras são analisadas buscando compreender quais são as características presentes nestas obras que revelam o olhar geracional sobre as questões das memórias do passado recente argentino. As duas obras, cada uma a sua maneira, apresentam reverberações, inovações e rupturas com as formas como as sequelas deste passado costumava ser representado. Buscando reconhecer a importância do cinema produzido por essa geração que apresenta novas perspectivas e narrativas, muitas vezes polêmicas, além de confrontar o discurso que foi construído ao longo dos anos, desde a redemocratização. Como afirma Mônica Campo, a atual narrativa cinematográfica problematiza saberes e propõe ela mesma enfrentar o trato com o legado histórico que sentem e carregam em suas experiências de vida como memórias.7

Los Rubios é um filme documental produzido e dirigido por Albertina Carri, foi lançado no ano de 2003 na Argentina e converteu-se em um sucesso de crítica e público. A narrativa está centrada na vida de Albertina, que teve seus pais sequestrados e desaparecidos durante a ditadura civil-militar argentina, e como a diretora busca lidar com a ausência gerada pelo desaparecimento dos pais. A breve descrição pode sugerir que Los Rubios é mais um dos filmes que abordam as sequelas do regime militar argentino, porém a diretora, filha de desaparecidos, constrói uma narrativa fragmenta e controversa a partir de sua própria história inserindo elementos ficcionais (animações e uso de uma atriz para interpretar Albertina), faz uso constante de metalinguagem (em vários momentos observa-se o filme dentro do filme). Estes recursos utilizados pela diretora podem ser interpretados como uma tentativa de impedir que os espectadores tenham a sensação de que é possível conhecer os pais de Albertina, que é possível suprir as ausências da diretora com testemunhos, relatos e um filme.

O ponto mais controverso do filme está na maneira como Albertina relata a geração de seus pais e, também, como constrói as figuras dos pais ao longo da narrativa. A questão geracional está presente nas obras que compõem o corpus documental da pesquisa, porém em Los Rubios há uma tensão clara entre gerações e é enfatizada na cena em há a leitura de um fax do INCAA no qual o instituto nega o financiamento do filme, alegando falta de rigor documental, sugerindo que se faça um uso maior dos

7

CAMPO. Monica. O nuevo cine argentino e as representações sobre o regime militar: a memória (re)significada e a construção de Los Rubios, de Albertina Carri. Anais do XXI Encontro Estadual de História – ANPUH-SP. Campinas, setembro 2012.

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testemunhos dos companheiros de militância de seus pais, ou seja, essa cena salienta uma ruptura com a forma de narrar e produzir obras dedicadas à temática ditatorial.

Já Infancia Clandestina é lançado na Argentina em 2012, nove anos depois da estreia de Los Rubios e é recebido com grande entusiasmo, assim como ocorreu com o filme de Albertina. Infancia Clandestina também é um relato baseado na vida de seu diretor, Benjamín Ávila, filho de desaparecida política e irmão de um bebê sequestrado pelo Estado durante a ditadura. Conta a história de Juan, garoto de doze anos que volta do exílio e passa a viver na clandestinidade junto com seus pais, militantes montoneros. Benjamín constrói uma narrativa envolvente que é apresentada através do olhar de Juan, que passa a ser Ernesto, que acompanha a rotina de militância dos pais, que vai para a escola, que se apaixona e que vive momentos familiares. A representação dos militantes dos anos de 1970 ainda reverbera algumas máximas da representação dos militantes daquela geração, porém são personagens apresentados com uma dimensão mais humana e a militância exposta no filme não está ligada à morte e sim à vida.

Os pontos de convergência e divergência das obras são apontados nos âmbitos mais representacionais do que estéticos. Los Rubios e Infancia Clandestina são esteticamente filmes diferentes enquanto o primeiro é uma obra de gênero documental e uma produção mais experimental, o segundo é ficcional com características narrativas mais tradicionais, isto já os colocam em perspectivas cinematográficas e estéticas distintas, cada um percorreu circuitos diferentes, ambos são considerados grandes sucessos de crítica e, no caso de Infancia Clandestina, foi um êxito de bilheteria e grande repercussão internacional. Dentro de um universo amplo de produções cinematográficas dedicadas à temática ditatorial, a escolha por estas duas obras deu-se pelo fato de que apresentando perspectivas e propostas cinematográficas diferentes a distinção de gênero não é ponto crucial na análise, o que interessa nesta pesquisa é a perspectiva da narrativa, as representações construídas dentro destas obras e, consequentemente, as produções e reproduções memorialistas presentes nos filmes.

Por fim a pesquisa tem como proposta central abordar a visão geracional dos filhos de desaparecidos sobre as memórias produzidas a partir dos traumas gerados pela ditadura civil-militar. Esta ótica geracional será abordada através da produção cinematográfica de dois diretores, filhos de desaparecidos políticos, que produziram obras que tornaram-se marcos cinematográficos na Argentina. Dentro destas produções é possível reconhecer o olhar geracional dos hijos/as quais são suas reivindicações e posições diante das questões ditatoriais. Tanto Los Rubios quanto Infancia Clandestina

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são filmes que circularam no país e contribuíram para compor um imaginário sobre as sequelas do passado recente do país, podem ser lidos como importantes ferramentas para a construção de um imaginário social sobre a ditadura civil-militar argentina.

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Capítulo 1 – O passado recente argentino, suas representações e as políticas públicas de Memória.

A Ditadura civil-militar Argentina e seus desdobramentos

A ditadura civil-militar8 que a Argentina vivenciou durante os anos de 1976 e 1983 gerou traumas na sociedade que ainda são visíveis e seus desdobramentos são constantemente revisitados. As mortes, os desaparecimentos, sequestros, as ausências são algumas das mais perversas heranças deixadas por aquele período. Na madrugada de 24 de março de 1976, a Junta Militar tomou o poder na Argentina, formada por comandantes das três armadas – Jorge Rafael Videla (1925-2013), general do Exército; Orlando Agosti (1924-1997), almirante da Força Aérea e Eduardo Massera (1925-2010), brigadeiro da Marinha.

Desde os anos de 1960 os países do Cone Sul enfrentavam um avanço da militarização em seus governos, países vizinhos à Argentina, como o Brasil, já viviam em ditaduras civil-militares que tinham como principal objetivo “defender” a soberania do Estado frente à ameaça comunista que, segundo os golpistas, rondava estes países. Esta lógica foi usada como justificativa para a maioria dos golpes que os países da América do Sul enfrentaram a partir da década de 1960. Inseridos na lógica da então Guerra Fria, as Forças Armadas desses países colocavam-se como a salvação frente à ameaça comunista. Além dessa justificativa, muitas vezes infundada, de ameaça de um golpe de esquerda, esses países enfrentavam alguns distúrbios políticos, sociais e econômicos. Sendo assim, a crise enfrentada juntamente com o discurso do “perigo vermelho” abriram caminhos para que as Forças Armadas tomassem, arbitrariamente, o poder.

8

Logo após as quedas das ditaduras que assolaram os países do Cone Sul, foram criadas nestas sociedades imagens e memórias sobre estas experiências traumáticas. Primeiramente, criou-se a visão de sociedades vitimizadas que sofreram com o autoritarismo da vontade de poucos, geralmente algozes (militares). Porém, com o passar dos anos vários estudos – muitos deles motivados pela liberação de documentação sobre a ditadura – apontam evidências de que esses regimes contaram com o apoio de grupos empresariais, da Igreja, de parte da mídia e da sociedade. Na Argentina, criou-se a imagem de que as práticas criminosas cometidas pelo Estado contra os cidadãos acontecerem sem que a sociedade soubesse ou pudesse revidar; mascarando as evidências da participação de diversos setores sociais argentinos no apoio e consolidação de regime ditatorial, restringindo a responsabilidade da ditadura somente aos militares, escondendo a participação da sociedade. O termo civil-militar abrange a responsabilidade coletiva, sem ignorar a responsabilidade dos militares. Ao longo do trabalho será utilizada a terminologia “civil-militar” em referência a experiência vivida pela Argentina durante os anos de 1976-1983 mesmo com o fato de que a produção acadêmica do país ainda não adotar o termo “civil”, mesmo que algumas produções já evidenciem a participação de setores sociais no golpe e na luta contra os opositores do regime.

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Logo nas primeiras horas após o golpe, a Junta Militar tomou os prédios do governo e o Congresso Nacional, pouco tempo depois os militares se apropriaram das estações de rádio e televisão de Buenos Aires e das principais cidades do interior. Em seguida, através dos meios de comunicação de massa, o país foi informado que: “uma Junta de Comandantes das três armas havia decidido pôr fim ao agonizante exercício das atividades civis e assumia o poder político em nome do autodenominado Processo de Reorganização Nacional”9

As ações arbitrárias dos militares foram sentidas logo nas primeiras horas que sucederam ao golpe, Maria Estela Martinez de Perón, então presidente da República Argentina, foi presa junto com seus ministros e outras figuras importantes do peronismo. Centenas de líderes sindicais, militantes peronistas e de esquerda, jornalistas e intelectuais considerados suspeitos também foram detidos ilegalmente e muitos deles passaram a fazer parte das listas de desaparecidos políticos.10 Apesar dessas ações e detenções arbitrárias, o golpe foi interpretado, por grande parte da sociedade, como a melhor alternativa para solucionar a crescente violência, a hiperinflação, a ameaça comunista e outras questões que a Argentina enfrentava naquele momento, ou seja, a conjuntura que gerou o golpe11 - crise política, social e econômica - mostrou-se extremamente favorável aos setores militares e civis que acreditavam que a situação que o país enfrentava só poderia ser solucionada com respostas e ações drásticas.

O regime instaurando logo após o golpe, segundo Emilio Crenzel, instituiu uma forma inédita de crime político, o desaparecimento forçado e clandestino.12 A prática de desaparecimento consistia no sequestro das vítimas e seu encaminhamento para cativeiros ilegais, os Centros Clandestinos de Detenção (CCD) que, na maioria das vezes, estavam localizados nas dependências militares ou policiais. Nestes espaços as vítimas eram torturadas e, em sua maioria, assassinadas, estima-se que existiram mais

9

NOVARRO, Marcos; PALERMO, Vicente. A Ditadura Militar Argentina 1976-1983: Do Golpe de

Estado à Restauração Democrática. Tradução Alexandra de Mello e Silva – São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 2007. p 26.

10

Idem, p 28.

11

Desde o início dos anos de 1970, a Argentina enfrentava um cenário de radicalização política. O governo peronista de Maria Estela Martinez de Perón enfrentou vários conflitos internos e externos, a hiperinflação, a ascensão de grupos paramilitares e um severo aumento na violência. Apoiados por esse caos instalado na sociedade e do medo da população, a Junta Militar encontrou os argumentos necessários para dar um golpe de Estado com relativo apoio nacional.

12

CRENZEL, Emilio. La investigación sobre la desaparición de personas em la Argentina. Avances y

desafios em la construcción de la verdade. In: Violência na história: Memória, trauma e reparação /

(21)

de 300 CCD, sendo que parte deles eram centros temporários; os principais CCD13 foram: ESMA, Club Atletico, El Olimpo - os três na cidade de Buenos Aires; El Campito e Vesubio - na região da Grande Buenos Aires - e La Perla (em Córdoba). A maioria das vítimas que passaram por esses campos foram torturadas e assassinadas e seus corpos foram enterrados em valas comuns, incinerados ou arremessados ao mar, nos chamados Vuelos de la Muerte14. As torturas físicas e psicológicas, os fuzilamentos, os partos de presas políticas e os subsequentes sequestros de crianças, foram práticas comuns nestes e em vários outros CCD.

Os dois primeiros anos do chamado Proceso foram os mais violentos, até meados de 1978, segundo Novaro e Palermo, a maior parte do trabalho já havia sido feito.15 As organizações guerrilheiras, os partidos e agrupações de esquerda, as comissões sindicais e grupos estudantis tinham sido dizimados. Durante os dois primeiros anos do regime que a Argentina perdeu uma geração praticamente inteira, pois aqueles que não concordavam com o regime já estavam desaparecidos ou mortos e os sobreviventes deixaram o país por medo ou forçadamente.

A ditadura argentina ampliou os problemas militares e econômicos do país, nos dois primeiros anos colocou quase a totalidade das Forças Armadas nas ruas para perseguir e dizimar a guerrilha; no ano de 1978 quase iniciou uma guerra com o Chile – conflito esse que foi impedido graças à intervenção do Papa João Paulo II; e em abril de 1982, sob as ordens do então ditador Leopoldo Galtieri (1926-2003), o Exército argentino invadiu as Ilhas Malvinas, está foi uma tentativa frustrada de buscar recuperar o prestígio do governo frente à população argentina. Essa investida militar foi um fracasso sem precedentes e o Exército argentino redeu-se às tropas britânicas em junho

13

A maioria desses Centros Clandestinos de Detenção tornaram-se museus e/ou espaços de Memória e Direitos Humanos; como é o caso do antigo centro ESMA, Club Atletico, El Olimpo e La Perla.

14Os chamados “voos da morte” foram uma das várias maneiras que o regime civil-militar encontrou para

eliminar seus opositores. As vítimas muitas vezes eram mantidas nos Centros Clandestinos de Detenção e após sofrerem inúmeras torturas eram encaminhadas a aviões da Força Aérea Argentina e arremessadas, ainda com vida, no Mar del Plata. Logo com após o fim da ditadura civil-militar, chegou a imaginar que essa prática fora algo circunstancial, porém com os testemunhos e denúncias de alguns ex-presos políticas ao Juicios a la Juntas, a posterior ratificação do crime por parte dos militares Adolfo Scilingo e Julio Poch, comprovam que foi uma prática sistémica do regime que buscava não somente matar a vítima como também desaparecer com seu corpo, podendo ser chamada de “morte argentina”.

15

NOVARRO, Marcos; PALERMO, Vicente. A Ditadura Militar Argentina 1976-1983: Do Golpe de

Estado à Restauração Democrática. Tradução Alexandra de Mello e Silva – São Paulo: Editora da

(22)

do mesmo ano16. Este último conflito bélico derrocou-se com o final da ditadura civil-militar argentina.

A derrota militar na Guerra das Malvinas, os desaparecimentos, as violações dos direitos humanos, a intensificação dos problemas políticos e militares, o caos financeiro de 1981 agravaram a crise do chamado Proceso e foram diminuindo as intenções dos militares de manterem-se no poder político da Argentina. Aos poucos a população passou a desaprovar as condutas militares e a popularidade dos mesmos caiu drasticamente. Organizações de direitos humanos como Madres e Abuelas de Plaza de Mayo já ganhavam visibilidade e apoio tanto em âmbito nacional quanto internacional, a então conivência de certos setores da sociedade parecia chegar ao fim, o esforço pela desinformação, censura, apoio forçado ou voluntário da imprensa à ditadura já não exercia a mesma força de outrora.

Em 1983 a Argentina elegia democraticamente seu primeiro presidente após o final da ditadura, a chegada de Raúl Alfonsín à presidência da República Argentina foi apenas o primeiro passo rumo ao reestabelecimento da democracia e do Estado de Direito. O país enfrentara uma das mais sangrentas ditaduras da história da América Latina e enfrentaria uma série de lutas dolorosas para reconstruir-se e acertar as contas com seu passado recente.

Políticas Públicas de Memória

No dia 05 de agosto de 2014 a imprensa argentina e mundial trazia mais uma vez à tona as marcas da última ditadura civil-militar que assolou a Argentina; neste dia a mídia narrava, em diversas línguas a história de Guido Carlotto, o 114º neto que descobriu sua verdadeira identidade com a ajuda da organização de direitos humanos Abuelas de Plaza de Mayo. Ignácio Hurban demorou 36 anos para descobrir que sua real identidade era Guido Montoya Carlotto – filho de Laura Estela Carlotto e Walmir Oscar Montoya, neto de Estela Carlotto, presidente da organização.

Laura Estela Carlotto nasceu em 21 de fevereiro de 1955 na cidade de La Plata, militou na organização político-militar argentina Montoneros e em 26 de novembro de

16

Segundo o historiador Luis Alberto Romero a Guerra das Malvinas converteu-se em um dos maiores fracassos militares do Exercito argentino, em apenas 74 dias de conflito bélico o soldo foi de mais de 700 mortos ou desaparecidos e quase 1300 feridos. ROMERO, Luis Alberto. História Contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p 221.

(23)

1977, aos 22 anos de idade, foi sequestrada em sua casa na cidade de Buenos Aires. Laura estava grávida de dois meses e meio do também integrante da organização, Walmir Oscar Montoya, nascido em 14 de fevereiro de 1952 em Comodoro Rivadavia. Walmir foi sequestrado no final de novembro de 1977 e há evidências de que tenha permanecido no CCD “La Cacha”. Em maio de 2009, a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) identificou seus restos mortais. Através de relatos e testemunhos de sobreviventes, presume-se que Laura também esteve presa em “La Cacha” e que em 26 de junho de 1978 nasceu Guido que foi sequestrado – acredita-se que apenas dois dias após seu nascimento. Em 25 de agosto daquele ano Laura foi assassinada e seus restos mortais foram identificados em 1985 também pela EAAF17.

Os sequestros de militantes oposicionistas do regime civil-militar argentino foi uma prática comum da estratégia de terrorismo de Estado implantado pela ditadura, assim como a apropriação ilegal de bebês – filhos de pais considerados “subversivos” – nascidos em hospitais militares ou nos CCD. Esta breve e trágica história, acima narrada, infelizmente pode ser contada aproximadamente 500 vezes mais, visto que a estimativa de bebês nascidos em cativeiro e sequestrados logo após seus nascimentos e crianças sequestradas junto com seus pais e posteriormente adotadas ilegalmente por outras famílias chega ao número de 500 casos.

Histórias como a de Guido Carlotto têm notoriedade na sociedade argentina, assim como outros temas que tocam nas sequelas do passado recente traumático. As razões podem ser as mais variadas possíveis, primeiro por tocar em temas que geram comoção na Argentina e ao redor do mundo por seus traços dramáticos e depois por ser um tema que faz parte do cotidiano argentino desde a democratização. A relação que a sociedade argentina estabeleceu com seu passado recente revela a maneira como as políticas públicas de memória e reparação e a constante luta por Justiça foram e continuam sendo importantes para que a ruptura com o passado recente seja devidamente concretizada. A intensa participação das organizações de direitos humanos como Madres e Abuelas de Plaza de Mayo; de organizações que surgiram posteriormente à redemocratização como Memoria Abierta, a criação da CONADEP e as organizações criadas por filhos de desaparecidos como, por exemplo, H.I.J.O.S.

17

Me parece maravilloso y mágico todo esto que está pasando. Jornal Abuelas de Plaza de Mayo. n.133; a. 2014. p.4 Disponível em: http://www.abuelas.org.ar/mensuario/Diario133.pdf Acessado em 27/03/2015.

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contribuíram para a aproximação e identificação de grande parte da sociedade argentina com as pautas de luta por justiça, reparação e memória.

As políticas de memória e reparação criadas pelos governos democráticos pós-ditatoriais são indispensáveis para analisar as relações que a sociedade argentina tem com seu passado recente, porém é importante salientar que além do papel singular desses governos, as artes também exercem um papel primordial para as discussões sobre justiça, memória e reparação. O cinema dedicado à temática ditatorial contribuiu significativamente para uma ampliação das discussões sobre esse passado. Com volta à democracia, muitas obras cinematográficas foram produzidas e vastamente discutidas pela sociedade como, por exemplo, o filme La Historia Oficial, que pode ser considerado o primeiro grande sucesso cinematográfico pós-ditadura dedicado ao tema.

Como afirma Caroline Bauer, as políticas de memória das administrações democráticas contribuíram para a existência de movimentos sociais ligados aos direitos humanos, além da demanda sobre as questões do passado ditatorial esse debate na Argentina é um debate cotidiano18 e isso diferencia essa sociedade de outras do Cone Sul que também enfrentaram regimes ditatoriais que implantaram o terrorismo de Estado19 como, por exemplo, o Brasil, em que o debate sobre o passado recente ditatorial não é um debate cotidiano.

Passados quase 40 anos do golpe de Estado de 1976, as memórias construídas sobre esse passado convivem e ocupam um lugar de destaque na sociedade argentina, o contato que a sociedade possui com a temática ditatorial é cotidiano e isso pode ser justificado por uma série de iniciativas do Estado e da sociedade civil. As iniciativas estatais em buscar reparar os crimes cometidos no passado com a criação de leis, espaços físicos dedicados aos desaparecidos e vítimas, o incentivo a produções cinematográficas e televisivas sobre o passado recente, os julgamentos dos militares e colaboradores do terrorismo de Estado, a ascensão política da geração de filhos de

18

BAUER, Caroline S. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. 2ª Edição. Porto Alegre: Medianiz, 2014. p 234.

19

Há um grande debate historiográfico em torno do Terrorismo de Estado implementado nos países do Cone Sul durante das ditaduras civil-militares vividas por estes países após a década de 1960. Neste trabalho, o termo “terrorismo de Estado” é utilizado para designar o uso sistemático, por parte do Estado, de mecanismos ilegais (até mesmo dentro da legislação vigente durante essas ditaduras, as práticas utilizadas pelo Estado era ilegais) para impor sua política e obter a colaboração da população para a consolidação do regime ditatorial. O Terrorismo de Estado que vigorou na Argentina, empregou o terror como arma de dissuasão e eliminação de focos de oposição, teve como estratégia incitar o medo e o terror na sociedade civil.

(25)

desaparecidos políticos, as restituições das identidades de crianças sequestradas e apropriadas ilegalmente entre muitas outras. São apenas alguns dos pontos que contribuem para a compreensão do porquê a temática do passado recente é tão representativa na Argentina.20

O Estado e a mídia argentinos têm um papel importante para a construção e consolidação das memórias sobre a ditadura. Primeiramente, as iniciativas estatais, motivadas pela pressão da sociedade21, com a criação de diversas leis de reparação possibilitaram uma ruptura com o passado recente; o incentivo estatal à produção cultural sobre a temática – como, por exemplo, os incentivos fiscais para produções cinematográficas que tocam em questões importantes como justiça, memória e reparação; o espaço que o canal aberto estatal dá para discutir temas do passado recente; a constante produção de materiais didáticos e informativos direcionados às escolas com a proposta de discutir as questões desse passado recente com as gerações mais jovens.

E depois, mas não menos importante, o espaço que a mídia argentina e internacional concede à temática. Isso pode ser observado com a repercussão que os casos como os julgamentos dos militares e colaboradores, as restituições de identidade de crianças apropriadas, como foi o caso de Guido Carlotto, possuem na mídia argentina e mundial. Vale também lembrar que a mídia apenas cede grande espaço para discutir a temática, pois são temas que geram um intenso interesse de seus leitores e espectadores, porém, a importância que estas mídias possuem e a contribuição das mesmas para repercussão e discussão das questões que giram em torno do passado recente argentino não podem, nem devem ser descartas.

20

Ao abordar a questão das organizações e da construção de uma cultura de luta pelos direitos humanos na Argentina, sua importância e papel de destaque, pode-se ter a impressão – equivocada – de que a questão dos direitos humanos é hegemônica e bem-sucedida na sociedade argentina. Observa-se hoje um momento bastante difícil para essas organizações, ao mesmo tempo que, ganham mais espaços e protagonismo nas lutas contra crimes de lesa-humanidade assiste-se a uma ascensão do conservadorismo, de grupos de extermínio, um aumento significativo no número de casos de feminicídeo, desaparecimento de mulheres e crianças, ou seja, um aumento no número de crimes contra a vida e integridade humanas. Crimes estes que deveriam estar nas pautas de luta dessas organizações, se pensarmos numa sociedade que tem construído uma cultura de luta contra os crimes de lesa humanidade. É importante problematizar o momento delicado que os organismos de direitos humanos argentinos enfrentam nesses últimos anos e esbarrando em questionamentos do porquê a luta contra esses crimes que assolam a sociedade atualmente não encontram a mesma visibilidade que as lutas contra os crimes de lesa-humanidade cometidos na última ditadura civil-militar encontram na sociedade argentina. Essa observação não busca diminuir o valor da luta dos organismos de direitos humanos por justiça aos crimes de lesa humanidade cometidos pelo Estado nos anos ditatoriais, é somente uma observação sobre o momento que essa cultura de direitos humanos atravessa na Argentina.

21

A pressão da sociedade civil argentina é primordial para compreender as motivações do Estado na criação dessas políticas públicas de memória. Os governos democráticos consolidaram seus avanços e retrocessos sempre motivados pelas pressões sociais que o país enfrentava.

(26)

A sociedade argentina, desde o final da ditadura civil-militar, passou a incentivar e apoiar medidas para a criação de uma série de políticas de memória; é claro que cada uma dessas medidas teve um caráter diferente, adequando-se ao momento em que foram criadas. De acordo com Elizabeth Lira22, as políticas de memória têm como finalidade reconhecer o terrorismo de Estado e suas consequências para a sociedade abrindo espaço para que diferentes memórias sobre o passado recente e traumático ganhem visibilidade pública, fazendo com que os sobreviventes e os familiares dos mortos e desaparecidos políticos possam elaborar seu luto que foi inicialmente privado, até o momento da elaboração dessas políticas.

Os primeiros governos democráticos pós-ditadura: seus avanços e retrocessos

De acordo com Caroline Bauer 23, a questão dos desaparecidos políticos possui uma contemporaneidade, não somente por seu caráter de crime continuado, que se perpetua, mas também pelas medidas políticas que vêm sendo adotadas pelos governos democráticos argentinos no sentido de fazer lembrar, reparar ou esquecer. E as organizações de direitos humanos, compostas por familiares de desaparecidos, ex-presos e perseguidos políticos desempenham um protagonismo na luta por justiça, reparação e memória. Organizações como a Madres e Abuelas de Plaza de Mayo iniciaram sua luta ainda durante a ditadura e seu protagonismo não cessou com a derrocada do regime, ao contrário, somente aumentou tornando-se vanguarda de outras organizações e, juntamente com a sociedade civil, impulsionaram a criação de leis e políticas de memória.

Obviamente organizações como Madres e Abuelas de Plaza de Mayo ganharam mais notoriedade com o fim do regime, da mesma forma que, com a volta à democracia, surgiram novos organismos de direitos humanos. O governo de Raúl Alfonsín teve a temática dos direitos humanos no centro de seus debates políticos, ele foi o primeiro presidente argentino eleito democraticamente após o fim da ditadura, e logo após sua posse deixou claro que seu governo teria um compromisso sério com a busca pela Justiça e Verdade.

22

BAUER, Caroline S. Op. Cit., p. 129.

23

(27)

A Unión Cívica Radical (UCR), partido do ex-presidente Alfonsín, tinha em sua plataforma eleitoral da corrida presidencial de 1983 a proposta de julgar os crimes cometidos durante a ditadura civil-militar. Alfonsín venceu a disputa eleitoral e ocupou o cargo de presidente em 10 de dezembro de 1983, somente três dias depois de sua posse, promulgou os decretos nº 157 e 158, que determinavam a abertura de processos das cúpulas militares e das organizações armadas de esquerda, com a proposta de não deixar impune os delitos cometidos no passado e reestabelecer o Estado de direito na Argentina.24 Ainda como medida direcionada a cumprir seu compromisso com as questões de Justiça e Verdade, no dia 15 de dezembro daquele mesmo ano, criou, por meio do decreto nº 187, a CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas), comissão formada por cidadãos independentes que teve plenos poderes e autonomia para investigar os casos de desaparecimentos.

A CONADEP, criada para concluir o processo de transição, foi o primeiro passo para a criação de uma “memória oficial” sobre o período ditatorial na Argentina. Após alguns trabalhos da comissão, foi publicado o conhecido informe Nunca Más que, de acordo com Patricia Valdez, “brindó los primeros y fundamentales elementos para los posteriores procesos judiciales de los autores de los criménes.”25 O primeiro resultado das investigações realizadas foi tornado público em 4 de julho de 1984 através de um programa de televisão que transmitiu depoimentos, imagens e um breve resumo dos trabalhos; naquela noite cerca de 1,64 milhão de argentinos assistiram ao programa.26

Há muito para discutir sobre a importância política e social da criação e veiculação do informe. Segundo Hugo Vezetti, o Nunca Más contribuiu para a ideia de rompimento institucional com o passado,27 foi o primeiro passo de reconhecimento de culpa do Estado argentino pelos crimes cometidos com o amparo estatal. O informe teve sua criação vinculada ao Estado, foi o primeiro documento oficial que revelava com, provas irrefutáveis, as estratégias de repressão desenvolvidas e executadas pelo Estado. É importante ressaltar que o processo de construção do informe foi público e contou com a participação da sociedade, essa participação direta da população pode explicar a

24

Idem. p. 124.

25

VALDEZ, Patricia. Tiempo óptimo para la memoria. Buenos Aires: 2001.p.06. Disponível em: http://www.memoriaabierta.org.ar/materiales/pdf/tiempo_optimo.pdf >Acessado em 27/03/2015.

26

CRENZEL, Emilio. apud BAUER, Caroline S. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. 2ª Edição. Porto Alegre: Medianiz, 2014. p.168.

27

VEZETTI, Hugo. Pasado y presente: guerra, ditadura y sociedad en la Argentina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003. p.112.

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rapidez e a facilidade com que esse documento foi recebido pela sociedade argentina. O primeiro ponto importante sobre a veiculação do informe é o fato de que este documento tornou-se uma espécie de “memória oficial”28 na Argentina. Projetos como o

Nunca Más foram criados em vários países do Cone Sul após o fim das ditaduras e este material contribuiu para a construção de determinada memória sobre a repressão e, no caso argentino, converteu-se na primeira “memória oficial”.

Partindo deste ponto Caroline Bauer afirma que é possível observar que a estrutura da produção memorialística ainda é bastante influenciada por esse material como, por exemplo, a ausência da discussão sobre a militância dos mortos e desaparecidos políticos. Esta ausência fica bastante evidente no informe, deixando claro que os pesquisadores optaram por não revelar o vínculo político dos desaparecidos que tiveram seus casos analisados no Nunca Más. Ainda de acordo com Bauer, na verdade essa ausência correspondeu a uma necessidade da esquerda e das organizações de direitos humanos argentinas no início dos anos de 1980 de negar a militância revolucionária para negar a “teoria dos dois demônios”.

[...] es claro que el Nunca Más produjo un verdadero acontecimiento reordenador de las significaciones de el pasado y impuso una marca que ha quedado como un polo de referencia para los trabajos de memoria [...] estabelecia una relación estrecha entre la legitimidade de esse nuevo ciclo democrático y la causa de los derechos humanos [...] constituia un suporte institucional fundamental en la promessa de un nuevo Estado de derecho y un nuevo pacto con la sociedad.29

Falar do Nunca Más é importante para compreender a produção das políticas públicas de memória na Argentina, pois sendo ele, o primeiro documento oficial que comprovava a institucionalização da violência e revelava os crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado durante a ditadura civil-militar. A estrutura e composição do informe continuam sendo usados para as produções de memórias subsequentes; as efemérides, os monumentos, as produções cinematográficas e televisivas corroboram, em alguns aspectos, a mesma estrutura de memória produzida pelo Nunca Más.

28

BAUER, Caroline S. Op. Cit., p.165.

29

(29)

O governo de Raúl Alfonsín foi marcado por ações estatais que visavam esclarecimentos e justiça sobre as ações do Estado argentino na ditadura civil-militar (1976-1983). Além da criação da CONADEP e de seu consequente relatório Nunca Más, o então presidente determinou o simultâneo julgamento das cúpulas guerrilheiras e militares. Em 23 de março de 1983, a Junta Militar promulgou a Lei nº 22.924, a autointitulada Ley de Pacificación Nacional que concedia anistia a todos os delitos cometidos com motivação, finalidade terrorista ou subversiva desde 25 de maio de 1973 até 17 de junho de 1982. Com o compromisso de atender as demandas por Justiça e Verdade, Alfonsín decretou o julgamento das Juntas Militares e das cúpulas das organizações guerrilheiras (decreto nº 158 – 13 de dezembro de 1983). O decreto determinou o processo das Juntas Militares que governaram a Argentina de 24 de Março de 1976 até 10 de dezembro de 1983, para que este processo atingisse de fato os militares foi necessária a anulação da lei de anistia através da lei nº 22.040, de 22 de dezembro de 1983. A anistia auto-atribuída aos militares foi revogada, abrindo caminho para o início de amplos debates e dos próprios julgamentos.

As politicas do governo democrático de Raúl Alfonsín foram pontuais ao que se refere às demandas sociais por verdade e justiça, pode-se atribuir uma marca mais simbólica de justiça ao Juicio a las Juntas. De acordo com Caroline Bauer, o Juicio a las Juntas significou um marco institucional que oferecia suporte material e prático para a memória sobre a ditadura civil-militar argentina, baseada na condenação ética e moral dos crimes que aconteceram.30

No dia 9 de dezembro de 1985 foram dadas as sentenças do julgamento, que variavam entre penas de prisão perpétua e absolvição. As sentenças não agradaram às organizações de direitos humanos nem aos militares, os primeiros consideraram as sentenças bastante benévolas, condenando assim as absolvições; e por outro lado, os militares mostraram uma grande dificuldade em entender que seus chefes foram condenados pelos crimes.31 Entre 1985 e 1986, foram abertas mais de 1500 causas contra militares e ou agentes das Forças Armadas, o crescente número de processos e condenações geraram alguns levantes entre os anos de 1986 e 1987.

O próprio presidente Raúl Alfonsín, diante dos levantes sobre o julgamento das Juntas e com a intenção de apaziguar os ânimos da sociedade decide retroceder em 30

Bauer, Caroline S. Op. Cit., p189.

31

CRENZEL, Emilio. apud BAUER, Caroline S. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e

(30)

relação às conquistas das lutas por Justiça e Verdade abrindo caminho para um processo de impunidade ao criar a lei nº 23.043, aprovada no dia 23 de dezembro de 1986, que extinguia as ações penais que ainda estavam abertas. Esta lei ficou conhecida como Ley de Punto Final.

A partir de 1986, a sociedade argentina vivenciou uma onda de retrocesso, além da Ley Punto Final, que eliminava as ações penais pelos crimes cometidos durante a ditadura civil-militar, gerou um grande debate jurídico que buscava determinar se essa lei se tratava de uma redução retroativa ou se na realidade era uma lei de anistia. Para Patricia Valdez, a lei continha todos os elementos que a definem como uma lei de esquecimento, perdão ou renúncia a uma ação penal que estava vigente no momento de sua sanção.32 Logo após a promulgação da Ley de Punto Final, o presidente encaminhou um novo projeto de lei, em maio de 1987, que visava inocentar os oficiais de baixo escalão, alegando que eles apenas cumpriam ordens de seus superiores e como esses superiores já haviam sido julgados e condenados esses oficiais não poderiam ser julgados. A lei nº 23.521 foi aprovada dia 05 de junho de 1987 e ficou conhecida como Ley de Obediencia Debida.

Foi também durante o governo de Alfonsín que as organizações de direitos humanos e as vítimas e familiares de desaparecidos políticos alcançaram uma grande vitória, a criação do Banco Nacional de Datos Geneticos, através da lei nº 23.511 de maio de 1987, no qual estão armazenadas amostras de sangue dos familiares de vítimas para que os corpos desses desaparecidos possam, eventualmente, ser identificados, assim como a facilitação para que as crianças apropriadas ilegalmente possam recuperar sua verdadeira identidade.

Raúl Alfonsín deixou a presidência da Argentina com alguns avanços e retrocessos nas questões de Justiça e Reparação do passado recente argentino; seu governo abriu caminho para as ações posteriores. Carlos Menen assumiu o cargo de presidente da república em julho de 1989 e com apenas três meses no cargo assinou uma série de decretos (nº112, 1003, 1004 e 1005) que contemplavam os agentes de repressão argentinos e estrangeiros, integrantes das cúpulas guerrilheiras e os

32

VALDEZ, Patricia. Tiempo óptimo para la memoria. Buenos Aires: 2001.p.04 Disponível em: http://www.memoriaabierta.org.ar/materiales/pdf/tiempo_optimo.pdf >Acessado em 27/03/2015.

(31)

“carapintadas”33 sublevados, totalizando 300 indultos34 deixando em liberdade pessoas que não haviam se beneficiado das duas leis anteriores do governo de Alfonsín35.

A década de 1990 começava na Argentina com vários avanços e retrocessos, talvez com muito mais retrocessos do que avanços nas políticas de memória sobre o passado recente, o governo Menen defendia a necessidade de pacificação nacional, seus decretos, por exemplo, podem ser interpretados como uma tentativa de instituir uma política de pacificação e reencontro nacional. Foi também na década de 1990 que os militares vieram a público depois de um longo silêncio para expor suas versões sobre a ditadura e essa posição dos militares pode ser interpretada como sendo um momento em que se sentiram mais seguros e confortáveis visto que as promulgações de leis que buscavam anistia-los dos crimes cometidos.

O governo de Carlos Saúl Menen e suas tentativas de pacificação e reconciliação com o passado geraram grande insatisfação para grande parte da sociedade, inclusive dos familiares e vítimas da repressão ditatorial; em 13 de outubro de 1989, as organizações de direitos humanos da Argentina redigiram um documento intitulado “Nuestra respuesta frente a los fundamentos de los decretos del indulto” em que afirmavam que os indultos “tuvo la virtud de volver a hacer sangrar las heridas que poco a poco habían dejado de doler tanto.”36 Patricia Valdez afirma que, esta decisão governamental pelos indultos não foi bem recebida pela sociedade sendo que aproximadamente 75% da população reprovam a determinação (para o caso dos indultos aos militares) e 81% reprovavam o indulto ao ex-chefe guerrilheiro da organização político-militar Montoneros, Mario Firmenich. Essa reprovação fez com que, aproximadamente 100 mil pessoas se reunissem na Plaza de Mayo, convocados pelas organizações de direitos humanos, em 30 de dezembro de 1990.

Em novembro de 1992 foi criada a Comissión Nacional de Derecho a la Identidad (CONADI) através da Lei 25.457, para que todos aqueles que tivessem alguma dúvida sobre sua identidade pudessem recorrer a um outro órgão que não

33

Os “carapintadas” eram militares de extrema-direita que executaram uma série de levantes entre 1987 e 1988; o principal motivo para os levantes era a insatisfação com o governo democrático de Raúl Alfonsín. No total foram três rebeliões militares e elas deixaram um clima de insegurança na Argentina, porém alguns estudiosos analisam que esses levantes não ameaçavam a constitucionalidade do governo democrático.

34

BAUER, Caroline S. Brasil...Op. Cit., p. 192.

35

Carlos Menen também assinou os decretos nº 2741, 2742 e 2743 que beneficiavam os ex-membros das Juntas Militares que governaram o país de 1976.

36

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