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O Testemunho como ferramenta Clínico-Política

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Academic year: 2021

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O testemunho como ferramenta clínico-política

Alexei Conte Indursky*

Carlos Augusto Piccinini**

Resumo

O presente trabalho apresenta os resultados parciais do Projeto Clínicas do Testemunho, promovido pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica, em parceria com a Comissão de Anistia (Ministério da Justiça). Disserta-se a respeito da função do testemunho como ferramenta clínico-política no âmbito da reparação psíquica dos afetados pela ditadura civil-militar brasileira, objetivo principal do mencionado projeto. Dentro desse contexto, almeja-se sublinhar as especi-ficidades do testemunho, distanciando-o do depoimento como paradigma da prova jurídica, para enfatizar o trabalho de elaboração subjetiva do sujeito ante as violências de lesa-humanidade. Para tanto, analisam-se as condições sociais de recepção do testemunho, fazendo um paralelo entre o contexto da emergência dos testemunhos sobre a Shoah e os efeitos de silenciamento da autoanistia brasileira. Por fim, apresenta-se um caso atendido pelo Projeto Clínicas do Testemunho, no qual levantamos hipóteses sobre a potência clínico-política de um acompanhamento psicossocial realizado entre o âmbito privado e o público.

Palavras-chave: clínicas do testemunho; reparação psíquica; elaboração traumática; testemunho.

Abstract

This paper presents the partial results of the Clinics of Testimony Project, promoted by the Sigmund Freud Psycho-analytic Association, in partnership with the Amnesty Committee (Ministry of Justice). We deal with the function of testimony as a clinical and political tool within the scope of psychic recovery of those affected by the Brazilian civil-military dictatorship, which is the main goal of the mentioned project. In this context, it is our aim to empha-size the specifics of testimony, distancing it from the paradigm of legal proof to emphaempha-size the subject’s subjective elaboration in face of the violence against humanity. Therefore, we analyze the social conditions of the testimony, making a parallel between the context of the emergence of testimonies about the Holocaust and the silencing effects of the Brazilian self-amnesty. Finally, we present a case attended by the Clinics of Testimony Project, raising hypo-theses about the clinical and political power of a psychosocial support offered by the private and the public sectors.

Keywords: clinics of testimony; psychic reparation; traumatic mourning; testimony

* Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Brasil. Psicólogo pela UFRGS. Mestre em Psicologia pela Universidade Paris 7 Denis-Diderot. Doutorando pela Paris 7 Denis-Diderot. Membro do Projeto Clínicas do Testemunho/SIG. E-mail: leco.indursky@globo.com

** Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Brasil. Psicólogo pela UFRGS. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Membro do Projeto Clínicas do Testemunho/SIG.

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Introdução

Em meio às atividades do Projeto Clínicas do Teste-munho1, realizadas entre 2013 e 2014, algumas questões

impõem-se de modo vívido e pulsante à nossa prática clínico/política: qual função cumpre o testemunho, tanto para aquele que o realiza quanto para aquele que o rece-be? Qual é a diferença entre um depoimento e um teste-munho? E, finalmente, pode o testemunho desempenhar uma terapêutica para aqueles que sofreram traumatismos severos durante o estado de exceção brasileiro?

Perguntas, estas, que, colocadas assim, de forma abrupta, se importam em delinear a especificidade do testemunho, sobretudo quando este é peça central de um projeto de reparação psíquica promovido pelo Esta-do. No presente momento de nossa história brasileira, é crescente o movimento da sociedade civil em favor da abertura dos arquivos e das histórias silenciadas durante a ditadura civil-militar e sua “autoanisita”, como única forma de reescrever a história oficial dos tempos de ex-ceção. O governo federal, que a partir da Lei nº 12.528 (2011b) cria a Comissão Nacional da Verdade e com a Lei nº 12.527 (2011a) que permite o acesso à informações produzidas pelo Estado2, soma forças neste intuito. Não

apenas juízes, mas historiadores, jornalistas, psicanalistas, sociólogos, defensores dos direitos humanos, trabalham, desde 16 de maio de 20123, convocando os testemunhos

daqueles que viveram a barbárie da ditadura civil-militar. Essas pessoas engajam-se para falar e convocar a fala sobre o que foi silenciado ou, pior, aquilo que ninguém quis ouvir durante os últimos cinquenta anos. Romper os diversos pactos de silêncio, para que daí possam emergir as diferentes vozes, ocultadas, silenciadas, desapareci-das, é o primeiro passo de uma árdua caminhada para reconstruir nossa história e, dessa forma, não repeti-la como índice de um trauma coletivo enquistado em nosso tecido social. A isso se somam as vozes daqueles que clamam por uma justiça de transição que aponte, julgue e condene os responsáveis pelas ordens e execuções dos planos de extermínio dos cidadãos brasileiros caçados, torturados e desaparecidos, cujo não reconhecimento por parte do governo brasileiro impede que se realize a reparação compreendida em seus três eixos: moral, econômico e psíquico.

1 O Projeto Clínicas do Testemunho foi uma proposta da Comissão de

Anistia como um projeto piloto de políticas de reparação. Teve seu início em 2013.

2 Maiores informações em http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional--acesso-informacao/a-cnv

3 No estado do Rio Grande do Sul, a Comissão Estadual da Verdade foi

criada no dia 06 de agosto de 2012, via decreto 49.380/12. Maiores infor-mações em http://www.comissaodaverdade.rs.gov.br/inicial.

Em meio a esse cenário, o testemunho desponta como via régia para a reconstrução de uma história silenciada, sonegada, confiscada pelos “guardiões da ordem” da ditadura civil-militar. Mas, afinal, o que está em jogo quando testemunhamos? Como se constituiu tal modalidade narrativa tão em voga em nossa atualidade? E qual a sua potência clínico-política ante o regimes de silenciamento vividos durante os anos de chumbo?

Depoimento e testemunho

No âmbito do direito, prestar um testemunho perante a justiça implica busca pela verdade – dizer a verdade, nada mais que a verdade. A narrativa é tomada, sobretudo, como

um ato no qual o sujeito, uma vez nele engajado, poderá ser requerido a repeti-lo, sob o preço de atestar o valor de verdade esperado. A figura da testemunha na condição de álibi da verdade relatada é, assim, investida da necessidade de que, ao repetir seu depoimento, ela conte uma mesma história, relate a mesma cena, ateste a verdade que perma-necerá a mesma com o passar do tempo.

O depoimento jurídico pode sustentar, assim, as provas materiais que são encontradas durante uma inves-tigação. Estas, por si sós, podem carregar uma evidência incontestável sobre um fato: DNA, arquivos, documentos, vídeos e fotos. No entanto, como comentam Jacques Derrida e Stiegler (1996), existe uma heterogeneidade com relação à evidência material e o testemunho: nós clamamos pela versão daquele que estava lá para atestar a materialidade da prova. Derrida e Stiegler (1996) chamam nossa atenção para o caso Rodney King4,em que, apesar

da existência de um vídeo feito por um transeunte, que mostrava claramente o taxista indefeso sendo espancado por um bando de policiais, seu autor foi chamado a tes-temunhar sobre o que “ele” havia visto. Essa convoca-tória remete-nos ao fato de que aquele que depõe o faz desde um lugar preciso, não sendo aconselhável mudar sua posição ante o vivido, sob os auspícios de perder sua legitimidade (não contradição). Tal convocatória atesta igualmente que as condições de recepção de um depoi-mento são tão fundamentais para sua realização quanto o relato em si. Estar investido, ou não, de um lugar do qual a verdade pode emergir é fundamental para a elaboração de sua vivência e sua possível transmissão. É nesses dois aspectos aqui mencionados – a posição do testemunho e as condições de recepção de sua fala – que gostaríamos de nos apoiar para sustentar um distanciamento do tes-temunho daquele da prova jurídica.

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O sujeito afetado pela violência totalitária, cujo ob-jetivo, muitas vezes, é a eliminação de sua humanidade, diferencia-se radicalmente daquele que, como no caso supracitado, pode depor sobre um crime no qual esteve envolvido. Sejam os sobreviventes da Shoah, dos

genocí-dios em Ruanda, no Camboja, na ex-Iugoslávia, sejam os ex-presos das ditaduras latino-americanas, todos passam por uma dupla injunção ao saírem da situação de assu-jeitamento ao outro, à qual foram submetidos. Por um lado, há uma necessidade visceral de tudo falar, para que o vivido, por mais insensato que seja, não fique relegado a um delírio privado, cuja desrealização acomete o sujeito em sua própria certeza de existência. Por outro, há a von-tade de tudo silenciar, para que a dor vivida nos tempos de tortura, cárcere, perseguição, possa sair de cena, como se o silêncio pudesse carregar consigo o apaziguamento de uma memória sitiada, que não permite mais espaço para qualquer outra lembrança não contaminada por tais eventos. Doravante, essa dupla injunção coloca o sujeito na delicada questão da distância que ele consegue colocar ante tais acontecimentos. Será somente por meio de um outro, de um testemunho do testemunho, que ele poderá tatear essa distância. Esse outro, muitas vezes, ocupa a posição daquele que pode ouvir e acompanhar o processo de testemunho, emprestando um espaço, uma atenção, que serão decisivos para a elaboração de sua narrativa.

Tal é o caso de Robert Antelme (Duras, 1985), um dos primeiros sobreviventes a escrever sobre a experiência concentracionária na Europa. Logo após sua liberação do campo de extermínio de Dachau, ele encontra seu amigo Dionys Mascolo, que o acompanha de trem até Paris. Durante o trajeto, Antelme não cessa de falar sobre tudo e todos. Fala atabalhoadamente. Pronuncia palavras inexistentes, mistura as línguas no limite do sem sentido. Por vezes se cala, mas, instantes depois, é invadido pela urgência da fala. Eloquência essa que con-trasta severamente com o momento da chegada a Paris, onde sua mulher o aguarda. Esse relato, de Marguerite Duras (1985), em La douleur (A dor), é marcante naquilo

que atesta sobre o avesso da fala: Antelme não pronuncia uma palavra em casa, permanecendo calado à espera da próxima hora em que poderá comer. A verborragia de outrora transporta-se para o registro da voracidade, uma vez que falar da experiência desumanizadora à sua antiga companheira constitui-se em uma vergonhosa barreira, de difícil transposição. Esse estado, aquém de representações, fora da trama da linguagem é chamado pelos psicanalistas de o originário. Este lugar, é sabido, exerce uma força magnética surpreendente sobre o psiquismo. Anterior

à instauração da linguagem, este continente negro da infância, no qual as sensações são experimentadas em uma relação inaugural do vivente com o mundo, coin-cide com a aglutinação entre corpo e psiquismo que os sobreviventes de violências totalitárias sofreram durante o terror totalitário (Waintrater, 2003). É de um encontro inesperado com o originário que eles padecem, tal qual Antelme, quando são sugados em direção ao vazio de representação da morte. Nesse caso, é a autora que vira testemunha do testemunho, ao narrar o estado desde o qual Antelme não conseguia representar as sensações de desamparo e humilhação sofridas. Tanto Mascolo quanto Duras realizaram essa função, cada um com seus distintos destinos.

Regine Waintrater (2003), em seu livro Sortir du géno-cide (Sair do genocídio), no qual trabalha com testemunhos

de sobreviventes da Shoah e de Ruanda, propõe pensar

duas formas de testemunho. Uma, na qual se realiza uma transmissão viva, e outra na qual se dá uma transmissão morta da experiência. Esta última caracterizar-se-ia pela posição fixa em que o ouvinte é colocado diante do rela-to. Na transmissão morta, o testemunho ocuparia a posi-ção do depoente, típico do paradigma da prova jurídica. Ali o discurso segue sempre um mesmo caminho, atesta as mesmas cenas onde o sujeito está sempre na mesma posição diante de seu enunciado. Já na transmissão viva, a autora alega que o ouvinte ou receptor do relato tem acesso direto ao processo de pensamento e de elaboração psíquica da testemunha. Muitas sessões podem se seguir antes que ela possa falar de um acontecimento ou, ainda, colocar-se em outra posição ante o evento traumático sem reviver a situação de despedaçamento psíquico como outrora. Ao recontar sua história, o testemunho assume o risco de modificar a si mesmo, na medida em que ele pode escutar sua própria voz narrando o inefável.

De acordo com nossa experiência, ambas as po-sições estão em permanente tensão, sendo que nosso trabalho ao longo dos Grupos de Testemunho5 reside,

justamente, na elaboração psicossocial desses momentos de transmissão viva, nos quais é a nossa presença sensível que possibilita e se modifica ao longo dos testemunhos. Disto depreendemos uma linha de base sobre o trabalho com testemunhos: estes são sempre uma cocriação, na qual a posição do sujeito ante o vivido é constantemente refabricada, à medida em que as condições sociais de recepção de seu relato são possibilitadas.

5 Denominação dos grupos destinados a acompanhar a fabricação de

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Testemunho: entre o dever falar e o

inenarrável

Mencionamos acima o testemunho tomado por uma dupla injunção: entre o dever-falar e o silenciamento ante o inenarrável de sua experiência. De fato, em meio a tal travessia, a sensação de vergonha por ter sobrevivido foi um dos enigmas que mais perturbaram e cativaram as comunidades que acolheram os sobreviventes dos genocídios do século XX. Sobretudo no caso da Shoah,

que, inclusive, ganhou uma nosografia (síndrome do so-brevivente) e uma terapêutica psiquiátrica6.

No terceiro capítulo do livro de Giorgio Agam-ben (2008), O que resta de Auschwitz, o autor retoma o

testemunho de Primo Levi durante sua libertação do campo de concentração, quando é tomado pela sensa-ção de vergonha durante a chegada do exército russo. Agamben parte desta narrativa e propõe a suspensão da análise “apressada” de Levi, ao associar essa sensação de vergonha à culpa por ter sobrevivido. Na sequência do texto, Agamben contrapõe dois autores que abordam a temática. Em Bettelheim, a expressão da culpa é algo que acompanha todo sobrevivente. Destaca a culpa por não ter intervido em determinados momentos e pela sorte de o sobrevivente ter sobrevivido em detrimento de outros. Já De Pres propõe que o sobrevivente precisa cercar-se de uma dignidade atravessada por um sentimen-to de culpa, algo que mantenha sua humanidade. Busca algum sentido em meio ao caos do campo, tomando a resistência do corpo como o último refúgio de vida, que se sustenta até o fim.

Agamben propõe certa simetria entre os autores, embora tome como suspeitas ambas as conclusões. Se Bettelheim assume a inocência do sobrevivente, mas impõe-lhe uma sensação de culpa, é esta mesma culpa, em um sentido generalista, que destitui a responsabilidade dos carrascos do campo. Do mesmo modo, como não podemos assumir de imediato uma genérica culpa sobre a figura do sobrevivente e seu carrasco, Agamben propõe desvincular a vergonha sentida por esta figura como um conflito trágico (Agamben, 2008, p. 101).

Na tragédia grega, o herói é, ao mesmo tempo, cul-pado e inocente. É neste sentido que Hegel, citado por Agamben, ao analisar o mito do Édipo rei, destaca que o herói assume sua responsabilidade, mesmo tendo agido sob vontade divina e fora de um eu consciente. A autor, aqui, aproxima-nos da construção de uma nova questão ética produzida a partir de Auschwitz. Após o horror dos campos de concentração, não há possibilidade de divisão

6 Ver Fassin e Rechtman (2011). Inédito na tradução brasileira.

“inocência-culpa”, pois “aqui, o deportado vê aumentar de tal forma o abismo entre inocência subjetiva e culpa objetiva, entre o que ele fez e aquilo pelo qual se pode sentir responsável, que não consegue assumir nenhum de seus atos” (Agamben, 2008, p. 102). Por essa razão, o olhar sobre o campo não pode servir-se da perspectiva da tragédia, usada tanto pelos deportados quanto pelos alemães: a utilização desta justificativa produz uma im-possibilidade de escolha, um olhar do sujeito sobre o próprio sujeito para que se torne possível e tragável estas experiências do passado. A ética do trágico não nos ser-viria, portanto, para uma efetiva responsabilização pelos atos do passado.

Mas, afinal, de que “vergonha” Agamben nos fala? Para o autor, este é o momento em que se toca um limite, uma “nova matéria ética”, momento em que o sobrevi-vente, ou aqueles que pereceram no caminho, defronta-se com o sem sentido do campo. A vergonha é o ponto em que o sujeito se constrange de uma intimidade sem lugar: “ele se envergonha por dever morrer, por ter sido esco-lhido ao acaso, ele e não outro” (Agamben, 2008, p. 108). É o acento no acaso que potencializa aqui a vergonha e o rubor do momento: é o único sentido possível de uma intimidade com o desconhecido.

Paulo Endo trata desta nova ética surgida das ex-periências dos campos, uma ética que parte da vergonha destes que testemunham as atrocidades “de dentro”, mas que não chegam a tocar o fundo. Um ética “da sustentação da memória da vida daqueles que se foram, psiquicamente destruídos e fisicamente aniquilados nos campos, como consequência de suas ações, atitudes ou palavras inquebrantáveis” (2010, p. 62-63). É o efeito da narrativa de quem vislumbrou a testemunha integral (daquele que fitou a Górgona: o muçulmano) no seu

momento de dessubjetivação: presença do Eu em meio à própria desconstrução de si. Evidentemente, a propo-sição de dessubjetivação não tem nada de passiva, pois a sensação de vergonha nada mais é do que a exposição diante do sujeito de si mesmo em posição que lhe produz asco. É o ato de reconhecimento de um lado próprio (estranho a si) no qual teme que o outro o reconheça. Atividade e passividade no ato de olhar (ativamente) para si em posição de completa dessubjetivação (passividade). A vergonha seria, assim, este ato de ser sujeito no entre, no fio da navalha que distancia e aproxima o ato soberano do ser assujeitado.

Entramos aqui no ponto no qual o filósofo italiano relê, sob seu escopo, a questão do testemunho, traçando um paralelo com a incompletude da palavra. Ao abordar

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a perspectiva da “testemunha integral”, o muçulmano, ele circunscreve a possibilidade do testemunho como aquele que vê “de fora” e pode falar sobre esta situação, mas implica a narrativa do testemunho nesta incompletude da experiência. Só é possível falar da câmara de gás sem tê-la vivido. O que coloca a noção de testemunho em um paradoxo inevitável: todo testemunho é um “olhar de fora”, é incompleto. Ele destaca, assim, o caráter fundamental da separação entre o dizer e o que é dito, o testemunho sendo esse ato de separação/desaglutinação do psiquismo do sobrevivente.

De acordo com nossa experiência clínica. serão pe-quenas inflexões, deslizamentos ou mudanças de perspec-tiva narraperspec-tiva que permitirão ao testemunho ressignificar a cena que narrou/viu/ouviu sob este limiar da dessubje-tivação. No entanto, as condições sociais de recepção do testemunho revelam-se importantes, senão fundamentais, para que o sujeito possa realizar tal travessia.

Condições sociais de recepção do

testemunho

Os desaparecimentos forçados de pessoas durante as ditaduras civil-militares na América Latina não são os pio-neiros em empregar a tentativa cruel de apagar os traços do sujeito da história. Com efeito, os desaparecimentos totalitários tentaram realizar a fantasia nazista de ganhar a guerra ao eliminar toda e qualquer prova sobre a “solução final”. Eliminar o outro da história eliminando qualquer rastro de sua existência que pudesse ser conhecido pelas gerações vindouras. São essas as palavras do oficial SS que inauguram o livro de Primo Levi (1986), Naufragés et rescapés. Quarante ans après Auschwitz (Náufragos e sobrevi-ventes, quarenta anos após Auschwitz), sua obra testemunhal

por excelência, e assim demarcam a razão de ser do tes-temunho ante o crime de lesa-humanidade. Este não se restringe ao indivíduo atingido diretamente, mas procura realizar uma ruptura na malha social, justamente por meio da erradicação de seu traço na memória coletiva.

O testemunho toma sua força no século XX, quan-do, em meados da década de 1950, os sobreviventes da

Shoah, após alguns anos de vasto silêncio, rompem a

barreira do traumático e põem-se a escrever e a falar, sobretudo aos mais jovens. Um medo, no entanto, abate incontornavelmente aqueles que ousam romper tal barrei-ra. Levi descreve assim um sonho comum a quase todos que retornaram:

Eles estão todos lá a escutar o relato que eu lhes faço […] É um gozo intenso, físico, inexprimível estar em casa,

envolto por pessoas amigas e ter tantas coisas a contar: mas é tudo em vão, apercebo-me que meus auditores não me acompanham. Eles estão completamente indiferentes: eles falam confusamente de outra coisa entre eles, como se eu não estivesse lá. Minha irmã me olha, se levanta e parte sem dizer um palavra. (1958, p. 89-90).

Ao colocar em cena o medo individual de não serem escutados e compreendidos, tal sonho de angústia parece denunciar as próprias condições sociais de transmissão do horror. Fatos que, caso silenciados, implicariam a própria abolição do vivido e da veracidade da narrativa. À po-sição do testemunho, coadunam-se as condições sociais de recepção de uma comunidade, nas quais a realização de julgamentos e a consequente responsabilização/publi-cização dos crimes cometidos são de suma importância para o reconhecimento do sofrimento dos testemunhos. Basta lembrar do enorme esforço empregado contra o negacionismo da Shoah, no qual o julgamento de

Ei-chmann serviu como a guinada decisiva para a criação de uma política de memória, a partir da qual inúmeros testemunhos foram ouvidos durante e após o processo (Rousso, 2011).

Transpondo tais constatações para a realidade de nossa justiça de “transição”, na qual a autoanistia “ampla, geral e irrestrita” manteve sob o véu do silenciamento os nomes e faces dos mandantes de crimes de lesa-humani-dade, notamos que as condições sociais de recepção dos testemunhos de ex-presos encenam o próprio campo de disputa de nossa memória coletiva e da história oficial. Nossa experiência clínico-política com pessoas que já testemunharam inúmeras vezes em espaços oficiais e informais revela que, muitas vezes, o que lhes inflige grande sofrimento não é necessariamente falar sobre o horror das violências, mas o fato, tal qual descrito por Levi, de não serem escutadas, ou pior, de serem tomadas como embuste ou revanchistas por não deixarem a página da história ser virada. Tal reatualização do traumático é trabalhada por Sandor Ferenczi (1933) quando este fala do efeito do desmentido, por parte dos adultos, do so-frimento experimentado pelo infante. Quando este não encontra recursos advindos do meio social e afetivo para lidar com um sofrimento cuja significação ele desconhece, ele lança mão de mudanças em seu próprio “eu” para apaziguar a angústia que o invade. Como já referido anteriormente7, é indispensável atentar aos efeitos do

desmentido do reconhecimento estatal sobre aqueles

7 Ver Indursky, A. (2013) Encruzilhadas da demanda: a clínica junto a sujeitos

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que tiveram seus familiares e amigos desaparecidos, bem como no laço social.

Maria Rita Kehl (2010), integrante da Comissão Na-cional da Verdade, é categórica no que tange às políticas de silenciamento que seguem atuantes, mesmo com o fim do regime ditatorial:

Mas se vítimas dos torturadores, apesar da resistência geral, não se recusaram a elaborar publicamente sua ex-periência, de que lado está o apagamento da memória que produz a repetição sintomática da violência institucional brasileira? A resposta é imediata: do lado dos remanescen-tes do próprio regime militar, seja qual for a posição de poder que ainda ocupem. São estes os que se recusam a enfrentar o debate público – com a espantosa conivência da maioria silenciosa, a mesma que escolheu permanecer alheia aos abusos cometidos no país, sobretudo no perí-odo pós-AI5. Muita gente ainda insiste em pensar que a prática da tortura teria sido (ou ainda é) uma espécie de mal necessário imposto pelas condições excepcionais de regimes autocráticos, e que sob um regime democrático não precisamos mais nos ocupar daqueles deslizes do passado. (Kehl, 2010, p. 83).

Neste artigo, intitulado “Tortura e sintoma social”, Kehl traça uma aproximação entre os efeitos sociais e individuais em meio à política de repressão e violência perpetrada pelo Estado. Ela tece o enlace que articula a função do testemunho, no que tange à possibilidade de dizer sobre o sofrimento daqueles que passaram pela barbárie. Assim sendo, o silenciamento foi e continua sendo uma política de Estado que, na medida em que não é visibilizada, abre caminho para sua repetição ao longo da história. Neste sentido, o testemunho, como construção coletiva de memória social, é chave para que os acontecimentos da Ditadura sejam reconhecidos como parte da história brasileira, bem como a responsa-bilização dos agentes do Estado implicados nas práticas de exceção.

Se o trauma, por sua própria definição de real não sim-bolizado, produz efeitos sintomáticos de repetição, as tentativas de esquecer os eventos traumáticos coletivos resultam em sintoma social. Quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse si-mulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras. (KEHL, 2010, p. 81).

A dimensão clínico-política do Projeto Clínicas do Testemunho demonstra-se aqui, no trabalho de multiplica-ção realizado junto à sociedade civil para a sensibilizamultiplica-ção e discussão dos efeitos da violência de Estado, cujos autores, ao não serem julgados, invisibilizam-se e perpetuam lógicas e tecnologias de terror na sociedade atual. Apostamos que a Clínica, ao engajar-se nesse tipo de atividade, contribui na criação de condições de possibilidade para fabricação de novos testemunhos. Eis um efeito da oferta de escuta e acompanhamento junto àqueles que nunca se sentiram convocados, ou mesmo, já tendo testemunhado, sentem que o que foi feito não basta, sendo necessário retornar sobre o já dito ou escrito. Retornamos, pois, à tensão entre depoimento e testemunho, uma vez que um sujeito pode repetir muitas vezes um depoimento sem necessariamente testemunhar de sua história. Ou mesmo, sem que seu depoimento seja reconhecido pelas novas e velhas gerações. No entanto, uma pergunta insiste: o que transmite o testemunho com seu relato? Que saber é esse que se articula com a memória coletiva de uma comunidade?

Testemunho: um saber ficcional

Para analisar tais questões, trazemos um pequeno exemplo encontrado no documentário Os olhos dos pássa-ros8, que relata a visita da Cruz Vermelha à prisão

Liber-tad, durante a ditadura civil-militar no Uruguai. Um dos principais testemunhos utilizados para recriar a história é o de Miguel Estrella. Músico, então internacionalmente reconhecido, Estrella é preso, seviciado e confinado às celas de Libertad durante meses. No intuito de manter sua humanidade, ele improvisa um teclado de piano em uma placa de PVC em sua cela. Ele dedilha na placa e pode, assim, alucinar, mesmo que de forma fragmentá-ria, suas composições prediletas. No entanto, o recurso é parco. Seu pensamento e memória parecem definhar ante a precariedade de sua condição humana. Foi para sua surpresa, e dos demais presos e agentes carcerários, que, durante a visita da Cruz Vermelha, um presente lhe foi entregue, contendo o selo real da coroa britânica. Nin-guém ousou tocar no presente com tal estampa. Era um teclado mudo enviado pela Rainha, apreciadora de suas composições. Ele pode, finalmente, tocar suas músicas, que lhe retornavam com uma nitidez sensível e pulsante. Quando da estreia do documentário, Estrella foi convi-dado, mas recusou-se prontamente a assisti-lo, alegando que seu trabalho já tinha sido feito. Somente passados muitos anos, ele concorda em assistir ao documentário na companhia de um amigo, tão somente. Na parte em

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que relata essa situação limite, entre a alucinação e a re-alidade, Estrella foi possuído por um terror insuportável: “Comecei a berrar, não conseguia parar de berrar. Foi só naquele momento que entendi o horror que tinha vivido” (Macedo, 2012 p. 226).

Ao comentar esse episódio, Heitor O’Dwyer Macedo diz que aí reside uma dimensão fundamental do saber testemunhal, qual seja, a ficção. Foi somente ao ver-se na tela que algo da experiência de Estrella pôde ser vivi-do de outra forma. Ao ver-se na cena de sua loucura, a música, então alucinada, passou para o registro da ficção; ela deveras existia como registro de sua memória, mas lhe retornava no cárcere como uma rebarba do real que lhe protegia da barbárie vivida.

A dor que exprime o berro assinala a queda, o fim da alucinação: a partir de agora, ele poderá – até o fim de seus dias – falar a respeito. A possibilidade de narrar essa experiência é indissociável de uma perda. (Macedo, 2012, p. 226).

A fronteira que demarca essa passagem, esse ponto de encontro entre o real da violência e a possibilidade de um outro por meio do qual se pode narrá-la é, sem dú-vida, tênue. O espaço ficcional do testemunho revela-se, assim, para nós, como uma dimensão imprescindível para a elaboração e a transformação psíquica do traumático ao “abrir as imagens” da violência totalitária. De forma ampla, sublinhamos que, nos processos de redemocratização das ditaduras, é necessário levar em conta sempre essa dimen-são ficcional intrínseca ao saber testemunhal. Assim, opera-mos um segundo deslocamento do testemunho, este, diante do paradigma historiográfico. O testemunho, por ser, por excelência, lacunário (Agamben, 2008) e ficcional (Macedo, 2012), poderá e deverá ser parte integrante dos processos de verdade e justiça, na medida em que tais idiossincrasias possam ser levadas em conta com o rigor necessário. Me-nos para serem tratados como falas subjetivas desprovidas de “realidade histórica”, mais para compreendermos que a realidade histórica é, segundo Freud (1938), sempre uma construção psíquica que atesta as condições nas quais o sujeito encontra-se imerso. Abandona-se definitivamente a pretensão de que um sujeito poderia narrar por inteiro o terror totalitário, mas que, devido ao irrepresentável do real da violência pela qual ele foi tocado, trata-se de reco-nhecer e facilitar os pontos de obscuridade nos quais ele aparenta desaparecer ante o terror.

Gagnebin (2006), amparando-se em Benjamin, tenciona o conceito de história, na medida em que esta

não pode ser conhecida por meio dos “fatos tais como foram” (p. 40). Sublinha, portanto, a noção da narrativa, ampliando sua importância na construção de uma história que se dá a partir da possibilidade de nomear, destacar e pinçar fragmentos de um acontecimento. Assim sendo, abre-se a dimensão ficcional da própria história, na qual o testemunho torna-se a chave que permite ligar a vivên-cia subjetiva à dimensão coletiva de seu reconhecimento histórico. Se a crise narrativa apontada por Benjamin demonstra que algo da transmissão da experiência cai no século XX, o testemunho emerge das grandes guerras como a forma peculiar de amarrar esta fratura.

Com isso não defendemos que o próprio sujeito que testemunha deva abandonar um ideal histórico em seu discurso. Sublinhamos apenas a reserva que aquele que o escuta deve ter durante o processo de testemunho, para que sua vontade da verdade não emperre o processo de elaboração do testemunho. As diferentes orientações pro-fissionais dos receptores cumprem um papel importante aqui: um dado que parece desprezível a um historiador pode cumprir uma função importante para um psicana-lista ou um jurista. O nó é precisamente não excluir do processo e do resultado final exatamente as rebarbas de real, os atos falhos, as alucinações e hesitações sobre o que dizer, como dizer, por que dizer. Como nos ensina Freud (1938), é possível que em toda verdade esconda-se um grão de loucura privada. A questão é atestar as con-dições psíquicas necessárias para que tais falas emirjam e desencadeiem processos de saúde para o sujeito.

Caso Guimarães

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma par-te. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais […] Aquilo não havia, acontecia. (Guimarães Rosa).

Para ilustrar tais reflexões, apresentamos uma vinheta de um caso atendido pelo Projeto Clínicas do Testemunho. Guimarães começava suas consultas sempre da mesma forma. Empenhava-se ao máximo em contar a verdade dos fatos ocorridos, sem deixar, na medida do possível, nada para trás. Começou por sua infância, passou pelos primei-ros empregos, a militância, a entrada na clandestinidade, as viagens para treinamento de guerrilha, a volta ao Brasil, suas ações para levantar alvos, até chegar à sua prisão, em São Paulo, na operação Bandeirantes. Foram mais de oito anos preso, passando de prisão em prisão, de torturadores a torturadores, participando de notória greve de fome, até

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ser solto no fim dos anos 1970. Contou, então, como foi a volta à ativa: novos alvos, velhos problemas. Dinheiro, logística, os “P2”, as prisões de companheiros. Quando a ditadura acabou, ele voltou ao seu antigo trabalho, mas logo a seguir foi aposentado por invalidez. Ataques de ausência e desmaios acometiam-no em plena labuta. Acom-panhávamos suas histórias, comentando alguns trechos e ajudando-o a retomar outros mais arredios. No entanto, uma pergunta seguia nos visitando: o que acontecerá jus-tamente quando a “agitação” da militância acabar? Será que ele se levantará e irá embora ou será que tombará em um sono profundo?

– O senhor sabe, né?! Eu não posso ficar contando lorota aqui para o senhor.

– O que seriam as lorotas, Guimarães?

– Essas coisas que os outros dizem que fizeram, mas só dizem depois que ficam velhos e querem a imprensa em cima deles. Eu tenho que lhe contar o que fiz, e o que não fiz não posso lhe contar.

Nessa simples frase, de lógica quase infantil, enun-ciava-se um medo, uma vergonha, que, até então, não se faziam presentes. Para um historiador ou jurista, a justeza da lógica não dá margem a mais indagações. No entanto, o que o sujeito deseja enunciar por meio dessa dupla negativa, cuja fala encontra-se estancada?

Para nossa surpresa, o que se procede após o final do relato histórico da militância e resistência não é uma continuidade que nos levaria aos dias de hoje, mas, antes, uma cãibra discursiva. Guimarães recomeçará todas as próximas sessões como se houvesse parado sua narrati-va na prisão em São Paulo. Após comentado isso, ele se constrange e desculpa. Como se eu houvesse justamente o confrontado com uma lorota. Ele passará a realizar um esforço enorme para trazer outros fatos; fatos que o remetem a sua vida atual, na qual um enorme sono, ume crise de perpétua ausência invadem-no. Sua vida “atual” começa a ser narrada, à diferença da outra, por enormes blocos de histórias desconexas que são apresentadas como se já narradas. Em uma dada sessão, ele recomeça dizendo: “minha mulher está ‘braba’ comigo; desde que venho aqui os pesadelos retornaram”. São perseguições, fugas, sonhos de angústia nos quais ele, invariavelmente, encontra-se preso novamente. A via clínica apresenta-se, assim, em fazer movimentos de vai e vem, nos quais essas prisões possam ser atualizadas na fala.

Passados alguns meses, Guimarães é convidado pelas coordenações do Projeto Clínicas do Testemunho

e da Comissão Estadual da Verdade (CEV) a dar seu depoimento. Nas sessões anteriores ao encontro, pro-curo instigá-lo a falar sobre os sentidos que ele atribui a tal evento. Digo que ele será acompanhado por um integrante do Clínicas durante a sessão, e ele mostra-se muito à vontade com o fato. Não é a primeira vez que ele presta um depoimento. Nem será a última, garante ele. Minutos antes do depoimento, entretanto, nenhum sinal de Guimarães. Liga-se, procura-se por ele na rua, e nada. Estranho, dado o fato de que ele havia saído cedo de casa, segundo as palavras da mulher, que atende seu telefone. Guimarães, descobriu-se depois, enganara-se de lugar e, após chegar ao destino correto, ficara de tocaia no saguão do prédio, sem se apresentar a ninguém, pois, na época da clandestinidade, esta era a estratégia que confessa haver empregado para não ser pego. Ficava claro que os tempos de clandestinidade não eram tão pretéritos assim.

A clivagem de sua vida, antes e após a clandestinida-de, revelava seus efeitos perturbadores em atos tais quais o narrado. Ante a possibilidade de narrar sua história, algo do real da violência sofrida retorna de forma desor-ganizadora ao seu psiquismo. Durante todo o processo de depoimento, ficou claro, mais uma vez, que não o assustava falar daquilo que ele sabia falar: sua história, ações, tortura, prisão. O que o atormentava era, muito antes, aquilo que escapava de sua memória, da lorota que ele não pode falar, mas que, irremediavelmente, atua como repetição sintomática de um sofrimento enorme, que não encontra espaço na fala, na teia simbólica que ele dispõe para narrar.

Após seu depoimento na CEV, o trabalho clínico consistiu-se justamente em ajudá-lo a pensar no que havia se passado nesses minutos antes de depor. Ele admite tratar-se dos mesmos lapsos ou crises que experimentava antes de aposentar-se, nos quais era invadido por sensa-ções e imagens que não dominava. Algumas sessões após, ele espontaneamente comenta: “Engraçado, deve ser por isso que eu durmo tanto, para não ter que viver essas coisas novamente. Eu tenho sono em todo o lugar, menos quando estou conversando aqui”. Ele reconta uma cena, então, que o apavorava desde os tempos de prisão. Após as sessões de tortura na operação Bandeirantes, quando ele já se encontrava totalmente extenuado de suas forças, um homem invariavelmente entrava na sala de tortura. Era ele quem decidia a continuidade, ou não, das sevícias. Esse homem sem nome, essa face anônima, sem cometer nenhum ato brutal, paralisava-o de pavor. Era uma face indiferente, que nada fazia e tudo controlava. Era sob o

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domínio dessa indiferença que Guimarães continuava, de certa forma, preso no cárcere em São Paulo.

A partir dessa desaparição constante é que come-çaríamos a trabalhar o não-lugar que tal encarceramento ocupava em sua vida. Não-lugar desde onde a verdade histórica não pode aceder à luz do depoimento, pois não simbolizada pela realidade psíquica. O pacto testemunhal ali selado demarcava, igualmente, esse encontro entre o testemunho e seu receptor, no qual se atualizam e des-pertam os afetos mais arcaicos do psiquismo. Demonstra--se, assim, igualmente, que a passagem do privado ao público, destino almejado por todo testemunho, não é uma via de mão única, mas que este último desacomoda os afetos e representações que até então apresentavam-se razoavelmente apoiados no psiquismo. O depoimento na CEV constituiu-se como uma das etapas para pensar o processo de testemunho, no qual, tal como o exemplo de Miguel Estrella, requisita um espaço ficcional para constituir-se em um saber do sujeito. Uma terceira mar-gem do rio, que possa aproximar essas partes clivadas pela violência totalitária.

Para Guimarães, a pergunta segue acontecendo, com mais ou menos espaços públicos para ser escutado. Afinal, que significara tudo aquilo? Tinha ele ido a algum lugar com toda a luta ou eram apenas lorotas a serem ditas em vão? Pode alguém vangloriar-se de ter subido na canoa e lá ter permanecido por tempo indeterminado? A resposta, ele mesmo dá, talvez a despeito de si mesmo: “a diferença entre nós e a esquerda festiva é que demos um passo a mais”.

Considerações finais

A partir da análise destes fragmentos clínicos, re-tomamos as questões levantadas no início deste ensaio. Como defendido, ao diferenciarmos o depoimento da dimensão do testemunho, este nos abre a perspectiva de elaboração do trauma produzido pelas tecnologias de silenciamento. Tomando o testemunho como um saber ficcional, este implica o reposicionamento do sujeito ante o horror vivido, justamente na medida em que um outro o escuta, emprestando-lhe um espaço para pensar e sentir aquilo que anteriormente lhe era impossível. O testemunho, como ferramenta clínico-política, distancia-se da evidência jurídica para, assim, fazer emergir a verdade da experiência do sujeito.

Nesse sentido, parece-nos importante fazer uma ressalva quanto à palavra “reparação”, utilizada no cam-po da justiça de transição, uma vez que este processo de elaboração do traumático não almeja um apaziguamento

por meio do apagamento do vivido, mas propõe uma recomposição psíquica e coletiva dos episódios de horror. Deste modo, uma clínica do testemunho é, ipso facto, uma

clínica do laço social, ao criar condições de possibilida-de para que se escutem e se criem novos testemunhos, conectando intergeracionalmente a atualidade do horror que ainda marca nosso tecido social. O Projeto Clínicas do Testemunho é, portanto, um passo dentro do processo de justiça de transição, cuja grande carência ainda reside na não responsabilização dos agentes perpetradores de violência, amparada na lógica dos crimes conexos.

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