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XI

Carta Amassada

O

conjunto de atos da vida padrão de Jordan o saturava. Pou- cas vezes libertara as vontades mais gritantes de sua essência. Fora muito bem regrado por seus pais e pelos ensinamentos da Igreja. Quando coroinha, obedecia sem qualquer questionamento as ordens de seu amor. “Fica tudo entre nós. Este será o nosso segredinho divino,

Jord.” De certa forma, gostava da sensação de confidência. Acostumou-

-se com o gosto amargo da rotina, quase sempre molhado ao fim dos atos. Era verdade que ficava irritado com os pelos em sua garganta que tentavam o afogar por vezes, mas o afeto precisava ser cultivado a cada dia. Seja fervoroso.

A Igreja era tão confortante diante de seu lar que Jordan preferia dispor o maior tempo possível atarefando-se em razão da fé. No in- ternato que foi direcionado após a perda dos pais em um acidente de carro, colecionou algumas cicatrizes externas e internas. Em seu quarto, era o mais jovem e, portanto, era submetido a realizar todas as tarefas designadas ao grupo. Quando não cumpria seu dever, seus colegas o reprimiam com golpes onde hematomas não poderiam ser vistos. Era impossível fazer qualquer denúncia, pois o espanto diário lhe travava a voz.

Rezava fortemente em todas as noites antes de dormir para que seu destino pudesse lhe reservar oportunidades de perdoar seus compa- nheiros. Como posso, com apenas um olho, enxergar o que os outros não veem com

dois? Jordan não recordava o que era poder ver com dois olhos. Do colo

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entrando em confronto direto com a quina da mesa da sala de estar. Sua mãe contava que mesmo chorando alto, não foi capaz de acordar seu pai, que transpirava vodka. O menino podia sentir o mesmo cheiro junto da notícia do acidente que destruiu sua veia familiar. Do carro restavam pedaços, de seus laços familiares vívidos nada.

Ao crescer na Igreja, se engrandeceu na cura da fé. Porém, a ab- sorção diária de pecados dos fiéis pesava toneladas emocionais. De qualquer forma, o sorriso sempre era esboçado ao final das confissões.

Doe-se a alguém e será iluminado. Mas era praticamente impossível esconder

a saturação dos dias, que insistiam em ser tão iguais, monótonos e arras- tar sentimentos afetivos para longe vagarosamente.

A saudade se fazia viva quando refletia sobre os tempos em que ingressou na vida religiosa. O amor havia sido despertado aos poucos, mas de forma crescente. Posteriormente, iniciou o desconforto da des- confiança. A fase adulta de sua vida não correspondera às expectativas cultivadas, afinal. O ciúme foi originado em seu peito, trazendo angús- tia e até lágrimas escondidas que molhavam seus lençóis. Jordan não tinha mais ninguém na vida além do padre que o conduzira até o seu presente. Podia perceber o desinteresse do companheiro que lhe aco- lheu desde a infância com o passar dos anos. Parecia uma obrigação banal estar junto. Não poderia ser assim.

Poucas coisas desviavam o olhar de seu mentor da cruz e dos en- sinamentos religiosos. As crianças correndo ao redor da quadra eram uma delas. Em segredo, Jordan usufruía de todas as suas forças internas para não cometer qualquer traição relacionada ao seu superior. A von- tade de posse carnal era extrema, mas deveria saber conter seus desejos em qualquer circunstância. O suor lhe escorria ao rosto, num misto de sexualidade e apreensão. “Deus poderá perdoá-lo por tudo. Eu não.” A doutri- na pessoal era clara em respeito ao seu parceiro.

O novo coroinha foi eleito em um período conturbado dentro do constante relacionamento. Alguns conflitos aconteciam sem sequer ter motivos específicos, apenas por implicâncias casuais. Mal posso umedecer

no amargo que sinto. Jordan sempre fora instruído a nunca rebater respos-

tas de seu amado, mas podia sentir em algum lugar de seu coração a distância se fazendo real entre ele e os lábios que há tempos não tocava.

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A revolta mental não seria capaz de colocá-lo em confronto. Ago- ra, seguia as palavras divinas como quem se equilibrava em uma corda esticada nos ares. Ignorava com relativa facilidade os gritos iniciais do garoto que conhecera há pouco tempo, apenas não conseguia compre- ender tamanha falta de atenção. Inspirava o ar profundamente na ten- tativa de se reintegrar, mas tudo o levaria a decidir o caso sem mais causar transtornos. Devo partir e deixar que o amor prevaleça sem barreiras,

assim como quando fui o escolhido.

Enquanto andava, sentia o cheiro da poeira dissipada pela chuva que recentemente ocorrera. Luzes cegavam seu olho direito de manei- ra a se cruzarem com a lucidez de seu pensamento. Pelas margens da estrada escura percorria a si mesmo tão intensamente que sua pele ar- repiava enquanto refletia na noite negra. Espero que leia a carta e a guarde

com carinho.

A cada lembrança, uma sensação de felicidade e um passo para dentro da pista. Quando chegou ao meio da estrada, seguiu reto e sorridente. Não chegava a tanger sensações de despedida. A gratidão transbordava de seu olho de forma discreta quando o amarelo da faixa divisória se mostrou vivo e brilhante. Jordan não tinha certeza de sua coragem até se impulsionar contra o caminhão que sugira acelerado. A última luz que veria refletiria o sangue na pista junto a alguns de seus ossos esmagados.

O som de uma carta amassada ecoava na Igreja vazia. Um amor esquecido na ausência de qualquer saudade e de qualquer velório foi substituído.

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XII

Lavagem

S

er irmão mais velho era uma responsabilidade alta, a qual não era aceita com prazer por Benny. “Quando papai não estiver em casa,

você será o homem da casa. Mantenha a ordem.” A sensação de poder

era tão falha para o menino de oito anos que a frustração era sua maior companheira. Desde o primeiro choro proferido pelo bebê, percebia o desvio de foco de atenção. Brinquedos não podem me comprar. O ar estava a cada dia mais denso.

Os abraços diários foram reduzidos. As divisões não eram justas em nenhuma circunstância. As canções de ninar que ouvia do outro lado da parede enquanto tentava pegar no sono eram como incitações ao ódio, enquanto os seus desejos de boa noite limitavam-se ao fechar de porta e alguma frase de praxe. Até os lanches preparados com amor pela mãe foram substituídos por moedas para trocas frias na cantina do colégio.

Desde a chegada de Nilo, a vida de Benny foi costurada do avesso com pregas mais resistentes que o aço. Nem seus desenhos animados favoritos podiam ser mantidos na televisão. Sua relação de carinho com os pais estava seca como terra batida. Nem mesmo as cobranças de pê- naltis no quintal de casa estavam acontecendo, pois seu pai não podia mais descansar devido à falta de sono causada pelas madrugadas acor- dado a fio. A partir daí, uma estratégia seria traçada e praticada visando à piedade própria.

A decisão madura de agir como adulto fora, de longe, uma evolu- ção notada pelos pais. “As crises de ciúme acabaram!” Os pais vibravam em

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sussurros. Carinho e afeto pairavam em torno do bebê chorão. Enfim, alguma harmonia parecia ser palpável para os irmãos. Mesmo com a diferença grande de idade, a conexão familiar se fez. Com a força da intenção futura, tudo seria mais intenso.

Longas eram as brincadeiras com Nilo no sofá. Os pais, já acos- tumados, faziam da tranquilidade algo normal. Benny tornara-se, de- finitivamente, um anjo da guarda. Todo o tempo que não estava no colégio, auxiliava nas tarefas que envolviam o recém nascido. “Serei eter-

namente responsável por Nilo.” As palavras do filho mais velho causavam

comoção nos sentimentos dos pais. Mas ainda assim, notava-se a frieza das respostas. Parecia impossível derreter o gelo dos olhos dos pais. Em breve faria algo mais caloroso que o próprio fogo. A atenção seria sua por completo novamente.

Decorar todos os horários em que estaria sozinho em casa tomou um pouco seu tempo. Algumas lições de casa tiveram que ser deixadas de lado. Mas o resultado seria pleno. Algo o fazia excitar-se de forma única. Ansiedade e certo medo de ser descoberto combinavam-se, mas já estava decidido desde o início.

Qualquer resquício de entendimento que ousasse surgir era afo- gado e misturado no ambiente. As lágrimas de Nilo também estavam dispostas da mesma forma enquanto seu grito era estranhamente sus- penso pela pressão que sentia. De repente, Benny notou que esquecera o sabão em pó. A sensação cessou ao perceber que o resultado final seria o mesmo, apenas sem efeitos visuais. A máquina de lavar roupas logo deveria parar automaticamente. Pela tampa transparente, observava o irmão girar e até alterar a cor de seu rosto.

O barulho da porta da dispensa fez ranger, também, o ouvido di- reito de Benny. Os gritos dos pais o levaram quase a surdez instantânea. Já era tarde para Nilo respirar algo que não fosse água. A pele do bebê estava enrugada, principalmente nas palmas das pequenas mãos que pareciam não terem forças para se manterem fechadas como de costu- me. O desespero emanava de todas as formas e a rigidez dos olhares em torno do irmão vivo era inconfundível. O mesmo olhar de sempre.

Benny já não podia pensar. Fora alvo físico, então, de toda a violência sentimental que sofria internamente. Enquanto girava, pensava se teria

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de conviver com o irmão em algum outro lugar. Espero que não. Ao con- trário de Nilo, mantinha a calma ao passo que a água penetrava em cada um de seus canais corporais. Jurava não estar chorando, mas não se conformava em ter sua busca pela retribuição de amor extinta. Não da forma com a qual buscava sua retomada na relação afetiva com os pais, seus melhores amigos. Após alguns minutos, o pensamento termi- nou. O menino também.

Enquanto assistiam à novela rotineira, os pais das crianças se abra- çavam prazerosamente. Os beijos não paravam sua constância e os olhos de ambos brilhavam. Não havia culpa. Cada um deve receber o troco

pelo que faz, na mesma medida. É parte do equilíbrio. Qualquer responsabili-

dade familiar fora morta. A vida seguiria mais tranquila, sem cansaços intermináveis ou irritantes carências afetivas. Tinham a vida toda, no- vamente, um para o outro. Enfim, felizes para sempre.