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O Efeito Negro Encantado: Representações Étnico-raciais em Campanhas Eleitorais na Era Obama: O Caso American Stories/American Solutions

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

CULTURA E SOCIEDADE

O EFEITO NEGRO ENCANTADO

REPRESENTAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS EM CAMPANHAS ELEITORAIS NA ERA OBAMA

O CASO AMERICAN STORIES/AMERICAN SOLUTIONS

por

MÁRCIO NUNES DE ABREU

Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Mauricio Matos dos Santos Pereira

SALVADOR 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

CULTURA E SOCIEDADE

O EFEITO NEGRO ENCANTADO

REPRESENTAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS EM CAMPANHAS ELEITORAIS NA ERA OBAMA

O CASO AMERICAN STORIES/AMERICAN SOLUTIONS

por

MÁRCIO NUNES DE ABREU

Orientador(a): Prof. Dr. / Mauricio Matos dos Santos Pereira

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre.

SALVADOR 2018

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Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA), com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Nunes de Abreu, Márcio

O Efeito Negro Encantado: Representações Étnico-raciais em Campanhas Eleitorais na Era Obama: O Caso American Stories/American Solutions / Márcio Nunes de Abreu. -- Salvador, 2018.

155 f. : il

Orientador: Mauricio Matos dos Santos Pereira. Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade) -- Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, 2018.

1. Representações Étnico-raciais. 2. Barack Obama. 3. Negro Encantado. I. Matos dos Santos Pereira, Mauricio. II. Título.

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Aos meus pais, José Hilcério Campos de Abreu e Maria do Carmo Nunes de Abreu, que, entre erros e acertos, contribuíram para que eu me tornasse o homem que sou.

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AGRADECIMENTOS

Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes. - Isaac Newton -

A pesquisa acadêmica é um processo solitário. Ainda que possua uma parcela de verdade, tal afirmação não faz justiça à experiência vivida ao longo deste trabalho. A solidão é um sentimento, e sentimentos apenas refletem nossa percepção da realidade. Sentir-se só é diferente de estar só. Embora tenha estado só pela maior parte tempo, foram pouquíssimas as ocasiões em que me senti só durante a produção desta pesquisa.

Existem duas razões que explicam esta experiência pessoal. Ambas são motivos de agradecimento.

A primeira delas está na maneira como vejo esta produção. Ela, esta pesquisa, não possui uma existência autônoma, mas depende e está irremediavelmente ligada a algo maior. Tampouco ela reflete uma objetividade imparcial. Objetividade e autonomia moral e intelectual são conceitos relativos. No fundo, não passam de mitos ocidentais, criados para nos fazer sentir mais independentes do que realmente somos.

Penso que este trabalho deve sua existência e, por isso, faz parte de uma tradição de esforços antirracistas e de desconstrução da supremacia branca. Assim, ele reflete a citação da epígrafe acima. Como sentir-me só, quando apoio-me sobre os ombros de gigantes como Fanon, Hall, Mbembe, Bhabha, Bogle, Snead, Hooks, Barthes, Alexander, Carby, Memmi, Said, Stam, Shohat, Omi, Winant, Roediger, dentre outros? “Por Márcio Nunes de Abreu”, diz a capa deste trabalho; mas, não tenho tanta certeza quanto à precisão da frase. Agradeço, desta forma, aos que vieram antes de mim, e que pavimentaram o caminho crítico/teórico sobre o qual percorri.

A segunda razão pela qual não me sinto só nesta empreitada, se deve àqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização desta obra. Desde discussões sobre racismo e identidade racial, o compartilhamento de um vídeo ou matéria, ou mesmo questões de ordem prática, como o envio de uma obra não disponível no Brasil ou a ajuda na revisão gramatical do texto, a verdade é que estas pessoas me fizeram sentir amparado durante o meu processo de produção. Nomear a todos seria impossível. Alguns nomes, no entanto, merecem ser citados.

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Agradeço primeiramente a Chip Finney, por razões demais complicadas para constarem nesta breve carta de reconhecimento. Without your support, my Brother, this work would have never been possible.

Ao meu irmão Lamar Redcross, que, há dez anos, me incentivou a superar as dificuldades pessoais e persistir no meu projeto acadêmico.

A Cristiano Andrade e Thais Miranda, por terem sido uma luz nos momentos de escuridão e por, de certa forma, terem influenciado na minha decisão de ingressar neste programa de Mestrado.

A Leo Mineiro, por me ensinar a respirar.

Ao meu irmão, King Esseen, por me apresentar ao conceito do Negro Encantado. A Reverendo Jeremiah Wright, por ter lido o trabalho realizado em 2009 e ter me encorajado a seguir adiante.

A Daniel Dawson, Robin Kelley e Kwasi Konadu, pela indicação de obras sem as quais este trabalho não teria sido possível; e ao amigo Kenneth Dossar por ter concordado em ser o portador de algumas dessas obras.

Aos amigos Gladys Michel e Ernie Samuel Kidd, por me presentearem com obras ainda indisponíveis no Brasil.

Ao meu orientador, Mauricio Matos, por ter me forçado a ir além dos meus limites epistemológicos.

À professora Rita Aragão, por ter me ajudado a colocar os pés no chão em relação às promessas feitas na qualificação e sobre o tempo disponível para a execução e o cumprimento de tais promessas.

Ao professor Osmundo Pinho, por generosamente me apresentar a teoria da formação racial, sem a qual este trabalho certamente seria outro.

Ao professor Howard Winant, pelos esclarecimentos e pela gentileza em responder aos meus e-mails.

A Camele Queiroz, pela legendagem do comercial American Stories/American Solutions.

Ao professor e amigo, Carlos Bonfim, por ter sido uma espécie de “irmão mais velho” durante a minha passagem pelo Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia.

A Maria Alice Bittencourt, por tão prontamente se disponibilizar para a revisão gramatical do texto, aos quarenta e cinco do segundo tempo.

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A Hannah Romã, Fabrício Ramos e Joana Flores pela cumplicidade acadêmica e pela amizade construída ao longo do programa.

Ao Professor Beto Severino, e a todos do grupo de pesquisa Memória e Identidade, pelas instigantes discussões.

À FAPESB pelo auxilio financeiro que, em grande parte, tornou possível a continuidade da minha formação acadêmica e a realização desta pesquisa.

A toda a minha família, pelo amor incondicional.

A Kamau Blakney, Jennifer Abernathy, Carlos Moore, Ugo Edu, Byron Johnson, Shamyra Edmonds, Buddy Buruku, Christopher Johnson, Susana e Peter Oguntoye, Ismael Seik, Mariamma Kambon, Jair Sena, Louhrenço Filho, Alan Souza, Nilzete dos Santos, Elizete Oliveira, Lawrence Booker, Vilma Reis, Sílvio Humberto, Vânia da Cruz, Fabiana Campos, Cecília Soares, Michele e Emmanuel Alexandre e tantos outros irmãos e irmãs negr@s, de diferentes nacionalidades e caminhos, cujos os nomes a memória não me permite acessar, mas que fizeram parte da minha reeducação racial.

Por fim, agradeço a Misael Alvarez, o primeiro a me acolher quando minha branquitude brasileira se mostrou insuficiente para navegar em outras águas.

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RESUMO

O presente trabalho consiste em uma análise crítica, interdisciplinar, dos regimes de representação étnico-racial do comercial político American Stories/American Solutions — peça publicitária audiovisual de 30 minutos, produzida para fins eleitorais, lançada pela campanha do candidato Barack Obama durante as eleições presidenciais de 2008, nos Estados Unidos. Partindo da materialidade do comercial, procuramos demonstrar de que maneira American Stories/American Solutions reproduz os esquemas fílmico-narrativos dos filmes com Negros Encantados — gênero hollywoodiano introduzido no cinema americano durante a década de 1990. Neste trabalho, defendemos a hipótese de que as estratégias de representação étnico-racial adotadas em/por American Stories/American Solutions são capazes de produzir um efeito de atenuação dos temores e ansiedades raciais do eleitorado branco-americano — em relação à possibilidade de eleição do primeiro homem negro à presidência dos Estados Unidos —, ou o que resolvemos chamar de “Efeito Negro Encantado”. Argumentamos que, assim como no caso dos filmes com Negros Encantados, American Stories/American Solutions reproduz um discurso subjacente de normatividade branca e de subalternização da identidade negra, além de produzir um efeito de invisibilização do racismo americano. Com base na teoria da formação racial, desenvolvida por Howard Winant e Michael Omi, concluímos que o comercial American Stories/American

Solutions reproduz, de maneira implícita, a ideologia do daltonismo racial sobre a qual foi

construído o projeto racial hegemônico vigente, nos Estados Unidos, durante as eleições de 2008. Para além de um estudo sobre apelos raciais implícitos em campanhas eleitorais, essa investigação busca uma convergência entre diferentes disciplinas e tradições analíticas para demonstrar de que maneira identidades étnico-raciais são cinematograficamente construídas, como os significados raciais nelas e por elas produzidos se relacionam com realidades políticas e sociais de períodos históricos específicos, os discursos ideológicos de supremacia racial que essas representações reproduzem e as maneiras pelas quais tais discursos são capazes de mediar nossas experiências cotidianas e nosso entendimento do mundo.

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ABSTRACT

The present work consists in an interdisciplinary critical analysis of ethnic/racial representations in the political ad, American Stories/American Solutions; a 30min infomercial created by Barack Obama’s campaign during the 2008 Presidential Elections in the United States. In this context, we therefore sought to demonstrate the ways through which American Stories/American Solutions reproduces the filmic/narrative schemes of Magical Negro films. We argue that the strategies of ethnic/racial representations used in American Stories/American Solutions are capable of producing an effect of attenuation of white American’s racial fears and anxieties regarding the possible election of the first black man to the presidency of the United States. We describe this effect as a “Magical Negro Effect”. Just as in the case of Magical Negro Films, American Storie/American Solutions reproduces an underlying discourse of white normativity and black subalternity, in addition to creating an effect of invisibilization of racism and of the racial hierarchies of America’s social structure. Based on the theory of racial formation, developed by Howard Winant and Michael Omi, we concluded that American Stories/American Solutions implicitly reproduces an ideology of colorblindness, upon which stands the current hegemonic racial project in the United States. In addition to contributing to the studies of implicit racial appeals in electoral campaigns, this investigation seeks a convergence between different disciplines and analytical traditions to demonstrate how ethnic/racial identities are cinematographically constructed, how the racial meanings produced by them connect to the political and social realities of specific historical periods, and to reveal the ideological discourses of racial supremacy reproduced by these representations.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Anúncios de espetáculos de menestrel ... 52

Figura 2 – Cartaz e cenas da obra cinematográfica The Birth of a Nation ... 55

Figura 3 – Cartões postais do início do século XX, contendo imagens de linchamentos de homens negros ... 57

Figura 4 – Cartazes dos filmes Sweet Sweetback’s Badaaass Song (1971), Shaft (1971) e Superfly (1972) ... 61

Figura 5 – Cenas do filme Rocky III: O Desafio Supremo ... 75

Figura 6 – Imagens do comercial Horton/Dukakis ... 78

Figura 7 – Imagens de Gus, James “Clubber” Lang e Willie Horton ... 81

Figura 8 – Material publicitário da campanha de Obama em 2008 ... 98

Figura 9 – Cenas dos filmes The Shack, Bruce Almighty e The Matrix ...102

Figura 10 – Cenas da sequência de abertura do comercial American Stories/American Solutions ... 103

Figura 11 – Obama conversa com um grupo de idosos ... 106

Figura 12 – Planos fechados em Obama e personagem feminina ... 107

Figura 13 – Obama em interação com americanos comuns ... 108

Figura 14 – Obama, em uma sala, discursa para um grupo de americanos ... 110

Figura 15 – Casos reais de violência contra afro-americanos contrastam com o tratamento recebido por John Coffey em The Green Mile ... 117

Figura 16 – Cenas dos filmes The Legend of Bagger Vance e What Dreams May Come... 118

Figura 17 – Mise-en-scène como recurso de marcação étnica de Juliana Sanchez e família.121 Figura 18 – Cenas da sequência sobre Larry e Juanita ...123

Figura 19 – A afro-americanidade de Larry e Juanita contrastam com o excepcionalismo de Barack Obama ...131

Figura 20 – Fotografias do candidato Barack Obama em diferentes fases da infância ...137

Figura 21 – Planos fechados nos rostos de americanos brancos ...142

Figura 22 – Cenas do comercial American Stories/American Solutions e do filme The Green Mile...143

Figura 23: Sequência de fotografias de Obama, em preto e branco, exibidas ao final do comercial...145

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...13

CAPÍTULO 1... 20

1.1 O Negro como Construção... 20

1.2 Normatividade Branca, o Outro Lado da Moeda... 29

1.3 Representação e Identidade Negra... 33

1.4 Representação e Projetos Raciais... 40

CAPÍTULO 2... 48

2.1 Tipos Míticos e Identidade Negra no Cinema Americano... 48

2.2 Recursos Fílmicos, Diferença Racial e Normatividade Branca... 64

2.3 De Willie Horton a Barack Obama: Vilões Negros a Negros Encantados em Campanhas Eleitorais Americanas... 77

CAPÍTULO 3... 92

3.1 O Caso American Stories/American Solutions... 92

3.2 Esperança e Mudança em meio à Crise: Contextualizando American Stories/American Solutions... 96

3.3 Ansiedades Raciais e Normatividade Branca... 100

3.4 Daltonismo Racial: Invisibilizando o Racismo Americano... 113

3.5 Afro-americanidade e Excepcionalismo Iluminado... 124

3.6 Alteridade Mística... 133

3.7 O Efeito Negro Encantado... 140

CONCLUSÃO... 147

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INTRODUÇÃO

Começarei esta apresentação discorrendo brevemente sobre as motivações que me levam a investigar a questão racial. Dessa maneira, considero importante informar ao leitor que o autor deste trabalho se trata de um branco brasileiro. Ao contrário do que se prega ultimamente, a raça e o racismo são, também, assuntos dos brancos. Dizer o oposto é assumir a crença de que a raça é uma categoria que não nos diz respeito e, assim, reproduzir o discurso da normatividade branca. Assim como os negros, somos afetados pela construção social da raça e pelos efeitos do racismo, embora de maneiras completamente distintas. Justamente por ser um sujeito racializado — neste caso, um branco —, posso desfrutar de certos privilégios que nada têm a ver com os meus esforços individuais e as minhas conquistas pessoais, mas que se configuram como efeitos dos significados associados às minhas características físicas e ao lugar social que, por força do racismo, me foi concedido.

Mas o que motiva um branco brasileiro a falar, principalmente, sobre a identidade negra e, em especial, sobre o negro norte-americano? A resposta encontra-se, em parte, na auto-declaração acima proferida, na medida em que há uma ênfase não somente na raça, mas, também, na nacionalidade do autor. Como brasileiro, tive a oportunidade de residir nos Estados Unidos por um total de quatro anos e, dessa forma, viver a experiência temporária e relativa de ser uma minoria étnico-racial. Ora, não faltam exemplos de que, nos Estados Unidos, raça e etnicidade andam lado a lado, e a própria noção hegemônica de nacionalidade americana carrega uma forte conotação racial.

Como espero ter demonstrado neste trabalho, existe uma relação íntima de coautoria entre noções hegemônicas de raça e nacionalidade nos processos de uma construção americana da identidade branca. Talvez seja por isso que a maioria de nós, brasileiros “brancos”, ao passarmos algum tempo nos Estados Unidos, estamos sujeitos a vivenciar, em maior ou menor grau, a condição constrangedora e desconfortável de habitar um “quase lugar”. Em outras palavras, a impossibilidade de integrar-se plenamente ao grupo racial dominante.

Seria, no entanto, desonesto afirmar que não existe, para alguns de nós, qualquer possibilidade de desfrute de certos privilégios raciais ao chegarmos aos Estados Unidos. “O judeu só não é amado a partir do momento em que é detectado”, disse Frantz Fanon (2008, p.108) em Pele Negra, Máscaras Brancas. Em certa medida, este é o caso para alguns brancos brasileiros que se arriscam no país que “eles” chamam de América. É a dimensão

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alguns de nós, brancos brasileiros, possamos, em certas ocasiões, passar despercebidos por entre os brancos americanos.

Discordo daqueles que dizem que o amor educa. Em certo momento da minha experiência estadunidense, tive a oportunidade de viver com uma família americana. Para ser mais preciso, branco-americana. Justiça seja feita, não posso jamais afirmar que, durante aquele período, em qualquer momento, senti ter recebido menos amor dos meus pais e irmãos americanos do que eles distribuíam entre si. Talvez por isso o choque ao perceber que aquele amor enfraquecia, até se dissipar por completo, à proporção em que eu me afastava daquele núcleo familiar e dos que em torno dele se agregavam. Nesse sentido, o amor recebido daquela família branca mais confundia do que lançava qualquer luz de entendimento sobre o meu novo lugar social, determinado pela minha condição de latino expatriado.

Podemos ser educados com amor, mas nunca pelo amor. De modo que a educação que me faltou para transitar com mais cuidado e astúcia por aquela nova realidade, encontrei-a fora do mundo branco, a mim concedida, com amor, por meus irmãos e irmãs afro-americanos, e por um porto-riquenho de nome Misael. Ainda hoje, posso ouvir as palavras de um dos meus irmãos negros: “Go to fucking Texas and they will show you how white you are”.1 De certa maneira, esta frase sintetizava a minha experiência racial nos Estados Unidos.

Nasci e cresci “branco” em Salvador, cidade mais negra do país. Contudo, nos Estados Unidos da América, havia momentos em que toda a solidez da minha branquitude se desmanchava no ar. Testemunhei, embora de maneira inversa, o mesmo acontecer com alguns dos meus irmãos afro-americanos ao chegarem no Brasil. A força com a qual o colorismo brasileiro se impõe sobre a experiência social do indivíduo deve ser algo intrigante para o negro americano. Lembro-me do profundo incômodo de uma amiga afro-americana em visita a Salvador, ao ser verbalmente identificada por uma negra brasileira: “É aquela branca ali”, disse a brasileira. A frase, embora pronunciada de maneira inocente, foi recebida como ofensa pela americana.

Era igualmente interessante notar como o brasileiro (e, principalmente, o branco brasileiro) é capaz de amar o negro americano, mas não o negro da sua própria terra. No Brasil, o negro americano só não é amado enquanto não é identificado. Percebi que existia uma interseccionalidade entre raça, nacionalidade e situação geográfica que fazia com que alguns negros fossem mais amados do que outros, e com que a branquitude de alguns brancos fosse posta em questão.

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No entanto, não me bastava ter a consciência de que a raça, embora capaz de produzir efeitos reais nas vidas de pessoas reais, não era uma âncora suficientemente estável para o meu trânsito neste planeta. Era preciso compreender de maneira mais aprofundada os “porquês” de tais fenômenos. De certa forma, o presente trabalho é um esforço em entender, a partir de uma perspectiva teórico-acadêmica, as minhas próprias experiências pessoais no universo étnico-racial. Some-se a isso a velha paixão pelo cinema, o que me levou a investigar as maneiras pelas quais identidades étnico-raciais são cinematograficamente construídas.

O interesse no objeto em torno do qual esta investigação se desenvolve surgiu em 2008, mesmo ano em que aconteceu a quinquagésima sexta eleição presidencial nos Estados Unidos. Na ocasião, eu acabara de ingressar como bolsista em um programa de mestrado em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Universidade de Nottingham, no Reino Unido. Pouco antes de deixar o Brasil, conversávamos, eu e um dos meus irmãos afro-americanos, sobre estereótipos raciais no cinema hollywoodiano; um dos muitos assuntos ligados à questão racial sobre os quais gostávamos de debater. Foi dessa forma que passei a me familiarizar com o conceito do Negro Encantado: um personagem negro portador de atributos sobrenaturais e/ou sabedoria extraordinária, mas cujos poderes eram circunscritos pelos limites impostos por uma relação de hegemonia e subalternidade junto a um protagonista branco.

Acompanhei atentamente as eleições estadunidenses naquele ano, assim como a rápida ascensão de Barack Obama, na época Senador no Estado de Illinois e candidato à presidência pelo Partido Democrata. Era impressionante imaginar que ainda existia um grande número de afro-americanos cujas infâncias e juventudes haviam sido vividas no período das leis Jim Crow de segregação racial, e que estes mesmos afro-americanos estavam prestes a testemunhar a eleição do primeiro homem negro à presidência dos Estados Unidos. Igualmente intrigante foi perceber a quantidade de jovens brancos euforicamente engajados na campanha do candidato democrata. Seriam estes os indícios de que os Estados Unidos se encontravam em vias de superação da sua longa história de racismo e que, finalmente, realizavam uma bem-sucedida transição em direção a uma era “pós-racial”?

A pergunta me levou a escolher a campanha de Barack Obama como tema para o trabalho de conclusão do programa de pós-graduação da Universidade de Nottingham. O objeto, na ocasião, foi o mesmo sobre o qual me debruço na presente investigação, ou o

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comercial político American Stories/American Solutions2 (Estórias Americanas/Soluções Americanas, em português).

Considero, porém, bastante incompleto o trabalho de então. Restrições de tempo, impostas pela exigência de que estudantes de além-mar terminem seus programas de mestrado no prazo de apenas um ano, me impediram de imprimir o rigor crítico que o assunto está a exigir. Dessa maneira, o texto que o leitor tem em mãos em muito se difere do trabalho realizado em 2009, não apenas por ser mais consistente e robusto, mas, também, pela própria metodologia adotada.

Por meio de um esforço de convergência entre diferentes disciplinas e tradições analíticas, tentei não apenas identificar os significados raciais subjacentes às representações com as quais escolhi trabalhar, mas demonstrar de que maneira tais significados se relacionam com realidades políticas e sociais de períodos históricos específicos, os discursos ideológicos de supremacia racial que essas representações reproduzem, e as maneiras pelas quais tais discursos são capazes de mediar nossas experiências cotidianas e nosso entendimento do mundo. Para isso, dialoguei com produções das áreas dos estudos culturais, comunicação política, análise fílmica, semiologia, sociologia, história, estudos pós-coloniais, psicologia social e pós-estruturalismo.

Como indicado no título, essa investigação trata de representações étnico-raciais em campanhas eleitorais nos Estados Unidos e, em especial, no comercial American Stories/American Solutions: peça publicitária audiovisual produzida para fins eleitorais, lançada pela campanha política de Barack Obama durante as eleições presidenciais de 2008. O comercial se destaca por sua qualidade cinematográfica e por ter sido um dos únicos com duração de 30 minutos em toda a história das campanhas eleitorais americanas.

Para além da apresentação do plano de governo de Barack Obama, American Stories/American Solutions inova por articular-se em torno da realidade material do americano comum, apresentando histórias reais em uma perspectiva dramática. Em American Stories/American Solutions, Obama divide os holofotes com o povo americano, representado, principalmente, por quatro famílias de classe média (duas famílias brancas, uma negra e uma de origem latina), cujas histórias são narradas durante o comercial. A centralidade atribuída ao americano comum não só justifica o título desta peça publicitária, como sugere que o comercial não é apenas sobre o candidato Barack Obama, mas sobre o povo dos Estados Unidos.

2 O comercial político American Stories/American Solutions encontra-se disponível para visualização, com

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A presente investigação encontra-se dividida em três capítulos. No primeiro, proponho uma abordagem histórico-construtivista sobre identidades étnico-raciais, as formas como são representadas e os significados raciais nelas e por elas reproduzidos. Por essa perspectiva, sugiro que, tanto o negro quanto o branco, devem ser entendidos como sujeitos produzidos dentro de formações discursivas definidas, o que implica reconhecer que essas identidades só existem com sentido dentro dos discursos a seus respeitos e das práticas geradas a partir de tais discursos. Procuro pensar tais formações discursivas em termos de regimes de saber/poder, histórica e socialmente situados, capazes de produzir efeitos de normatização da identidade branca e subalternização da identidade negra.

Ainda neste capítulo, discorro sobre a forma como utilizo o conceito de representação, sendo esta entendida não como uma relação dual de reflexo, imitação ou correspondência direta entre uma imagem ou texto e aquilo que se pretende representar, mas como prática de construção de sentido; ou uma das maneiras pelas quais significados e valores são produzidos por meio de uma linguagem e compartilhados entre os membros de uma cultura. Nesse contexto, proponho uma articulação entre as maneiras pelas quais identidades étnico-raciais são representadas nos/pelos meios de comunicação — e, em especial, pela linguagem audiovisual — e os processos de reprodução e manutenção da hegemonia de determinados projetos raciais nos Estados Unidos. Com isso, procuro enfatizar o lugar central da representação nos processos de articulação entre os significados raciais de diferentes práticas discursivas, os esforços em organizar racialmente uma sociedade e as maneiras pelas quais tais significados são reproduzidos pelo senso comum e nas experiências cotidianas.

No segundo capítulo, procuro utilizar o arcabouço teórico apresentado no capítulo anterior para desenvolver uma metodologia de análise crítica de representações étnico-raciais em textos cinematográficos. O capítulo inicia com uma abordagem sobre as maneiras pelas quais a identidade negra tem sido representada no/pelo cinema hollywoodiano. Para isso, apresento uma análise do clássico cinematográfico The Birth of a Nation (1915), procurando articular os regimes de representação étnico-racial do filme à realidade social e política dos Estados Unidos em períodos históricos específicos. O objetivo nesta sessão é propor uma análise das representações de identidades étnico-raciais no cinema americano a partir do contexto da teoria da formação racial, desenvolvida por Michael Omi e Howard Winant (2015). Dessa forma, busco articular os significados raciais produzidos em/por The Birth of a Nation (1915) ao projeto racial hegemônico em vigor no Sul dos Estados Unidos durante as décadas que sucederam o período da Reconstrução.

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diferença racial é cinematograficamente construída no/pelo cinema hollywoodiano. A partir do filme Rock III: O Desafio Supremo (1982), tento demonstrar de que maneira o cinema americano inter-relaciona representações de identidades brancas e não brancas — neste caso, a identidade afro-americana — de modo a construir significados raciais que, em última análise, produzem efeitos de normatização da identidade branca e subalternização da identidade negra. Nesse contexto, argumento que a construção da identidade branca como referencial normativo, tanto quanto uma autoimagem branco-americana, têm sido produzidas em simultaneidade e equivalência com noções hegemônicas de humanidade e americanidade, e que esta equivalência é a base ideológica a partir da qual relações de hegemonia e subalternidade raciais têm sido cinematograficamente reproduzidas ao longo da história do cinema hollywoodiano.

A última sessão do capítulo 2 é dedicada aos estudos sobre apelos raciais implícitos em campanhas eleitorais nos Estados Unidos. Pesquisas realizadas no âmbito da comunicação política têm procurado demonstrar de que maneira estereótipos raciais são instrumentalizados em campanhas eleitorais, com o propósito de pré-ativar temores, ansiedades e ressentimentos raciais em eleitores brancos, de modo a influenciar o julgamento desse segmento do eleitorado americano sobre determinado candidato. Ao longo da sessão, procuro enfatizar uma relação de correspondência entre apelos raciais implícitos em campanhas eleitorais e os regimes de representação de identidades étnico-raciais historicamente reproduzidos nos/pelos meios de comunicação americanos e, em especial, pelo cinema hollywoodiano.

A questão central em torno da qual esta investigação se desenvolve pode ser resumida pela seguinte pergunta: De que maneira, representações estereotipadas da identidade negra, historicamente produzidas no/pelo cinema hollywoodiano, poderiam ter ajudado na eleição do primeiro afro-americano à presidência dos Estados Unidos?

Este problema é abordado no terceiro capítulo, por meio de uma metodologia de análise crítica que se afasta de julgamentos normatizantes sobre tais representações, para privilegiar a sua historicidade e o seu caráter ambivalente. Partindo da materialidade do comercial, procuro demonstrar as formas pelas quais American Stories/American

Solutions reproduz os regimes de representação étnico-racial do gênero hollywoodiano

conhecido como Magical Negro films (filmes com Negros Encantados, em português), introduzido no/pelo cinema americano durante a década de 1990.

Nesse sentido, argumento que, assim como nos filmes com Negros Encantados, American Stories/American Solutions veicula de maneira implícita a mensagem de que afro-americanos podem ser portadores de grandes poderes, desde que sejam respeitados certos

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limites impostos por uma estrutura simbólico-social de supremacia e normatividade brancas. Apresento, em detalhe, as formas pelas quais a construção da identidade étnico-racial do candidato Barack Obama, no comercial, é capaz de produzir efeitos de atenuação dos temores e ansiedades do eleitorado branco em relação à possibilidade de eleição do primeiro homem negro à presidência dos Estados Unidos — ou aquilo que, neste trabalho, descrevo como um “Efeito Negro Encantado”. Em última análise, defendo a hipótese de que os regimes de representação étnico-racial do comercial político American Stories/American Solutions reproduzem um discurso neoconservador de daltonismo racial e de invisibilização do racismo americano.

Embora já se passem quase dez anos desde a primeira eleição de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos, acreditamos que esta investigação se faz relevante na medida em que colabora com um conjunto de produções contemporâneas que buscam desafiar o discurso do daltonismo racial, sobre o qual sustenta-se o atual projeto racial hegemônico nos Estados Unidos.

Desde as eleições presidenciais de 2008, a vitória de Barack Obama tem sido instrumentalizada por setores neoconservadores da política americana para argumentar que os Estados Unidos têm finalmente adentrado uma era “pós-racial”. Por outro lado, contrariando o discurso do daltonismo racial, temos visto, nos últimos anos, um acirramento das tensões raciais nos Estados Unidos. Acontecimentos relativamente recentes, como os recorrentes registros e divulgações não oficiais de assassinatos de homens negros pela Polícia, o surgimento e expansão do movimento Black Lives Matter, a eleição de Donald Trump — por meio de uma campanha marcada por uma articulação entre retórica nacionalista e apelos explícitos ao racismo e à xenofobia — e a ocorrência de manifestações nacionalistas de contornos racistas, em diferentes partes do país, indicam a possibilidade de que o projeto do daltonismo racial esteja, gradativamente, perdendo sua hegemonia para um projeto racial ainda mais conservador e abertamente racista. No entanto, ainda é cedo para fazer tal prognóstico. Não obstante os indícios acima apresentados, o discurso do daltonismo racial continua bastante presente nas pautas políticas neoconservadoras.

Dito isto, penso que, ao contribuir para uma reflexão sobre os temas da raça e do racismo, tanto quanto para os estudos sobre representações étnico-raciais em textos audiovisuais, esta investigação cumpre os principais objetivos da sua elaboração.

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CAPÍTULO 1

O “Negro” é metáfora do século XX, a principal figura na qual as relações de poder senhor/escravo, civilizado/primitivo, iluminado/obscuro, bom/mau, foram personificadas no subconsciente americano.

- James Snead -

1.1 O NEGRO COMO CONSTRUÇÃO

Antes, o negro não existia. O que quer dizer esta frase que, a um só tempo, afirma um fato e nega outro? De certa forma, ela se refere mais à carga de significados e práticas que carregam tal alcunha do que às pessoas que, por força da História, passaram a encarná-la. Nesse sentido, diremos que o negro “nasce” como uma “invenção” do europeu e, por isso, seu nascimento pode ser situado no tempo e no espaço. Falaremos sobre essas questões mais adiante. Por ora, é preciso deixar claro que o “Negro” é, antes de tudo, um ser humano. Afinal, não seria essa a razão pela qual Fanon (2008) afirma que a Guerra do Peloponeso é tão sua quanto a descoberta da bússola? Talvez uma referência direta nos ajude a esclarecer melhor: “Sou um homem e é todo o passado do mundo que devo recuperar. Não sou responsável apenas pela revolta de São Domingo” (FANON, 2008, p. 187).

Em Pele Negra Máscaras Brancas, a ideia de humanidade — sobre a qual discorre Fanon (2008) — configura-se a partir da crítica a dois modelos de discursos sobre as pessoas de origem africana, ou o que ele chama de um “duplo narcisismo”. De um lado, a separação imposta pelo europeu e por aqueles que, com o passar do tempo, passaram a acreditar-se “brancos”. Separação esta que, como afirma o pensador antilhano, gerou o “desprezo de uma parte da humanidade por uma civilização tida por superior” (FANON, 2008, p. 185). Do outro, os problemas intrínsecos a um movimento de recuperação de um “passado negro” (FANON, 2008, p.186), ou mesmo de uma “civilização negra” (FANON, 2008, p. 46), para usarmos as palavras do próprio autor. Tal movimento pressupõe a adoção da lógica binária imposta pelo dominador, ou o reconhecimento da separação criada pelo europeu. Veremos que tais discursos possuem seus pontos de origem e que, embora revelem visões distintas sobre as pessoas de origem africana, ambos empenham-se no trabalho de produzir um

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“Outro” racial. Dessa maneira, é preciso deixar claro que o “negro” é, antes de tudo, uma construção.3

O presente trabalho propõe uma análise crítica sobre representações da identidade negra em textos audiovisuais. Dessa forma, nossa investigação deve partir de uma pergunta fundamental: quem, ou o quê, é o negro? Ou melhor, a que remete esta palavra? O que ela evoca na consciência daqueles que a ouvem e dos que a pronunciam? Falaremos sobre os significados desta alcunha a partir do seu valor operacional como dispositivo de identificação de uma alteridade racial. Nesse contexto, o nome “negro” remete a um corpo/imagem racializado, assim como a todos os sentidos a ele atribuídos. Propomos, dessa maneira, pensar o negro como uma construção, produzida sob os efeitos inexoráveis do tempo (história) e do espaço (sociedade).

Em termos semiológicos, diremos que o negro é um signo — composto por um significante, ou um corpo/imagem, e um significado, ou as construções conceituais que lhe conferem um determinado valor. Reafirmamos que este é um processo arbitrário, histórica e socialmente situado, não havendo qualquer verdade ou essência, sobre a qual essa construção possa se apoiar, que não seja culturalmente inventada.

Por se tratar de uma análise crítica dos significados produzidos a partir de imagens humanas racializadas, construídas na/pela narrativa audiovisual, a estrutura semiológica possui um valor específico para nossa investigação, devendo ser aqui compreendida a partir do que Fanon (2008, p. 105) chama de “esquema epidérmico racial”.

Sobredeterminado não apenas pelas ideias que fazem a seu respeito, mas pela associação entre tais ideias e o seu corpo/imagem racializado, o negro torna-se escravo da sua própria aparição: “Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” (FANON, 2008, p. 105). “Olhe o preto”, diz o garotinho branco para sua mãe — ou o “corpo negro” atuando como significante, reconhecido e fixado pelo olhar do garoto. Simultaneamente ao reconhecimento, manifesta-se a recusa, o pavor diante da imagem do negro, expresso pela afirmação “estou com medo” — ou o significado fixado ao “corpo negro” nas palavras do menino. “O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe um preto! [...] o menino branco se joga

3 Este jogo entre as palavras “Negro”, iniciada com maiúscula, e “negro”, iniciada com minúscula, é proposital.

O objetivo é fazer uma distinção entre as construções conceituais e práticas discursivas que remetem à alcunha “negro” e as vidas que, ao longo da história, passaram a ser afetadas por tais construções e tais práticas. Em outras palavras, queremos dizer que a categorização racial de grupos humanos consiste em práticas arbitrárias e historicamente situadas, as quais, embora hoje reconhecidas como construções sociais, produzem efeitos reais nas vidas de pessoas reais. Com isso, esperamos que esteja clara a diferença entre as afirmações “o Negro é, antes de tudo, um ser humano” e “o negro é, antes de tudo, uma construção”. Tendo esclarecido esta distinção, usaremos o nome Negro, iniciado com maiúscula, apenas em casos específicos, a exemplo de citações diretas

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nos braços da mãe: mamãe, o preto vai me comer!” (FANON, 2008, p. 106-107). O esquema entra em curso de forma espontânea, e o objeto da discriminação — neste caso, o negro — é, a um só tempo, visível e natural: “cor como signo cultural/político de inferioridade ou degeneração, a pele como sua identidade natural” (BHABHA, 1998, p. 123).

A relevância aqui atribuída à dimensão corpórea não pretende reduzir o problema da alteridade racial à questão fenotípica. Veremos, ao longo deste trabalho, que existem outros marcadores raciais tão importantes para a nossa análise quanto a imagem do “corpo negro”. Por outro lado, concordamos com Omi e Winant (2015) quando afirmam que

existe uma dimensão visual crucial e não redutível nos processos de definição e compreensão de categorias raciais. Corpos são visualmente lidos e narrados com base em um conjunto simbólico de significados e associações. Distinções corporais são comuns, e acabam por se tornarem essencializadas. Diferenças perceptíveis na cor da pele, na estrutura física, na textura do cabelo, na estrutura das maçãs do rosto, no formato do nariz, ou a presença/ausência de uma dobra epicântica, são entendidas como manifestações de diferenças mais profundas, personificadas pelo indivíduo racialmente identificado: diferenças em qualidades, como os níveis de inteligência ou habilidade atlética, temperamento, sexualidade, dentre outras características (OMI; WINANT, 2015, p. 111).4

Pensado como uma construção que remete à diferença de raça, o negro (ou a associação entre uma imagem/corpo racializado e os sentidos a ele atribuídos) não possui uma existência autônoma, capaz de manter-se inalterada ao longo da história e cujos significados se repetiriam de maneira idêntica em todas as culturas. Ao invés disso, devemos pensar o negro como um sujeito5 produzido dentro de formações discursivas definidas; ou os conhecimentos produzidos sobre ele, e a partir dos quais ele é capaz de surgir como uma construção inteligível. Esta é uma concepção radicalmente historicizada do negro, na medida em que implica reconhecer que ele só existe, com sentido, dentro dos discursos a seu respeito e das práticas produzidas a partir de tais discursos — estes analisados sob um contexto histórico-social específico.

4 … there is a crucial and non-reducible visual dimension to the definition and understanding of racial

categories. Bodies are visually read and narrated in ways that draw upon an ensemble of symbolic meanings and associations. Corporeal distinctions are common; they become essentialized. Perceived differences in skin color, physical build, hair texture, the structure of cheek bones, the shape of the nose, or the presence/absence of an epicanthic fold are understood as the manifestations of more profound differences that are situated within racially identified persons: differences in such qualities as intelligence, athletic ability, temperament, and sexuality, among other traits (tradução nossa).

5Aqui, o termo “sujeito” está sendo usado em referência ao que Hall (2016) descreve como “figuras” que

personificam formas particulares de conhecimento produzidas por um determinado discurso. Dessa maneira, tais figuras encarnam os atributos definidos pelo discurso, e a partir dos quais o sujeito é capaz de surgir como uma construção inteligível: o louco como sujeito produzido no/pelo discurso psiquiátrico sobre a loucura; o homossexual como sujeito produzido no/pelo discurso religioso sobre a sexualidade; o negro como sujeito produzido no/pelo discurso pseudocientífico sobre a raça; etc.

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Contudo, sabemos que o negro (ou as ideias que fazem sobre ele) não é capaz de existir sem um corpo que o sustente. Esse corpo, no entanto, não se reduz ao corpo humano — ou o corpo natural que todos nós possuímos —, mas um corpo produzido no/pelo discurso, ou o que Stuart Hall (2016, p. 92) descreve como “uma espécie de superfície na qual diferentes regimes de poder/conhecimento escrevem seus sentidos e efeitos”.

Aqui, devemos enfatizar a relação sentido/efeito, subentendida na frase de Hall (2016), de modo que não seja negligenciado o fato de que os sentidos produzidos por um determinado discurso, e atribuídos a um determinado corpo, sejam capazes de produzir efeitos reais nas vidas de pessoas reais. O conhecimento a partir do qual certos sujeitos são produzidos é aquilo que — na relação saber/poder à qual Hall (2016) faz referência — justifica, concede legitimidade e naturaliza a organização, o controle, a subjugação e a subalternização de vidas humanas em uma dada sociedade. Ser negro, dessa forma, é habitar um “corpo negro” e, assim, viver diariamente a vulnerabilidade intrínseca ao lugar social reservado a este corpo em uma sociedade racialmente hierarquizada.

Afirmar que, antes, o negro não existia, significa dizer que, em algum momento, ele passou a existir. De fato, há um tempo específico para o seu “nascimento”, o qual nos remete aos regimes de saber/poder produzidos a partir do encontro entre o explorador/colonizador europeu e os povos autóctones da África. Nesse contexto, interessa-nos menos saber sobre a origem ibérica do termo, ou da sua primeira aparição num texto escrito em francês no início do século XVI, e mais sobre os discursos e as práticas mobilizados a partir das imagens e narrativas produzidas pelos viajantes, exploradores, soldados, aventureiros, missionários e colonos europeus, em relação à elaboração de uma “ciência colonial”, que codificou as condições de surgimento da questão da raça, dentro da qual os povos de origem africana foram inscritos (HALL, 2016; MBEMBE, 2014).

De maneira resumida, diremos que o negro surge como uma construção que remete à diferença racial a partir de dois modelos de discursos sobre as pessoas de origem africana — aos quais nos referimos brevemente quando mencionamos o “duplo narcisismo” descrito por Fanon (2008, p. 27) —, ou o que Achille Mbembe (2014) descreve como uma “consciência ocidental do Negro” e uma “consciência negra do Negro”.

O primeiro modelo de discurso revela-se como um julgamento de identidade formulado pelo europeu. O segundo trata de uma declaração de identidade, produzida, justamente, por aqueles a quem tal alcunha busca identificar. Não obstante os resultados produzidos por um ou por outro discurso, em ambos aceita-se a cisão racial imposta pelo

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europeu. Nesse sentido, nomear alguém, ou a si mesmo, como “negro”, é declarar a existência de um “Outro” racial.

Originada na primeira fase do capitalismo, quando o vínculo econômico que uniu a Europa aos continentes africano e americano passou a gerar uma relação triangular de interdependência6, a consciência ocidental do Negro irá consistir em uma série de significados e práticas produzidos pelo explorador/colonizador europeu (e, posteriormente, por aqueles que herdaram os privilégios da “brancura”) com o propósito de dar conta das pessoas de origem africana. Na sua dimensão simbólica, ela envolveu um trabalho cotidiano de invenção, repetição e circulação de ideias, imagens, fórmulas e textos capazes de produzir o sujeito negro enquanto exterioridade selvagem: uma “raça” de indivíduos subumanos e, por isso, moralmente desqualificados e passíveis de instrumentalização prática. Na sua dimensão material, ela resultou na escravização dos africanos e em sua efetiva conversão em “corpos de exploração” (MBEMBE, 2014). Nesse sentido, a consciência ocidental do Negro configura-se como um discurso colonial que, segundo Bhabha (1998, p. 111), tem por objetivo, “apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução.”

Processo similar já havia sido analisado por Edward Said (2007), em sua crítica da construção do Oriente pelo Ocidente. Said propõe um entendimento da dominação da Grã Bretanha sobre o Egito — embora a sua análise não se limite às relações entre esses dois países —, vista como efeito de estruturas de autoridade e hegemonia, produzidas a partir de um sistema de conhecimento sobre o Oriente que, em última análise, justificavam a sua subjugação pelo Ocidente:

Quando Balfour justifica a necessidade da ocupação britânica do Egito, a supremacia na sua mente está associada com o “nosso” conhecimento do Egito, e não principalmente com o poder econômico e militar.7 [...] O conhecimento significa elevar-se acima do imediatismo, além de si mesmo, introduzir-se no estrangeiro e distante. O objeto de tal conhecimento é inerentemente passível de escrutínio; [...] Ter esse conhecimento de tal objeto é dominá-lo, ter autoridade sobre ele. E a autoridade nesse ponto significa que “nós” devemos negar autonomia a “ele” — o país oriental — porque o conhecemos e ele existe, num certo sentido, assim como o conhecemos (SAID, 2007, p. 63).

6 Aqui, estamos nos referindo às dinâmicas de ordem econômica que ligaram esses três continentes durante o

período em questão. Se, por um lado, o enriquecimento da Europa só foi possível a partir da exploração dos recursos naturais do continente americano, por outro, a exploração de tais recursos não teria sido possível sem a força de trabalho extraída de corpos africanos, sequestrados em seu continente de origem e trazidos, à força, para as Américas sob a condição de escravos (GALEANO, 2002).

7 Trecho da fala de Arthur James Balfour, proferida em 13 de Junho de 1910, na Câmara dos Comuns, na

Inglaterra, em relação à necessidade da presença britânica no Egito. Arthur James Balfour foi um político e estadista britânico, tendo sido primeiro secretário para a Irlanda, secretário para a Escócia, além de primeiro ministro do Reino Unido (SAID, 2007).

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De acordo com Said, o sistema de conhecimento produzido pelo Ocidente foi o discurso através do qual a Europa foi, de certa forma, capaz de inventar o Oriente, de modo a tornar possível a administração política, sociológica, ideológica, científica, militar e imaginativa de uma determinada região do planeta e dos corpos que ali habitavam.

Não obstante as especificidades de cada caso, aqui, a fórmula é basicamente a mesma. Para que fossem moralmente reconhecidas, as empreitadas europeias nos continentes Africano e Americano não poderiam ser justificadas em termos de uma necessidade de expansão imperial com o objetivo de promover enriquecimento ilícito — o qual foi possível, principalmente, pela superioridade bélica e econômica do europeu —, mas sob retóricas de pretensas missões civilizatórias, religiosas, ou mesmo, humanitárias, elaboradas a partir de um conhecimento produzido pelo europeu sobre os povos autóctones da África:

Ao “conhecer” a população nativa nesses termos, formas discriminatórias e autoritárias de controle político são consideradas apropriadas. A população colonizada é então tomada como a causa e o efeito do sistema, presa no círculo da interpretação. O que é visível é a necessidade de uma regra dessas, o que é justificado por aquelas ideologias moralistas e normativas de aperfeiçoamento reconhecidas como Missão Civilizatória ou o Ônus do Homem Branco. (BHABHA, 1998 P. 127).

A invenção do negro acontece, neste caso, como efeito de saber/poder de um discurso europeu sobre as pessoas de origem africana, o qual sancionou moralmente a exploração, a escravização e a colonização dos segundos pelos primeiros. Era preciso inventar o negro para que os africanos e seus descendentes fossem efetivamente transformados em propriedade — “um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento” (MBEMBE, 2014, p. 40) — e a África em uma extensão do território europeu.

Não é possível, no entanto, afirmar que o aspecto econômico seja o motor, o fator primeiro, da invenção do negro pelo europeu, da sua escravização e da colonização do seu continente de origem. Como afirma Albert Memmi (2007), não sabemos ainda o que é o homem em definitivo e o que se encontra no âmago das suas motivações, se a psicanálise tem razão sobre o marxismo, ou se isso depende de cada indivíduo e cada sociedade. O que podemos declarar com certa segurança é que, ao inventarem o negro como “raça subumana”, os europeus produziram e mantiveram, pela força, as condições materiais que, aos seus olhos, tornavam as pessoas de origem africana cada vez mais parecidas com a sua própria invenção.

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desumanizam, e o explorador se sente autorizado por essa desumanização a explorar ainda mais”, de modo que se torna impossível distinguir a ideia da práxis, e a práxis da necessidade objetiva.

Uma vez produzido como “Outro” racial, inferior e anormal aos olhos do seu “inventor”, o negro, por ser humano, empenha-se no inevitável projeto de restituir a parcela de humanidade que lhe fora amputada. Em resposta ao conjunto de disparates e fantasias a partir do qual o europeu produziu um saber sobre as pessoas de origem africana, o negro reivindica a missão e o direito de falar sobre si mesmo e de (re) escrever sua própria história. Gesto de autodeterminação, a consciência negra do Negro é essencialmente marcada pelo esforço de libertação dos efeitos psicossociais gerados pelas práticas desumanizantes, a partir das quais pessoas de origem africana foram submetidas a processos de escravização, colonização e subalternização (MBEMBE, 2014).

Num movimento de apropriação e subversão da alcunha, o negro recusa a diferença representada pelo termo como sinônimo de inferioridade ou subumanidade, para ressignificá-la em termos de diversidade humana, reivindicando, dessa maneira, não só uma história própria, mas o reconhecimento, a dignidade e os direitos devidos a qualquer membro da sua espécie. Era preciso “instaurar um arquivo” — construir, ainda que em retrospecto, um passado e uma civilização negros. “Conjurar o demônio do texto primeiro e a estrutura de submissão que ele carrega” (MBEMBE, 2014, p. 61).

Por outro lado, como nos lembra Mbembe (2014), embora procure refutar o discurso ocidental sobre as pessoas de origem africana, a consciência negra do Negro traz consigo os vestígios e as marcas da consciência ocidental do Negro, na medida em que ela própria emerge a partir da separação imposta pelo europeu. Da mesma maneira que uma consciência ocidental do Negro forjou as bases ideológico-raciais de uma supremacia europeia (e, posteriormente, branca), foi a partir dos saberes e das práticas impostos pelo europeu que se construiu uma unidade racial entre os diferentes povos de origem africana, a partir da qual foi possível produzir uma consciência negra do Negro.

Dessa forma, tanto quanto a consciência ocidental do Negro, a consciência negra do Negro é incapaz de destituir-se das imperfeições intrínsecas à linguagem racial. Ainda que nos esforcemos para pensar a raça e seus efeitos em termos sociais e históricos, não estamos livres das armadilhas do essencialismo, como demonstra Fanon (2008, p. 46) ao afirmar que os negros contemporâneos esforçam-se demasiadamente “em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de uma civilização negra”. Ademais, havemos de concordar com

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Mbembe (2014) que a categorização racial de seres humanos, seja qual for o seu propósito, será sempre uma forma de representação primária, uma linguagem defeituosa.

Para os fins desta investigação, consideraremos a consciência ocidental do Negro e a consciência negra do Negro como formações discursivas referenciais nos processos de formação racial de uma determinada sociedade, ou o que Omi e Winant (2015, p. 109) definem como o “processo histórico-social através do qual identidades raciais são criadas, vividas, transformadas e destruídas” 8.

Falaremos sobre o conceito de formação racial de maneira mais detalhada na última sessão deste capítulo. Quanto ao conceito de formação discursiva, estamos utilizando-o de acordo com a definição proposta por Eni P. Orlandi (2001, p. 43): “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada — ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada — determina o que pode e deve ser dito”.

Pensando a consciência ocidental do Negro e a consciência negra do Negro em relação ao conceito de formação discursiva, diremos que ambas se constituem como espaços de construção de sentido e de identificação do sujeito negro. Dessa maneira, os sentidos atribuídos à alcunha “negro” não são predeterminados — como se os significados aos quais tal alcunha remete se referissem a algo cuja existência antecede os discursos produzidos sobre as pessoas de origem africana —, mas dependem das relações constituídas por tais formações discursivas em contextos histórico-sociais bem definidos.

Por outro lado, Orlandi (2001, p. 44) adverte que “é preciso não pensar as formações discursivas como blocos homogêneos funcionando automaticamente. Elas são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-configurando-se continuamente em suas relações”. Nesconfigurando-se configurando-sentido, os significados raciais produzidos pela consciência ocidental do Negro e pela consciência negra do Negro não permanecem inalterados, mas reconfiguram-se, reciclam-se, entrecruzam-se e mesclam-se, tornando-se mais sofisticados ao longo do tempo, renovando-se e desdobrando-se em uma complexa rede de práticas e de representações que os colocam em um constante estado de negociação e disputa, e que, não raro, diluem as fronteiras de uma ou de outra formação discursiva.

Da mesma forma, ao apontar a existência de uma consciência ocidental do Negro e uma consciência negra do Negro, não queremos, com isso, dizer que representações da identidade negra possam ou devam ser divididas em dois blocos monolíticos, ancorados em

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uma ou outra formação discursiva. Isso seria o mesmo que acreditar na existência de duas “linhagens”, a partir das quais seria possível classificar uma representação como sendo legítima ou ilegítima, positiva ou negativa, boa ou má. Falaremos dessa impossibilidade na ocasião em que iremos tratar, especificamente, do conceito de representação. Por enquanto, diremos que analisar as representações da identidade negra a partir de um ponto de vista dualista seria o mesmo que optar por ignorar as complexidades de todo um conjunto de dilemas e controvérsias contemporâneas que atravessam os temas da raça e da representação, incluindo questões como a natureza do racismo, as ambivalências que constituem os processos de representação de identidades étnico-raciais, e as interseccionalidades entre raça, etnia e outros marcadores sociais, assim como outros regimes de construção da diferença que, não raro, produzem novas injustiças, formas de opressão e processos de subalternização.

Gostaríamos de encerrar essa sessão propondo um olhar sobre a consciência ocidental do Negro e a consciência negra do Negro, como referências em torno dos significados raciais, a partir dos quais torna-se possível fazer o negro existir, não apenas enquanto uma construção que remete à diferença de raça, mas, também, como ser social e político. Nesse sentido, concordamos com Hall (2016) que a luta pela representação consiste na aceitação do dilema gerado pelo seu caráter instável, mutável e ambivalente, e no reconhecimento de que nunca existirá uma “vitória final”, já que significados serão sempre capazes de escapar a quaisquer tentativas de fixação.

Desde a sua invenção pelo europeu, o drama do negro tem sido o esforço em lidar com os efeitos psicossociais da sua conversão em sujeito racializado, assim como das hierarquias raciais e culturais geradas a partir de tal processo. A sua luta é a luta para recuperar a parcela de humanidade amputada pelo europeu; reinventando-se como “Negro” num esforço contínuo em superar a impotência social à qual foi/é submetido. Tal luta requer um incessante exercício de autorreconhecimento e de autoafirmação, ainda que referente ao ponto de vista formulado pelo europeu. Para nós, esta é a circunstância a partir da qual se constrói a relação entre a consciência ocidental do Negro e a consciência negra do Negro, como elementos constitutivos das relações de poder, a partir das quais o negro é construído de maneira ambivalente como alteridade racial. Nesse sentido, qualquer forma de representação da identidade negra trará consigo vestígios de uma ou de outra, quando não, de ambas. Este trabalho irá tratar de algumas dessas representações, dos significados raciais que elas mobilizam e das relações de poder nelas e por elas reproduzidas.

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1.2 NORMATIVIDADE BRANCA: O OUTRO LADO DA MOEDA

Da perspectiva da consciência ocidental do Negro, ele é o negativo fotográfico a partir do qual o europeu deu cor a sua própria existência. Em outras palavras, não seria possível ao europeu inventar o negro como raça inferior sem inventar-se a si mesmo como o seu oposto positivo. Um dos efeitos inevitáveis produzidos pela consciência ocidental do Negro é a ideia de que todo o obscurantismo encarnado pela figura do africano só é capaz de encontrar luz na figura do europeu (MBEMBE, 2014). E se a raça é a ferramenta retórica e prática, através da qual foi possível transformar africanos em “negros”, é por meio dela que nasce, também, o “branco”. Dessa forma, ao inventar o negro, o europeu passa a personificar a figura do diamante lapidado, livre dos excessos da pedra bruta que imputam ao negro a sua condição de selvagem. Ao negro, diria Fanon (2008), restou-lhe sê-lo diante do branco. Adequar-se, por imposição, ao mundo e ao olhar do branco, os únicos “verdadeiros”, já que os seus costumes e instâncias de referência foram rebaixados aos níveis primários da evolução humana.

Não iremos mais nos prolongar em descrever esta relação binária, gerada a partir de um processo de construção de identidades promovido pelo europeu. Tampouco pretendemos instrumentalizar a consciência ocidental do Negro e a consciência negra do Negro, no sentido de formular julgamentos de valor sobre as representações com as quais iremos trabalhar. Uma abordagem fundada sobre tais julgamentos nos parece pouco produtiva e, como mencionamos anteriormente, as relações entre raça e representação levantam questões mais complexas do que meros dualismos. Sendo assim, o parágrafo que inaugura esta sessão serve apenas para contextualizar o assunto sobre o qual nos debruçaremos a seguir. Falaremos, aqui, de um outro efeito, ainda mais sutil, produzido pelos regimes de saber/poder impostos pelo explorador/colonizador europeu sobre as pessoas de origem africana (tanto quanto sobre outros povos não europeus). O assunto desta sessão diz respeito à normatividade branca.

O tema da normatividade branca demanda atenção. Em Standard White: Dismantling White Normativity, Michael Morris (2016) alerta sobre a tendência de certos autores em redefinir a normatividade branca em termos de uma equivalência com noções de superioridade. Embora, como foi dito acima, possamos argumentar que o europeu não seria capaz de inventar o negro como raça inferior sem inventar-se, por comparação, como a raça superior, a questão da normatividade branca deve ser compreendida para além dessa relação maniqueísta.

Lembremos, primeiramente, que a fórmula utilizada pelo europeu no processo de construção do negro foi reproduzida, de maneira mais ou menos parecida, na construção de

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inventa a si mesmo como o oposto positivo em relação ao não europeu, num esquema que, em termos raciais, pode ser resumido pelo binômio brancos/não brancos. Por outro lado, a normatividade branca não diz respeito ao que é positivo, mas ao que é “normal”. Por essa perspectiva, ela não opera no sentido de posicionar o branco como o “melhor em tudo”, mas como o “mais humano”. Parafraseando Morris (2016), podemos dizer que a normatividade branca determina que pessoas não brancas são “pessoas” na medida em que se assemelham às pessoas brancas. Para além de uma forma superior de ser humano, o branco constrói-se como a humanidade em si mesma: ser humano é ser branco, e vice-versa.

É importante, no entanto, observar que a identidade branca não pode e nem deve ser fixada nas origens europeias de um indivíduo. Ainda que, no contexto do encontro entre o explorador/colonizador europeu e os povos autóctones de outros continentes, ela tenha sido construída nesses termos, as histórias colonial e pós-colonial de alguns países demonstram que, nem sempre, o fato de um indivíduo ser de origem europeia significou-lhe a concessão imediata do status de “branco”. Veremos no capítulo seguinte que, no caso dos Estados Unidos, por exemplo, foram necessários períodos de transformações históricas e sociais para que alguns grupos de europeus, a exemplo dos irlandeses, italianos, poloneses e judeus, ao chegarem numa América já colonizada, passassem a ser considerados “brancos” e a fazer parte do grupo racial dominante (ROEDIGER, 2008). Nesse sentido, tanto quanto o negro, o branco deve ser compreendido como uma construção, sujeita aos efeitos do tempo e do espaço.

Pensando tais identidades como construções, podemos dizer que o que difere o branco de outros grupos humanos racializados é, precisamente, a normatização da sua identidade racial, assim como as formas pelas quais os efeitos produzidos por esta normatização afetam, diferentemente, brancos e não brancos. Se, a princípio, a normatividade branca configurou-se como efeito dos regimes de saber/poder impostos pelo europeu sobre as pessoas de origem não europeia — e a partir dos quais produziu-se o não europeu enquanto sujeito racializado —, tais regimes sempre estiveram submetidos às demandas do tempo e do espaço, de modo que a própria identidade branca consiste em construções histórica e socialmente situadas. Por outro lado, uma vez instituído o sujeito branco em um determinado contexto social e histórico, os processos de normatização do mesmo, produzidos a partir dos regimes de racialização do “Outro”, geraram um efeito de invisibilidade racial de tal sujeito, ou seja, uma noção de raça como categoria aplicável apenas às pessoas não brancas.

Da perspectiva da normatividade, a identidade branca não ocupa o nível mais alto de uma cadeia hierárquica, cujo propósito seria o de representar as qualidades e as virtuosidades

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das diferentes raças humanas, enquanto outros grupos raciais ocupariam os níveis inferiores. Mais coerente é pensar a normatividade branca a partir de uma estrutura simbólico-sócio-racial, onde a raça branca se encontra no centro, servindo como a referência a partir da qual todas as outras raças são julgadas e representadas. Dessa forma, a normatividade branca funciona no sentido de tornar o branco o “padrão” ou o “típico”, e nem sempre o “superior”.

Entender a normatividade branca por essa perspectiva é reconhecer o fato de que, no mundo real, os devaneios brancos de superioridade não possuem referências concretas sobre as quais possam se apoiar. Significa, também, que as formas como diferentes identidades raciais são representadas nem sempre partem de uma lógica de aviltamento dos não brancos e glorificação dos brancos. Em qualquer sociedade ou cultura, somos capazes de encontrar exemplos onde pessoas não brancas são representadas ou imaginadas de maneira positiva, enquanto pessoas brancas não estão necessariamente imunes de serem representadas, ou imaginadas, de forma negativa. Da mesma maneira, o mundo real está repleto de casos onde pessoas brancas são superadas por pessoas não brancas, seja em uma atividade intelectual, atlética, artística, ou em qualquer outra situação em que a competência de um indivíduo esteja em questão (MORRIS, 2016).

Para além dos devaneios brancos de superioridade, o problema da normatividade branca consiste na generalização de certos atributos como sendo intrínsecos a grupos raciais não brancos específicos, e a partir dos quais a diferença racial de tais grupos é construída. Enquanto aos brancos é permitido personificar toda a diversidade e complexidade da existência humana, a normatividade branca confina as pessoas não brancas a um repertório de comportamentos, atuações, características físicas e qualidades de caráter considerados, pelos critérios culturais dominantes em uma dada sociedade, como sendo típicos do grupo racial ao qual pertencem. Ainda que nunca tenha lançado mão do termo, Fanon (2008, p. 107) deixa claro os efeitos psicossociais da normatividade branca ao exteriorizar seu desabafo: “De um homem exige-se a conduta de um homem; de mim, uma conduta de homem negro — ou pelo menos uma conduta de preto. [...] Exigiam de mim que eu me confinasse, que encolhesse”.

O efeito de confinamento descrito por Fanon (2008) é gerado por uma incapacidade de se reconhecer o sujeito não branco fora das fixações da tipologia racial. Esse problema é endereçado por Bhabha (1998) em seu ensaio A Outra Questão: o Estereótipo, a Discriminação e o Colonialismo, quando o autor afirma que, ao sujeito colonial, é negada a possibilidade

Referências

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