• Nenhum resultado encontrado

XXX

Descarrego Noturno

O

suor nos lençóis da cama causava uma sensação gélida no cor- po de Arthur quando a brisa passava pela janela aberta de seu quarto. As últimas madrugadas trouxeram consigo sonhos pe- sados, que envolviam sofrimentos diversos. Torturas, lágrimas, sangue. Os despertares tensos estavam constantes, mas nada seriam além de criações oriundas de pesadelos comuns à qualquer pessoa.

Incrédulo, Arthur buscava conectar os acontecimentos de seus so- nhos ao mundo real. Fatiar dedos de um morador de rua após adorme- cê-lo com um golpe na cabeça não tinha o menor sentido, assim como mantê-lo em cativeiro em um galpão abandonado, localizado em uma zona pacata e inabitada da cidade. Sua percepção sobre a existência não permitiriam aceitar como natural uma sequência de atos assom- brosos. O arrepio em sua coluna acabava por se combinar com algum choro indignado, por vezes. Mas o dia a dia não parava e suas atividades rotineiras permaneciam completamente normais.

No decorrer dos dias, seu trabalho na assistência social da cidade lavava sua memória dos pesadelos. Era um descarrego que vinha sendo diário. Torcia profundamente para não transmitir, em qualquer que fos- se a situação, qualquer energia relacionada aos seus pesares noturnos.

O estupro seguido de espancamento que cometera o atormentava sonho após sonho. A prostituta jamais poderia reconhecê-lo pelo uso da máscara moldada a partir de uma touca de lã escura. Sua corrida para visitar o mendigo a deriva no galpão abandonado das noites anteriores já era comum. Antes de seu despertar, um resquício de tortura ainda

134 - Da mente ao impulso

deveria ser realizado. Dos mamilos do mendigo, arrancados com o uso de um alicate qualquer, escorria sofrimento interno. Arthur saciava- -se prazerosamente ao ver que as ataduras que impediam movimentos eram tão eficazes quanto a fita isolante reforçada com quase três voltas na boca de seu confinado, que a cada sonho encontrava-se mais deplo- rável.

5 da manhã. O relógio marcava o mesmo horário que acordava em pavor nos últimos tempos. A sensação de realidade era tão plena em seus sonhos quanto a certeza de que o sol brilharia na manhã seguinte. Rolando na cama, Arthur notou-se com o rosto contraído. Mãos sua- das. Mas o estranho prazer de realização sentido nas noites anteriores era indispensável para seus despertares.

A tranquilidade de suas noites se esvaía e arrastava consigo sua esperança de mudança. Nem mesmo tratamento psicológico conseguiu traduzir em termos sólidos a sua indisciplina quanto ao próprio bem estar noturno. Nada era plausível. Nem rezas, nem tentativas frustradas demeditação, nem leituras. O poder da mente é tão forte que pode nos conduzir

à loucura constante. A única permanência em sua mente era o sentimento

de que a visita ao seu cativeiro não era possível acordar.

Antes de dormir, assombrado e acostumando contra sua vontade sua mente com as últimas noites, Arthur forçava-se a concentrar em si mesmo uma reflexão fajuta. Pedia fervorosamente ao que quer que fossem o seu afastamento da conexão com aquelas sensações, mas o que lhe pareceu foi uma proximidade ainda maior. Sentia-se ainda mais interligado com o que lhe causava olheiras profundas e pensamentos que corroíam seu eu interior. Em algum momento do encontro consigo mesmo, adormeceu.

Quando notou-se em sonho, já estava no galpão abandonado en- carando seu hóspede, que agora estava frio como a morte, deitado la- teralmente, amarrado e provavelmente impossibilitado de emitir qual- quer palavra horas antes enquanto deveria estar vivendo. Arthur tentou acordá-lo, mas logo percebeu que de nada adiantaria. Chutou repetida- mente seu estômago por seis vezes, mas não houveram reações. Puxou o mendigo pelos cabelos, estapeando seu rosto posteriormente. Nada ocorreu além do frio sentido pelo tato de sua mão, agora suja. O assis-

Descarrego Noturno - 135

tente social estava se frustrando diante de sua expectativa. Onde está o

prazer que me desperta? Seria necessário causar danos ao seu companheiro

de sonhos, para que o passaporte de volta à realidade fosse concedido por si mesmo. Mas a angústia tomaria conta de tudo o que o envolvia como uma onda negra de repressão a si mesmo.

Deprimia-se cada vez mais. Como sentirá dor alguém que já não vive? Aparentemente, a tortura que o permitira voltar para sua cama nas noites anteriores só funcionaria em pessoas que possuíssem sangue cir- culando nas veias. Entretanto, a esperança de acordar de uma vez por todas estava radiante. Em algum momento, haveria de acordar. Sentou- -se e manteve-se observando o cadáver em sua frente. Não entendia o motivo de tudo aquilo, mas recordava-se com intenso prazer e realiza- ção, maiores que o remorso que insistia em não desaparecer.

Sua angústia acumulada não permitia analisar um corpo morto por sua causa, mesmo que em uma dimensão fora da vida real. Sua profissão era tão bela, mas o que presenciava, então, era tão contro- verso. Internamente, sabia que aquele mendigo o incomodava tanto quanto o ato da prostituição da mulher que o encarava dias antes. Sua implicância com a combinação de sujeira e falta de importância com a dignidade individual havia sido soterrada por bons costumes padro- nizados. Agora, a vingança emocional surgia como um descarrego em seus sonhos. Era impossível não gostar.

Apesar dos prazeres proporcionados, sentia-se culpado. As doses de satisfações haviam se extinguido e, de forma alguma, desejava sacri- ficar qualquer outro ser. Isto já é demais. Levantou-se, encostou sua mão no rosto do mendigo como se, num gesto de perdão, fosse redimir uma parcela de seus atos. Tratando-se de um sonho, libertou sua imaginação e decidiu terminar com tudo.

Com uma corda encontrada no chão do velho galpão, preparou sua fuga. A forca improvisada fez com que seus cinco sentidos se esvaís- sem juntamente com as possibilidades de respiração. Em meio ao pavor momentâneo, sentia-se livre para acordar novamente. Em breve estaria de volta em seu quarto, em sua rotina, em sua busca pelo entendimento de tudo isso.

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 133-137)