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Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar

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Academic year: 2021

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Editor Cassiano Calegari

Capa Bolivar Escobar Conselho Editorial Dra. Janaína Rigo Santin Dr. Edison Alencar Casagranda

Dr. Sérgio Fernandes Aquino Dra. Cecília Maria Pinto Pires Dra. Ironita Policarpo Machado

Dra. Gizele Zanotto Dr. Victor Machado Reis

Dr. Wilson Engelmann

Dr. Antonio Manuel de Almeida Pereira Dr. Eduardo Borba Neves

Editora Deviant LTDA Erechim-RS Rua Clementina Rossi, 585.

CEP: 99704-094 www.editoradeviant.com.br

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Mateus Kurpag

Da mente ao impulso

EDITORA

DEVIANT

Editora Deviant 2017

(4)

Copyright © Editora Deviant LTDA Categoria: Coletânea / miscelânea

Produção Editorial

Editora Deviant LTDA Todos os Direitos Reservados

ISBN

978-85-69114-87-1 Impresso no Brasil Printed in Brazil

M425 Kurpag, M.

Da mente ao impulso / Mateus Kurpag - Erechim: Deviant, 2017.

207 p. 23 cm.

ISBN: 978-85-69114-87-1

1. Direito. 2. Coletânea / miscelânea Civil I. Título.

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Satisfação Mental, 9

I

Banheira de Paz, 13

II

Branco e Vermelho, 17

III

O Ciúme e o Silêncio, 19

IV

O Caçador de Tesouros, 23

V

Conserva Infantil, 29

VI

Ceia Natalina, 33

VII

Narrativa à Queima-roupa, 37

VIII

Desossa Familiar, 41

IX

Divisão, 45

X

Queda Livre, 51

XI

Carta Amassada, 55

XII

Lavagem, 59

XIII

O Sossego, a Horta e a Herança, 63

XIV

Autorrecorte, 67

(6)

XV

Paixão, Conquista e Desilusão, 73

XVI

O Alvo Queimado, 77

XVII

Amor Invadido, 79

XVIII

Reaproximação Temporária, 83

XIX

Infâncias Cegas, 87

XX

Ignorado, 93

XXI

Costurado, 95

XXII

Velas Disciplinais, 97

XXIII

Solitário, 101

XXIV

Unificação Gêmea, 105

XXV

Lágrima na Capela, 111

XXVI

O Coveiro Idealista, 115

XXVII

Dominó Humano, 119

XXVIII

Fritura, 123

XXIX

Lagoa Mágica, 127

XXX

Descarrego Noturno, 133

XXXI

Remissão Adiada, 137

XXXII

Corpo Remontado, 141

(7)

XXXIII

Culpa e Punição, 143

XXXIV

Morte Conveniente, 147

XXXV

Retorno Canibal, 153

XXXVI

Ambiente Silenciado, 157

XXXVII

Traída Por Si Mesma, 161

XXXVIII

Estalos, 165

XXXVIX

Insistência, 169

XL

Arte Acolhedora, 175

XLI

O Fim da Desconfiança, 179

XLII

Justiça, 183

XLIII

Neutralização Artística, 187

XLIV

Casa Própria, 191

XLV

Campanha Educacional, 195

XLVI

Queima Anual do Espantalho Vivo, 199 Insatisfação Mortal, 205

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(9)

Satisfação Mental - 9

Satisfação Mental

A

ferramenta brilhante e compulsória denominada mente – in-titulada assim por ela mesma – , traduz com perfeição rela-ções entre os seres que vivem no modo como compreendemos vida. O pulso mental é sempre um pedinte sedento.

A satisfação a ser atingida pode depender de migalhas de circuns-tâncias, as quais interferem em conclusões únicas e, em mente, com-pletas. Se enquadram nisto as histórias perfeitas e as mal contadas, os raciocínios lógicos e os privados de fundamentos, coerências e incoerên-cias. Há uma imensa margem entre argumentações que permitem que todas as contradições sejam complementares. Que permitem, ao fim de todo e qualquer ciclo, que o equilíbrio seja provado.

Provar uma xícara de sangue pode ser tão comum e saboroso quanto degustar qualquer sobremesa. A própria definição de doce há de ser questionada quando se trata de esforço mental para compreen-são. A mente é armadilha. Não há conceito que seja definitivo sobre qualquer situação, padrão, caracterização, emoção. Portanto, tudo há de ser natural.

A morte é natural. O sofrimento, a angústia também. Isto quando não analisados com a ternura de uma mãe. A mesma mãe que pode destruir um filho como quem dispõe o lixo doméstico para, em um fu-turo, ser reciclado em coleta seletiva. Afinal, a mente é a coleta seletiva da vida. A mente seleciona o que quer e como quer definir.

Prazer, amor, carinho. Fé, gratidão, paz. Como dar luz à percep-ção dos impulsos internos se não pelo rastro desta indefinipercep-ção? Não seria justo ignorar. Assim como não seria justo não morrer pelo que se é atraído. A cabeça partida em partes iguais significará a compreensão do que dela emana se assim for quisto. A sabedoria de saber como saber é algo intocável, mas poderá ser objeto se assim ordenado. A grande che-fia comanda à trote toda a massa cinzenta necessária para executar a

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10 - Da mente ao impulso

busca pelo sentido de tudo. Somos apenas marionetes da própria men-te. Mente que menmen-te. Tão verdadeira quanto a mais falsa convicção.

Uma leitura poderá ser um manual de libertação se assim for orde-nado. Mesmo que a ordem esteja camuflada como liberdade de desejo ou lazer. Mesmo que a liberdade esteja camuflada como determinada paz. Mesmo que a paz esconda em si tons de desespero. Mesmo que o desespero traga consigo a fantasia de fugas internas. Mesmo que fugas internas representem somente a fuga de si mesmo. Mesmo que para fugir seja necessário determinar cada passo a ser dado. Mesmo que um destes passos seja vivenciado como paz. Mesmo que a paz represente lazer. Mesmo que lazer represente liberdade. Até que se perceba o cícli-co vício de fugas rumando ao caminho em que se observe cícli-como saída confortável e bem recebida o deleite da morte individual ou do próxi-mo, quando não coletiva.

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Banheira de Paz - 13

I

Banheira de Paz

C

ortados na banheira, imersos em tons de sangue diluído, esta-vam pedaços de gente. Dedos, antebraços, pés, línguas. Tecido epitelial se fazia cobertor de alguns dos membros em descanso. A paz emanava no ambiente. Estava tudo encaminhado.

Naquela manhã, o encontro interior de Doroht consigo mesmo estava florescido. O grau de percepção vital se fazia presente de uma forma esplendidamente sentida pela sua intuição. Algo o estava arras-tando para a plenitude, como em quase todos os últimos inícios da cla-ridade no céu.

Mesmo com os estrondos gerados nas brigas em seu lar, a tranqui-lidade seria sentida novamente. Era tão verdadeiro dentro de si que, a cada conflito interno na luta pelo sossego, a dificuldade de concentra-ção era maior. O peso do acúmulo era sentido como se fossem juntadas poucas pedrinhas por dia dentro de um recipiente, onde, com o passar dos anos, elas se tornariam um chocalho e não permitiriam fluidos de calma. Estava na hora do que sua mente tentava o conduzir desde as primeiras noções de impacto que presenciou junto da família. Faça-os

provar da tranquilidade. A paz está em cada um.

Doroht foi vítima da correria do dia-a-dia constantemente, prin-cipalmente após seu casamento. Com a chegada dos três filhos em anos consecutivos, um turbilhão de responsabilidades formava o surto agres-sivo notado em sua rotina. Cuide de seus filhos como gostaria de ser cuidado

na velhice. São eles que irão estar do seu lado sempre. E o pai cuidava. Mas a

tortura em seus ouvidos era semelhante ao poder de um tiroteio quan-do via as crianças correnquan-do. As vozes ecoavam de uma maneira a lhe

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14 - Da mente ao impulso

causar nojo. O asco já era um sentimento comum. Jurava sentir cheiro putrefato ao se deparar com as manobras defensivas da mãe para seus filhos. Em uma das vezes em que sentiu que a náusea seria o convite irrecusável para jogar fora o acúmulo de sentimentos, se apossou de um vidro de conserva vazio e vomitou. A recordação foi guardada para um momento oportuno. Um chefe de família precisa dar o exemplo. E assim, por mais algum tempo faria.

Após a meditação, no jardim dos fundos da casa, tinha certeza do caminho formado para si. O encontro da família em harmonia. O silêncio concentrado em um só ponto. A vida sendo celebrada de uma forma sincera. A dor e a calma. No próximo entardecer, no segundo piso da casa luxuosa, todo o massacre mental se converteria em sentidos para um bem comum. Todo o sacrifício seria abolido de sua memória. A cabeça já não latejava e o impulso de ser sincero consigo mesmo o entusiasmava.

O céu alaranjado não deixava dúvidas. A paisagem era perfeita.

Não há nada que as cores não tornem mais vívido. A naturalidade da força

bruta empregada em sua família seria compreendida nos momentos se-guintes e para sempre. Mesmo com tiras de pessoas estendidas no chão gélido do banheiro, tudo se apresentava em perfeita lógica.

No início, Doroht sentia um remorso duvidoso por nunca ter agi-do. O pensamento se transformará em ação no momento oportuno. A lágrima que ameaçou correr em seu rosto ao ver sua mulher e seus pequenos filhos nus, amordaçados e amarrados no chão branco e lustro do banheiro foi contida com um esforço aberrante.

Com um pote contendo vômito em mãos, o pai de família pensou se a lágrima havia evaporado, junto com qualquer sensação semelhante à culpa que poderia ser expelida de si. Enquanto ouvia o som da água preenchendo sua preciosa banheira de banho, abriu a tampa e derramou o líquido viscoso sobre os três seres de sua linhagem. Finalmente, provavam de tranquilidade externa.

O estalo dos ossos do filho mais novo era amaciado pelos pedaços sólidos de comida contidos em parte do líquido disperso no curto corpo de três anos. Ao passo que os estalos ressoavam pelo ar, os dois outros irmãos e a mãe tentavam gritar inutilmente, cada vez mais fracos pelo

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Banheira de Paz - 15

desgaste das cordas vocais. De maneira simultânea aos atos de libertação, uma osmose de dor era gerada, com lágrimas umedecendo o chão que se tornou ainda mais molhado debaixo dos rostos quando enxergaram os cortes dos membros do corpo à sua frente, realizados com diversos tipos de lâmina.

A banheira detalhada em ouro estava cheia de água morna para quente, na temperatura ideal para o objetivo final. “Estamos quase lá.

Todos ficarão bem. Acreditem em mim.” Doroht proferia as palavras de uma

forma paciente, rasa e límpida. Jogou, em seguida, seu primeiro filho para a água, que se tornou avermelhada em seguida, combinando com os tons do céu que eram vistos fora da janela. Respirou leve e lentamen-te e partiu para fora do banheiro por um instanlentamen-te.

Nada era crédulo. Parecia um pesadelo, um filme de terror para os vivos que se encontravam no segundo piso da casa, impossibilitados de qualquer reação física. Antes que pudessem esboçar qualquer pensamento além do pavor, Doroht apareceu com um jogo de xícaras em uma caixa. “Todos devemos provar da tranquilidade, não é?” Para ele, a ordem etária influenciaria no procedimento seguinte. Quanto mais ex-periência de vida, mais casos de estresse e luta pela tranquilidade eram experenciados. Portanto, a dose cumulativa de paz concentrada na ba-nheira deveria ser ingerida proporcionalmente. Ao inclinar a xícara em contato com a solução preparada, a dose para seu filho de quatro anos estava feita e, após pressionar o pequeno pescoço nas laterais, o líquido foi ingerido. “Gostou do chá que o papai preparou? Logo, logo você vai ficar

cal-mo, filho.” E passou para as demais execuções, em ordem crescente de

idade, praticamente idênticas à primeira. Qualquer distinção poderia causar inveja ou um sentimento de que o pai preferia um filho a outro, e isso, consequentemente, afetaria a harmonia do ambiente. Por mais que houvesse ruídos de gritos, o silêncio interno era o que permanecia na percepção do momento.

A água ficava mais vermelha a cada membro incluso na banheira. A viscosidade dificultava um pouco a passagem do chá pelas gargantas das crianças. Era chegada a vez de sua mulher.“Querida. Quero que me

entenda.” Doroht sentiu uma dificuldade um pouco maior em fazê-la

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San-16 - Da mente ao impulso

gue do seu sangue! Do nosso sangue!” Quase num engasgo, a mulher sentiu

o líquido morno descendo arrastado dentro de si. Sentiu náuseas. Mas antes que pudesse vomitar, o que ironicamente combinaria com o que havia sido despejado em seu corpo minutos antes, a escuridão se fez.

“Você logo estará em mim, tão próxima como nunca antes. Todos nós seremos um.”

As diferenças básicas para a execução de sua mulher foram o tamanho e o peso dos membros do corpo, e o volume dos seios, que compensava a ausência do volume do meio de suas pernas, equilibrada juntamente pelo meio das pernas dos meninos. Doroht sentia-se em plena consciência. Chegaria, finalmente, à sua paz completa. Despejou sua esposa junto dos outros.

A noite chegava em degradê. A janela aberta proporcionava um vento tão leve quanto a alma de Doroht. O chá o tranquilizava. A cada gole, a sensação de conforto era ampliada. Sentia sua família unida com uma força incrível. A partir de agora, somente paz.

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Branco e Vermelho - 17

II

Branco e Vermelho

C

om a pele do pescoço de seu filho rasgada, sentia-se perdido no quarto que sempre fora dividido. O sangue parecia mais claro do que sempre pôde imaginar. Seus atos foram tão negros. Qual-quer memória deveria ser apagada quando ligada aos seus pecados.

O vento fresco que deslizava pela janela após abri-la era tão bem vindo quanto seu filho momentos antes de adormecer. Syde cometera algo que somente em seu imaginário estremecido poderia ser realidade, culminando com seus sonhos tão profundos e desequilibrados quanto o fundo do inferno.

Desde a infância ouvia argumentos relacionados à perturbação. Porém, os únicos momentos que não compreendia eram os que era for-çado a ouvir. Quando adormecia, sentia-se imerso em outra dimensão, em outra vida, onde tudo poderia acontecer. Divertido e pavoroso. Ainda assim, a cobrança se fazia viva em sua rotina como se todos os seus so-nhos fossem parte de sua realidade.

Sua mãe mudava a cada novo dia e isso não era explicado. Seu pai nunca lhe fora apresentado, mas enviava conselhos que lhe pareciam valorosos. Independentemente do que o digam, você é especial. E, de alguma forma, Syde encontrava sintonia nisso tudo com sua reflexão pessoal. Jamais abriria mão de seus sonhos.

Cada copo de água rosa tomada contra vontade em todas as ma-nhãs parecia amargar seu paladar. A passagem de língua na camada enrugada do céu da boca lhe dava arrepios e o fazia recordar do som de costelas rachando em um de seus pesadelos favoritos. As lágrimas

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18 - Da mente ao impulso

teimavam em perseguir seus olhos quando o acordavam, normalmente detido por seus irmãos ou alguma de suas mães.

De todas as certezas que possuía, a de lâmina lustra era a mais bela. Suas certezas eram guardadas em segredo e com muita astúcia, dentro da espuma de seu travesseiro, para que ninguém as pudesse rou-bar. Acompanhavam seus pensamentos nos momentos de sonolência e dia após dia enquanto percebia-se entre paredes brancas como neve. Sua visão pedia mais cores, mas já estava acostumado com as condições. Somente em ocasiões especiais poderia contemplá-las. O ar próximo ao

gramado é tão puro, tão são.

Ao despertar com sangue nas mãos, seus olhos o obrigaram a se-guir o rastro até a cama de seu filho. Branco e vermelho combinavam com vitalidade, um tanto quanto contrária ao corpo jogado de bruços na cama do outro lado do quarto. Os lábios de Syde tremiam mornos, quase batendo um no outro. Finalmente um sonho havia se tornado real. Tão real que qualquer medida para conter seus impulsos de seguir inserido na realidade sã foram ignorados por si mesmo.

As batidas na porta e os gritos não surtiam qualquer efeito além de ecos nos corredores externos. O sangue escorria lambuzando o col-chão e o col-chão de forma proporcional ao lastro aberto na jugular de seu companheiro. Com certa relutância, Syde arriscou beber do sangue do próprio filho. Temos o mesmo sangue. O gosto era diferente do sabor adoci-cado que desejava como forma de combater a água rosada de todos os cafés da manhã. O vômito misturou-se com o líquido que contrastava o ambiente.

Durante os próximos cortes, a porta tão espancada fora arromba-da. A agulha que penetrou no braço de Syde o fez adormecer e, quando notou-se vivo encontrava-se isolado, órfão, sem qualquer mãe e separa-do de seu filho. A chave separa-do quarto fora encontrada junto de suas certe-zas, tão afiadas quanto qualquer das outras lâminas de barbear.

Enquanto o corpo do homem mais idoso do manicômio era vela-do, o futuro do adolescente de dezesseis anos era posto em análise pela instituição.

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O Ciúme e o Silêncio - 19

I

I

I

O Ciúme e o Silêncio

D

iscussões incessantes transitavam pelos ouvidos da floresta. Há dias, ecoavam vozes em um raio interminável. As palavras afiadas misturavam-se com o vento gélido, que raramente não se fazia vivo enquanto a escuridão da noite dominava o ambiente.

A fuga de Rayan para um aconchego natural era algo que sempre estivera pulsando em seu peito. Desde jovem, cansava-se facilmente de quase qualquer interação proposta pela sociedade. Em poucos meses se adaptara ao que lhe parecia ideal. Porém, seu coração estava enterrado na cidade.

Sua fé o fazia crer que, independentemente da forma de sobrevi-vência, o isolamento era o remédio ideal. Seu equilíbrio seria encon-trado, assim como sua reforma mental, tão atormentada desde que sua consciência lhe surpreendera.

A mudança estava ocorrendo desde o primeiro pé descalço na gra-ma. Sua cabana simples, construída apenas com madeira, o protegia das noites de frio rigoroso e das possíveis intervenções indesejadas de animais. Com as habilidades de caça desenvolvidas desde a infância, agradecia aos céus suplicando para que a energia chegasse até seu tio que residiu no campo até a morte por velhice. Esta era uma das poucas heranças de seu passado que fazia questão de carregar consigo.

Geralmente eram pássaros as suas refeições do dia a dia. Cozidos, fritos ou vivos. O sangue quente era mais saboroso. Era fácil obter as aves, seja por capturando em arapucas ou os matando a tiros. Em todas as suas caçadas, seu nível de stress era reduzido. Cada conquista, um alívio. E assim, estabilizou-se em sua nova habitação.

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20 - Da mente ao impulso

A caçada noturna sempre rendia bons frutos. Agora, decidira avan-çar em zonas que raramente percorria mesmo à luz do sol. Rayan não poderia prever, mas o que aconteceria mudaria sua rotina bruscamente.

Não pode ser.

Tamanha foi sua surpresa que seu coração se debatia acelerada-mente. Seus olhos brilharam como a lua cheia no céu limpo. Como era possível existir uma presença tão bela naquele lugar? De todas as suas previsões sobre acontecimentos possíveis, não havia sequer cogitado um encontro desta forma.

O céu estava preenchido com estrelas e por entre as clareiras da floresta era possível contemplar a luz que, de tão bela, parecia hipnoti-zar. Naturalmente, o amor fluía em diferentes expressões e, por óbvio, a união de Rayan e Lana aconteceu.

Nos dias seguintes, mesmo com alguma dúvida peculiar, Rayan desdobrava cada estado lacrado de interação além de seu convívio con-sigo mesmo. Aos poucos, foi libertando sua mente das amarras passadas e permitindo-se querer algo além do necessário para sua sobrevivência.

O sexo já era necessidade. Ambos gritavam em muitas das vezes e aí se encontrava uma das vantagens de se morar na floresta. Para Lana, tudo era tão inimaginável quanto para seu companheiro. Jamais antes poderia ponderar encontrar alguém no meio do nada e conviver des-ta maneira. Mesmo que ela não demonstrasse interesse, Rayan jurava enxergar algo puro e carinhoso em seu olhar. O sentimento estava vivo desde a primeira vez em que os olhos de ambos se encararam. A feli-cidade era plena, mas em breve sua percepção estaria abalada. Estaria apagada.

Dias depois, a angústia de Rayan foi se aguçando. Não sentia mais a reciprocidade na convivência, tal como Lana jamais sentira. Não pode

acontecer de novo. O que fiz desta vez? A discussão diária foi iniciada e, a cada

vez em que a incompreensão pairava, maiores eram os desentendimen-tos. Mais parecia um monólogo diante de um descaso. As memórias da cidade estavam retornando com muita força.

De maneira alguma queria forçar a anta a fazer amor novamente se não era, de fato, sua vontade. Mas não permitia-se aceitar que Lana o trocasse. O passado já me fez desafortunado. Não permitirei que aconteça outra

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O Ciúme e o Silêncio - 21 vez. Queria preservar uma relação estável, mas o ciúme o conduzia ao

mesmo objetivo que alcançou na cidade.

O animal começou a correr de um lado para o outro, escorregan-do por entre as mãos de Rayan. Algumas cadeiras já se encontravam caídas no chão. Seu receio de que para a anta nada fazia sentido era verdade. Mas tudo seria resolvido em breve já que as portas da cabana estavam fechadas.

Enquanto munia a espingarda, não conseguia reter o suor frio es-correndo em sua testa. O tiro que matou sua esposa na cidade também o matava por dentro. Mesmo que da floresta não precisasse fugir, de sua consciência não seria possível. E de dentro de si, alguma voz gritou para que deixasse a anta partir. “Seu ciúme só o fará ser menor.” A porta da cabana foi aberta. A cabeça de Rayan também.

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O Caçador de Tesouros - 23

IV

O Caçador de Tesouros

C

erca de metade de seu rosto é cinza todas as noites, combi-nando com o clima nublado que se fez em suas últimas épo-cas internas. A fumaça originada em uma periodicidade quase ininterrupta por cada cigarro aceso tece uma paz, que se desfaz ao con-frontar-se com o ar natural. A guerra, então, destrói a trégua e o conduz a originar fogo com isqueiro sequencialmente. Em suma, mais um dia comum para o caça tesouros. Adormeceu.

Pela manhã, como de praxe, Larry servira-se de cédulas amassa-das de dois e cinco reais, misturaamassa-das em uma xícara de porcelana fina, capaz de se fazer brilhante com um simples atrito causado por algum pano destinado à limpeza de poeira. A poeira de pensamentos objetivos encobrira as belezas ao redor de seu dia a dia. Mas era preciso pagar para poder existir. Por sua intuição, podia jurar ouvir uma pulsação interna que se traduzia na confusão causada entre os fonemas das pala-vras “existência” e “desistência”. A desilusão por perda do material não era nem mencionada, pois em sua trajetória vital isso jamais tangeria sua essência. Haviam muitos tesouros para encontrar e agarrar como se fossem escapar como um sabonete úmido pelo próprio suor. Deveria possuir.

Ter para ser. Objetivo cego. Conduta plena em busca de seu ideal. Antes de abrir os portões de sua casa humilde e partir para um novo dia, lembrou-se de tocar o sino feito de suas lágrimas. Ao chorar, quando necessário expor seus sentimentos a si mesmo, guardava as lágrimas em um pequeno cofre. Quando este estava lotado, era quebrado e substitu-ído por outro maior. O barulho da ruptura o fazia sentir sangue correr

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24 - Da mente ao impulso

em suas veias, deixando-o inspirado. Porém, Larry tinha de confessar: os cofres estavam lotando rapidamente nas últimas semanas. Mas isso não podia o abater. Era preciso perseverar.

Parecia estranho, em uma primeira impressão, vender sua esposa – tão bela quanto atrizes famosas atuando em novelas de horário nobre nas televisões de plasma espalhadas por sua residência – e seu filho, mesmo que o pobre garoto não pudesse se expressar pela pouca idade que tinha. Mas o valor era irrecusável. O traria satisfação. Atualmente, pôde almoçar suas comissões, e quase que todos os dias, saborear uma calda de repulsa ao que não é maleável com dinheiro.

O retorno ao trabalho, por vezes, era complicado. Estava hoje com um embrulho no estômago. A sensação que o acompanhou nos últimos anos agora agravara-se. O cheiro do tabaco não era suficiente para suas narinas e pulmões conduzirem calma ao organismo que implorava so-corro por algo que não conseguia entender em sua mente. Já tinha tudo planejado. Em mãos, o mapa de seus próximos anos com os caminhos conduzindo-o aos tesouros da vida. Mas algo o fez frear o carro que polido refletia luxuria. Escorou a testa – que agora suava frio – no vo-lante cromado e sua garganta fechada por um nó cego o fez buscar ar para fora do ar condicionado. Conduziu, então, o veículo até sua casa antes de iniciar o expediente do turno da tarde. Acelerou, sentindo que a velocidade o acalmaria.

Estacionou o carro lateral e abruptamente em frente à sua gara-gem, tornando impossível a saída de qualquer um de seus outros dois veículos. Entrou correndo em casa em busca de um copo de sossego. O sossego em seu presente estava escasso. Havia se despedido simpatica-mente através de um beijo de despedida em seu filho alguns anos atrás, mas o recado foi ignorado como uma mensagem de texto promocional de operadoras de celular.

Larry sentiu seus joelhos tremerem. Estava sedento. Sedento por algo que abolira por bens maiores em sua percepção. Fotos mentais de sua ex-esposa começaram a piscar como se estivesse presenciando a ocorrência de um curto-circuito no lustre de prata instalado no centro do teto de sua aconchegante sala de estar. Fechou os olhos com força, sentou-se em seu sofá de couro animal e pôs-se a respirar fundo. Sentia

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O Caçador de Tesouros - 25

seus pulmões sendo preenchidos com ansiedade. Sua cabeça estava co-meçando a latejar.

Segundos depois, seu corpo se debruçou involuntariamente no ta-pete macio e sedoso que cobria toda a sala. Sentiu, então, seus desejos se desprendendo de seu corpo, bem como sua existência.

“Morri.”

Ao lado do lustre aceso, Larry observa seu próprio corpo estirado metros abaixo. Sorriu para si mesmo crendo ser um sonho. Mas o sonho não se desfaria eternamente.

A repressão de sua ambição era tamanha que estava o contraindo ao perceber-se incapaz de obter o que queria carregar consigo. O orgu-lho estava cumprindo seu papel de não permitir a aceitação da perda. E não haviam exceções, muito menos contradições nas regras deste ma-nipulador de mentes.

Já não havia mãos para segurar nem pernas para conduzir. O que podia ver não era proporcionado por um par de olhos cansados e su-blinhados por olheiras como o de costume. Estava tudo estranho. O silêncio era esmagador por não permitir que ouvisse sequer o estron-do estron-do pêndulo estron-do relógio rústico que marcava pontualmente quatorze horas. A solidão tomava conta. A afobação era delirante. Por mais que tentasse, não sentia cheiro do perfume ostentado por escolha própria. Não podia alcançar as conquistas de anos de excelência em necessidade de ouro. Seus tesouros brilhavam, mas não podia os tocar.

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Conserva Infantil - 29

V

Conserva Infantil

O

calor era equiparado ao inferno dentro da sala rudimentar. A pouca ventilação havia o feito suar até sentir-se completa-mente murcho, sem qualquer líquido no corpo que não fosse o sangue que já circulava vagarosamente dentro de si. A visão embaça-da e seca não o permitia enxergar o lado externo pelas frestas embaça-da porta de madeira grossa mal instalada no único meio de passagem para fora do ambiente empoeirado. Minha intuição me trouxe até aqui. Walle, agora, sentia-se traído por si mesmo.

A porta se abriu acompanhada de um estrondo. Seu breve cochilo exausto foi emanado para longe, fazendo com que seus olhos penetras-sem nos olhos castigados do idoso que estava em sua frente com um copo plástico encardido de água nas mãos. Ao estender a mão para agarrar o copo, o dono da casa quase engasgou-se antes de proferir um riso irônico. O senhor de cabelos longos e acinzentados tomou um gole da água e, ao invés de engolir, fez um gargarejo e cuspiu no rosto da espécie de prisioneiro.

Walle ainda não lembrava o motivo de ter acordado onde estava. Estava zonzo. A última evidência em sua memória falha era a busca pelas pistas óbvias para sua percepção. Dentro do caso de desapareci-mento de crianças das redondezas da cidade, apenas um dos membros da equipe investigadora estava em um caminho distinto.

As duas primeiras crianças desaparecidas eram gêmeos de seis anos de idade, as quais brincavam no parque arborizado. As folhas pendura-das nos galhos pendura-das árvores eram produtoras de um ambiente pacífico e de clima agradável. A vigilância local jamais falhara. O questionamento

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30 - Da mente ao impulso

era quase como um saco de perguntas sem fundamento, contrariando o desespero e as lágrimas que arranhavam os rostos da família das vítimas do sequestro. Dias após o ocorrido, a correspondência recebida pela po-lícia local causou uma proporção inestimável de incredibilidade, ânsias de vômito e horror. “Ouçam a voz que tanto ignoraram.” As quatro orelhas pequeninas estavam gélidas.

O dia e a noite já não estavam sendo foco de percepção de Wal-le. A cada ranger de porta, uma sensação de proximidade do eterno descanso corria por sua espinha dorsal, deixando-lhe, neste momento, indeciso sobre a opção de longevidade. Estava fraco e com fome, inca-paz de atingir ou defender-se de qualquer ameaça. O que ele quer de mim?

Não tenho nada que seja de seu interesse. E desta vez a presença do dono do

cativeiro humano se fez com um toque especial. A corda vista em mãos enrugadas foi apresentada e utilizada para amarrá-lo em uma cadeira, sem o uso de uma só palavra. Qualquer questionamento fora ignorado. Após a verificação de uma amarração segura, encontrava-se a mercê de qualquer desejo. Minutos depois, estava coberto por uma pele grossa de cordeiro, tornando o ar respirado tão denso quanto sua mente que afundava em confusão.

No sétimo dia após o desaparecimento dos gêmeos Nick e Michael as televisões gritavam sobre o desaparecimento de outra criança. Desta vez, a vítima era Lanny, uma garota de oito anos que aguardava sua mãe retirar o carro da garagem da própria casa. O tempo da captura foi tão curto quanto o tempo que a menina teve para gritar. Silêncio. A investigação começou no exato momento em que a Mercedes vermelha fora abandonada com a porta do lado do motorista aberta. Tão aberta quanto o peito da mãe que não podia fazer nada além de esperar e esperançar sua alma com palavras da equipe de investigação que ago-ra tentava ligar dois casos de sequestro de crianças em poucos dias. A informação obtida até então era apenas um bilhete instigante escrito a mão com tinta azul de caneta comum, recebido pela polícia poucas horas após o ocorrido. “Há oito anos também perdi um destes. Dói.”

Como pude confiar? O pensamento do membro da equipe

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Conserva Infantil - 31

Estava preso fisicamente e sem condição alguma de revidar ou sair do local regado à precariedade em que estava.

Não há dinheiro sujo válido. Não há saída quando se entra no corredor estreito da ambição.

Walle atravessava uma crise financeira que o fizera acreditar que sua vida era medíocre e sem sentido sensato. Há meses estava questio-nando-se sobre a valia de tal proposta. Deveria apenas manter-se calado e agir no momento correto. Estarei seguro de qualquer forma. Suas crenças estavam mudando diante das decepções que havia presenciado. Mas tudo era questão de tempo. Um tempo longo e, agora, venenoso. Os ponteiros girando não curariam qualquer dor.

Horas antes do pagamento, o policial trazia desmaiada a quarta criança: um menino loiro e doente de cerca de cinco anos, cujas olhei-ras eram tão profundas quanto as ondas de medo que atingiam qual-quer um que soubesse dos sumiços que estavam acontecendo. Carl era branco como a neve e a pureza de crianças que necessitam de atenção sentimental. Os motivos não deveriam ser pauta de conversa. A troca de gentilezas envolvia o seu dever e sua recompensa, conforme a proposta que havia estudado e, há alguns dias, aceito. A habilidade e agilidade do investigador foi tão perfeita quanto sua atuação como guarda do parque, motivo pelo qual integrou ao time do bem.

“Tens tudo nas mãos. Integre-se.”

Ao entregar nos braços do velho de olhar misterioso e entreaberto, foi conduzido até o local onde seria sua omissão da vida. Já era, agora, um desejo. Tinha plena ciência de que deveria entregar-se ao seu final. No fundo de sua essência, sabia que havia errado, corrompido a linha do correto. Jamais será justo tratar uma criança como objeto. A dimen-são do erro é ampliada quando se sabe da inocência e incapacidade de defesa. O momento tardou até saturar para que fosse possível a reversão do panorama criado. Era preferível a auto-punição.

Enquanto Walle aguardava o desapego do corpo material, não for-çava a si mesmo a interromper a admiração da capacidade de persua-são daquele que observaria sua morte em instantes. Há muito por dentro

daquele olhar enrugado. De repente, ouviu um som ao longe, já sentindo-se

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32 - Da mente ao impulso

o cobria foi retirada. A sensação de ar leve foi única. Verdadeiramente um prazer diante da situação que se encontrava. Me entregar em busca do

alívio.

A água fervente derramada em seu pescoço e sua cabeça o fez de-sejar a morte como seu maior bem após a sensação de frescura em seu corpo. As provas não podem existir em nenhuma circunstância. O retiro deve ser um

lugar único e secreto. Partiu, então, de forma inesperada em relação ao que

decidira acreditar ser o correto. Partiu suas crenças. Partiu para o vazio. Na sala ao lado, o velho idoso de cabelos longos abriu o freezer.

Finalmente, filho, amigos. A conserva no gelo juntamente do que chamava

de óleos místicos permitira seu filho – assassinado pela polícia por um tiro acidental – estar estranha e praticamente intacto. O curativo de gaze disfarçava o rombo no lado direito do pequeno peito da criança, obtido enquanto jogava futebol na rua do bairro de seu melhor amigo. Cuidadosamente, colocou cada uma das quatro crianças sedadas e nuas dentro do compartimento e o fechou. Em pouco tempo, todas estariam em harmonia. Podia imaginar até a condensação do ventinho da res-piração das crianças aparecendo até que elas encontrassem o garoto já presente e pronto para brincar.

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Ceia Natalina - 33

VI

Ceia Natalina

A

s luzes de natal piscavam alternadamente, jogando suas diver-sas cores nos enfeites que as contornavam. Os ares de harmo-nia da melhor época do ano faziam Derik sorrir ao receber os presentes que mais desejava. Papai Noel existe de verdade! A gratidão massageava seu interior com vivacidade.

Na casa dos Norman, todas as datas do calendário Cristão eram comemoradas com euforia interna. Não havia melhor expectativa que realizar festinhas temáticas que serviam tanto para interação familiar quanto para celebrar dádivas que a Terra teve a oportunidade de re-ceber desde o início dos tempos, quando o humano e todos os demais seres foram designados à marchar em um só caminho.

Tão doce é a estrada divina, que nunca fora preciso questionar seus ensinamentos. A alegria emergiria em todos os dias, como raios de sol aquecendo os corações da família. A união baseada no amor e na tolerância devem sempre ser o principal fruto da convivência. Mas Derik chateava-se com a irmã adolescente, que jamais pareceu levar em consideração o que a catequese procurava ensinar.

Já faziam meses que Donna implicava com as atitudes infantis de seu irmão. As facetas da puberdade explodiam como bombas em suas concepções de vida. O que teria sentido de toda aquela baboseira escri-ta por algum ser poderoso em algum dia de tédio? Em sua sinceridade interna, nem desejava saber. Escritos bíblicos e histórias fantasiosas não eram tão distintas, afinal.

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34 - Da mente ao impulso

O rosto de Derik levava consigo uma cicatriz profunda desde que as unhas afiadas da irmã mais velha o haviam perfurado. As lágrimas não foram o suficiente para lavar o sangue nem os gritos para reduzir a dor. Marcas da vida. Tudo acontece ao passo de seu porquê.

As agressões constantes só fortaleciam a fé do menino, mesmo que sua irmã fosse apenas ordenada a ficar em seu quarto, onde cheira-va algo semelhante a gesso, reboco ou qualquer aglomerado de poeira branca como forma de descarrego. Confessava a si mesmo que não conseguia compreender tamanha violência. A família é a base de tudo. Não deveriam haver motivos para ser tido como um saco de pancadas decorado à hematomas. Seus pais não diziam nada além de frases tão prontas que pareciam extraídas de seriados da televisão. De qualquer forma, o bem sempre prevaleceria.

Sentado confortavelmente em sua cadeira de rodas, Derik contem-plava o vidro embaçado da sala de estar. Seu único olho podia enxer-gar o pinheirinho de natal estava enfeitado e colorido. Ao inspirar o ar quentinho até seu peito inflar, prendia a respiração para se acalmar. Estava nervoso com o que aconteceria. Seria mesmo possível?

Desde que fora empurrado das escadas, nunca mais teve contato com sua irmã. Não entendia o motivo de tamanha agressão. Se fosse perdoável vê-la nua, gritando e sentando com força em cima de um amigo qualquer, tentaria se redimir antes de ter sido espancado. Mas o risco de fracasso não permitiu que seus reflexos fossem ativados a tempo.

Sozinho no chão da sala de estar, sentia dor em seu olho perfurado com a maldita unha de Donna. Talvez o esmalte laranja que usava fazia o ardor ser expandido. Ainda assim, não era comparável com a colu-na estraçalhada. O som de cada degrau golpeando suas costas não foi harmônico junto ao estrondo da porta do quarto da irmã se fechando. Em algum tempo não contabilizado em sua memórias, o menino era recolhido por seus pais, já paralítico e parcialmente cego.

De todos os sentimentos que corriam velozmente em seu interior, nenhum chegava aos pés de vingança ou algo de natureza odiosa. O

amor é a base de tudo. O amor é a solução para todos os problemas. Gostaria de

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Ceia Natalina - 35

e isso nunca havia ocorrido. Sentia falta de seus gritos, das reclamações e até mesmo de encarar seu olhar sem vida e com olheiras profundas que, em contraste com a pele de coloração pálida, instigavam qualquer inocência. O castigo de seus pais estava sendo mais longo desta vez.

Ser freira na adolescência não havia sido algo fácil para Donna. Talvez, ser encaixotada em pedaços fosse realmente o melhor caminho a seguir. Bombardear seus pais com questionamentos antes da morte não serviria para nada. Assim, se entregava ao final de si mesma. As reações corpóreas eram apenas observadas por cada um de seus sete sentidos. Os cortes eram brutais. Já não importava se sua mãe seria quem a segurasse e tapasse sua boca enquanto seu pai criava fatias de seu corpo ou vice e versa. O escuro tomaria conta de tudo em breve. A curiosidade de seu irmão era a raiz de todo o sofrimento. O sofrimento diário pela troca de atenção. O mais novo, o predileto, o que precisa de mais cuidados, o deficiente mental. O, agora, aleijado.

Enquanto Derik desembrulhava o presente com suas mãos trêmu-las, seus pais aguardavam por sua reação em um ambiente de grande expectativa. A felicidade pairava na sala de estar. As luzes piscavam, os enfeites reluziam, a árvore nunca parecera tão bela. Até mesmo as pe-quenas renas pareciam sorrir ao lado do presépio e do trenó.

De todos os presentes que havia ganho na vida, este se tornava, a cada segundo, o que mais lhe havia trazido euforia até então. O prazer de um reencontro vinha como uma onda imensa que o afogava em emoção. Sua irmã, mesmo em pedaços, estava de volta. Não havia en-tendido o tamanho da caixa até então. Era verdade que boa parte era ocupada pela roupa de freira, que sempre lhe parecera maior que o necessário para Donna. Mas isso não importava. Abraçava-a em uma mistura de mil sentimentos.

Nunca mais brigaria com sua irmã. Com a cadeira de rodas de um lado para outro da casa, ficava a acariciando enquanto contava histórias. Neste natal, finalmente podia falar bem perto, de forma tão íntima e única com Donna sobre seus maiores segredos, mesmo sendo estranho segurar uma orelha de pele fria na palma das mãos. Ela não comentava nada, mas o menino podia sentir que a serenidade era com-patível com sua saudade.

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36 - Da mente ao impulso

Os pedaços de sua irmã permaneceram picados e intactos na caixa colorida somente até a hora da ceia. Um jantar diferente para uma data especial. Dificilmente teria imaginado ter de se desfazer de um presente tão cedo. Dizem que as momentos intensos passam rapidamente, e De-rik pôde comprovar isso. Valeu a pena.

Enquanto digeria Donna, o menino sentia-se satisfeito. Os restos do jantar queimavam na lareira. Por mais que Derik insistisse em ficar com eles, deveria obedecer seus pais. Dentro de poucos dias, o quadro do natal em família seria emoldurado e colocado na sala de estar, e isso seria o suficiente para manter a lembrança daquela que não respeitou ensinamentos e tradições.

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Narrativa à Queima-roupa - 37

VII

Narrativa à Queima-roupa

N

aquela noite, ouvi gritos sem a menor delicadeza de uma moça tão jovem que ainda não percebia se já atingira a ida-de adulta. Cada palavra esbravejada atingia o homem gordo, que suava de raiva. As contradições proferidas da boca deste só faziam os olhos da menina ficarem mais molhados e tremularem como uma panela que ferve água por mais tempo que o necessário.

De onde eu vim, soube de muitos relatos de injustiça. Alguns com tons de discórdia, outros até um pouco engraçados, arrisco. Mas que me tocasse desta forma, acredito que nada a altura. Se há uma coisa intole-rável é o aproveitamento de quem não pode apresentar defesa alguma contra algum ato que não remeta a vida para algo que faça bem.

Confesso que não sou de prestar atenção em discussões, assim como qualquer uma que se pareça comigo. Porém, diante de tanta miséria de argumentos, não pude deixar de gelar por indignação. Eu precisava ser eficaz. Eu queria ser eficaz.

Muitas vezes, somos taxadas com argumentos de maldade. Há quem queira nos exterminar por completo. Provocamos lágrimas, de-sespero. Porém, em situações como esta, me sentia na obrigação de exis-tir, e agradecia a todo momento por representar esperança.

Fui tida como a única chance de liberdade para uma menina que não tinha a companhia de uma mãe para consolo e proteção em situa-ções aberrantes. Mesmo querendo ajudar, não poderia usar de minha boa vontade sozinha. Minha ação útil de existência é apenas uma. Não posso ser desperdiçada. E desta vez, havia algo que me fazia torcer para

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38 - Da mente ao impulso

que eu fosse essencial. Senti que deveria me concentrar para dar o me-lhor de mim em breve.

Eu estava vendo e ouvindo tudo. Minha presença não percebida até então era camuflada por uma toalha de tirar pó dos móveis da casa rústica. O cenário era semelhante a uma casa abandonada e antiga, onde tudo parecia tão velho e sem vida quanto o homem que estava na frente da menina. De sua face, em cada poro escorria água, que parecia tão salgada que arderia os olhos se o contato fosse feito. De uma das narinas, escorria coriza em tons de verde nauseante. A blusa mal cabia em sua barriga oval, que era lisa de tão esticada pela gordura. O velho parecia forte, e seus cabelos longos e mal cuidados eram, em parte, gri-salhos e combinavam com o ambiente da casa como se fossem feitos um para o outro.

Quando o homem deu um passo a frente, fui chacoalhada e posta em ameaça de ser disparada acompanhada de um grito estremecedor. Neste instante, a prova de que o tempo é relativo foram os segundos, que duraram horas. Consegui observar os dois olhares sendo postos em confronto, um com espanto, outro com saturação. Percebi que em se-guida eu seria o que cessaria a tensão. Ouvi, então, o barulho do gati-lho. Havia chegado a hora de me intrometer.

Fiquei surda com o estrondo que ajudei a causar. A menina cam-baleou até cair no chão. Me assustei com a velocidade que tomei. Fui voando em linha reta, girando, matei. Fui cravada e afundada quase no meio dos olhos daquele gigante. Vermelho. Senti tombar. Era realmente muito pesado. O chão o sentiu quicar uma vez.

Enquanto ouvia o choro da menina, tive a oportunidade de enxer-gar algo além do trivial para uma bala de calibre 22. Senti rasenxer-gar me-mórias, onde entendi que a aparência que havia acabado de derrubar era reflexo, por inteiro, do interior em que me alojei. Asquerosa forma de vida foi o que assisti. De surras à estupros. A audição era atingida com gritos resultantes de dores. A própria filha lacrimejava por seus olhos azuis claros. Por mais que as lágrimas tentassem limpar sua visão, cada vez mais frequentes eram as razões para virem à tona outra vez.

A mente que habitarei eternamente não relacionava seus atos com algo diferente do comum. Era tudo uma expressão natural de vida.

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Narrativa à Queima-roupa - 39 Como as coisas tem de ser. Junto da cabeça estourada, debaixo da terra

me encontro com uma profunda sensação de dever cumprido, torcendo pela paz interior da frágil menina que me usou. Quem sabe, somente assim, no final, as coisas teriam de ser.

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Desossa Familiar - 41

VIII

Desossa Familiar

P

or fim, Gurl poderia dispor sua energia para sua cura interna. Nos últimos dias em que torturara sua mãe, sentia dentro de si uma felicidade contagiante. Suas orelhas tremiam por tanto ouvir as mesmas frases de represália. Sua alma tremia suplicando liber-dade.

Concentrações matinais não haviam lhe proporcionado a paz que o atingia em cheio sempre que o período de purificação chegava. Havia algo errado na recepção de seus alívios. Nem incensos nem masturba-ção funcionaram desta vez. O que há de errado?

O sangue que havia limpado da bancada de cortes da cozinha pa-recia escorrer dentro de si, sem chance alguma de estancamento. Cada pedaço de sua mãe servia de exemplo para os que duvidavam de sua ca-pacidade. Enquanto ensacava o último braço ao som de Jimi Hendrix, sentia ter passado por uma grande provação. Era estranho como uma glória poderia custar tão caro para os valores que possuía na época. Mas os espíritos não voltariam a atordoá-lo.

Agora era órfão. O garoto de quatorze anos abusara sexualmente da pessoa que o criou. Ela era tão indefesa diante de sua idade avança-da. Jurava não ter certeza do que o conduzia para tais atos, mas estava inserido em um universo vicioso de um prazer incontrolável. Os últimos dias haviam sido tão intensos que pensou em descansar por vezes. Mas as vozes interiores o faziam persistir. A única maneira de pará-lo foi a súplica de uma voz real, de tonalidade praticamente escassa. “Mate-me,

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42 - Da mente ao impulso

Seu desejo é uma ordem, mamãe. Como sempre. Gurl parecia enxergar

através de filtros vermelhos enquanto amarrava sua progenitora no ta-blado da cozinha. Há dias supria as necessidades da mãe somente para que não morresse por necessidades fisiológicas. Mas ao que lhe parecia, o ápice pedia espaço com menos sutileza que nos dias anteriores. O som da chaira em atrito com a faca despertava o pavor até nos olhos dos espíritos que o rodeavam.

O primeiro corte foi estranho e fez com que Gurl afiasse por mais alguns instantes seu instrumento de libertação. O sangue já jorrava de uma das coxas da mulher que tinha seu interior mais dolorido que qual-quer corte que viria a sofrer. Era o momento de tirar mais que pequenos pedaços como pontas de dedos ou orelhas. O menino esboçava um leve sorriso quando via que os panos socados na boca da mãe abafavam qualquer som que o denunciaria para alguma pessoa que viesse a passar pela frente da casa. Não daria chance para o azar mesmo morando em um setor retirado da colônia. O próximo corte foi liso.

O cenho franzido refletia a dor física da mãe. Retalhava-a como sentia que fosse justo segundos antes de cada ato. Cada grito que estre-mecia sua vida até então o convencia a não titubear quando ressoavam em sua alma como lembranças. A vida deveria ser constituída de esco-lhas corretas e, como dizia sua criadora, com responsabilidade e hones-tidade. Gurl nunca se sentira tão honesto consigo mesmo. Cada gota de sangue que escorria pela lâmina brilhosa provava que sua intuição era certeira. As vozes o saudavam a cada pedaço humano destroçado.

Parecia difícil desfazer a carne dos ossos. Era mais fácil que que-brá-los para ter cada parte do corpo definida. Sem misturas. O menino fazia questão de separar o lixo. Confessou a si mesmo que a cabeça era algo bizarro de ser separada do corpo. Não poderia vacilar em momen-to algum, então tenmomen-tou ser rápido.

Era verdade que sentia uma ponta de angústia. Talvez não fosse o momento exato em que deveria realizar a execução. Mas as vozes

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in-Desossa Familiar - 43 sistiram tanto. E a mãe também. Assim, após ensacar sua mãe em pedaços,

com ossos devidamente limpos e carne em sacos separados, a reuniu e a abraçou firme, com todo o calor que um filho pode fornecer para uma mãe em momentos de afeto. “Ainda te amo, mãe”.

De agora em diante, porém, Gurl não teria mais que arrumar seu quarto antes de sair de casa.

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Divisão - 45

IX

Divisão

S

oluçando por causa do choro, Ralth entrelaçava os dedos das mãos e dos pés em sua prece, sentindo a frustração germinar den-tro e fora de si.

Há tempos lutava contra seus demônios. A paz não era corriquei-ra como seu daltonismo. Perguntava-se como poderia ser mais trivial enxergar cores diferentes do resto do mundo do que poder desfrutar de qualquer sossego no dia a dia. Sua cabeça explodiria como uma grana-da de insanigrana-dade em breve caso não tomasse providências. Os últimos cinquenta minutos até o momento não foram prazerosos em qualquer âmbito.

Dizia a si mesmo que não podia acreditar ser possível viver desta maneira. Concordava, enfim, que o mundo estava perdido enquanto dependesse de uma auto cura divina, paz mundial ou qualquer outra sinônimo de harmonia plena. Isso jamais existiria. Todos estavam con-denados. A súplica momentânea era somente que, pelo menos mais uma vez, pudesse esquecer dos problemas, das vozes em sua audição sentimental, do contraste de sua vida com todas as outras.

Ralth criou sua própria circunstância indesejada. Ele sabia com exatidão dos riscos que corria. Porém, um pouco de adrenalina poderia ser bem vinda. Suas veias esquentavam quando sentia-se em alguma aventura. Mesmo não sentido-se completo, parecia integrar ao todo de maneira esplêndida, tão indescritível quanto a contrariedade dos ins-tantes seguintes. Perguntava-se, desde então, onde ficaria sua marca no mundo. Onde ele haveria auxiliado para que as coisas fluíssem de ma-neira leve, com brilho suave, com paz.

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46 - Da mente ao impulso

Tranquilidade era uma sensação extinta de sua vida há muito tem-po. Perdera a noção do quão longe estava desde que se reconhecia neste estado. No alvoroço mental que se encontrava, sentia quase mais dor dentro de sua caixa craniana do que na parte do seu corpo que agora poderia ser livre.

Dentre os cadeirantes, provavelmente foi o mais ousado do plane-ta. O encontro direto de sua cintura com a serra circular fez espirrar sangue por todo o apertado quarto de esculturas de seu avô. O som da pele, dos músculos, dos ossos e o cheiro do sangue que jorrava e, jurava, de pele queimada pelo contato com o disco pontiagudo em alta rotação, criavam uma atmosfera temível para quem assistisse, dolorosa e liber-tadora para quem se partiria em dois pedaços de gente. Seus braços em perfeito funcionamento haviam cumprido sua função. A coragem florescida para o arraste do próprio corpo para fora da maldita cadeira de rodas e em direção ao corte foi sincero e mais forte que seus receios.

A frustração se fazia viva na atmosfera segundos depois. Como não

pensei? Seu corpo fora cortado, porém não partido. Não havia criado

qualquer maneira, posicionado qualquer objeto que pudesse o manter diretamente em contato com a serra sem interrupção. Sua liberdade es-tava condenada. Teria que, contra todas as suas vontades, permanecer em conjunto com a parte morta de seu corpo. Com a parte sem tato, fria, nojenta de seu corpo. Com a parte que causava repulsa a si mesmo, torta e cheia de veias e estrias saltadas. E, piorando sua expectativa, permanecer consigo mesmo e com a cadeira que colaram em seu cu. As lágrimas corriam por suas bochechas gordas, por vezes conflitando seu caminho diante do sangue espirrado.

No chão frio, aguardava socorro e, após toda a situação constran-gedora, lições de moral mais óbvias que sua impossibilidade de cami-nhar com dignidade. A lateral de sua cintura e parte de sua barriga ardiam fervorosamente enquanto suas mãos não tinham mais forças para manterem-se contraídas para fingir esquecer a sensação de dor. A bacia certamente havia rachado em algum ponto. Talvez seu rim es-querdo tivesse sido estourado, assim como outros órgãos que não sabia o nome. Quando ouviu a porta ranger no esforço de ser aberta, virou os

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Divisão - 47

olhos para cima de forma a demonstrar sua impaciência e camuflar sua situação, esperando o início dos xingamentos.

Não ouviu uma palavra sequer, e isso foi surpresa para seus ou-vidos. O sangue verde espalhado pela sala de artesanato de seu avô não havia se tornado motivo de reclamações nem questionamentos. O único som que podia ouvir era o da serra que permanecia ligada ao seu lado há quase uma hora, unindo sua ressonância com os movimentos de seu avô.

O rapaz foi bruscamente posicionado próximo à serra. As mãos cobertas de pele velha do avô tateavam seu ombro direito vivo e sua perna direita morta, mantendo seu corpo contra o metal afiado. Vovô?!

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X

Queda Livre

E

nquanto caía, os segundos se alongavam. O vento ia arrancan-do memórias de uma vida inteira a cada instante, inibinarrancan-do suas sensações ao passo que sua visão maximizava progressivamente o que era focado como destino: o chão. A única coisa que ainda sentia era uma mistura da própria desistência de querer estar vivo com medo de que a ofuscada esperança de não encontrar o que o vento carregava, então, brilhasse. Queria esquecer.

Nos seus poucos registros fotográficos, quase sempre tinha de es-conder marcas corporais, as quais tinham como origem seu choro ou algum fato que ele não possuía capacidade para assimilar. A maquia-gem era realmente mágica. Antes mesmo de proferir a primeira palavra de sua existência, Tony já era aquietado com palmadas na pequeni-na boca. “Mãe, Mã…” Não sabia que a sua primeira construção de comunicação verbal havia sido cessada por um golpe, como se fosse em um despertador que toca no meio da madrugada, fora de qualquer programação. Aliás, assim fora seu nascimento. Um ser humano indesejado aprendia a não reclamar de sua educação. Calado e sem choro. Ninguém deveria saber das peculiaridades familiares.

As dores internas de sua infância fixaram-se dentro de seu peito. O buraco profundo de tristeza e incompreensão era escuro. A única luz que era acendida nessa época tão presente provinha do encontro com seus vizinhos, com os quais disputava partidas de pênaltis na rua, com goleiras feitas com chinelos de dedo. Quando um de seus chinelos ras-gou a tira que separava os dedos de seus pés calejados tamanho trinta e dois, seu rosto mostrou-se também abatido após os arranhões de sua

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52 - Da mente ao impulso

mãe. Tony jurava que, após a surra, conseguia ver no espelho seu per-sonagem de desenho animado favorito desenhado com sangue borrado em sua bochecha direita.

O trauma por ter perdido a virgindade sem nem conhecer o sig-nificado do ato com clareza fizera de Tony uma criança diferenciada. Os olhos do pai foram transferidos para o filho. Enxergava o todo ao seu redor com olhos secos e, a partir de então, estava condicionado a repetição dos movimentos dolorosos de entrada e saída em seu corpo e mente por anos adiante.

A decisão não mudava, mas temia. Queria, de certa forma, sumir. Tony precisava de alguma motivação para respirar ares mais tranquilos, pois fora forçado a se acostumar com a alta densidade de seu lar. Ao consultar o padre da Igreja em que se catequizava, levou o conselho para sua vida toda. Releve o erro que te rodeia e eleve o acerto do perdão. Era chegada a hora de ser o maduro o suficiente e encarar sua realidade.

Em pé do lado esquerdo da cama, ao ouvir seus pais respirando profundamente enquanto dormiam, um filme de guerra era transmi-tido na cabeça de Tony, em que o protagonista era quem perderia as batalhas para sempre. Porém, sua inocência fazia com que o ar emitido das narinas de sua mãe arrepiasse os pelos loiros de seu braço. A ob-servação durou alguns minutos e então, com toda a delicadeza de uma criança marota, deixou um bilhete com uma mensagem escrita a lápis de cor juntamente de um autorretrato – que mais se assemelhava com um sol borrado e decadente – no meio do casal que o proporcionou a vida. Sentia, de uma forma estranha, amor. “Eu perdoo todo mundo porque o

erro é só uma coisa chata. Vou me elevar e ‘esqueser’ tudo isso. Amo vocês. ‘Açinado’: Tony.” Com lágrimas nos olhos e expressando uma felicidade que nunca

sentira, saiu do quarto e encostou a porta sem propagar qualquer som. Ao abrir a sacada do pequeno apartamento, Tony inspirou fundo o ar da madrugada, absorvendo ainda mais confiança em si mesmo.

“Eleve o acerto do perdão.” A capa que imitava o herói de seu desenho

ani-mado favorito já estava vestida. Pulou certo de que o voo o purificaria e afastaria tudo o que passou de ruim em sua vida até agora. Seis andares de sobrevivência.

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Queda Livre - 53

A capa cobria o crânio estourado da criança e amenizava a apa-rência de um pequeno corpo com ossos quebrados. Uma multidão se formava aos poucos ao redor de uma poça de sangue. O menino de dez anos se foi. O despertador tocava no quarto de seus pais.

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Carta Amassada - 55

XI

Carta Amassada

O

conjunto de atos da vida padrão de Jordan o saturava. Pou-cas vezes libertara as vontades mais gritantes de sua essência. Fora muito bem regrado por seus pais e pelos ensinamentos da Igreja. Quando coroinha, obedecia sem qualquer questionamento as ordens de seu amor. “Fica tudo entre nós. Este será o nosso segredinho divino,

Jord.” De certa forma, gostava da sensação de confidência.

Acostumou--se com o gosto amargo da rotina, quase sempre molhado ao fim dos atos. Era verdade que ficava irritado com os pelos em sua garganta que tentavam o afogar por vezes, mas o afeto precisava ser cultivado a cada dia. Seja fervoroso.

A Igreja era tão confortante diante de seu lar que Jordan preferia dispor o maior tempo possível atarefando-se em razão da fé. No in-ternato que foi direcionado após a perda dos pais em um acidente de carro, colecionou algumas cicatrizes externas e internas. Em seu quarto, era o mais jovem e, portanto, era submetido a realizar todas as tarefas designadas ao grupo. Quando não cumpria seu dever, seus colegas o reprimiam com golpes onde hematomas não poderiam ser vistos. Era impossível fazer qualquer denúncia, pois o espanto diário lhe travava a voz.

Rezava fortemente em todas as noites antes de dormir para que seu destino pudesse lhe reservar oportunidades de perdoar seus compa-nheiros. Como posso, com apenas um olho, enxergar o que os outros não veem com

dois? Jordan não recordava o que era poder ver com dois olhos. Do colo

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56 - Da mente ao impulso

entrando em confronto direto com a quina da mesa da sala de estar. Sua mãe contava que mesmo chorando alto, não foi capaz de acordar seu pai, que transpirava vodka. O menino podia sentir o mesmo cheiro junto da notícia do acidente que destruiu sua veia familiar. Do carro restavam pedaços, de seus laços familiares vívidos nada.

Ao crescer na Igreja, se engrandeceu na cura da fé. Porém, a ab-sorção diária de pecados dos fiéis pesava toneladas emocionais. De qualquer forma, o sorriso sempre era esboçado ao final das confissões.

Doe-se a alguém e será iluminado. Mas era praticamente impossível esconder

a saturação dos dias, que insistiam em ser tão iguais, monótonos e arras-tar sentimentos afetivos para longe vagarosamente.

A saudade se fazia viva quando refletia sobre os tempos em que ingressou na vida religiosa. O amor havia sido despertado aos poucos, mas de forma crescente. Posteriormente, iniciou o desconforto da des-confiança. A fase adulta de sua vida não correspondera às expectativas cultivadas, afinal. O ciúme foi originado em seu peito, trazendo angús-tia e até lágrimas escondidas que molhavam seus lençóis. Jordan não tinha mais ninguém na vida além do padre que o conduzira até o seu presente. Podia perceber o desinteresse do companheiro que lhe aco-lheu desde a infância com o passar dos anos. Parecia uma obrigação banal estar junto. Não poderia ser assim.

Poucas coisas desviavam o olhar de seu mentor da cruz e dos en-sinamentos religiosos. As crianças correndo ao redor da quadra eram uma delas. Em segredo, Jordan usufruía de todas as suas forças internas para não cometer qualquer traição relacionada ao seu superior. A von-tade de posse carnal era extrema, mas deveria saber conter seus desejos em qualquer circunstância. O suor lhe escorria ao rosto, num misto de sexualidade e apreensão. “Deus poderá perdoá-lo por tudo. Eu não.” A doutri-na pessoal era clara em respeito ao seu parceiro.

O novo coroinha foi eleito em um período conturbado dentro do constante relacionamento. Alguns conflitos aconteciam sem sequer ter motivos específicos, apenas por implicâncias casuais. Mal posso umedecer

no amargo que sinto. Jordan sempre fora instruído a nunca rebater

respos-tas de seu amado, mas podia sentir em algum lugar de seu coração a distância se fazendo real entre ele e os lábios que há tempos não tocava.

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Carta Amassada - 57

A revolta mental não seria capaz de colocá-lo em confronto. Ago-ra, seguia as palavras divinas como quem se equilibrava em uma corda esticada nos ares. Ignorava com relativa facilidade os gritos iniciais do garoto que conhecera há pouco tempo, apenas não conseguia compre-ender tamanha falta de atenção. Inspirava o ar profundamente na ten-tativa de se reintegrar, mas tudo o levaria a decidir o caso sem mais causar transtornos. Devo partir e deixar que o amor prevaleça sem barreiras,

assim como quando fui o escolhido.

Enquanto andava, sentia o cheiro da poeira dissipada pela chuva que recentemente ocorrera. Luzes cegavam seu olho direito de manei-ra a se cruzarem com a lucidez de seu pensamento. Pelas margens da estrada escura percorria a si mesmo tão intensamente que sua pele ar-repiava enquanto refletia na noite negra. Espero que leia a carta e a guarde

com carinho.

A cada lembrança, uma sensação de felicidade e um passo para dentro da pista. Quando chegou ao meio da estrada, seguiu reto e sorridente. Não chegava a tanger sensações de despedida. A gratidão transbordava de seu olho de forma discreta quando o amarelo da faixa divisória se mostrou vivo e brilhante. Jordan não tinha certeza de sua coragem até se impulsionar contra o caminhão que sugira acelerado. A última luz que veria refletiria o sangue na pista junto a alguns de seus ossos esmagados.

O som de uma carta amassada ecoava na Igreja vazia. Um amor esquecido na ausência de qualquer saudade e de qualquer velório foi substituído.

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XII

Lavagem

S

er irmão mais velho era uma responsabilidade alta, a qual não era aceita com prazer por Benny. “Quando papai não estiver em casa,

você será o homem da casa. Mantenha a ordem.” A sensação de poder

era tão falha para o menino de oito anos que a frustração era sua maior companheira. Desde o primeiro choro proferido pelo bebê, percebia o desvio de foco de atenção. Brinquedos não podem me comprar. O ar estava a cada dia mais denso.

Os abraços diários foram reduzidos. As divisões não eram justas em nenhuma circunstância. As canções de ninar que ouvia do outro lado da parede enquanto tentava pegar no sono eram como incitações ao ódio, enquanto os seus desejos de boa noite limitavam-se ao fechar de porta e alguma frase de praxe. Até os lanches preparados com amor pela mãe foram substituídos por moedas para trocas frias na cantina do colégio.

Desde a chegada de Nilo, a vida de Benny foi costurada do avesso com pregas mais resistentes que o aço. Nem seus desenhos animados favoritos podiam ser mantidos na televisão. Sua relação de carinho com os pais estava seca como terra batida. Nem mesmo as cobranças de pê-naltis no quintal de casa estavam acontecendo, pois seu pai não podia mais descansar devido à falta de sono causada pelas madrugadas acor-dado a fio. A partir daí, uma estratégia seria traçada e praticada visando à piedade própria.

A decisão madura de agir como adulto fora, de longe, uma evolu-ção notada pelos pais. “As crises de ciúme acabaram!” Os pais vibravam em

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60 - Da mente ao impulso

sussurros. Carinho e afeto pairavam em torno do bebê chorão. Enfim, alguma harmonia parecia ser palpável para os irmãos. Mesmo com a diferença grande de idade, a conexão familiar se fez. Com a força da intenção futura, tudo seria mais intenso.

Longas eram as brincadeiras com Nilo no sofá. Os pais, já acos-tumados, faziam da tranquilidade algo normal. Benny tornara-se, de-finitivamente, um anjo da guarda. Todo o tempo que não estava no colégio, auxiliava nas tarefas que envolviam o recém nascido. “Serei

eter-namente responsável por Nilo.” As palavras do filho mais velho causavam

comoção nos sentimentos dos pais. Mas ainda assim, notava-se a frieza das respostas. Parecia impossível derreter o gelo dos olhos dos pais. Em breve faria algo mais caloroso que o próprio fogo. A atenção seria sua por completo novamente.

Decorar todos os horários em que estaria sozinho em casa tomou um pouco seu tempo. Algumas lições de casa tiveram que ser deixadas de lado. Mas o resultado seria pleno. Algo o fazia excitar-se de forma única. Ansiedade e certo medo de ser descoberto combinavam-se, mas já estava decidido desde o início.

Qualquer resquício de entendimento que ousasse surgir era afo-gado e misturado no ambiente. As lágrimas de Nilo também estavam dispostas da mesma forma enquanto seu grito era estranhamente sus-penso pela pressão que sentia. De repente, Benny notou que esquecera o sabão em pó. A sensação cessou ao perceber que o resultado final seria o mesmo, apenas sem efeitos visuais. A máquina de lavar roupas logo deveria parar automaticamente. Pela tampa transparente, observava o irmão girar e até alterar a cor de seu rosto.

O barulho da porta da dispensa fez ranger, também, o ouvido di-reito de Benny. Os gritos dos pais o levaram quase a surdez instantânea. Já era tarde para Nilo respirar algo que não fosse água. A pele do bebê estava enrugada, principalmente nas palmas das pequenas mãos que pareciam não terem forças para se manterem fechadas como de costu-me. O desespero emanava de todas as formas e a rigidez dos olhares em torno do irmão vivo era inconfundível. O mesmo olhar de sempre.

Benny já não podia pensar. Fora alvo físico, então, de toda a violência sentimental que sofria internamente. Enquanto girava, pensava se teria

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de conviver com o irmão em algum outro lugar. Espero que não. Ao con-trário de Nilo, mantinha a calma ao passo que a água penetrava em cada um de seus canais corporais. Jurava não estar chorando, mas não se conformava em ter sua busca pela retribuição de amor extinta. Não da forma com a qual buscava sua retomada na relação afetiva com os pais, seus melhores amigos. Após alguns minutos, o pensamento termi-nou. O menino também.

Enquanto assistiam à novela rotineira, os pais das crianças se abra-çavam prazerosamente. Os beijos não paravam sua constância e os olhos de ambos brilhavam. Não havia culpa. Cada um deve receber o troco

pelo que faz, na mesma medida. É parte do equilíbrio. Qualquer

responsabili-dade familiar fora morta. A vida seguiria mais tranquila, sem cansaços intermináveis ou irritantes carências afetivas. Tinham a vida toda, no-vamente, um para o outro. Enfim, felizes para sempre.

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