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vias promissoras o inegável aumento dos grupos
de pesquisa e a produção de conhecimento nas
úl-timas décadas no Brasil, evidencia-se a “quase
au-sência”, por assim dizer, da vertente “humana” nos
estudos localizados, ao menos na parcela
ilumina-da pelos descritores de busca que retratam o
cam-po. Mas não se trata de segurança alimentar e
nu-tricional da população “humana”?
H á algum tem po já vem sendo apontado o
predomínio do paradigma biomédico e dos
estu-dos quantitativo-descritivos nos estuestu-dos do
cam-po – não cam-por acaso, reconhecido com o
“Nutri-ção”
6,7– e a consequente exclusão de outros
refe-renciais. Observando-se os “agrupamentos
temá-ticos”, tanto na polaridade do “alimento” como na
da “alimentação”, mais do que a concentração em
uma ou noutra direção, preocupa-nos a ausência
do componente humano que deveria ser realçado,
sobretudo porque se trata de alimentação
huma-na: assim, no que foge aos clássicos estudos de
outcom es, evidenciam-se estudos sobre políticas
como processos dessubjetivados; o direito
huma-no figurando em discursos abstratos, ainda
quan-do se pretende acoplá-los a uma sociedade
“triba-lizada”, complexa, “líquida”, demandando, cada vez
mais, compreensão dos processos comunicativos,
das imagens e do repertório, contexto no qual o
corpo e a alimentação estão na ordem do dia
8-10.
No âmbito desse breve comentário, não é
pos-sível afirmar em que medida isso se dá nas
infor-mações detectadas pelos autores; nosso
posicio-namento, contudo, não é especulativo, uma vez
que se ampara nas evidências obtidas em anos de
pesquisa no âmbito da alimentação e nutrição que
confluem para muito do que os autores aportam
em seu artigo. Nesse campo, se a inserção das
ciên-cias sociais se dá com certa força no agrupamento
“alimentação”, quase nada se incorporou do
con-junto das disciplinas humanas (para usar a
termi-nologia adotada na base visitada pelos autores),
resultando na exclusão da subjetividade.
Do exposto se depreende que, ao lado (o grifo
importa, uma vez que não se pretende aqui
postu-lar a exclusão de quaisquer objetos que integram a
SAN) da integração entre os componentes
alimen-tar e nutricional, postulamos que a construção de
uma política de segurança alimentar e do direito
humano à alimentação não pode prescindir da
in-tegração de distintos paradigmas e enfoques na
investigação sobre suas temáticas. Caso contrário,
será difícil superar o descompasso, tão bem
ex-posto nesse artigo, entre os desafios que se
colo-cam nesse âmbito e os conhecimentos de que
dis-pomos para superá-los.
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3 Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina.
rossana@mbox1.ufsc.br
Da pesquisa sobre segurança alimentar e
nutricional no Brasil ao desafio de criação
de comitês de alimentação e nutrição
From research on food
security and nutrition
in Brazil to the challenge of creating
committees on feeding and nutrition
Rossana Pacheco da Costa Proença
3O artigo “A pesquisa sobre segurança alimentar
e nutricional no Brasil de 2000 a 2005: tendências e
desafios” aborda tema de extrema relevância, que
vem sendo discutido cientificamente e incorporado
a políticas públicas no cenário mundial. Partindo
da base de dados do Diretório dos Grupos de
Pes-quisa no Brasil do CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico), as
au-toras analisaram a área de origem e as temáticas
pesquisadas, sugerindo a necessidade de
investimen-tos na integração entre os componentes alimentar e
nutricional da SAN (segurança alimentar e
nutricio-Referências
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0
nal), diminuindo o intervalo entre as discussões
econômicas e sociais da questão.
Um primeiro ponto a ser destacado é a
inexis-tência do termo na árvore do conhecimento do
CNPq, demonstrando, mais uma vez, a
necessida-de necessida-de revisão e atualização necessida-deste material, tão
im-portante na classificação e sistematização de
infor-mações da pesquisa brasileira.
Esta questão aparece mais claramente ao
ana-lisar-se a temática SAN em relação aos comitês de
área que organizam o ensino de pós-graduação e a
pesquisa científica na Capes (Coordenação de
Aper-feiçoamento de pessoal de Nível Superior) e no
CNPq. Assim, conforme discutido pelas autoras
do artigo em debate, citando material recente
1,2, na
Capes pode-se vislum brar as tem áticas da SAN
incluídas em vários comitês, espalhados por quase
todas as áreas do conhecimento. Em parte, este
fenômeno deve-se à própria natureza
multifaceta-da multifaceta-da SAN, bem funmultifaceta-damentamultifaceta-da pelas autoras. Mas
destaca-se a percepção de que isto ocorre,
tam-bém, em função da não-existência de uma área
específica de alimentação e nutrição no contexto
da grande área da Saúde. Assim , a inserção da
Nutrição como uma subárea da Medicina II na
Capes pode ser responsável por esta diluição de
grupos, diminuindo as possibilidades de
integra-ção para a formaintegra-ção e a pesquisa em SAN.
Já no CNPq, com o comitê Saúde Coletiva e
Nutrição, esta questão parece ser menos candente
nos aspectos referentes àquilo que as autoras
iden-tificaram como pesquisa de SAN relacionada
jus-tamente com a Saúde Coletiva. Contudo, no que
diz respeito à temática que as autoras
denomina-ram “componente nutricional da SAN”,
principal-mente nas discussões mais específicas sobre
ali-mentos, também nesta agência a ausência de um
comitê específico é sentida, pela necessidade de
com-preensão de conceitos e metodologias específicos
no momento de avaliação dos projetos
propos-tos. Neste sentido, salienta-se a percepção de que a
criação de comitês específicos de alimentação e
nutrição na Capes e no CNPq são estratégias
im-portantes para aglutinar esforços e recursos,
re-forçando a formação e a pesquisa em SAN.
Ao discutirem a distribuição dos grupos de
pesquisa em SAN por área predominante, as
au-toras identificaram a maioria dos grupos na área
de ciência e tecnologia dos alimentos,
relacionan-do esta produção científica com a denom inada
qualidade dos alimentos, fixando-se, contudo,
so-mente na questão sanitária. Ora, além da correta e
necessária discussão realizada pelas autoras das
políticas de ciência e tecnologia e da incorporação
do componente alimentar visto de maneira mais
abrangente, sugere-se também uma reflexão
so-bre o que seria esta qualidade do alimento, ou mais
especificamente, o que seria um alimento de
quali-dade. Como já discutido em vários momentos
3,
ressalta-se a percepção de que, quando se discorre
sobre qualidade em alimentos e alimentação, está
ocorrendo uma supervalorização, praticamente no
mundo todo, da dimensão higiênico-sanitária da
qualidade. Sabe-se, entretanto, que diversos
auto-res salientam que a qualidade em um alimento pode
ser percebida pelo ser humano em múltiplas
di-mensões. Assim, parece pouco defensável que as
pesquisas, os diversos selos de qualidade e
meto-dologias de busca de qualidade se reportem
so-mente a uma destas dimensões, como se o fato de
o alimento estar limpo e não contaminado –
ele-mento essencial, mas não o único – garantisse que
todos os outros aspectos estejam satisfatórios.
Assim, considerando que a qualidade com
re-lação aos alimentos deve ser um processo
centra-do no ser humano, propõe-se que ela pode ser
percebida, pelo menos, sob as óticas nutricional,
sensorial, higiênico-sanitária, de serviço,
regula-mentar, simbólica e, mais recentemente, de
susten-tabilidade. As definições de SAN discutidas,
inclu-sive historicamente, pelas autoras, permitem esta
expansão do conceito, podendo refletir a
necessá-ria integração dos grupos que refletem e
pesqui-sam na temática.
Tam bém relacion ado a este con ceito m ais
abrangente de SAN, embora o artigo em debate
não tenha aprofundado este ponto, cabe citar a
questão metodológica das pesquisas, que ainda se
apresenta bastante centrada em estudos
quantita-tivos. Considerando, na palavra das autoras, “a
amplitude conceitual e a grandiosidade de
ques-tões relativas a SAN”, observa-se a necessidade de
incorporação da pesquisa qualitativa neste
con-texto. Em uma revisão sobre a pesquisa
qualitati-va em nutrição e alimentação, Canesqui
4reforça
que muitos dos textos encontrados requerem um
“aperfeiçoamento teórico-metodológico para
su-perar os estudos descritivos, adequando o seu
en-tendim ento”. Concorda-se com esta autora que
observa, ainda, “a necessidade de apoiar a
forma-ção em Ciências Sociais e Humanas na Nutriforma-ção e
incentivar a prática da multidisciplinaridade para
aperfeiçoar aquelas pesquisas”, ponto também
dis-cutido no artigo em debate.
Outro destaque, lançado recentemente sobre o
tema, é representado pelo Suplemento da Revista
de Nutrição. Segundo inform ações da Nota da
Editora
5e do Editorial
6, este suplemento,
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4 Departamento de Nutrição Social, Instituto de Nutrição, UERJ.
lucastro@globo.com
para a temática de SAN, no mínimo, por dois
as-pectos. Um deles seria a questão em si, de editais
públicos estarem financiando tanto as pesquisas
temáticas quanto a divulgação delas, importante
prática ainda não muito incorporada à realidade
científica brasileira. Outro ponto é que este
suple-mento tenha sido lançado pela Revista de
Nutri-ção, periódico específico da temática de
alimenta-ção e nutrialimenta-ção que atualmente se encontra
indexa-do em duas das maiores e mais abrangentes bases
de dados internacionais, quais sejam, Web of
Sci-ence, do sistema ISI (Institute of Scientific
Informa-tion), e Scopus. Assim, pode-se prever um maior
destaque a esta produção nacional, uma vez que,
ao ser digitado o tema “alimentação e nutrição”
nestas bases, demonstra-se que no Brasil existe um
periódico científico que incorpora a questão da
SAN, inclusive na nomenclatura.
Finalizando, faz-se necessária um a reflexão
sobre aspectos da SAN ainda pouco trabalhados
na produção científica nacional, considerando o
apontado no artigo em debate. A alimentação fora
de casa é um deles, que representa uma
importan-te faceta do comportamento alimentar atual e, por
exemplo, somente na versão 2008-2009 está sendo
incorporada à Pesquisa de Orçam ento Fam iliar
(POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e
Esta-tística (IBGE)
7. Então, pontos como a comida de
rua, a alimentação em restaurantes comerciais e
coletivos, os patrimônios gastronômicos regionais,
dentre outros, são, comumente, alvo somente de
pesquisas de qualidade sanitária, reduzindo o foco
da contribuição para a SAN.
Outra lacuna são os estudos relacionados ao
com portam en to do con sum idor de alim en tos,
considerando a sua segurança de maneira
abran-gente. Destacam-se aqui as possibilidades de
estu-dos de SAN com relação às diversas form as de
informação alimentar e nutricional, principalmente
a propaganda e a rotulagem de alimentos
indus-trializados e refeições.
Assim, as possibilidades de pesquisa em SAN
no país, a exemplo da construção da própria
polí-tica nacional sobre o tema
8, ainda têm muitos
de-safios a serem enfrentados. Mas este enfrentamento
começa pelo reconhecimento do terreno, trabalho
tão bem realizado pelo artigo em debate.
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1.
Pesquisar sobre segurança alimentar
e nutricional no Brasil: a que viemos?
Researching about food security and nutrition
in Brazil: what is the purpose?
Luciana Maria Cerqueira Castro
4O artigo “A pesquisa sobre Segurança
Alimen-tar e Nutricional no Brasil de 2000 a 2005:
tendên-cias e desafios”, de autoria de Prado e
colaborado-res, faz um diagnóstico da situação da pesquisa
em segurança alimentar e nutricional (SAN) no
Brasil e instiga-nos a perguntar: estamos
produ-zindo conhecimento sobre SAN no país? Temos
condições de produzir conhecimento e apresentar
propostas inovadoras para a SAN no Brasil ou
produzimos conhecimento somente sobre algumas
dimensões da SAN no Brasil?
A segurança alimentar e nutricional tornou-se
tema de discussão de âmbito mundial nas últimas
décadas, tendo sido debatida por inúmeros
orga-nismos internacionais, governamentais ou não. Da
mesma forma, o conceito de SAN passou por
vá-rias alterações. Na década de noventa, devido a
um forte movimento em direção à reafirmação do
direito humano à alimentação adequada, essa
di-m ensão, assidi-m codi-m o a da soberania alidi-m entar,
2.3.
4.
5.
6.
7.