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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP. Maurício Vaitsman Chiga. Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté ( )

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Maurício Vaitsman Chiga

Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

São Paulo 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Maurício Vaitsman Chiga

Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Doutora Maria Odila Leite da Silva Dias.

São Paulo 2009

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Banca Examinadora _________________________ _________________________ _________________________ _________________________ _________________________

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AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos são importantes, em especial àquelas pessoas que estiveram próximas aguentando a falta de inspiração e as rabugices decorrentes do excesso de trabalho e da ansiedade.

Obrigado Marta pelo amor e companheirismo, pela paciência e pelos puxões de orelhas, obrigado, muito obrigado...

Muito obrigado dona Dulce e Roberto pelas caronas até a rodoviária (de ida e volta), com seu apoio cheguei até aqui!

À minha orientadora, Professora Doutora Maria Odila Leite da Silva Dias, o meu muito obrigado pela paciência nas correções, orientações e pelo seu profissionalismo. Muito obrigado!

Devo sinceros agradecimentos às Professoras Doutoras Estefânia Fraga e Maria Aparecida Papali pelas competentes orientações na banca de qualificação. Muito obrigado.

Agradeço a todos que torceram e ajudaram de alguma forma para a realização desta pesquisa. Todas as torcidas foram muito bem aproveitadas, a vocês, meus amigos, muito obrigado!

Aos amigos Edu, Álvaro, Márcia, Zeli, Luciane, representantes de uma lista bem maior, muito obrigado pelas dicas de leitura, apoio e verdadeira torcida. Muito obrigado.

Recebi da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo uma bolsa para o mestrado, sem a qual dificilmente iniciaria o curso. Muito obrigado.

Devo agradecimentos ao pessoal do Arquivo Municipal de Taubaté, Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, lugar onde sempre fui bem recebido pela pesquisadora e paleógrafa Lia Carolina. Muito obrigado.

Agradeço aos professores do curso de mestrado em História Social do programa da PUC – SP, pela excelência e profissionalismo de suas aulas, muito obrigado.

Obrigado Betinha! Foram muitos os pedidos atendidos. Eu diria que nossa querida amiga resolveu todos os problemas burocráticos que enfrentei fora da pesquisa, na sala do programa de História. Foi imenso o seu apoio para mim, que sempre estive longe de São Paulo, muito obrigado!

Agradeço o apoio recebido, nestes trinta e seis meses, aos colegas de três instituições de trabalho, aos da UNIVAP, aos do Estado e aos da ETEP. Àqueles que lutaram comigo, muito obrigado.

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Maurício Vaitsman Chiga “Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)”

RESUMO

O paternalismo, do senhor de escravos, existente em Taubaté do século XIX foi pesquisado em documentos manuscritos como testamentos de última vontade, escrituras de compra e venda de escravos, ações de liberdade e processos criminais. Objetivou-se debater o encontro entre o poder do senhor de escravos e o campo de tensões estabelecido pela ambiguidade da escravidão. O período compreendido pelos anos de 1840 até 1870 foi o estudado, foram décadas, no império do Brasil, onde se afirmaram as forças políticas, econômicas e sociais conservadoras. O recorte temporal, pelo qual se optou trabalhar, deveu-se em seu início (1840) pelas acentuadas pressões sofridas pelo escravismo e, em seu término (1870) pelos choques do desmoronamento do poder dos senhores na Lei Rio Branco (1871), além das relações a que se submeteram os escravos e os senhores dentro de uma nova perspectiva sobre a escravidão: a partir de 1871 passou a existir uma possibilidade para o final da mão-de-obra escrava no Brasil. A perspectiva norteadora da pesquisa foi a leitura interpretativa do cotidiano do escravo, investigando-se a vivência do ser humano e a sua concretização de vida. É o “fazer-se” do homem comum desenvolvido e estudado pelo historiador E. P. Thompson que buscou nas próprias ações humanas as evidências de comportamento e ação; foi através da compreensão da dinâmica do processo vivido e das condições históricas que envolviam o “cidadão” que Thompson mostrou a experiência de vida da pessoa transformando-a para a condição de agente histórico.

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Maurício Vaitsman Chiga “Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)”

ABSTRACT

The main objects of this research are certain subtle and ambiguities aspects of the slave holder’s paternalism as it existed in Taubaté during the last decades of the 19th century. Our manuscripts sources were wills, registers of purchases and sales of slaves, actions of freedom and criminal proceedings. We selected the years between 1840’s and 1870’s in which to document the growing tensions that threatened the survival of slavery. Tensions between the slave owners’ rights and the new legal codes that tended to overwrite private intenders of slave owners in behalf the state authority. We also documented simultaneously with this process of a slow dilapidation the owner’s power, a rising perception of the possibilities of attaining freedom that expressed itself in the daily lives of slaves and enriched their experience as human beings struggling for opportunities of survival.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 01

CAPÍTULO I “O ESCRAVO, SOB A VONTADE DO SENHOR” 1.1 O PODER DO SENHOR: “DEIXO FORRA E LIBERTA COMO SE DE VENTRE LIVRE NASCIDA FOSSE...” ... 14

1.2 O PODER DA LEI: O IDEÁRIO JURISTA DO IMPÉRIO DO BRASIL. ... 25

1.3 O PATERNALISMO EM TAUBATÉ. ... 33

1.4 AS ALFORRIAS CONDICIONAIS: A LIBERDADE SOB CONDIÇÃO E ALGUNS ASPECTOS LEGAIS DO ESCRAVISMO... 50

1.5 SOB CONDIÇÃO, SOB O JUGO DO SENHOR: “ZELO, AMOR, FIDELIDADE...” ... 61

1.6 A VONTADE DO SENHOR. ... 66

1.7 A INGRATIDÃO E A REVOGAÇÃO DA LIBERDADE. ... 69

CAPÍTULO II “O COTIDIANO ESCRAVO: ESPAÇO DE NEGOCIAÇÃO E LUTA.”... 75

2.1 AS FUGAS; AS PRISÕES; A VIVÊNCIA. ... 77

2.2 OS ESCRAVOS: ASSASSINOS, REBELDES E FUGITIVOS... 91

CAPÍTULO III “A EXPERIÊNCIA DA ESCRAVA JOSEFA” 3.1 AS RELAÇÕES SOCIAIS DE JOSEFA ... 99

3.2 A FESTA DA ESCRAVA JOSEFA ... 104

3.3 AS TESTEMUNHAS CONTRA JOSEFA ... 108

3.4 OS INFORMANTES A FAVOR DE JOSEFA ... 115

3.5 O DESTINO DE JOSEFA ... 118

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 122

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1

INTRODUÇÃO

Para quem subia a Serra do Mar, o Vale do Rio Paraíba do Sul descortinava-se em Mata Atlântica no relevo ondulante (um mar de morros) e suave em direção ao leito principal daquele rio.

O ponto mais alto do espigão no sentido Noroeste de quem partia para a serra pelo caminho de Paraty, mostrava uma verdejante paragem na época da seca (no período da entrada do inverno desde o outono em meados de abril) formada pelas grandes vargens de ambos os lados do sinuoso rio Paraíba do Sul e os alagadiços pantaneiros na época das chuvas (que têm início em meados de outubro com as chuvas da jabuticaba em plena primavera no hemisfério Sul do planeta).

Entrando no largo e extenso vale, o viajante observaria a Serra da Mantiqueira do lado oposto, é assim por toda a extensão deste grande rio, do seu nascimento em plena Serra do Mar corre sentido oeste pelo interior (o rio é consequência da junção de dois outros rios, o Paraibuna e o Paraitinga, a meio caminho do vale ao Oceano Atlântico, a noroeste de Paraty) até a grande curva que faz no terreno rochoso a Leste do Planalto Piratininga (no atual município de Guararema). Daquele ponto em diante o Rio Paraíba do Sul segue caudaloso entre as duas serras (a do Mar a sudeste e da Mantiqueira a noroeste) no sentido nordeste até desembocar em forma de estuário do Norte fluminense.

Traçando-se uma linha reta, a meio caminho entre a capital da Província de São Paulo, à divisa com o Rio de Janeiro aparecia a cidade de Taubaté.

O povoado de São Francisco das Chagas de Taubaté foi fundado durante o século XVII, não se sabe ao certo. Não sendo possível determinar com precisão a data da formação do primitivo povoado de Taubaté, estudos assinalam a Fundação do povoado entre 1639 e princípios de 1640.

Entre os primeiros colonizadores da região do Vale do Paraíba, observa-se Jacques Félix, morador na vila de São Paulo, que adentrou o território valeparaibano ao longo do quartel inicial do século XVII.

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2

O ouvidor e alcaide-mor da Capitania de Itanhaém Antônio Barbosa de Aguiar, por provisão de 05 de dezembro de 1645 elevou o povoado à categoria de vila, tendo por orago São Francisco das Chagas.

A vila, sede do primeiro município formado no trecho paulista do Vale do rio Paraíba do Sul, foi nos primórdios de sua fundação designada como vila de São Francisco das Chagas de Taubaté. Pela Lei de 05 de outubro de 1842, promulgada pelo Barão de Monte Alegre, alcançou a categoria de cidade.

Trabalhou-se o período compreendido pelos anos de 1840 até 1870 porque foram décadas, no império do Brasil, onde se afirmaram as foças políticas, econômicas e sociais conservadoras.

Naquele tempo, os senhores desejavam sua perpetuação no poder com a máxima exploração da mão-de-obra escrava; os escravos, por sua vez, buscavam o convívio possível inseridos num ambiente opressor e se relacionavam de maneira singular, quase sempre na busca pela sua liberdade.

A Taubaté, de meados do Oitocentos, contou com a força dos seus barões e viscondes do café para lhe assegurar seu conservadorismo em questões que visavam a ordem social, política, econômica.

O recorte temporal, pelo qual se optou trabalhar, deveu-se em seu início (1840) pelas crescentes pressões sofridas pelo escravismo e pela restauração do conservadorismo na política imperial, o segundo encontrava seus fortes defensores escravistas no interior, como o Vale do Paraíba; em seu término (1870) pelos choques do desmoronamento do poder dos senhores com a Lei Rio Branco (28 de setembro de 1871), além de todas as relações cotidianas a que se submeteram os escravos e os senhores dentro de uma nova perspectiva sobre a escravidão: durante os trinta anos estudados até 1871 passou a existir uma possibilidade para o final da utilização da mão-de-obra escrava no Brasil, verificadas nas experiências dos escravos, nas tentativas de se colaborar com a liberdade por parte de abolicionistas ou mesmo nos debates em círculos jurídicos da sociedade.

Estudar-se-á a escravidão como um processo da construção histórica na sociedade, envolvendo todos seus agentes, desde os senhores e senhoras, feitores, juízes e delegados, traficantes, abolicionistas, trabalhadores livres e

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libertos (forros) e, principalmente os únicos prejudicados pelo sistema, os próprios escravos1.

Segundo Aléxis de Toqueville2, referindo-se à situação da escravidão francesa, o modo correto de abordar a situação escravista seria encarar a abolição como necessidade política e social da época (Século XIX) e não como uma injustiça.

No ideário da Revolução Francesa: “Liberté, Egalité, Fraternité”; a liberdade, a igualdade e a fraternidade foram palavras de ordem revolucionária na França (1789), mas o quão difícil foi, durante o século seguinte, libertar as mentalidades dos colonos (e dos metropolitanos) franceses, para que aceitassem a troca do escravo pela mão-de-obra livre3.

Todo proprietário de escravos, tanto na França quanto no Brasil, possuía direitos e não admitia abrir mão deles, a mentalidade da época apontava para observações unilaterais, não ouvindo o lado do cativo, como na afirmação do próprio Toqueville:

(...) É pueril esforçar-se para tornar previdente quem está na condição de não determinar sua própria sorte e que vê o seu futuro nas mãos de outro4.

E o referido autor vai mais longe ao justificar, para os franceses, que a abolição total deveria ser rápida e não gradual, para evitar um estado transitório e tumultuoso na França, que já reinava entre os escravos e que traria danos para as colônias no futuro, sempre defendendo a idéia de que um

1

FONER, Eric. Nada além da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P.17.

2

Toqueville dirigiu a Comissão do Governo Francês, no Século XIX, para a abolição em suas colônias, expõe em seu livro a “Emancipação dos Escravos” a trajetória e as discussões sobre a emancipação nas colônias francesas.

3

Salienta-se que a substituição de mão-de-obra escrava pela livre, referida no texto, deu-se nas colônias francesas espalhadas pelo mundo, já que seriam os colonos franceses diretamente afetados pela sua perda com a abolição.

4

TOQUEVILLE, Aléxis de. A Emancipação dos escravos. Campinas, SP: Papirus, 1994. P.32. Toqueville mostrou aos políticos franceses que a emancipação simultânea oferecia menor risco e perigo que a individual e gradual. Neste livro expõe suas conclusões após investigar os acontecimentos das colônias inglesas, onde a emancipação gradual provocou grandes prejuízos.

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4

homem sabe o que é ser livre porque o é e, seria difícil dar a idéia de dignidade moral a quem não é nada diante de si mesmo5.

A emancipação gradual foi muito debatida no Brasil Império, principalmente a questão das indenizações aos senhores. Quando finalmente implantada, em nosso país, anos após as determinações de Toqueville aos franceses, acabou gerando muitos problemas no Brasil.

Diferente da França, onde a Comissão6 de Toqueville, encarregada da emancipação, afastou todo e qualquer laço ou ligação entre propriedade escrava e outra propriedade privada protegida por lei, a posse de um homem por outro foi considerada legítima no Brasil: o senhor de escravos tinha direitos de propriedade e exigiria reembolso quando fosse solicitada a manumissão de um cativo.

Na Corte Imperial de 1852, correu o projeto da “Extinção Progressiva da Escravidão no Brasil”7, que vingou com a Lei Rio Branco (Ventre Livre), em 28 de setembro de 1871, que libertava o “ventre“ da escrava, mas garantia ao senhor o serviço do ingênuo até vinte e um anos. O senhor educava-os (os filhos de escravas) para a liberdade, inserindo-os na classe subalterna.

Para alguns jurisconsultos era “vergonhosa” a situação escravista brasileira, principalmente nos círculos e relações internacionais, tanto que a primeira Constituição da nação brasileira, em 1824, não definiu o assunto. Em direção a Constituição apontavam os homens da elite mostrando o artigo 179, o qual,

(...) garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude, demonstrava plenamente seu “caráter

5

Idem, pp.33 e 36.

6

Embora a Comissão de Toqueville admitisse a indenização às emancipações nas quatro colônias francesas, a diferença residia no auxílio aos colonos para possibilitar o pagamento da mão-de-obra livre, além de instaurar uma etapa “transitória” de trabalho e reeducação, onde o Estado deteria todos os poderes e responsabilidades perante os libertos, tornando-se inclusive seu tutor.

7

PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial – Jurisconsultos e a escravidão no Brasil do

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5

escravista, uma vez que os escravos eram reconhecidos como objeto de propriedade8.

Na elaboração do projeto do código civil brasileiro, a partir de 1855, realizada por Augusto Teixeira de Freitas, contornou-se o assunto da escravidão. Para Joaquim Nabuco de Araújo a concretização do escravismo com leis positivas, pelo Código Civil Brasileiro9, colocaria o Brasil como um país de bases escravistas para todo o mundo contemporâneo.

Em nossos tribunais o direito costumeiro apoiava as decisões sobre a jurisprudência da propriedade privada de seres humanos por outros homens. Embora essa propriedade fosse “imoral” diante de Deus, as leis positivas legitimavam-na e, deveriam respeitar tais direitos, a escravidão foi apoiada pela lei.

Esse direito à propriedade escrava ficou bem caracterizado na leitura dos Livros de Escrituras de Venda de Escravos (1868-1874) no Arquivo Histórico de Taubaté - SP, a sua caracterização é clara e objetiva na mentalidade escravista do final dos anos oitocentos, pelo menos no que diz respeito ao Vale do Paraíba paulista e, principalmente, a localidade de Taubaté.

Cobravam-se impostos, no século XIX, para a venda, troca e doação de um escravo que ultrapassasse o valor de 200$000 reis, o negócio deveria tramitar por uma escritura pública lavrada por Tabelião, Escrivão Cível ou Escrivão de Paz, com a pena de perder sua validade10.

Imagine-se a história que segue:

Suava! Um misto de frio e calor percorria seu corpo, não sabia se de calor ou desespero já que conhecia bem aquele roteiro percorrido da fazenda, onde nascera, pela estradinha à pé, descalça, até o centro da cidade.

Não se conheceu o local de sua venda, mas Leocadia conhecia algumas das pessoas que por ali transitavam, os calçados e os descalços, os brancos e

8

Idem, p.57.

9

O primeiro Código Civil Brasileiro, iniciado com o projeto de Teixeira de Freitas, só foi publicado pela República e em 1916.

10

MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico, Jurídico, Social. Petrópolis: Editora Vozes, 1976. 3ª Edição. Vol. I. P.71.

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6

os negros. Sabia que por perto ficava a Igreja, as paredes pintadas de azul e branco, com seu sino que tocava sempre no final da tarde. Ainda era cedo, mas não para quem levantara com os primeiros cantos do galo na roça, ainda de madrugada.

Para Leocadia, seu estômago era quem gritava, agora, mas era necessário aguentar, afinal aquele dia especial teria marcado o seu destino de escrava, também não adiantava reclamar, para quem? Todos pareciam compactuar com aquele estranho espetáculo de compra e venda, além do mais, o feitor que a levara para a exposição era o mais insensível dos homens que já conhecera.

Vendida, após vexamosa demonstração de seus dentes, braços e ancas fortes, além do tornozelo fino e pele brilhante pelo suor. Nos idos de 1870 valia muito dinheiro, quase como pedra preciosa, valeu um conto e duzentos mil Réis, quase o preço de cinco juntas de bons bois de tração, cinco parelhas de bois de carro.

Dias mais tarde, ao passar a escritura de venda da escrava, sua antiga senhora registrou, nas escritas do escrivão que Leocádia, parda, crioula com dezesseis anos de idade, fora comprada, transpassando toda justa posse e o domínio, que na dita escrava tinha, ao novo proprietário, podendo gozar e possuir como lhe conviesse.

Não se sabe como se deu a venda de Leocadia, a história contada é, em parte, pura ficção, senão imaginação fértil (?) de leitor e pretenso narrador da história de Leocádia. Fosse a história verdadeira ou não, a escrava passou por experiência própria, alhures.

Observe-se o trecho da transcrição feita da escritura do livro 3, nº 2 do Arquivo Histórico de Taubaté:

Escriptura de venda de uma escrava que faz D. Francisca Maria D’Oliveira a Antonio Marques Guimarães, na forma abaixo. (...) que era legitima Senhora e possuidora de uma escrava de nome Leocadia, parda, crioula de idade dezesseis annos a qual possui livre de onus por isso vimos como de facto a vendido tem por esta escriptura (...), ao

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7

mesmo comprador a quem transpasso toda posse jus e Dominio que na dita escrava tinha podendo gozar e possuir como lhe convier11.

Para os termos da época: “... podendo gozar e possuir como lhe convier.”, ficou registrado pelo escrivão de paz que o comprador da escrava Leocadia teria, a partir daquele momento, plenos direitos de dono ou proprietário do ser humano que acabara de adquirir.

Perdigão Malheiro12 dizia que aquele homem aplicador indiscriminado de todas as disposições da propriedade privada sobre o escravo estaria errado, pois para ele era necessário distanciar a propriedade escrava do direito natural e reiterar que foi criação do direito civil, a escravidão fora constituída pelas relações sociais na história13.

No Direito Romano a utilização do escravo como coisa ou como animal irracional era restrita, reconhecia-se sua humanidade e as relações sociais porque no escravo havia um homem14.

No entanto, o referido jurisconsulto abolicionista mostrou-nos, em seu livro, na seção 2, Questões Várias Sobre Escravidão, Art. I – Direitos Dominicais, no parágrafo 52:

(...) Como propriedade é ainda o escravo sujeito a ser sequestrado, embargado ou arrestado,

penhorado, depositado, arrematado, adjudiciado, correndo sobre ele todos os termos sem atenção mais do que à propriedade no mesmo constituída. A arrematação é feita em hasta pública, e, nos

negócios mercantis, pode sê-lo em leilão15.

11

FONTE: Livro de escritura de venda de escravo, 1868 a 1874. Livro 3, nº 2. Divisão de Museus, Patrimônio e arquivo Histórico de Taubaté. – SP. Transcrevemos trinta e seis escrituras de dois livros (1 e 3) dos dezessete livros existentes naqueles arquivos.

12

Agostinho Marques Perdigão Malheiro foi um advogado e principalmente um jurisconsulto do Império do Brasil, estudou a escravidão e desenvolveu teorias abolicionistas, inclusive defendendo-as perante seus colegas do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), inspirando a Lei do Ventre Livre (1871) do Visconde do Rio Branco. MALHEIRO, op. cit.

13

Oliveira Lima, Apud MALHEIRO, Idem, p.13.

14

Idem, p.58.

15

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8

Perdigão Malheiro afirmou, ainda, que a escravidão poderia terminar: “... pela morte natural do escravo; pela manumissão ou alforria; ou por disposição da lei.”; que poderia findar por ato voluntário do senhor em vida ou em morte, pelo bem da liberdade, em ato solene, com ou sem escritura, por qualquer valor pecuniário e, também, pelo testamento16.

A utilização da mão-de-obra do escravo influenciou decisivamente o Brasil, porque a historiografia brasileira oitocentista – no plano econômico, social e cultural – converge para o escravismo, que na visão de alguns observadores, foi responsável por “... uma riqueza que não passa da doação gratuita de raça que trabalha à que faz trabalhar17.”

Aqui, durante a pesquisa, se buscou um pouco a mais: as interpretações das ações do escravo suscitaram uma riqueza não gratuita, ações descortinadas quase sempre num campo de tensões dentro da cidade de Taubaté.

Inseridos neste campo de tensões, muito frequente foi o aparecimento da questão do poder senhorial e do seu uso na manutenção da escravidão, simultaneamente à construção de redes de relacionamentos sociais a que foram capazes alguns cativos.

Observou-se, em Taubaté, que a citação de um escravo em contemplações, com doações em liberdade e dinheiro, em testamentos de última vontade dos senhores, foi forjada dentro de complexas relações a que se submeteram escravos e senhores.

A alforria foi mais do que uma “doação generosa” de alguns senhores, quando a perspectiva da liberdade pudesse ser utilizada no contexto paternalista pelos senhores da sociedade de Taubaté. Para esta região convergiram muitas condições favoráveis à manutenção da escravidão, sendo acentuadas as tensões em relações particulares de poder.

16

Idem, pp.82 e 86.

17

AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Nova Fronteira, 3ª ed, 1999. P.178.

(16)

9

O objetivo principal do presente trabalho foi analisar as possíveis ocorrências das vivências escravas mesmo que submetidas ao poder do senhor, relacionadas à desconstrução da escravidão em Taubaté, entre os anos de 1840 e 1870, iluminando quadros de vidas desta cidade que foi um dos centros nervosos do escravismo no Brasil Imperial, em anos de esplendor da cultura cafeeira.

Reconhecer que é mais fácil narrar a história dos poderosos e dos produtores dos documentos oficiais, assim como é muito difícil não se deixar cair na leitura factual e de fácil discurso do material primário, foi a primeira humilde aceitação das limitações desta pesquisa.

Outrora, acreditava-se, convictamente, no trabalho do historiador calcado na sua imparcialidade; com o tempo se percebeu que a análise interpretativa das fontes, para a elaboração das narrativas com finalidade histórica, é função específica de constantes diálogos entre as fontes e a consciência do historiador que está inserido na sua realidade atual18.

Portanto, buscou-se observar as realizações dos agentes sociais e, agora históricos, em suas labutas cotidianas a partir da construção do conhecimento histórico realizado no diálogo historiador, fontes e questionamentos diversificados19.

A perspectiva inspiradora e norteadora da pesquisa foi a leitura interpretativa do cotidiano do escravo, investigando-se a experiência do ser humano e a sua concretização de vida.

É o “fazer-se” do homem comum desenvolvido e estudado pelo historiador Edward P. Thompson que buscou nas próprias ações humanas as evidências de comportamento e ação; foi através da compreensão da dinâmica do processo vivido e das condições históricas que envolviam o “cidadão” que Thompson interpretou a experiência de vida da pessoa, transformando-a para a condição de agente histórico20.

18

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do Cotidiano na Historiografia

Contemporânea. Revista Projeto História, no17, novembro 1998. PUC-SP. P.234.

19

Idem.

20

THOMPSON, Edward Palmer. A Miséria da Teoria, ou um planetário de erros: uma crítica ao

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10

O cotidiano do escravo não foi facilmente interpretado, seu registro se deve, quando existiu, às fontes manuscritas pelo mundo dos senhores, situação que não prejudicou a pesquisa. Buscou-se resgatar, através das narrativas, aquilo que não foi dito, porém, exigiu a leitura e a interpretação dos documentos com o cuidado de buscar a construção da liberdade pelos próprios escravos nas suas singularidades, nas entrelinhas das fontes21.

Como o escravo se fez agente histórico nas tramas da escravidão e quem foram os sujeitos desta história?

Inicialmente, procurou-se analisar no primeiro capítulo o escravo aparecendo em sua labuta diária sob a “vontade” de seu senhor, cativos contemplados em testamentos de última vontade e em escrituras de compra e venda de escravos.

Trabalhou-se o poder daqueles senhores de escravos, conservadores em suas relações sociais e, como a convivência foi utilizada, por seus cativos, ao se transformar, o escravo, em sujeito atuante na busca pela liberdade.

Contemplaram-se as formas de dominação senhorial particulares de Taubaté inseridas no conceito de paternalismo conforme o estudado por Eugene Genovese (1988) no sul Norte-americano e Sidney Chalhoub (1990) no Brasil.

O paternalismo foi uma forma de dominação pessoal que se reconhece em atitudes supostamente beneficiadoras para o escravo, mas apenas na ótica do senhor, e que busca, com uma enganosa benevolência, expandir seu campo com maior eficácia, dentro de relações sociais, o já desgastado poder de atuação senhorial no mando de trabalho aos escravos.

O conceito aqui utilizado contrapõe-se tanto ao pensamento da escravidão branda, com o senhor amigo e benevolente no sentido de se colocar e mostrar o escravo num estado de acomodação à rigidez do sistema

21

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escravista, quanto ao sentido da escravidão violenta onde toda a ação do escravo se deve a sua resistência à escravidão22.

Os sentidos da experiência escrava, em Taubaté, passaram pela diária atuação do cativo no interior das residências e pelas ruas da cidade. Como os escravos viviam e agiam para que os senhores necessitassem do uso do paternalismo durante o período analisado?

Em pesquisa sobre os significados da liberdade e os “silêncios da lei” no Sudeste brasileiro (nas Províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro), Hebe Maria Mattos de Castro concluiu, entre outras idéias, que a ascendência dos senhores sobre os cativos foi bem administrada no controle dos plantéis, pelos senhores.

O uso indiscriminado de soluções paternalistas nas relações sociais entre senhor e escravo foi percebido, pela referida autora, como “miragem de alforria” utilizada pelos cativos e, aliada aos diversos significados de liberdade construídos pelos próprios escravos ao longo do tempo, contribuiu, embora pareça ambíguo, para o trânsito entre escravidão e liberdade23.

Manuela Carneiro da Cunha dirigiu-se para o caminho das leis, tanto as leis do direito positivo quanto do direito costumeiro, debate junto a Perdigão Malheiro a questão do direito à propriedade privada de um homem por outro homem e, concluiu que o uso do costume nas áreas mais rurais do Brasil no tocante às manumissões foi mais preservado. Até a Lei Rio Branco ou Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871, as alforrias dependiam exclusivamente da vontade dos senhores24.

22

CHALHOUB (1990), Sidney. Visões da Liberdade. Uma História das últimas décadas da

escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. Pp.37, 38, 39 e 40. O autor trabalha com

uma crítica competente a tese da coisificação do escravo de Fernando Henrique Cardoso: critica e contesta a “teoria do escravo coisa” porque defendeu e perseguiu a idéia de analisar os diferentes sujeitos históricos e seu entendimento por escravidão e liberdade, e sua atuação no processo de produção dessas visões de liberdade. O autor mostra como está ultrapassada a idéia de que as duras condições de vida do escravo o destituía da capacidade de “... pensar o mundo a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios senhores.”(p.249).

23

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio. Os Significados da Liberdade no

Sudeste Escravista – Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. P.212. 24

CUNHA, Manuela Carneiro da.Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2ª edição, 1987. Pp. 123 a 141.

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12

No primeiro capítulo trabalharam-se as condições nas quais as alforrias foram concedidas e como se deu as ações dos escravos neste sentido. Analisaram-se os artifícios utilizados pelos senhores na manutenção da escravidão e de sua ascendência social na região, as alforrias condicionais, as revogações da liberdade em lei, dentro do costume e do poder privado dos senhores.

As garantias legais para a perpetuação dos senhores no poder daquela sociedade durante o século XIX apareceram no ideário jurista: o direito nacional brasileiro em formação após a independência do Brasil, dentro de uma economia mercantil escravista.

Procurou-se desvendar a legalidade do Sistema Escravista, tão debatido nos círculos jurídicos, associado as artimanhas senhoriais no desejo do melhor aproveitamento da escravidão e, ao mesmo tempo, deixando brechas para aparecimento do fecundo campo de tensões no caminho para a liberdade; e as diferenças e interações entre o direito positivo e o direito costumeiro.

O uso do direito costumeiro, em Taubaté do século XIX, foi debatido por Maria Helena Machado quando analisou, em sua pesquisa, a criminalidade na referida cidade: existiram comportamentos específicos nos crimes de escravos, levando-a à conclusão da existência de mobilidade social cativa, talvez permitida costumeiramente pelo senhor, em torno da sociedade de Taubaté.

Esta mobolidade social dos cativos foi observada pela autora quando verificou uma maior quantidade de troca de nomes, de endereços e de status declarados pelos escravos nos processos criminais de fins do Século XIX25.

A narrativa da vivência escrava a partir das informações dos processos criminais aparece no trabalho durante o segundo capítulo. O cotidiano do escravo de Taubaté foi interpretado pelo tipo de crime realizado; a leitura dos crimes objetivou a identificação da vivência do escravo nos processos criminais que foram escritos pelos representantes da justiça da classe senhorial.

25

Maria Helena P. T. Machado. CRIME E ESCRAVIDÃO: Trabalho, Luta, Resistência nas

(20)

13

Trabalharam-se as fugas e as prisões como parte da ação escrava no Vale do Paraíba durante o século XIX. Perguntaram-se quais foram os motivos e as representações das fugas para o cativo?

Existiu um campo de tensões entre os senhores e seus cativos: os senhores fazendo a manutenção de seu poder e os escravos lutando pela sua liberdade. Muitas vezes as escravas eram disputadas pelos senhores na justiça, em outros momentos escravos fugiam devido a maus tratos de seus senhores e, outras tantas vezes, o escravo sobrevivia: roubava, matava ou se rebelava.

O terceiro capítulo é dedicado às interpretações do processo criminal a que foi submetida a escrava Josefa. As possibilidades abertas, à análise, pelo campo de tensões exposto nas relações sociais de Josefa mostraram a experiência da escrava e sua convivência no mundo livre e pobre.

Josefa, de escrava se fez mulher atuante em seu bairro, organizando festejos e convidando os seus amigos e vizinhos para compartilhar, com ela e seus senhores, uma noite de rezas, danças e batuques. Ainda, se fez dona da casa e agiu conforme tal, agredindo aquela que se intrometeu para estragar a sua festa, a própria senhora.

Durante o terceiro capítulo, procurou-se um entendimento para a situação fronteiriça em que se encontrava a escrava Josefa, vivia com uma família pobre e o cotidiano seria compartilhado por todos, com pequenas distinções entre senhores e escrava, pelo menos para a própria família e talvez alguns vizinhos. Era considerada escrava pela justiça mas vivia com tanta liberdade que esteve intimamente ligada à família a qual pertencia.

A sociedade taubateana não aceitou a situação da escrava Josefa com “bons olhos”, encriminaram-na e durante todo o processo criminal mantiveram o tratamento mais áustero o possível, talvez pela possibilidade em dar “bons exemplos” à população de escravos existente na cidade.

(21)

14

CAPÍTULO I

“O ESCRAVO, SOB A VONTADE DO SENHOR”

1.1 O PODER DO SENHOR: “DEIXO FORRA E LIBERTA COMO SE DE VENTRE LIVRE NASCIDA FOSSE...”

O significado da expressão “eu dou a minha palavra” provavelmente tem sua origem no mundo senhorial e clientelístico do Século XIX. A palavra empenhada era garantia do homem de caráter e de boa moral; e valia tanto quanto promessa ou um contrato com muitas assinaturas: valia a sua própria honra.

Consenso na historiografia brasileira, a questão da força do poder senhorial foi extremamente importante para a manutenção do Sistema Escravista brasileiro1.

Neste capítulo, abordar-se-á principalmente o poder da forma de atuação do senhor de escravos e as tensões decorrentes, na sociedade do Vale do Paraíba paulista nos anos entre 1840 e 1870, especificamente na cidade de Taubaté.

Neste âmbito serão estudados, também, os significados da utilização do poder costumeiro da época. Teria existido somente para a manutenção da escravidão, ou o próprio costume se constituia em uma das possibilidades para a aproximação do escravo com a liberdade?

Ao se iniciarem os trabalhos de pesquisa, no Arquivo Histórico de Taubaté2, notou-se que a grande maioria dos documentos analisados e transcritos, como os testamentos, inventários, escrituras de escravos e as raríssimas ações de liberdade anteriores a 18713, apresentava mais de uma

1

Sobre o tema vide: AZEVEDO (1987), CUNHA (1987), MACHADO (1987, 1988, 1994), CHALHOUB (1990), GRINBERG (1994), ZANETTI (1994), CASTRO (1995), SCHWARCZ (1997), PENA (1998), PAPALI (2001), FERREIRA (2003).

2

Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP

3

Maria Aparecida Papali localizou no Arquivo Histórico de Taubaté noventa (90) Ações de Liberdade correspondentes aos anos entre 1871 e 1888. Após 1871 as Ações de Liberdade de

(22)

15

vez o direito pautado nas relações costumeiramente utilizadas pela sociedade imperial.

Legalmente, o costume dos senhores vigorou pelo menos até a implantação da Lei Rio Branco (Ventre Livre) em 1871, a qual colocaria em risco a ascendência social dos senhores, ao introduzir o Estado como mediador das relações entre senhor e escravo4.

Estavam em Taubaté, nos idos de abril de 1845, os escravos “criollos5” Miguel e Delfina, assim como Maria de Nação6. Provavelmente não ficaram felizes com a confecção do testamento de seu senhor, diferentemente da também crioula Thereza, a qual foi “beneficiada” com a sua liberdade, ou, como diziam, agraciada pelo seu “generoso e bondoso” senhor, que acabava de se tornar um grande “bem-feitor” (para os seus próprios pares) e detentor de grande poder de barganha para com seus escravos. (IMAGEM 1)

Taubaté foram amplamente estudadas pela autora durante seu trabalho de pesquisa. PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. ESCRAVOS, LIBERTOS E ÓRFÃOS: A Construção da

Liberdade em Taubaté (1871 – 1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003. 4

Idem.

5

“Criollos”, conforme escrita da época, significava escravo nascido no Brasil, provavelmente na fazenda do senhor. Adotou-se, daqui em diante, a grafia atual “crioulo” para o mesmo fim.

6

Escravo de “Nação” foi aquele nascido na África: O grupo mais importante introduzido no Brasil foi o sudanês, que dos mercados de Salvador, se espalhou pelo País. Deste grupo, a etnia mais notável foram os Yorubás ou Nagôs, da Nigéria, e os Jêjes do Daomé, seguindo-se os minas da costa norte-guineana, além dos Tapás, Bornus, Hauças, Fulas ou Fulanis e os Malês ou Mandingas. Esta presença comum dos grupos de idioma yorubá explica a maior influência desta cultura, principalmente nos segmentos religiosos . Dentro da própria África, a cultura yorubá predominava do Golfo da Guiné ao Sudão. Ver LOVEJOY, Paul E. A escravidão

na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. No

Brasil ,durante o Império era usado para definir os escravos considerados livres por terem sido trazidos depois da proibição formal da escravidão.Entre 1831 e 1888 pertenciam ao Estado que os alugava a particulares como mão de obra pouco qualificada. Enidelce Bertin, Os meia-cara.

(23)

16

IMAGEM 1

Fonte: Christiano Júnior, José

Escravo da Nação Africana Moçambique, ca. 1865 albúmen e cartão de visita. Museu Histórico

Nacional (Rio de Janeiro, RJ)

Mas, será que seus escravos não percebiam tais artimanhas, de aparente paternalismo, mesmo que não tivessem noção da dominação pessoal? Parecia uma armadilha, na qual não só estavam sujeitos os escravos daquele senhor como qualquer outro cativo, de qualquer senhor, mesmo porque sabiam conviver sob tal tipo de jugo.

Os escravos entendiam que precisavam sobreviver num mundo hostil aos nascidos com outra cor de pele que não a branca; não se acostumavam com os maus tratos, por isto sempre agiram, ainda que subrrepticiamente.

O uso, pelo senhor, da possibilidade de alforriar a escrava Thereza, mesmo que em testamento, revelou a existência de algum interesse em suas relações sociais que leva para longe da moral católica. Pode-se pensar na relação cotidiana entre senhor, escrava e sociedade, vivências comuns reveladoras de concentrações das tensões escravistas na cidade de Taubaté, durante os anos oitocentos.

A artimanha da dominação pessoal paternalista, sobre a escrava Thereza, mostrou a complicada armação em que estavam ligados escravos e senhores, na cidade de Taubaté. Proprietários de escravos tentavam afirmar sua posição privilegiada, talvez, por isto, lançavam mão de “doações” como a feita à escrava; assim o seu próprio senhor deixou registrado:

(24)

17

(...) Deixo forra e liberta como se de ventre livre nassida fosse minha escrava Thereza criolla em remuneração aos bons servissos que nos prestara e por isso meu testamenteiro dara Carta logo que eu falesça e assim não faça a que jamais delle espero – servirá de titullo esta minha verba – (...)7.

Após tanto tempo, ou melhor, uma vida, da escrava crioula em dedicados trabalhos domésticos (cozinhando em fogão manchado do preto da lenha em carvão, lavando louças e roupas nas gélidas águas encanadas das nascentes da Serra da Mantiqueira; com sabão de cinzas delicadamente elaborado com as cinzas do próprio fogão e do sebo de animais da fazenda e, passando com aquele pesado ferro de brasas já muito gasto em seu bico, depois de gerações de roupas de linho engomadas com muito esmero) finalmente a escrava Thereza teria a tão desejada liberdade.

Foram apenas umas duas linhas escritas, as quais Thereza nem teria a oportunidade de olhar, já que não sabia ler ou escrever e não tinha o direito de verificar os assuntos do senhor.

Contentar-se-ia Thereza com a palavra dita de seu senhor e das testemunhas, redenção conquistada do homem branco e “bom” daquela sociedade escravista? Estaria liberta, após a morte daquele seu senhor a quem sempre serviu?

E, continuava a lhe servir. Provavelmente é o que fazia enquanto o testamento estava sendo lavrado pelo Escrivão. No costume da época, seriam sequilhos com café: este plantado, colhido, lavado, seco, torrado, coado (passado na água quente em coador de pano à beira do fogão) e adoçado com açúcar mascavo fabricado por escravos e escravas na própria fazenda.

No caso da partilha de bens, o escravo Miguel crioulo seria dividido apenas entre dois filhos do testador, assim como a escrava Maria de Nação,

7

FONTE: Livro de Testamentos (1845 – 1847), p.35. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP. Testamento do Sr. Antônio Vieira da Silva (26 de Abril de 1845).

(25)

18

porque já pertencia, em seus valores (um conto de réis), a uma terceira filha do senhor testador8.

Há certa regularidade do “bom uso” da vontade do senhor representada no seu poder de dominação na cidade de Taubaté, principalmente no tocante à manutenção do direito de propriedade escrava.

Esta pequena interpretação de Testamento9 mostra um quadro de como poderia ser utilizada a vontade dos senhores quando o testador, além de doar alguns escravos aos parentes mais próximos, como se faz com quaisquer mercadorias ou bens, doou a liberdade à sua escrava Thereza, pelos seus bons serviços prestados10.

Os “bons serviços prestados” do cativo dificilmente aparecem registrados pelos senhores. Por vezes, é necessário o garimpo desses dados em fontes quase estéreis do cotidiano de escravos, como é o caso das escrituras de compra e venda de escravos, para se encontrar a experiência vivida pelos cativos.

Mas, afora todas as dificuldades na revelação de detalhes, em seu dia-a-dia, certos escravos, na cidade de Taubaté, especializaram-se em determinadas profissões.

Verificou-se, então, uma das possíveis interpretações da vivência escrava; mais do que sobrevivência num mundo escravista, desenvolveram no seu cotidiano a luta por uma vida melhor no aprimoramento de seu trabalho, o que lhes possibilitou vislumbrar horizontes de expectativas com melhor qualidade de vida. Muitos escravos tiveram a condição do “viver sobre si” que sempre esteve atrelada “... à condição de pessoa livre...” colaborando para desmanchar os conteúdos ideológicos de continuidade da escravidão11.

8

O Sr Antônio Vieira da Silva contemplou em vida uma terceira filha com o respectivo valor (e dinheiro) dos referidos escravos. Veja Anexo I.

9

Testamento do Sr. Antônio Vieira da Silva.

10

Idem.

11

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma História das últimas décadas da escravidão

(26)

19

Em Teatro dos Vícios, Emanuel Araújo (2008)12 buscou, na época colonial brasileira, os motivos para tantos “vícios” e fraquezas de nosso povo (falando da população livre), que definiu como a “sociedade da aparência”, dividida em três principais atitudes coloniais: o “horror ao trabalho” (aqui detectando a preguiça, o ócio, a indolência e a ostentação); a “presunção de fidalguia” (englobando desde riquezas como dinheiro, escravos, sobrenome, fidalguia ou parentesco – a genealogia, até o reconhecimento social em público, vestimentas, perucas, casas, móveis e talheres); e o “festejar quando possível” (na religião ou na vida civil).13

A explicação da preguiça brasileira do século XIX vinha de épocas coloniais, quando a difusão do trabalho escravo nas cidades era apontada pelos viajantes14 como sinônimo de prestígio social (quanto maior o número de escravos mais aumentava o prestígio de seu proprietário) e, por vezes, os próprios meios de sobrevivência para os seus senhores, principalmente àqueles de vida mais modesta, como a utilização do aluguel, jornais15 de seus escravos ou colocando-os na rua como escravos do ganho16.

As escrituras de escravos de fins da década de 1860 foram reveladoras de cotidiano e possibilitam a inserção de informações na discussão acerca do trabalho escravo na Taubaté dos anos oitocentos, tais como: idade, origem, família, gênero e profissão ou especialização do escavo.

Duas escravas vendidas em forma condicional, em 15 de janeiro de 1867, foram legalmente passadas pela escritura de compra e venda em 2 de maio de 1869, em Taubaté. Sobre as escravas vendidas e escrituradas (com os

12

ARAÚJO, Emanuel. Teatro dos Vícios. Transgressão e transigência na sociedade urbana

colonial. José Olímpio Editora, 2008. 373p. 13

Idem, pp.85 e 86.

14

Idem, p.88. ARAÚJO (2008), refere-se à Tollenare em 1817, no Recife, que registrou em seu diário que os Mestres de profissão (de obras, marceneiro, carpinteiro, ferreiro e pedreiro) preferiam comprar de 1 a 3 escravos e ensinar-lhes a profissão (colocando-os na rua em aluguéis e jornais para complementar sua renda), a que contratar mão-de-obra assalariada; a Walsh em 1829, em Salvador, que criticou a situação de escravos trabalhando em profissões de assalariados (trabalhadores livres), porque aquela situação fazia a população aumentar pela falta de trabalho destinado ao homem livre;

15

Tarbalho por “jornal” significava trabalhar em períodos determinados, jornada ou empreitada com valores estabelecidos pelo seu proprietário, trabalhava-se no campo e cidades.

16

“Escravo do ganho” ou “ao ganho” era uma modalidade de trabalho para o escravo fazendo serviços e vendas diversos pela cidade e trazendo sua arrecadação diária ao seu senhor

(27)

20

impostos devidamente quitados) apenas são conhecidos seus nomes, idade, condição matrimonial e profissão, como também o valor por elas arrematado pelo seu antigo senhor.

A escrava Maria, de vinte e seis anos, de profissão, cozinheira, solteira, fora vendida por um conto e quinhentos mil réis, mas levou consigo seu filho Tobias, (vendidos mãe e filho). Maria Roza, de vinte anos, mucama, não se sabe sua condição matrimonial, também vendida por um conto e quinhentos mil réis.

Ambas renderam a seu senhor três contos de réis e ao Tesouro Imperial, o imposto de meia siza17, tudo devidamente documentado e na presença de duas testemunhas18.

Assim como no caso das referidas escravas, outros escravos foram comprados ou vendidos entre os anos de 1869 e 1870, muitos com o registro de alguma profissão ou especialização: Paula, 25 anos, preta crioula, mucama de serviço doméstico por um mil réis; Damasio, 40 anos, preto crioulo, pedreiro, solteiro por quinhentos réis; Benedito, dez anos, preto crioulo, de serviço doméstico por um mil, cento e cinquenta réis; Eva, 15 anos, mulata crioula, de serviço doméstico por seiscentos e cinquenta réis; José, 15 anos, preto crioulo, sem profissão por um mil, seiscentos e cinquenta réis; Antonio, 11 anos, preto crioulo, de serviço doméstico por um mil réis; José, 15 anos, preto crioulo, de serviço de roça por quinhentos réis; Thomé, 40 anos, preto de Nação, de serviço de roça por um mil e seiscentos réis; Joaquim, 28 anos, preto crioulo, de serviço de roça, solteiro por um mil e quatrocentos réis; Paulo, 30 anos, preto crioulo, serviço de mestiço e roça, vendido com seu filho Benedito de 10 anos, ambos por três mil réis; Henrique, 8 anos, preto crioulo por um mil réis; Eva, preta crioula, vendida com seus filhos Epifânio, pardo, de 3 anos e Evaristo preto de 1 ano por dois mil réis a prazo (letra para 12 meses); Izidoro, 18 anos, preto crioulo, de serviço de roça, solteiro, por dois mil réis; Sabina, 22 anos, preta crioula, de seviço doméstico por um mil e oitocentos réis; Maria, 24 anos, parda crioula por um mil e quatrocentos réis (setecentos réis a vista e

17

Este imposto sobre venda de escravos girava em torno de trinta mil réis por escravo durante aquele ano.

18

(28)

21

setecentos réis no prazo de 2 meses); Leocádia, 16 anos, parda crioula por setecentos réis (vendida apenas na parte, metade, de um dos proprietários); Leocádia, 16 anos, parda crioula por um mil e duzentos réis; Joaquina, 25 anos, parda crioula, solteira vendida por um mil e trezentos réis. (TABELA 1)

Quando libertos, os escravos forros buscavam trabalho, com uma profissão bem consolidada em seu dia-a-dia não demorava a conseguir serviços.

A relação entre o acúmulo de experiência de trabalho e o crescimento dos “pequenos negócios” nas cidades do século XIX é debatida na historiografia com respeito ao trabalho do liberto19.

Entretanto, obseva-se que, a partir do aparecimento da inserção das profissões, ou especializações de cativos, nas “escrituras de compra e venda de escravos”, há a possibilidade de se entender a experiência do escravo, com trabalho especializado, como experiência concreta para a multiplicação das condições propícias na sua busca pela alforria.

Viajantes da época, como a inglesa Maria Graham, em Recife de 1821 e o francês Dampier, em Salvador de 1699, cada um em seu período, também registraram que o trabalho escravo especializado (em profissões destinadas a homens livres na Europa) ocupava as mentalidades e a práxis brasileira20.

Em determinado momento, o artesão tinha escravos, ensinava-lhes uma profissão e tirava proveito financeiro do aluguel de seus serviços (essa era a práxis!); em outros, formava-se um quadro de que este tipo de trabalho tornava-se ofício detestável ao homem livre, já que era destinado aos escravos.

19

CASTRO, 1995; DIAS, 1984; WISSENBACH, 1998.

20

(29)

22

TABELA 1

-Livro de Escritura de Venda de Escravos nos anos 1869 – 1870:

n º

ano Nome Idade Gênero Cor Nasc. Cidade Profissão Família $ mil Réis 1 1869 Maria 26 Feminino Preta _____ Taubaté Cozinheira Solteira +

filho Tobias 1$500

2 1869 Maria Roza

20 Feminino Preta _____ Taubaté Mucama ______ 1$500

3 1869 Paula 25 Feminino Preta Crioulla Villa Caçapava Mucama, serviço doméstico ______ 1$000 4 1869

Damasio 40 Masculino Preto Criollo Pindamo-nhangaba

Pedreiro Solteiro $500 5 1869 Benedito 10 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço

doméstico

______ 1$150 6 1869 Eva 15 Feminino Mulata Crioulla Villa

Caçapava

Serviço doméstico

______ $650 7 1869 José 15 Masculino Preto Criollo São José

do Parahyba

________ ______ 1$650

8 1869 Antonio 11 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço doméstico

______ 1$000 9 1870 José 15 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço de

roça

______ $500

1 0

1870 Thomé 40 Masculino Preto Nação Resende Serviço de roça

______ 1$600 1

1

1870 Joaquim 28 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço de roça

Solteiro 1$400 1

2

1870 Paulo 30 Masculino Preto Criollo Munic. De São Luis Serviço de mestiço/roç a Filho Benedito (10 anos) 3$000 1 3

1870 Henrique 8 Masculino Preto Criollo Taubaté --- --- 1$000 1

4

1870 Eva --- Feminino Preta Crioull Taubaté --- Filhos Epifanio (3 anos, pardo) e Evaristo (1 ano, preto) 2$000 prazo, letra de 12 meses. 1 5

1870 Izidoro 18 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço de roça

Solteiro 2$000 1

6

1870 Sabina 22 Feminino Preta Crioulla Taubaté Serviço doméstico

_______ 1$800 1

7

1870 Maria 24 Feminino Parda Crioulla Taubaté --- --- 1$400 ($700 a vista $700- 2 meses) 1 8

1870 Leocádia 16 Feminino Parda Crioulla Taubaté --- --- metade ($700)

1 9

1870 Leocádia 16 Feminino Parda Crioulla Taubaté --- --- 1$200 2

0

1870 Joaquina 25 Feminino Parda Crioulla Taubaté --- Solteira 1$300

(30)

23

Segundo Araújo (2008), o brasileiro João Severiano Maciel da Costa, em 1821, comentava em suas memórias sobre quem perdia com o trabalho escravo: era a própria indústria que não prosperava; perdiam os próprios brasileiros,

(...) O pior de tudo é que o trabalho industrial, relegado à classe dos escravos, se aviltará aos olhos da multidão, e por isso a classe livre o detestará, como acontece já entre nós com o trabalho agrícola, que na opinião geral é só para escravos. ... E que esperança podemos ter de que prospere a indúdtria em um país onde o trabalho, alma dela e de toda a riqueza, é infame e

indecoroso?21

Desta forma, aproveitando-se ao máximo das potencialidades do trabalho escravo, constituía-se a sociedade brasileira dos anos oitocentos, a partir de fortes raízes no escravismo e de suas complexas formas de relações sociais.

Maria Helena Machado (1994), em seu livro O Plano e o Pânico, desenvolveu a idéia de que as margens de autonomia dos plantéis de escravos diminuíam, próximo a década de 1880, tanto quanto novas regiões cafeicultoras do Oeste paulista se desenvolviam. Grupos de escravos reivindicavam o que entendiam por obrigações senhoriais:

(...) Um ritmo de trabalho próprio ao grupo, a

injustiça dos castigos, os direitos a folga semanal, a alimentação e o vestuário, o recebimento de

estipêndios pelo trabalho realizado a mais e a manutenção de uma economia independente na forma das roças e do pequeno comércio foram, muitas vezes, os argumentos que em seu conjunto justificavam os ataques violentos dos plantéis contra senhores e feitores22.

21

João Severiano Maciel da Costa, Memórias sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil., p.22. Apud Araújo (2008), op.cit., p.96.

22

MACHADO. Maria Helena P. T.. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da

(31)

24

Maria Aparecida Papali (2003), ao dicutir as condições para a construção da liberdade em Taubaté pelos escravos, a partir de 1871, observa que o “trabalhar sobre si” foi uma prática experimentada pelos cativos que buscavam a liberdade e “... Na vida, como no trabalho, os símbolos da liberdade precisavam ser revividos, como num ritual, legitimando a reconstrução de um novo tempo.”23.

Na cidade foco do presente estudo, Taubaté, alguns senhores verificados em suas intenções relativas aos seus cativos, mesmo que em testamentos de última vontade, relevaram importância ao bom trabalho de seus escravos e à sua “profissão”.

A experiência escrava não foi garimpagem fácil nas fontes documentais estudadas durante a pesquisa, mas uma difícil e trabalhosa leitura, acrescida de um exercício interpretativo da escrita senhorial de onde “... restam fragmentos, ecos surdos das suas tensões e confrontos com o sistema de dominação, peneirados pela consciência hegemônica das fontes escritas,... 24”.

Maria Odila (1995), em Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX, cita tais desafios na leitura dos documentos escritos, embora construindo o universo feminino de São Paulo no século XIX:

(...) Os papéis propriamente históricos das mulheres podem ser captados nas tensões,

mediações, nas relações propriamente sociais que integram mulheres, história, processo social, e podem ser resgatados das entrelinhas, das fissuras e do implícito nos documentos escritos. Isso requer uma leitura paciente, um desvendar criterioso de informações omissas ou muito esparsas, casuais, esquecidas do contexto ou da intencionalidade formal do documento25.

23

PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, Libertos e Órfãos: A Construção da

Liberdade em Taubaté (1871 – 1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003, p.53. 24

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2.ed.rev. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.20.

25

(32)

25

Documentos senhoriais, tais como as cartas de alforrias condicionais e os testamentos de última vontade, mostravam o uso do bem privado como melhor conviesse, os quais, somados à utilização das leis costumeiras, foram utilizados, por vezes, concomitantemente às leis positivas em favor do direito da propriedade escrava.

1.2 O PODER DA LEI: O IDEÁRIO JURISTA DO IMPÉRIO DO BRASIL.

A partir de 1820, em Portugal, o Antigo Regime cedeu lugar ao Liberalismo com o movimento constitucionalista em terras lusitanas. Iniciou-se, conforme Neves (2000), o movimento pela promoção do “... poder do espírito público em oposição ao individualismo monárquico.”26.

No Brasil, em 1823, ao dissolver os trabalhos da Constituinte, D. Pedro I mandou apreciar seu projeto nas Câmaras Municipais, e, consequentemente, aprová-lo. Confirmavam-se as Câmaras Municipais como instância política e de representação do Império, com o retorno à forma de representação do Antigo Regime Absolutista português.

O novo Império do Brasil que se imaginava liberal dava voz a órgãos de legitimação do poder antigo de Portugal. Durante o primeiro quartel do século XIX ocorreram a interação e o confronto entre o velho e o novo na questão da construção do Direito Nacional27.

O projeto de Nação que aparecia era baseado na construção do Estado Nacional com um pretenso ideário liberal, mas com a herança portuguesa que se prendia às relações sociais implícitas nos códigos costumeiros daquela sociedade.

26

NEVES, Lúcia Maria Bastos. Por Detrás dos Panos: atitudes Antiescravistas e a

Independência do Brasil. In SILVA, Maria Beatriz Nizza (org.). Brasil: Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Pp.373 e 374.

27

LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e Jusnaturalismo no ideário dos juristas da

primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Ed. Hucitec, 2003, p.195.

(33)

26

A formação do moderno Estado Nacional tinha em seu projeto uma representação de como a sociedade seria organizada. No Brasil pós-independência, o Estado Nacional foi refeito com a reconstrução do Direito28.

Em sua época, Joaquim Nabuco comentou que o primeiro projeto de Constituição, anterior a 1824, previa um artigo (de José Bonifácio) em que se estabelecia uma emancipação lenta, educação religiosa e industrial dos negros.

Entretanto, a própria constituição do Império (1824) não contemplava a questão da escravidão, a não ser pelo seu artigo 94 revogado, em que aparecia o liberto como cidadão, mas sem direitos políticos. Assinalava, sim, com o nefasto artigo 179, que dispunha sobre os direitos individuais do proprietário29.

Os debates políticos refletiam a intenção de que a questão da abolição não alienasse os senhores, mas representasse o escravo até o ponto de “ficar livre” para encobrir a vergonha do País, que era, internacionalmente, a escravidão africana.

Houve a criação de um ordenamento legislado do Direito Nacional e do Português, existindo a incompatibilidade, na primeira Constituição – 1824, entre o direito natural (com o jusnaturalismo e a liberdade de comércio) e o Estado liberal.

No confronto entre o novo direito e o antigo direito, surgiu o conflito jurídico que é típico das Revoluções Burguesas do século XIX: o direito novo expressava a “igualdade perante a Lei” e o direito pré-liberal, direito antigo, expressava “as diferenças e as desigualdades”. O poder centralizado foi trocado pelo representativo (de soberania nacional) e a tradição foi negada na Lei: trocou-se o costume pela Lei30.

Seguindo o pensamento jurídico do século XIX e as formas de movimentos da cultura (a separação de poderes, o sistema que representa a soberania popular, a centralização e o monopólio das fontes do direito, a

28

Elisa Reis, apud LOPES In: JANCSÓ (2003) (org.). Idem, p.297.

29

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1988, p.56.

30

(34)

27

polícia, a codificação do direito), foram três os movimentos que animavam os juristas construtores do Estado Nacional: o constitucionalismo, a ilustração e o direito natural moderno.

Os juristas construtores do pensamento jurídico refizeram o direito para um direito nacional e até liberal. O direito moderno opõe-se ao direito comum, tardo-medieval e tem um conjunto de normas (lei) e um comando ou ordem do soberano (de caráter geral); é o sistema integrado e hierarquizado dentro de princípios universais que está acima dos costumes, até mesmo revogando-os31.

A partir da economia tipo mercantil e escravista, com a grande empresa agroexportadora produzindo em larga escala, foi criada, em torno do latifúndio escravista, uma organização autônoma com grande isolamento econômico em relação a uma sociedade mais ampla. As relações sociais internas das grandes fazendas cafeicultoras eram determinadas e dominadas pelo senhor, que tinha poderes quase absolutos sobre os seus familiares, agregados e escravos32.

No interior (longe das grandes cidades) e nas grandes propriedades agroexportadoras, o direito costumeiro prevaleceu entre senhores que se apoiavam na honra pessoal e de “... modo geral, as relações sociais regravam-se pelo sistema moral da troca de favores.”33.

Nos primeiros anos de nação, existiu o “direito herdado do regime pré liberal, colonial ou de Reino Unido”. No constitucionalismo brasileiro não houve processo revolucionário popular, mas o Direito público apareceu como continuação do Antigo Regime Absolutista português com funções e competências “... de administrar a vida do poder.”34.

Ideário constitucional no século XIX foi assim fundado: a Carta de 1824 com o regime de direitos individuais à propriedade (art.179); o governo monárquico hereditário não parlamentar; um corpo legislativo com assembléia geral (escolhido de forma indireta); um senado vitalício (escolha do Imperador);

31

Idem, p.199.

32

KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania Na Construção Da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1998, pp.48 e 49.

33

Idem, p.49.

34

(35)

28

poder judicial (que não foi amplamente democrático ou liberal!); existia, ainda, a liberdade de comércio, de profissões e de expressão.

A utilização pelo senhor, quando assim fosse necessário, do direito positivo (leis escritas, elaboradas pelo Governo) e do direito costumeiro (leis não-escritas, mas costumeiramente acionadas pela sociedade), proporcionava condições de convivência ao cativo com o engendramento de intrincadas redes de alianças, tecidas pelos escravos com outros escravos e, também, com homens livres e senhores da sociedade do século XIX.

Tais alianças entre cativos, libertos e livres estariam em diferentes níveis (da senzala, da casa grande, de vizinhos e da rua) trazendo proximidade e possibilidade para as relações sociais que colocaram os cativos em contato com a prática da liberdade.

Pode-se dizer que, muito provavelmente, esta convivência social foi uma das experiências essenciais do cativo no trânsito da escravidão à liberdade35.

Nesta perspectiva, o interessante é que entre a lei escrita (positiva, adotada pela Justiça Imperial) e a costumeira (não-escrita, adotada pela sociedade de modo cotidiano), a segunda foi mais praticada, principalmente longe das grandes cidades36, porque “... No interior, a lei era exercida pelos poderosos, (...), indóceis às leis, habituados a fazerem justiça por suas próprias mãos...”37.

Em uma análise dos Testamentos de 1842, conforme Tabela 2, verifica-se que, do total de dezesseis escravos arrolados no ano em questão, apenas um deles foi contemplado com a sua Carta de Liberdade Condicional38.

35

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio. Os Significados da Liberdade no

Sudeste Escravista – Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. P.196. 36

CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense 2ª edição, 1987. P.131.

37

TOLLENARE, 1956: 194, Apud CUNHA (1987), op. cit., p.131.

38

FONTE: Livro de Registros de Testamentos – Nº 04 – (1842-1844), Cartório do 2º Ofício. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.

(36)

29

TABELA 2

Descrição39 das contemplações de escravos em testamentos da cidade de Taubaté, no ano de 1842.

ANO ESCRAVOS DADOS GERAIS (idade, profissão, doação...) PROPRIETÁRIO

1842 Anna Nada consta (NC) Theresa Maria da Conceição

1842 Manoel Jornaleiro Idem

1842 Domingos Jornaleiro Idem

1842 Maria Criollinha Idem

1842 Manoel NC Padre José de Abreu Guimarains

e Castro 1842 Pedro NC Idem 1842 João NC Idem 1842 Vicente NC Idem 1842 Matheos NC Idem 1842 Antonio NC Idem

1842 Maria Doada a Mariana Antônia (esposa do proprietário)

Idem

1842 Florinda Doada a Joaquina (filha do proprietário) Idem

1842 Benedito Mulato, doado à afilhada Francisca Theresa Anna Maria de Jesus

1842 Maria Carta de Liberdade Condicional (revogada), doada à afilhada Francisca Theresa

Idem

1842 Maria NC Maria Madalena do Espírito Santo

1842 Anna NC Maria Joaquina de Jesus

FONTE: Livro de Registros de Testamentos – Nº 04 – (1842-1844), Cartório do 2º Ofício. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.

39

Os termos aqui utilizados foram transcritos conforme sua grafia original existente nos documentos da época.

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