O JOGO QUE SE JOGA: VOCÊ SABE VOTAR?
O ESTELIONATO ELEITORAL NO SISTEMA PROPORCIONAL BRASILEIRO
*Nágila Raquel Aguiar (UFVJM) Dra. Tereza Cristina de Souza Cardoso Vale (UFVJM)
Resumo: Os sistemas eleitorais são responsáveis pela conversão dos votos em mandato eletivos. O Brasil adotou o sistema majoritário para os cargos do poder executivo e para senador e o sistema proporcional para os cargos das casas legislativas. As regras atuam sobre o destino do voto de forma distinta, enquanto no majoritário os votos são convertidos para a pessoa do candidato, no proporcional os votos são convertidos para um grupo de candidatos.
Sendo assim, cada sistema exige que o eleitor tenha um comportamento diferente e proceda a escolha de seus candidatos considerando as regras de cada sistema.
Palavras-chaves: sistema proporcional; sistema majoritário; eleição; voto consciente;
estelionato eleitoral.
1 Introdução: O vôlei e o futebol
Brasileiro gosta de vôlei e de futebol. Somos campeões mundiais em ambas as modalidades. Mas pode-se jogar vôlei com as regras do futebol? O que distingue o vôlei do futebol são as regras. Em cada jogo uma regra diferente. Em um a bola está nas mãos e não pode tocar nos pés dos jogadores e em outro a bola está nos pés e não pode tocar nas mãos dos jogadores, em um o objetivo é fazer com que a bola ultrapasse a rede, em outro é justamente afundar a bola na rede. As regras mudam o jogo e a maneira de jogar. Mas e votar? Qual jogo que se joga quando votamos? Sabemos votar?
Talvez passe despercebido para muitos que ao nos referir às Eleições que acontecem em determinado ano usa-se sempre o termo no plural: Eleições 2020, Eleições 2018. Mas porque utilizamos o termo no plural? Usamos eleições no plural porque se trata de duas eleições diferentes realizadas simultaneamente. Uma eleição denominada eleição majoritária e outra eleição denominada eleição proporcional.
Isto acontece porque o Brasil adotou dois sistemas eleitorais diferentes para os cargos em disputa. São, portanto, duas eleições diferentes, com regras próprias e distintas entre si, porém realizadas simultaneamente. Em uma eleição se vota na pessoa, em outra no grupo de pessoas. Se as regras são diferentes então cada eleição exige do eleitor um comportamento diferente. Uma pode-se dizer que é vôlei e a outra é futebol.
Para iniciar nossas reflexões teóricas sobre as questões levantadas neste estudo, devemos, desde já, antecipar que não se trata de uma crítica ao sistema proporcional, pelo contrário, reconhecemos a adequação e as vantagens do uso deste sistema em uma sociedade plural. O que se crtica não é o sistema, mas o uso deste sistema para proporcionar vantagens indevidas aos partidos políticos e a seus candidatos através do engano do eleitor.
O que se pretende demonstrar é que quando o eleitor não consegue distinguir a diferença entre as regras dos dois sistemas e vota no sistema proporcional como se vota no sistema majoritário, isto possibilita que os partidos políticos tirem vantagens indevidas.
Como resultado desde estelionato o eleitor não se reconhece no eleito, o que provoca um distanciamento entre o representado e o representante. Tudo isto rompe com o ciclo legitimante da democracia.
2.
O poder é do povo. Mas quem é o povo?
* XIV Congresso Internacional de Linguagem e Tecnologia Online
O parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição Brasileira dispõe que: “ Todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. ”. (BRASIL, 2018, p.149)
A simplicidade gramatical deste artigo nos leva a pensar que compreendemos seu significado e extensão. A invocação do termo povo como fundamentador do poder é quase uma obrigatoriedade nas constituições. É o canto da sereia. Nas palavras Ralph Christensen:
As constituições falam com frequência do povo e gostam de falar dele. A razão está no fato de que precisam legitimar-se. A invocação do povo deve fornecer a legitimação.
(CHRISTENSEN, 2000, p. 33).
Uma premissa constitucional da envergadura do parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição Federal só se legitima quando efetivada, ou seja, quando operacionalizada no campo da realidade fática. Se assim não for, a premissa não passará de letra morta da lei ou pior, se destinará a legitimar governos totalitários que ampliam desigualdades através de políticas discriminatórias e violentas, quando não servem, apenas, para atender a interesses privados. Mas, quem é o povo?
Foi a partir da indefinição contida na resposta a esta indagação que o teórico alemão Friedrich Müller constatou a impossibilidade de conceituação do termo povo. Ao tentar responder quem é o povo, Müller (2000) descreve que se considerarmos o povo como sendo todos aqueles que nasceram em um determinado Estado, estaríamos excluindo aqueles que vivem no Estado, mas não nasceram nele, os estrangeiros. Se considerarmos que são os cidadãos que detêm os direitos políticos, estaríamos excluindo aqueles que não podem votar e serem votados, como os estrangeiros, os conscritos, os menores de 16 anos.
Melhor explicando, nos termos em que Müller levanta a questão: “Nem a todos os cidadãos é permitido votar. Nem todos os eleitores votam efetivamente. E por meio de que deve legitimar a minoria, sempre vencida pelo voto da maioria nas eleições e em posteriores atos legislativos?” (2000, p. 49).
Para o autor, o povo não pode ser um conceito descritivo, não podemos conceituar quem é o povo, mas definir suas funções a partir da sua atuação na realidade das democracias representativas. Para melhor dizer o foco no qual se busca fundamentar a presente estudo, utilizaremos a precisa consideração de Comparato no prefácio do livro Quem é o povo?
(2000)
Na teoria política e constitucional, povo não é um conceito descritivo, mas claramente operacional. Não se trata de designar, com esse termo, uma realidade definida e inconfundível da vida social, para efeito de classificação sociológica, por exemplo, mas sim de encontrar um sujeito para atribuição de certas prerrogativas e responsabilidade coletivas, no universo jurídico-político. (2000, p. 13).
O povo quando apartado do poder que dele emana, é povo ícone. Nesta função o povo nada mais é que figura morta, abandonada à própria sorte, convocada de tempo em tempo pelos usurpadores do poder para depositar nas urnas os votos da legitimação de regimes políticos extremos.
Nos dizeres do filósofo alemão Friedrich Müller:
O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; a ‘desrealizar’ [ entrealisierem] a população, em mistificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – “ notre bon peuple” (2000, p. 67).
Müller descreve que o povo na democracia representativa deve exercer as funções de
povo ativo, povo instância global de atribuição e povo destinatário de prestações civilizatórias
do Estado. Estas funções do povo formam uma estrutura de legitimação democrática que não pode ser rompida.
O povo ativo elege os seus representantes; do trabalho dos mesmos resultam (entre outras coisas) os textos das normas; estes são, por sua vez, implementados nas diferentes funções do aparelho de Estado; os destinatários, os atingidos por tais atos são potencialmente todos, a saber, o “povo” enquanto população. Tudo isso forma uma espécie de ciclo [Kreislauf] de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não-democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado estrutura de legitimação. (MÜLLER, 2000, p. 60).
Seguindo o pensador acima a função do povo ativo [parte do povo que possui as condições de votar e ser votado] é a de eleger os representantes de e para toda a totalidade do povo [ os atingidos, a população]. Dentre os atingidos, estão tanto o povo ativo, quanto o povo instância global de atribuição [povo que deve cumprir a lei] e os destinatários [povo beneficiado pela implementação da lei pelo Estado]. É como dizer: o povo faz as leis, o povo cumpre as leis e o povo recebe os benefícios da implementação da lei pelo Estado. Este é o ciclo legitimante da democracia. Em palavras simples, podemos entender que o ciclo legitimante acontece quando eu faço as leis, eu cumpro a lei que eu mesmo fiz e da qual sou beneficiado. Este é o discurso democrático. Se parte das funções do povo é escolher seus representantes para a totalidade dos indivíduos, quando esta escolha está contaminada pela fraude eleitoral o ciclo se rompe, o regime democrático representativo se deslegitima e o povo é iconizado.
3 Sistemas Majoritário X Sistema Proporcional: qual jogo que se joga.
Um país é formado por seus cidadãos, assim como o conceito de povo não é um conceito descritivo, o conceito de cidadania também não acontece se não for operacionalizado na vida prática. Cidadania envolve a aquisição e a vivência de direitos, dentre eles o direito de votar e ser votado, porém, para bem exercer este direito os cidadãos precisam compreender em que consiste o ato de votar e para tanto precisa entender as regras dos sistemas eleitorais porque são elas que definiram os destinos de seus votos. Mas o que são sistemas eleitorais?
O eleitorista José Jairo Gomes descreve sistema eleitoral como sendo:
Estrutura complexa, racional e dinamicamente ordenada. Nesse prisma, sistema eleitoral é o complexo de técnicas e procedimentos empregados na realização das eleições, ensejando a conversão de votos em mandatos, e, consequentemente, a legítima representação do povo no poder estatal. (2017, p.141).
Pela descrição de José Jairo já podemos perceber a importância dos sistemas eleitorais nas eleições, no entanto, no Brasil pouco se debate sobre estes sistemas e como eles atuam no resultado das eleições. Para que os mandatos eletivos possam ser a representação da vontade popular, o eleitor precisa saber distinguir as regras dos dois sistemas adotados pelo Brasil.
Gilberto Amado citado por Ramayana descreve com simplicidade realística a diferença fundamental entre eles: “O voto proporcional é dado às ideias, ao partido, ao grupo. O voto de circunscrição, o voto distrital, o voto de simples maioria é dado ao indivíduo, ao compadre, ao amigo, ao boss, ao chefe local, ao candidato que pede, insiste, trafica com o eleitor” (2018, p.
59).
Cada sistema tem objetivos diferentes. Se no sistema majoritário [simples ou absoluta
maioria] o voto é dado em um determinado candidato e é computado para este mesmo
candidato, vence quem obtiver a maioria dos votos, no sistema proporcional o eleitor pode
votar tanto em um candidato específico [voto nominal] ou em grupo político determinado
[voto de legenda] mas, o voto é computado para todo o grupo de candidatos que concorrem
sob a mesma legenda. Quando se vota no sistema proporcional, vota no grupo de candidatos, sem considerar que o eleitor queira eleger aquele candidato específico e não queira eleger outros candidatos do grupo.
Como os representantes do povo estão nas casas legislativas é preciso que elas sejam constituídas pela maior diversidade no que tange a representação da pluralidade política social. O sistema proporcional é o sistema que visa possibilitar a representação de grupos ideologicamente organizados [partidos políticos] no poder estatal. Nos dizeres de José Jairo Gomes:
O sistema proporcional foi concebido para refletir os diversos pensamentos e tendências existentes no meio social. Visa distribuir entre as múltiplas entidades políticas as vagas existentes nas casas legislativas, tornando equânime a disputa pelo poder e principalmente, ensejando a representação de grupos minoritários. Por isso o voto pode ter caráter dúplice ou binário, de modo que votar no candidato significa igualmente votar no partido; também é possível votar tão só na agremiação (= voto de legenda). [...] (2017, p. 143).