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Autobiografias da infância - um século e dois escritores na cidade luz

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Academic year: 2021

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Autobiografias da infância – um século e dois escritores na cidade luz

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Childhood autobiographies – a century and two writers in the city of light Autobiographies de l’enfance – un siècle et deux écrivains dans la ville lumière

Teresa Coelho Resumo

A escrita do eu é um tema recorrente na literatura e na crítica literária actuais. Com ela problematiza-se o funcionamento da memória, a estetização do discurso subjectivo, entre outros aspetos da escrita literária na primeira pessoa.

Propõe-se aqui a revisitação dos eus longínquos da infância de dois escritores que usaram o Francês como língua literária, e lembram, avançados na idade, as crianças que foram em Paris, há um século. Nathalie Sarraute e Jean-Paul Sartre recriaram-se meninos em Enfance e Les mots, autobiografias das infâncias de escritores, cujo compte rendu é publicado aos 59 anos de Sartre (1964) e aos 83 anos de Nathalie Sarraute (1984). Estes textos podem ser lidos como testemunhos de um desejo de compreensão dos indícios, na infância, daquilo que na vida adulta viriam a ser - escritores. Ao contar os seus mundos, distantes no tempo, reencontram-se e reinventam-se, a si próprios e à linguagem: às palavras, ao uso das

palavras.

Palavras-chave: autobiografia; infância; memória; literatura francesa. Abstract

The writing of the self is a recurring theme in current literature and literary criticism. Autobiographical texts discuss and make us discuss, on the one hand the way memory works and on the other hand, how this subjective speech is transformed into an aesthetical one, among other aspects of first person literary writing.

Here, a visit to the distant childhood of two writers who used French as a literary language is proposed. They recall at an advanced age the children they were in Paris a century ago. Nathalie Sarraute and Jean-Paul Sartre recreated the children they were in Enfance and Les mots, autobiographies of their childhoods, published “compte rendu” at 59 years of age for Sartre (1964) and 83 for Nathalie Sarraute (1984). These texts can be read as testimony of a desire to understand the indications in childhood of what they would become as adults - writers. In the telling of their worlds, distant in time, they find and reinvent themselves, as well as language, words and the use of words.

Keywords: autobiography; childhood; memory; french literature Résumé

L'écriture de soi est un thème récurrent dans la littérature et la critique littéraire actuelles. Elle problématise le fonctionnement de la mémoire, l'esthétisation du discours subjectif, parmi d'autres aspects de l'écriture littéraire à la première personne.

Nous proposons une revisitation des enfances éloignées de deux écrivains qui ont utilisé le français comme langue littéraire, et se souviennent, à un âge déjà assez avancé, des enfants qu’ils étaient à Paris il y a un siècle. Nathalie Sarraute et Jean-Paul Sartre se sont recréés enfants dans les textes Enfance et Les Mots, autobiographies de l'enfance, compte rendus publiés à 59 ans pour Sartre (1964) et à 83 ans pour Nathalie Sarraute (1984). Ces textes peuvent être lus comme témoignages d’un désir de comprendre les indices dans l'enfance, de ce qu'ils deviendraient adultes - écrivains. Tout en racontant leurs mondes,

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Trabalho apresentado no III Seminário de ID&T, organizado pelo C3i – Centro Interdisciplinar de Investigação e Inovação Instituto Politécnico de Portalegre, realizado nos dias 6 e 7 de Dezembro de 2012.

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éloignés dans le temps, ils se retrouvent et se réinventent, eux-mêmes et le langage: les mots, l'usage des

mots.

Mots-clés : autobiographie ; enfance ; mémoire ; littérature française.

Foram muitos os escritores de culto do séc. XX francês ligados pelo fio do discurso autobiográfico. Gide, um eu confessional (Les nourritures terrestres); Proust em busca de um tempo ido e perdido, um eu romanceado; Duras, a amante das confissões e falsas confissões que acabou de entrar este ano para a Pléiade, consagração suprema. Mas também Jorge Semprun, Albert Camus, Georges Pérec, André Malraux, J.M.G. Le Clézio, Michel Tournier, Annie Ernaux, Aragon, Simone de Beauvoir, Marguerite Yourcenar, René Barjavel, Albert Cohen para apenas mencionar alguns.

Sartre e Sarraute foram os escolhidos. Porque viveram ambos há um século, em Paris, e ambos escreveram autobiografias da infância nesse enquadramento espacial e histórico.

Nestes dois autores, crianças de há cem anos, fui procurar memórias do início do séc. XX, nas autobiografias de infâncias que percorreram o caminho da(s) língua(s) e da leitura, até ao da escrita literária. Situações diferentes. Escritas diferentes. Jean-Paul Sartre, figura emblemática do século, nascido em 1905, o filósofo-dramaturgo-romancista, vedeta mediática que recusou o Nobel… Nathalie Sarraute, russa, judia e francesa, nascida em 1900, a autora de Tropismos, aparentada ao Nouveau Roman que deu forma a narrativas nas quais as personagens que conhecíamos do realismo já não existem e a ficção perdeu a intriga, o tempo e o espaço convencionais. Aplicou à literatura a técnica que os pintores introduziram na arte abstrata.

Os dois escritores partilharam o início do século, e são as suas vidas, revistas de longe, de um tempo outro, de maturidade na profissão, que partilham com o leitor.

I – As obras

Dois livros: Les mots, Enfance. Estas infâncias de escritores podem ser lidas (ainda quando os próprios o negam) como testemunhos de um desejo de compreensão dos indícios, na infância, daquilo que na vida adulta viriam a ser - escritores. Ao contar aqueles mundos distantes no tempo, continentes perdidos que à imagem da Atlântida pensam reconhecer mas cujos perigos admitem não dominar, reencontram-se e reinventam-se, a si próprios e à linguagem: às palavras, ao uso das palavras.

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Lidos como textos explicativos de uma “vocação”, há em ambos uma espécie de humor irónico, de auto-derisão. Paradoxalmente, apesar de tudo indiciar que não poderiam vir a ser escritores, (ele por excesso de cabotinagem, ela por falta de estímulos), é isso que são, no presente da escrita, escritores consagrados, ambos publicados na Pléiade, pour dire le moins.

No caso de Sartre essa ideia é explícita na própria divisão da narrativa em duas partes: Lire, Ecrire. Há uma assumpção declarada desse propósito demonstrativo de que o leitor compulsivo («j’avais trouvé ma religion: rien ne me parut plus important qu’un livre.» p. 51) engendrou o escritor viciado («si je reste un jour sans écrire, la cicatrice me brûle ; si j’écris trop aisément, elle me brûle aussi.» p.135) mas, simultaneamente, uma necessidade perversa de a pôr em causa: «l’appétit d’écrire enveloppe un refus de vivre.» (p.156).

Em Nathalie Sarraute, apenas muito leve e subtilmente se refere esse propósito.

Não existe portanto, explicitamente, um desejo de fazer uma autobiografia da infância, à maneira de outras antes publicadas ou suas contemporâneas. No entanto, e talvez malgré eux-mêmes, ambos retomam as imagens habituais de todas as narrativas de infância: as primeiras recordações, a mãe, o pai, os avós, as casas, os mestres (da escola ou de fora dela) as épocas que ritmam aquela fase da vida. E vamos assistir, nos dois, ao folhear das memórias sobre pessoas, espaços e livros que as povoam, num caleidoscópio de imagens que nem sempre conseguem ou desejam ajustar ao calendário.

De modos diversos, roçam universos da ficção: Sartre pela impossível omnisciência e perversidade que empresta ao rapazinho que foi: «Vertueux par comédie, jamais je ne m’éfforce ni ne me contrains: j’invente. (…) On m’adore, donc je suis adorable.» (p.25); Nathalie pela introdução de elementos que vêm dos contos de fadas e que, apesar do seu esforço explícito em recusá-los, emergem ainda no texto, como a figura da madrasta ou a da avó idealizada, a babouchka que nem chega a ser sua avó mas guarda o encanto da cumplicidade e do afeto.

Há um século também, com Proust, aprendemos que recordar é, sobretudo, imaginar. Com estes dois autores isto confirma-se, tocam a fuga ao estereótipo do texto autobiográfico canónico:

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- As belas imagens da infância são ridicularizadas pelo escritor que põe constantemente em causa a criança que foi, aliás a criança que nunca chegou a ser, porque se inventou adulto liliputiano, na permanente imitação do modelo familiar e das expectativas nele depositadas. Após a consagração obtida por uma obra filosófica, ensaística, literária, tão diversificada, toma-se a si próprio como tema para denunciar o rapazinho impostor, o ator medíocre, o consumidor de livros e universos que, para agradar a uma família ofuscada pelo seu brilho, lê e escreve, fabrica livros, para lisonjear e criar o seu lugar no mundo. É impossível uma memória tão nítida, um discurso tão ominsciente.

- Por parte da escritora, uma permanente mise en garde na narrativa-diálogo: dois eus que se confrontam, se discutem; Natacha é gerada no diálogo de Nathalie, a narradora-autora de 83 anos, ou a entidade narrante, numa expressão de Gaetan Brulotte (1984: 41), numa sub-conversação consigo mesma: com o seu super-ego, dirão alguns, a voz da sua consciência, ou com um leitor ideal de todos os seus textos, com a “sobrenarrante” que vigia e critica. (Re)constróem a figura da menina que foi, chamando repetidamente a atenção para os perigos corruptores da literariedade em que a memória e a linguagem podem incorrer, quando se voltam para o início da vida. Refaz imagens, nos tropismos que ela própria definira, no início da sua carreira literária, como reações ínfimas e íntimas provocadas por uma palavra, uma entoação, uma sensação, uma atmosfera, um gesto. Uma espécie de lucidez esquiva. Inscrita numa tradição russa, com Tolstoï e Gorki, escolhe para o seu texto o mesmo título daqueles escritores (1854 e 1913), mas não descreve um tempo arrumado, são as intermitências da memória, de momentos interiores e fugitivos vividos para além da história e do dizível, ainda que a cronologia seja, quase sempre, respeitada.

Os títulos são quase antagónicos: Infância e As palavras. No primeiro a etimologia latina infans (aquele que ainda não tem acesso às palavras), lembra o momento da vida em que o ser ainda não se nomeia, não está no discurso, não se reconhece, por oposição ao indivíduo que já é dono das palavras e se cria, nasce delas e nelas. E no entanto, é o uso das palavras que domina estas infâncias, partilhadas de longe com os leitores.

A pequena Tachotchek sabe mais que uma língua. Lembra expressões e palavras em russo, em francês, em alemão (pp. 10-12). Mesmo que não consiga situar o momento da aquisição dessas línguas, elas manifestam-se na memória da compreensão e do uso. Desde o início ela ensina o pai a melhorar a pronúncia em francês.

Il parle souvent le français avec moi… je trouve qu’il le parle parfaitement, il n’y a que ses «r» qu’il prononce en les roulant, je veux lui apprendre… Écoute quand je dis Paris… écoute bien, Paris… maintenant dis-le comme moi… Paris… mais non, ce n’est pas comme ça… il m’imite drôlement, en exagérant exprès, comme s’il s’éraflait la gorge… Parrris…

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Il me rend la pareille en me faisant prononcer comme il faut le « r» russe, je dois appuyer contre mon palais puis déplier le bout retroussé de ma langue… mais j’ai beau essayer… Ah, tu vois, c’est toi maintenant qui ne peux pas y arriver… et nous rions, nous aimons nous amuser ainsi l’un de l’autre… (Sarraute: 44-45)

Partilhada entre duas famílias, dois países, nenhum lugar de pertença. Posta à prova, escolhe o pai e a França. Mas não consegue evitar o sentimento de traição. Foi o francês que escolheu para escrever. Mas há recordações em russo, claro, e também em alemão, em inglês. E significantes comparados na sua materialidade sonora. Acima de tudo, parece haver uma descrição da memória que tem das palavras que, através das ressonâncias provocadas na intimidade do ser, fizeram dela quem é.

Jean-Paul é órfão de pai, venerado pelo avô materno, patriarca a quem todos se submetiam e que se submeteu ao neto. A mãe não tem um estatuto de adulta na casa paterna para onde regressa viúva, com um bébé. Partilha o quarto com o filho - foi acrescentada uma cama, para Anne-Marie. Sartre vangloria-se do ascendente que Poulou tinha sobre os seus em geral, uma autoconsciência de petit criminel. Tem o mundo literalmente a seus pés e tem que o nomear. Assim se torna escritor.

Tout homme a son lieu naturel ; ni l’orgueil ni la valeur n’en fixent l’altitude. L’enfance décide. Le mien, c’est un sixième étage parisien avec vue sur les toits. (…) l’Univers s’étageait à mes pieds et toute chose humblement sollicitait un nom, le lui donner c’était à la fois la créer et la prendre : sans cette illusion capitale, je n’eusse jamais écrit. (Sartre : 51-52)

Nathalie apenas aflora a ideia de ser escritora no final do livro. Ao logo da narrativa, persiste a recusa de atribuir a si própria saberes, discursos, ideias ou palavras que não pertenceriam à infância, que nem mesmo agora domina. Luta para não dar uma falsa imagem de menina triste que não considera ter sido. É fundamental a consciência de que as palavras nem sempre se adequam a traduzir o que se sente, o que o mundo produz dentro do ser, por isso ela inventou os tropismos:

J’étais assise, encore au Luxembourg, sur un banc du jardin anglais, entre mon père et la jeune femme qui m’avait fait danser dans la grande chambre claire de la rue Boissonade. Il y a avait, posé sur le banc entre nous ou sur les genoux de l’un d’eux, un gros livre relié… il me semble que c’étaient les Contes d’Andersen.

Je venais d’en écouter un passage… je regardais les espaliers en fleurs le long du petit mur de briques roses, les arbres fleuris, la pelouse d’un vert étincelant jonchée de pâquerettes, de pétales blancs et roses, le ciel, bien sûr, était bleu, et l’air semblait vibrer légèrement… et à ce moment-là, c’est venu… quelque chose d’unique… qui ne reviendra plus jamais de cette façon, une sensation d’une telle violence qu’encore maintenant, après tant de temps écoulé, quand, amoindrie, en partie effacée elle me revient, j’éprouve… mais quoi ? quel mot peut s’en saisir ? pas le mot à tout dire : «bonheur », qui se présente le premier, non,

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pas lui… « félicité », « exaltation », sont trop laids, qu’ils n’y touchent pas… et « extase »… comme devant ce mot ce qui est là se rétracte... « Joie », oui, peut-être… (…) des ondes de vie. De vie tout court, quel autre mot ?... (Sarraute : 66-67)

As palavras não traduzem a essência do humano. Não têm o poder de revelar mais do que imagens fluidas, apenas aproximadas da realidade. Mesmo escrita e pensada à luz daquilo que o tempo permitiu aprender, a narrativa de infância quer descobrir a criança de outrora, aos olhos de dúvida permanente da velha escritora que ainda não encontrou as palavras para dizer o indizível dos tropismos.

- Rassure-toi pour ce qui est d’être donné… c’est encore tout vacillant, aucun mot écrit, aucune parole ne l’ont touché, il me semble que ça palpite faiblement … hors des mots… comme toujours… des petits bouts de quelque chose encore vivant… je voudrais, avant qu’ils disparaissent… laisse-moi… (Sarraute : 9)

E esta narrativa constrói-se num movimento circular. No final « la boucle est bouclée » : Je ne pourrais plus m’efforcer de faire surgir quelques moments, quelques mouvements qui me semblent encore intacts, assez forts pour se dégager de cette couche protectrice qui les conserve, de ces épaisseurs blanchâtres, molles, ouatées qui se défont, qui disparaissent avec l’enfance. (Sarraute : 277)

Os tropismos, o lirismo controlado de Sarraute, não têm correspondência em Sartre : « Un baiser sans moustache, disait-on alors, c’est comme un œuf sans sel ; j’ajoute : et comme le Bien sans le Mal, comme ma vie entre 1905 et 1914. » (Sartre: 35) Foi a Belle Époque. Claro que o menino narrado não sabe o que o narrador-autor conhece. Só quando contraposto ao Bem daqueles tempos o Mal da guerra, se compreenderá que foi uma bela época. Paris é a cidade-luz, o avô de Sartre é um crente no progresso, «(…) ce vieux républicain d’Empire m’apprenait mes devoirs civiques et me racontait l’histoire bourgeoise ; il y avait eu des rois, des empereurs, ils étaient méchants ; on les avait chassé, tout allait pour le mieux.» (Sartre: 23) O escritor de 64 anos faz um retrato cáustico deste avô substituto todo-poderoso de um pai fantasma que o abandonou à nascença. Graças ao universo onde reina o avô-Deus (com quem por vezes o confundem), na vida da criança tudo está certo, não há desarmonia, desacordes, nada de dissonante. Daí a ilusão de um mundo perfeito, o Céu: «C’était le Paradis. Chaque matin, je m’éveillais dans une grisaille stupeur de joie, admirant la chance folle qui m’avait fait naître dans la famille la plus unie, dans le plus beau pays du monde. » (Sartre : 30) É irónico, crítico, mas autêntico para o órfão que não conheceu o pai, nem pelas histórias contadas por outros. O privilégio de não ter que lutar no campo do romance familiar freudiano dá-lhe a paz da segurança.

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Natachka Tcherniak tem uma família do avesso. Ou antes, tem duas famílias. A relação com a mãe escritora e o marido, Kolia, também escritor, evolui entre a luz dourada da primeira infância na rue Flatters, dos dois aos seis anos, e o brilho das neves na Rússia, nos três anos seguintes; a sombra surge depois, quando é enviada sem prazo para Paris, abandonada ao pai, à mulher do pai, depois desalojada e preterida em nome da meia-irmã (cf. p.120). O reaparecimento da mãe, anos depois (numa prolepse que convoca o início da guerra, mas que está fora do tempo da infância), apenas serve para acentuar a ideia de uma impossível comunicação, de uma distância inultrapassável entre ambas, a impossibilidade de agarrar de novo as cintilições presas à leveza, à beleza e ao riso fácil da mãe.

Podemos dizer que os dois se vêem como crianças-títeres, manietadas pelas vontades de adultos que os encerram em definições:

- erradas e redutoras, para ela que quer sair desta categoria em que a prendem as consciências dos adultos: «de pitoyables pygmées aux gestes peu conscients, désordonnés, aux cerveaux encore informes…» (p. 274); mas, em Enfance, raramente surge a revelação da autoconsciência do ridículo. Uma cena apenas em que papagueia um poema, contrafeita: «j’ai été poussée, j’ai basculé dans cette voix, dans ce ton, je ne peux plus reculer, je dois avancer, affublée de ce déguisement de bébé, de bêta, me voici arrivée à l’endroit où il faut singer l’effroi.» (p. 62) Uma imagem de menina bem comportada que, correspondendo ao que dela se espera, abdica de ser quem é: «je parcours jusqu’au bout ce chemin de la soumission, de l’abject renoncement à ce qu’on se sent être, à ce qu’on est pour de bon.» (p. 63)

- demasiado laudatórias para ele, num teatro permanente, uma comédia para um só herói: «Je ne cesse de me créer; je suis le donnateur et la donnation.» (p.29) Poulou responde à família com o mimar viciado do menino-prodígio :

On me surprit – ou je me fis surprendre –, on se récria, on décida qu’il était temps de m’enseigner l’alphabet. Je fus zélé comme un catéchumène (…) je savais lire. J’étais fou de joie : à moi ces voix séchés dans leurs petits herbiers, ces voix que mon grand-père ranimait de son regard, qu’il entendait, que je n’entendais pas ! Je les écouterais, je m’emplirais de discours cérémonieux, je saurais tout. On me laissa vagabonder dans la bibliothèque et je donnai assaut à la sagesse humaine. C’est ce qui m’a fait. (p. 42)

Partilha depois connosco a sua imitação do pequeno génio que só fora do círculo familiar não é reconhecido. A primeira vez que o põem na escola, no Lycée Montaigne, é um ultrage para o avô o aviltamento a que o neto é sujeito, por mera falta de domínio da escrita: «J’étais le premier, l’incomparable dans mon île aérienne; je tombai au dernier rang quand on me soumit aux lois communes.» (p.65) Entra e sai do sistema no mesmo dia. «Je n’avais rien compris à cette affaire et mon échec ne m’avais pas affecté : j’étais un enfant prodige que ne savait pas l’orthographe, voilà tout.» Da segunda tentativa, no liceu, «A la première composition je fus dernier.» (p.179). Mas foi

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a partir desta entrada no liceu que o herói passou a forjar o seu próprio destino de aventura, com companheiros da mesma idade, o que lhe fora interdito até então.

II – Quando e onde

Viviam-se os tempos antes da primeira guerra, daquela que alterou definitivamente o mundo, o encheu de fronteiras e passaportes, até então desnecessários.

A família de Natacha circulava pela Europa com uma facilidade que ainda hoje surpreende: um tio refugiado na Suécia, os pais entre Paris e Ivanovo, St. Petersburgo, a Alemanha, a Suíça…

A família de Poulou é mais sedentária: o avô materno tinha escolhido a França, quando a Alsácia-Lorena fora ocupada, na guerra anterior. Para os Schweitzer

Il y a de vrais méchants : les Prussiens, qui nous ont pris l’Alsace-Lorraine et toutes nos horloges, sauf la pendule de marbre noir qui orne la cheminée de mon grand-père et qui lui fut offerte, justement, par un groupe d’élèves allemands ; on se demande où ils l’ont volée.» (Sartre : 32)

Mas de facto a família dependia dos alemães, porque vivia do Institut des Langues Vivantes, fundado pelo avô, onde se ensinava o Francês aos estrangeiros de Paris, pelo método directo (cf. p.33) (uma grande inovação da época que só chegaria a Portugal muitas décadas depois) e a maioria dos alunos eram alemães. Conviviam com eles nas festas da instituição, e o rapaz, que vestiam de anjo para a ocasião, o inocente a quem ainda não se revelara a sua fealdade, como bom francês, detestava «les Allemands, parbleu, mais sans conviction.» (idem : 33).

A la fête anniversaire de la fondation de l’Institut, il y a plus de cent invités, de la tisane de champagne, ma mère et Mlle Moutet jouent du Bach à quatre mains. Allons, ce ne sont pas de si mauvaises gens. Bien entendu, nous n’avons pas renoncé à venger l’Alsace martyre : en famille, à voix basse, comme font les cousins de Gunsbach et de Pfaffenhofen, nous tuons les Boches par le ridicule (…) les Allemands sont des êtres inférieurs qui ont la chance d’être nos voisins ; nous leur donnerons nos lumières. (pp. 34-35)

Nathalie acaba a sua narrativa com o fim da infância que significou a entrada no liceu. Mas antes há um momento de avanço da narrativa para o verão de 1914, passado na praia, Saint-Georges-de-Didonne, com a mãe, sempre bela, alegre e despreocupada, que tem que regressar de repente à Rússia para não ficar bloqueada em França. Mais um episódio vivido como um abandono, uma traição, punida ainda pela rispidez do pai e da

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madrasta quando se lhes junta, desolada, na vivenda que ali tinham alugado para a época.

A guerra, para o jovem escritor, foi um momento terrível, não pelo sofrimento apercebido, mas porque pôs o heroísmo e a coragem ao alcance de todos, lhes tirou o carácter único e solitário para os transformar em dever nacional.

E a Paris de há um século? Onde está a cidade da época em que Poulou e Tachok viveram a infância?

Na verdade pouco é dito. Porque não são textos de memorialistas a querer emoldurar o indivíduo no seu contexto histórico e geográfico. Aqui, são as evoluções interiores que contam. Mas há um cenário reconhecível, o da cidade-luz, inundada pela electricidade na exposição mundial no início do século, que deixou a Maison de l’Electricité como lugar de romagem do progresso (Sartre: 99). Paris que inaugurou 175 salas de cinema entre 1900 e 1913. Paris que se deixou pintar, fotografar, cantar, como uma metrópole ainda provinciana, no sentido mais humanamente positivo do epíteto. Um quadro de Utrillo, um poema de Apollinnaire, um cartaz de Toulouse-Lautrec, dão imagens várias da cidade onde estas vidas aconteceram.

As crianças frequentam o jardim: « quand ma mère m’emmenait au Luxembourg – c’est-à-dire : quotidiennement » (Sartre : 51) ; «Je me promène avec mon père… ou plutôt il me promène, comme il le fait chaque jour quand il vient à Paris. (…) Nous sommes passés par l’entrée du Grand Luxembourg qui fait face au Sénat et nous nous dirigeons vers la gauche, où se trouvent le Guignol, les balançoires, les chevaux de bois… » (Sarraute : 57) Para ele o imperfeito (um presente do passado), para ela o presente do indicativo com o efeito temporal de presentificação de outros tempos, de omnitemporalidade. Mas a cidade era outra quando vivia “du côté de chez sa mère” e as ruas conduziam «aux amusements, à l’insouciance des jardins du Luxembourg où l’air était lumineux, vibrant.» (Sarraute: 113) Porque mais tarde, “du côté de chez son père”, a geografia e a toponímia modificam-se, acinzentam-se, as ruas estão mortas, já não surgem como um ninho de conforto:

Ici les rues compassées menaient au parc Montsouris. Son seul nom me semblait laid, la tristesse imbibait ses vastes pelouses encerclées de petits arceaux, elles étaient comme plaquées là pour rappeler de vraies prairies et vous en donnaient une nostalgie par moments déchirante… Tu m’accorderas que le mot n’est pas trop fort.

C’est là que j’allais faire semblant de jouer, auprès de Véra, aux pâtés, au cerceau, ou en courant sur le gravier des allées bordées d’arceaux. Même les chevaux de bois ici ne me tentaient pas. (Sarraute : 113-114)

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A luz e a forma da paisagem dependem do olhar do sujeito. A própria ressonância das palavras influencia os lugares que designa. São também tropismos. Daí que a menina não brinque realmente como outrora, e se limite a imitar os comportamentos esperados de uma criança.

Poulou e Tachok são diferentes na forma como são olhados, como lidam com os outros, com a linguagem e com a escrita, tal como os narradores-escritores o são e se produzem em obras com pouco em comum. Têm ainda uma característica que os distingue das demais crianças, o facto de não terem famílias “normais”. Um tem toda a família submetida ao ritmo da sua respiração: «plutôt que le fils d’un mort, on m’a fait entendre que j’étais l’enfant du miracle.» (Sartre: 20); a outra parece não poder contar senão consigo própria, talvez com uma «gentille grosse bonne» (p.146) ou uma ama compadecida: “Quel malheur quand même de ne pas avoir de mère.» (p.121) E contudo… «elle m’observe, elle l’a reconnu, c’est bien lui : le malheur qui s’abat sur les enfants dans les livres dans Sans Famille, dans David Copperfield. Ce même malheur a fondu sur moi, il m’enserre, il me tient.» (p.122)… a criança recusa a palavra, rasga-a, solta-se. Como Nathalie procurou sempre fazer com todas as “grandes palavras”.

Nesta fase da infância, como se adaptam ao jogo colectivo?

Sur les terrasses du Luxembourg, des enfants jouaient, je m’approchais d’eux, ils me frôlaient sans me voir, je les regardais avec des yeux de pauvre : comme ils étaient forts et rapides ! comme ils étaient beaux ! Devant ces héros de chair et d’os, je perdais mon intelligence prodigieuse, mon savoir universel, ma musculature athlétique, mon adresse spadassine ; je m’accotais à un arbre, j’attendais. Sur un mot du chef de la bande, brutalement jeté, : «Avance, Pardaillon, c’est toi qui feras le prisonnier », j’aurais abandonné mes privilèges. Même un rôle muet m’eût comblé. (Sartre : 111)

Ao contrário do rapaz, tristemente excluído dos jogos de grupo, a escritora vê a menina que foi semelhante às outras crianças. Recusa sequer pensar numa possível marca diferenciadora. Ele é posto à margem, ou marginaliza-se. Ela é normal, segundo a narradora. Sem julgamentos, sabe que não tinha a consciência do tempo, reconhece a sua ignorância infantil:

Passé les grilles du Grand Luxembourg, plus de savantes traversées, elle [la bonne] s’installe à une place pas loin du bassin, le dos tourné à la vaste façade blanche… Je ne sais pas lire sur la grande horloge pour savoir si c’est l’heure du goûter, mais j’observe les autres enfants et aussitôt que j’en vois un qui reçoit le sien, je me précipite… elle m’a vue venir, elle me tend ma barre de chocolat et mon petit pain, je les saisis, je la remercie de la tête et je m’éloigne…

- Pour faire quoi ?

- Ah, n’essaie pas de me tendre un piège… Pour faire n’importe quoi, ce que font tous les enfants qui jouent, courent, poussent leurs bateaux, leurs cerceaux, sautent à la corde, s’arrêtent soudain et l’œil fixe observent les autres enfants, les gens assis sur les bancs de pierre, sur les chaises… ils restent plantés devant eux bouche bée… (Sarraute : 23-24)

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Ele é infeliz ao ar livre, não sabe nem pode brincar com outros, é um rapaz só, na família e na rua. Ela quer rever-se igual aos outros. Mas isso era no tempo em que vivia ainda com a mãe, e tudo era cintilante. Depois, também isso muda. E terá realmente memória desses episódios triviais e indistintos?

Que outros rituais ritmavam a vida de então?

A igreja. O hábito do culto, sem sentimento religioso que o sustente, é sobretudo feminino, na família de Sartre: «Le dimanche, ces dames [la grand-mère et la mère] vont à la messe, pour entendre de bonne musique ; elles croient en Dieu le temps de goûter une toccata. Ces moments de haute spiritualité font mes délices : tout le monde a l’air de dormir… » (Sartre : 25) Da missa o que importa é a música. O avô, por seu lado, amava Beethoven “sa pompe, ses grands orchestres ; Bach aussi, sans élan.” e havia decretado que os Schweitzer eram músicos natos – o bébé Jean-Paul já o era aos 8 dias porque riu ao ouvir o tilintar de uma colher. (idem: 50)

Natacha, por seu lado, compara a igreja de Montrouge, onde acompanhava por vezes Adèle, a menos espiritual das mulheres que a rodeavam, e a igreja ortodoxa russa da rua Daru, onde ia com a avó: as arquitecturas, os ornamentos, os rituais eram diferentes e lembravam as igrejas da Rússia. Mas a prática religiosa não é um hábito de família e o pai, judeu, é acima de tudo um “livre pensador”assim como a maior parte da corte de emigrados russos em Paris que tem uma atitude de abertura e tolerância, de indiferença, perante as religiões. (cf. pp. 234-236)

Os passatempos eram outros: « Les jours de pluie, Anne-Marie me demandait ce que je souhaitais faire, nous hésitions longuement entre le cirque, le Châtelet, la Maison Électrique et le Musée Grévin ; au dernier moment, avec une négligence calculée, nous décidions d’entrer dans une salle de projection. » (Sartre : 99)

Vejamos, uma a uma, as opções oferecidas: o circo era um hábito de século e meio em Paris, que começa então a ser ultrapassado pelos novos espectáculos. O Châtelet é uma sala de referência de espectáculos de teatro que, na época, se abriu a concertos de música erudita e popular, à opereta e ao ballet. Foi aí que começaram a actuar, em 1908, os famosos Ballets Russes de Diaghilev, com Nijinsky, Ana Pavlova, Balanchine… para quem Stravinsky, Picasso, Matisse, Cocteau trabalharam, e onde os artistas viram acontecer uma revolução que fundiu música, dança e pintura, cubismo, futurismo e surrealismo. Da Maison Electrique já falámos, era uma espécie de “Pavilhão do

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conhecimento” da época, onde o milagre da energia fazia mover o mundo. Quanto ao Museu Grévin representava a atualidade das figuras públicas a três dimensões.

Tinham surgido a 6ª e a 7ª artes: a fotografia e o cinema. O avô de Sartre adora ser fotografado. O grandiloquente apaixonado é vítima de 2 técnicas recentes:

l’art du photographe et l’art d’être grand-père. Il avait la chance et le malheur d’être photogénique ; ses photos remplissaient la maison : comme on ne pratiquait pas l’instantané, il avait gagné le goût des poses et des tableaux vivants ; tout lui était prétexte à suspendre ses gestes, à se figer dans une belle attitude, à se pétrifier ; il raffolait de ces courts instants d’éternité où il devenait sa propre statue. (idem : 22-23).

Toda a teatralidade de Charles Schweitzer, emoldurada em tonalidades de cinzento: nas fotografias o homem elevava-se à estatura da sua imagem. O neto é bafejado pela mesma sorte, até à revelação da fealdade, com o corte de cabelo que põe a nu o olho que começa a desobedecer: «On tire de moi cent photos que ma mère retouche avec des crayons de couleur.» (idem: 26). Ainda assim se faria uma geração mais tarde.

Mas é a 7ª arte que vence. O cinema é um passatempo democrático. Sem que a palavra seja pronunciada, está presente : «plutôt que par une fête, ce public si mêlé semblait réuni par une catastrophe ; morte, l’étiquette démasquait enfin le véritable lien des hommes, l’adhérence. Je pris en dégoût les cérémonies, j’adorai les foules» (idem : 101) Os divertimentos democratizaram-se. O séc. XIX fora do teatro, o novo século era do cinema. Espetáculos com diferenças essenciais:

Les bourgeois du siècle dernier n’ont jamais oublié leur première soirée au théâtre et leurs écrivains se sont chargés d’en rapporter les circonstances. (…) Je défie mes contemporains de me citer la date de leur première rencontre avec le cinéma. Nous entrions à l’aveuglette dans un siècle sans traditions que devait trancher sur les autres par ses mauvaises manières et le nouvel art, l’art roturier, préfigurait notre barbarie. (idem : 98)

Esta crítica ao cinema não é assumida pelo narrador-autor. É um eco da voz do avô, o modelo para comportamentos e gostos do neto e que não gostava de ver a família perder tempo em “passatempos superficiais”. Mas o jovem Jean-Paul escolhe esta aventura infratora das regras do patriarca. E, tal como faz com os livros e revistas infantis providenciados pela mãe e pela avó, lidos às escondidas do avô, descreve as sensações proibidas de um espetador de cinema de há 100 anos. Não só os momentos vividos por interposto herói, mas os aspetos do ritual de quintas-feiras, as salas, a iluminação, os cheiros:

Le spectacle était commencé. Nous suivions l’ouvreuse en trébuchant, je me sentais clandestin ; au dessus de nos têtes, un faisceau de lumière blanche traversait la salle, on y voyait danser des poussières, des fumées ; un piano hennissait. Des poires violettes luisaient au mur, j’étais pris à la gorge par l’odeur vernie d’un désinfectant. L’odeur et les fruits de cette nuit habitée se confondaient en moi : je mangeais les lampes de secours, je m’emplissais de leur goût acidulé. Je raclais mon dos à des genoux, je m’asseyais sur un siège grinçant, ma mère glissait une couverture pliée sous mes fesses pour me hausser ;

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enfin je regardais l’écran, je découvrais une craie fluorescente, des paysages clignotants, rayés par des averses ; il pleuvait toujours, même au gros soleil, même dans les appartements ; parfois un astéroïde en flammes traversait le salon d’une baronne sans qu’elle parut s’étonner. J’aimais cette pluie, cette inquiétude sans repos qui travaillait la muraille. Le pianiste attaquait l’ouverture de La Grotte de Fingal et tout le monde comprenait que le criminel allait paraître : la baronne était folle de peur. Mais son beau visage charbonneux cédait la place à une pancarte mauve : « Fin de la première partie. » C’était la désintoxication brusquée, la lumière. Où étais-je ? Dans une école ? Dans une administration ? Pas le moindre ornement [à l’opposé des théâtres] : des rangées de strapontins qui laissent voir, par en dessous, leurs ressorts, des murs barbouillés d’ocre, un plancher jonché de mégots et de crachats. Des rumeurs touffues remplissaient la salle, on réinventait le langage, l’ouvreuse vendait à la criée des bonbons anglais, ma mère m’en achetais, je les mettais dans ma bouche, je suçais les lampes de secours. Les gens se frottaient les yeux, chacun découvrait ses voisins. Des soldats, des bonnes du quartier ; un vieillard osseux chiquait, des ouvrières en cheveux riaient très fort : tout ce monde n’était pas de notre monde ; heureusement, posés de loin en loin sur ce parterre des têtes, de grands chapeaux palpitants rassuraient. (Sartre : 99-100)

Os sentidos, a memória dos sentidos, recuperam os momentos passados nas salas de cinema:

Dans l’inconfort des salles de quartier, j’avais appris que ce nouvel art était à moi, comme à tous. (…) On disait qu’il était à ses débuts, qu’il avait des progrès à faire ; je pensais que nous grandirions ensemble. Je n’ai pas oublié notre enfance commune : quand on m’offre

un bonbon anglais, quand une femme, près de moi, vernit ses ongles, quand je respire dans le cabinet d’un hôtel provincial, une certaine odeur de désinfectant, quand, dans un train de nuit, je regarde au plafond la veilleuse violette, je retrouve dans mes yeux,

dans mes narines, sur ma langue les lumières et les parfums de ces salles disparues 1 ; il

y a quatre ans, au large de la grotte de Fingal, par gros temps, j’entendais un piano dans le vent. (idem : 101-102)

Nathacha encontra no cinema inspiração para trabalhos de escola. O cinema mudo requer palavras que ela ordena :

Dans l’obscurité de la salle de cinéma de la rue Alésia, tandis que je regarde passer je ne sais plus quel film muet, accompagné d’une agréable, excitante musique, je les appelle [les mots], je les rappelle plutôt, ils sont déjà venus avant, mais je veux les revoir encore… le moment est propice… je les fais résonner… faut-il changer celui-ci de place ?... j’écoute de nouveau… vraiment la phrase qu’ils forment se déroule et retombe très joliment… encore peut-être un léger arrangement… et puis ne plus l’examiner, je risquerais de l’abîmer… il faut seulement s’efforcer de la conserver telle qu’elle est, ne pas en perdre un mot jusqu’au moment où je l’écrirai sur ma copie déjà mise au net, en allant à la ligne pour bien la faire ressortir dans toute sa beauté, en la faisant suivre du point final. (Sarraute : 213)

A escritora insuspeitada está em germinação.

Nas férias, Mauban, para os dois. Ou as praias, a Suíssa, a Alemanha para ela. Para o rapaz a terra natal do avô. Mostrava-lhe ruínas romanas e igrejas góticas e românicas.

O resto é silêncio. Sobre a arquitectura da Arte Nova não há referências. Mas não podemos impedir-nos de os imaginar à boca de uma estação de metro em que o ferro se

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moldou em volutas, ou a circular entre edifícios de arabescos delicados, sentados à luz de vitrais coloridos de fadas e libélulas.

III - O fado da escrita

Nos diálogos teatrais que Poulou estabelecia com o Espírito Santo, era um eleito que sofreria os suplícios dos criadores a quem o talento não bafejou e que, apesar de tudo, prosseguia uma carreira brilhante, de glória em escândalo, de sucesso em martírio, inventando-se o futuro de escritor: «je n’écrirai pas pour le plaisir d’écrire mais pour tailler ce corps de gloire dans les mots.» (Sartre : 158) Explica com sarcasmo como tinha escolhido «pour avenir un passé de grand mort et j’essayai de vivre à l’envers. Entre neuf et dix ans, je devins tout à fait posthume.» (idem : 162) As palavras para se contar são a própria denúncia da tirada dramática do mestre que domina uma linguagem, a quilómetros da criança-contada.

Et puis j’avais neuf ans. (…) j’étais un auteur très ignoré. J’avais recommencé d’écrire. (…) pour avoir découvert le monde à travers le langage, je pris longtemps le langage pour le monde. Exister, c’était posséder une appellation contrôlée, quelque part sur les Tables infinies du Verbe; écrire, c’était y graver des êtres neufs ou – ce fut ma plus tenace illusion – prendre les choses, vivantes, au piège des phrases.» (idem : 148-149)

Tudo se joga como se, em vez de se autobiografar, Sartre fizesse uma biografia de si próprio, com o distanciamento objetivante de entomólogo, que se exige de um biógrafo.2

Nathalie situa-se existencial e literariamente no extremo oposto. É fiel aos tropismos que perseguiu ao longo de uma carreira de ensaísta, romancista, dramaturga. Por isso Enfance se distancia tanto do lirismo fácil associado às histórias de infância, como da estridente denúncia e recusa de confissões de Sartre.

A menina não sonhava com a glória de Poulou. Recorde-se o episódio, na Rússia, em que a mãe a obriga a mostrar o “romance” que está a escrever a um estranho: ela não quer, sabe que não deve, sabe o julgamento que cairá sobre si: «Avant de se mettre à écrire un roman, il faut apprendre l’orthographe…» (…) je n’ai plus écrit une ligne.» (Sarraute: 85). Daí em diante mais nenhuma referência a escritas fora do enquadramento da escola. O engenheiro químico russo elogiava a escola francesa, prezava nela a instrução e o sentido democrático, enquanto a mãe desdenhava a instrução formal. Natochka limitava-se a viver no universo pessoal que a escola lhe permitia frequentar, a ser muito boa aluna sobretudo nas redações, a ter sucessos que partilhava secretamente com o pai atento:

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Mon père est toujours réservé, il ne se répand pas en compliments, mais je n’en ai pas besoin, je sais à son air, à la façon dont il m’écoute qu’il me dira que c’est très bien. Sans plus. Mais cela me suffit. Pas une seconde entre nous il ne s’agit d’une appréciation d’un autre ordre que celle qu’il ferait sur n’importe lequel de mes devoirs. Jamais n’est même de loin suggérée, jamais ne vient nous frôler l’idée de « dons d’écrivain »… rien n’est aussi éloigné…

- En es-tu sûre ?

- Absolument. Je n’ai fait qu’un très bon devoir. Je ne me suis rien permis, je n’en ai d’ailleurs aucune envie, je ne cherche jamais à dépasse les limites qui me sont assignées, pour aller vagabonder Dieu sait où, là où je n’ai rien à faire, chercher je ne sais quoi… ou plutôt ce que mon père déteste par-dessus tout, ce qu’il n’évoque qu’en plissant d’un air méprisant ses lèvre, ses paupières, et qu’il appelle « la gloriole »… certes non, je ne la cherche pas. L’idée ne me vient jamais de devenir un écrivain. Parfois il m’arrive de me demander si je ne pourrais pas être une actrice… mais pour ça il faut être belle comme Véra Koren ou comme Robine. Non, ce que j’aimerais, c’est d’être institutrice. (Sarraute : 215-216)

Assim, na confissão de um sonho outro termina a história de Enfance. Esta infância não se quer diferente de tantas outras na sua essência. As crianças vivem, ainda mais que os adultos, num mundo impossível de circunscrever às palavras, um campo de tropismos onde ouvem indistintamente a intimidade das conversas dentro si com o mundo.

Conclusão

Apenas uma, e só porque é quase obrigatório: lemos textos como estes para melhor compreender quem somos. As vidas revistas e partilhadas por outros configuram a nossa própria imagem da vida. Sartre percebeu-o desde cedo. O leitor procura nas autobiografias e nas biografias ecos de si, palavras que o traduzam na desorientação da existência.

Em ambas as obras se recusa a originalidade do escritor, embora uma biografia ou uma autobiografia valha precisamente pelo que tem de particular, de exemplar, positiva ou negativamente.

Nathalie Sarraute retoma no texto autobiográfico o seu desígnio estético de encontrar os movimentos interiores provocados pelas reverberações do mundo. Enfance seria uma espécie de parábola de todas as infâncias.

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Do último parágrafo de Les mots fica também a recusa da singularidade, tão alardeada e ridicularizada ao longo da obra:

Ce que j’aime en ma folie, c’est qu’elle m’a protégé, du premier jour, contre les séductions de «l’élite» : jamais je ne me suis cru l’heureux propriétaire d’un « talent » : ma seule affaire était de me sauver – rien dans les mains, rien dans les poches – par le travail et la foi. Du coup ma pure option ne m’élevait au-dessus de personne : sans équipement, sans outillage je me suis mis tout entier à l’œuvre pour me sauver tout entier. Si je range l’impossible Salut au magasin des accessoires, que reste-t-il ? Tout un homme, fait de tous les hommes et qui les vaut tous et que vaut n’importe qui. (p. 206)

Somos todos iguais, a eles e uns aos outros; somos todos originais e únicos e, simultaneamente, imitações e personagens medíocres e simultaneamente heróicas de um romance que gostávamos de poder escrever, ou ao menos viver.

Notas de texto 1. Sublinhado meu.

2.Afinal, ele foi um biógrafo abundante. Publicou livros sobre as vidas e obras de Baudelaire (1947), de Genet (1952), de Flaubert (1971-72).

Referências Bibliográficas:

BRULOTTE, Gaetan (1984), «Tropismes et sous-conversation » in Arc nº 95, Paris : Editions Le JAS, pp. 39-54.

SARRAUTE, Nathalie (1983), Enfance, Paris : Editions Gallimard.

SARTRE, Jean-Paul (1964), Les mots, Paris : Editions Gallimard.

teresa.coelho@esep.pt

Escola Superior de Educação de Portalegre Nota biográfica :

Teresa Coelho licenciou-se em Linguas e Literaturas Modernas – estudos Franceses e Ingleses, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Concluiu a parte curricular do terceiro ciclo de estudos em Didática das Literaturas de Língua Estrangeira, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade da Extremadura. É docente da Área Científica de Línguas e Literaturas Estrangeiras na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre desde 1990.

Referências

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