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Traída Por Si Mesma

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 161-165)

XXXVII

Traída Por Si Mesma

O

s ecos dentro do crânio de Stall faziam com que seu rosto fosse comprimido de forma constante. As caretas que enxergava no espelho sugeriam as mais diversas sensações, quando na ver- dade a irritação da repetição estava a levando à insanidade.

“Depressa! Livre-se de mim!” Mas a advogada não podia. Toda sua

conduta profissional fora abalada por um engano sentimental. Um erro. A emoção prevaleceu. Apenas uma vez não abalará ninguém. Mas a pena de morte – ocorrida dentro da prisão promovida pelos demais detentos – ao pai inocente que lutava para sua filha sair do mundo das drogas fora algo tão pesado quanto a dependência da menina. Stall provou a

si mesma que sua veia de compaixãonão deveria decidir qualquer caso

que trabalhasse. Mas a experiência em seu passado não permitiria estar do lado julgado como correto desta vez.

A dor do espancamento seguido de estupro cicatrizou-se na mente da menina de quinze anos. Quer usar drogas? Quer ser uma vagabunda? Quer

se perder neste mundo? Vou lhe fazer provar o gosto desta merda que tanto quer! Stall

chorava ao sentir seu avô a penetrando. A pele rugosa e suada a causava náuseas traduziam o desespero do momento. Tamanha era a apreensão que nem mais sentia as dores em seu rosto, antes socado cinco ou seis vezes. O primeiro cigarro de maconha trouxe curiosidade e trauma na mente da órfã antes mesmo de ser aceso.

A brecha aberta pelo caso fez com que a pele da neta fosse acari- ciada constantemente durante os próximos quatro anos. Era tudo o que

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sexual do velho se fazia presente. Diversas vezes, os afazeres sexuais não eram concluídos. Mas o medo da repetição calava sua boca diariamen- te.

A morte do avô foi o alívio e a liberdade para Stall, que com os bens herdados, manteve-se estabilizada economicamente. Não haviam luxos, mas a missão pessoal de concluir seus estudos foi concluída de- talhada e com excelência. A fome era passageira, mas o mundo justo a compensaria. Sua única esperança de uma vida digna apagaria a tragé- dia emocional vivenciada na infância sem escapatória.

Aos poucos, a repressão interna da então mulher foi diminuindo. Stall não era boa com relações pessoais. Sua comunicação fora comple- tamente afetada diante dos acontecimentos passados. Jurou a si mesma que iria proteger os justos de qualquer pressão indevida. O único obje- tivo de vida da advogada estava estabelecido e seria intacto como a ro- cha mais resistente. Mas a rocha fora trincada e estava prestes a rachar, esfarelar, virar pó.

Na audiência, podia ver bondade nos olhos do homem condenado. Não havia mentido em momento algum. A filha, por rebeldia e distúr- bio psicológico armou cada passo da emboscada magistralmente. Era inquietante a capacidade da jovem. Uma ponta de ciúmes se dispersava no ar.

A maquiagem disfarçava bem cada expressão da menina. Certa- mente seria livre por mais alguns anos, até que sua saúde fosse corroída e se tornasse mais um zumbi das ruas da parte retirada do centro da cidade. A culpa não existiria, pois a sensibilidade para qualquer fato já estava extinta dentro da garota de dezenove anos. Sua aparência des- gastada maquiada reforçava seu vazio.

Stall sabia disso. Aquele pai não havia estereotipado ninguém. Mui- to menos abusado sexualmente de sua filha em questão e suas irmãs, o que o remeteria a um caso de pedofilia. No momento em que o malhete foi batido, Stall sentiu-se tão impotente quanto seu avô.

Os dias pareciam ter quarenta e poucas horas, tamanha demora para serem finalizados. O sono, porém, já era algo passageiro. A ad- vogada sentia a culpa como um balão sendo cheio dentro de seu peito. Sua consciência começou a cochichar. Depressa. Livre-se de mim. Era um

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peso diário em processo de engorda e com uma voz cada vez em maior volume. Depressa! Livre-se de mim!

Nada que Stall fizesse resolveria. Não possuía um círculo de ami-

gos. Suas relações pessoais não passavam de cumprimentos cordiais. Não desejava se envolver com ninguém além de si mesma e de suas pretensões de fazer do mundo um lugar mais justo. Mas agora, a con- tradição a derrubara. Seu instinto traumatizado a fizera defender até o fim a menina drogada e mal articulada. Fui traída por mim mesma. Seu perfeccionismo servia como um escudo inquebrável utilizado por seu orgulho, que não permitiria que tentasse remediar suas decisões. A per- turbação estava conduzindo sua mente à extinguir sua racionalidade. Só restou uma opção.

Não esquivou em momento algum. A faca de cozinha serrava seu pulso esquerdo, para frente e para trás até seu outro braço não mais conseguir sustentar o movimento. Stall estremecia ao mesmo tempo que o sangue escorria. Ainda falta o outro. Mas sentia pulsar ainda mais forte o sangue da culpa em seu organismo. O surto de cortes não re- solveria, portanto. Falhei no único objetivo que tive na vida. Não permitirei que

aconteça com isto.

Uma leve camada de pele ficou aderida em parte da serra da faca

ensanguentada, agora também pela jugular rasgada. Em alguns minu- tos, Stall deixaria de ouvir a tormenta. Em alguns minutos, adormece- ria. Nos demais minutos, quaisquer que fossem, permaneceria caída e, quem sabe, posteriormente acomodada em algum caixão.

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 161-165)