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Agressividade e violência: contribuições da Psicanálise

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Academic year: 2021

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AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA: CONTRIBUIÇÕES DA

PSICANÁLISE

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DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA

AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA: CONTRIBUIÇÕES DA

PSICANÁLISE

JULIANE GERING

ORIENTADORA: NORMANDIA CRISTIAN GILES CASTILLO

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para graduação em Psicologia na UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

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Muitas pessoas contribuíram de alguma forma em minha caminhada, e a todas eu estendo minha gratidão e reconhecimento. Entretanto, algumas foram de tal forma fundamentais para que eu chegasse até aqui, que merecem um agradecimento especial:

À minha orientadora Normandia Cristian Giles Castillo, que não só me acompanhou na construção deste trabalho, como também me inspirou a querer ir sempre mais além nesse campo tão vasto e tão belo que é a teoria psicanalítica.

À Susiane Kreibich, minha irmã, por todo o amor, pela força, e por ter plantado em mim a ideia de que este sonho poderia, sim, ser realizado. Saiba que minha persistência foi sustentada pelo teu exemplo.

À minha mãe, Dóris Simon, pelo apoio, pelo incentivo, e pelo amor com que me nutre até hoje. Desconfio que se não fosse por você, eu não teria essa ânsia pelo conhecimento, que me acompanha desde que me reconheço por gente.

Por fim, mas não menos importante, ao Henrique Hübner, por ter caminhado comigo até aqui. Eu não teria conseguido sem você, e agradeço sua generosidade, seu apoio e seu amor.

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Dedico este trabalho a você, minha filha Liana Hübner. Ele é fruto do meu amor e do meu desejo de entender melhor o mundo, para te proteger.

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A Rua dos Cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram, Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha. Hoje, dos meus cadáveres eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada. Arde um toco de Vela amarelada,

Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! Pois dessa mão avaramente adunca Não haverão de arrancar a luz sagrada! Aves da noite! Asas do horror! Voejai! Que a luz trêmula e triste como um ai, A luz de um morto não se apaga nunca! Mário Quintana

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Buscar o enquadramento teórico da agressividade e da violência na teoria psicanalítica, é deparar-se com o aspecto estruturante das mesmas, tanto nas dinâmicas sociais quanto na constituição do sujeito. Assim, a pesquisa realizada neste trabalho examina as elaborações teóricas de Freud e Lacan na busca da compreensão desses processos. Com Freud, percorremos desde os primórdios da vida primitiva humana até o estabelecimento das primeiras formas de civilização, cujo marco inaugural reside na instauração da Lei, a partir do mito do assassinato do pai da horda primeva e o estabelecimento da fratria, elaborados na obra Totem e Tabu. Ainda com Freud, acompanhamos, na obra O Mal-estar na Civilização, a tensão psíquica gerada pela interdição imposta pela Lei, que exige o sacrifício da liberdade individual em nome da coesão social. Assim, a tentativa de equilíbrio entre as reivindicações pessoais e as repressões sociais, outorgam à agressividade e à violência um caráter perene, que tanto ameaça quanto sustenta a estrutura social. A sociedade, assim estruturada, antecede o sujeito, cuja constituição estudaremos através da teoria de Lacan. À semelhança da ordem social, a estruturação do sujeito também carrega as marcas da agressividade e da violência, que se presentificam tanto na vida psíquica do sujeito, quanto nas relações que esse estabelece com seus semelhantes.

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Introdução...08

Cap 1. A instauração da Lei como processo civilizatório...11

Cap 2. Civilização e mal-estar: os lastros da agressividade e violência...22

Cap 3. O sujeito, a agressividade e a violência...31

Considerações finais...46

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INTRODUÇÃO

O foco do presente trabalho é a pesquisa na teoria psicanalítica sobre a agressividade e a violência. Já de saída se estabelece que o campo teórico a ser investigado é o da psicanálise, o que de forma alguma desmerece todo o esforço realizado por diversas áreas do conhecimento, em construir algum tipo de compreensão sobre esses dois temas. Entende-se que estes temas mobilizam tanto cientistas, teóricos e leigos, na medida em que a intensidade de seus efeitos produz sofrimentos, aos quais dificilmente um sujeito permanecerá ileso ao longo de sua vida.

O que se pode dizer a respeito da agressividade? E da violência? São sinônimos, ou possuem cada uma suas especificidades? Correlacionam-se em uma linha de causação mútua? Ou ainda de causação unilateral? São naturais e inerentes ao ser humano? Ou devem ser encarados como anomalias comportamentais que devem ser extirpadas na medida do possível? Devemos enquadrá-las como traços de personalidade? Ou talvez como sintomas psicopatológicos? Somos todos passíveis de cometer atos agressivos e violentos, ou alguns de nós teria uma índole pacífica, incapaz de cometer qualquer injúria ao outro? E onde poderiam localizar-se a agressividade e a violência, a fim de se fazer um recorte que facilitasse seus estudos: no ato em si? No sujeito que executa o ato? Ou no sujeito sobre o qual o ato recai? A agressividade e a violência podem ser consideradas legítimas ou necessárias dependendo da situação? Ou são atos nocivos per si, e qualquer alternativa não violenta deve ser almejada?

Muitas outras questões poderiam ainda ser levantadas na busca de um recorte possível, ou uma delimitação que facilitasse o trabalho de conceituação da agressividade e da violência. Poder-se-ia tentar tipificá-las (por exemplo, física, verbal, sexual, emocional, moral, social, etc.) ou ainda formular uma tentativa de quantificar suas intensidades ou efeitos, na expectativa de traçar algum limite entre o aceitável e o condenável. Todos estes questionamentos, que não se esgotam, são pertinentes neste momento inicial para expressar a dificuldade de fazer-se um recorte, um enquadramento, ou ao menos uma demarcação por onde se possa circular na construção de uma articulação teórica. Tanto a agressividade quanto a violência tem se mantido no horizonte humano e uma rápida leitura de um livro de História já bastaria para demonstrar que o passado de todas as civilizações, em todas as épocas, está marcado por guerras, batalhas, revoltas, perseguições, massacres, conquistas e subjugações de um povo sobre outro. O tema do “combate à violência” está tão em voga quanto a violência

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em si, trazendo a agressividade em seu lastro, e demonstrando o quanto elas se presentificam a ponto de suscitar discussões e estratégias de enfrentamento.

Numa leitura leiga, retomando os questionamentos levantados anteriormente, poder-se-ia pensar na agressividade e na violência como um produto, uma modalidade ou ainda uma tipificação das relações interpessoais de um indivíduo. No entanto, adentrar o campo da psicanálise significa transitar pelo estudo dos processos inconscientes e subjetivos, entendendo que a subjetividade, conforme pontua Lacan (1995 [1954-1955], p. 58), ultrapassa a soma das experiências individuais, sendo antes um sistema organizado de símbolos, que almeja cobrir a totalidade de uma experiência, animá-la, dar-lhe sentido. Dessa forma, a psicanálise distancia-se de outras correntes teóricas na medida em que elas se voltam para o estudo da personalidade e dos comportamentos do indivíduo como sendo resultantes da interação de fatores genéticos e constitucionais com fatores aprendidos ou ambientais, variando o grau de influência destes fatores dentro de cada teoria. Luciano Elia (2007) lembra-nos que a teoria psicanalítica opõe-se a estas concepções por conceber o sujeito e sua constituição, como uma positividade e não como efeito interativo e secundário de ordens positivas, porém estranhas ao psíquico e primárias em relação a este. Assim, o sujeito não nasce, nem se desenvolve, e sim se constitui a partir do campo da linguagem, ou seja, o sujeito é um ato de resposta ao conjunto de marcas simbólicas e materiais - significantes - que chegam até ele pela ordem social (encarnada em nossa sociedade pela família). Ainda conforme o autor (IBID), o mundo em que o bebê humano surge, ao qual responderá constituindo-se como sujeito, antecede-o com todos os seus elementos sociais, culturais, simbólicos e de linguagem já constituídos, e é nesse sentido que Lacan conceitua a subjetividade como um sistema de símbolos, que ultrapassa a experiência individual mencionada anteriormente. Mas dizer que a psicanálise considera a dimensão social da constituição do sujeito, não equivale a reduzi-la a uma sociologia culturalista do sujeito, pois não se trata de uma simples introjeção dos elementos sociais e culturais. O que chega ao sujeito do discurso social é da ordem do significante, e não do significado.

A antecipação teórica realizada até aqui será retomada ao longo deste trabalho, mas fez-se necessária para explicitar a impossibilidade de se abordar a agressividade e a violência por um viés único, seja centrando seu estudo nos processos constitutivos do sujeito, seja apontando como ambas manifestam-se na cultura, nos laços sociais, nas leis, enfim, em todos os elementos que formam as bases da civilização (ou deveríamos dizer civilizações?). Embora o trabalho seja conduzido de forma a explorar ora um, ora outro desses vieses, é necessário

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ter-se em mente a inter-relação dos processos psíquicos, que atravessam do individual ao coletivo, e do coletivo ao individual.

Outra ressalva necessária diz respeito à extrapolação da temática proposta, abarcando o estudo de instâncias que, num primeiro momento, parecem não se relacionar diretamente com essa, tais como cultura, religião, estruturação psíquica, leis sociais e simbólicas, desejo, gozo... Tal “divagação” teórica será necessária, para melhor compreensão da temática. Conforme Jerusalinsky (2004):

O que é compreender? Compreender implica arrancar o significante de seu monossentido, ou seja, devolver-lhe a polissemia. Sem quebrar o estreitamento da extensão simbólica não há possibilidade de compreender. O que de um modo eminentemente prático quer dizer nem mais nem menos do que afastar-se do assunto em questão, permitir perder o tempo. Não elidindo, esquivando o assunto em questão, senão permitindo que ele derive muito além do nó. (p. 19-20)

Se o nó deste trabalho é a agressividade e a violência, nossa pesquisa buscará localizar a incidência das mesmas, tanto na ordem social quanto na constituição do sujeito, sem isolá-las em um sentido fenomenológico, mas antes buscando construir uma compreensão dos processos estruturantes, e a maneira como ambas se articulam nesses processos. Para abarcar a ordem social, o primeiro capítulo discorrerá sobre a passagem da vida primitiva para a estruturação civilizatória a partir da instauração da Lei. O eixo desse capítulo consistirá no estudo da obra Totem e Tabu (1996 [1913-1914]), de Freud. No segundo capítulo, percorreremos a obra O Mal-Estar na Civilização (1996 [1927-1931]), do mesmo autor, buscando a leitura das dinâmicas sociais que produzem uma tensão psíquica no indivíduo, resultante dos conflitos entre os interesses individuais e as interdições sociais. Considerando que o sujeito constitui-se a partir do legado simbólico presente no discurso social, nosso terceiro e último capítulo deter-se-á nesse processo constitutivo, buscando evidenciar as marcas da agressividade e da violência na vida psíquica do sujeito, a partir da teoria de Lacan, bem como de autores que seguem por essa linha teórica.

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1. A INSTAURAÇÃO DA LEI COMO PROCESSO CIVILIZATÓRIO

A vida primitiva dos homens sempre despertou um certo fascínio. Seja nos livros de História, ou ainda nas fabulações criadas pelo cinema e pela literatura, é provável que muitos de nós tenham se interrogado como seria viver nesse contexto brutal - na luta intermitente pela sobrevivência - mas ao mesmo tempo de liberdade irrestrita. Sem leis, sem regras, sem os compromissos e as responsabilidades com que a civilização nos captura e nos cerceia. O eremita na floresta, o náufrago na ilha deserta, igualmente interpelam-nos com a seguinte questão: como seria viver fora da civilização, gozando da liberdade de não se sujeitar a nada nem a ninguém? Talvez a luta contra as forças da natureza, bem como contra os inimigos, seja um preço alto demais a se pagar pela liberdade, tanto que os homens, mesmo em suas fases mais primitivas, optaram por viver em bandos, como será abordado mais à frente, na obra freudiana Totem e Tabu (1996 [1913-1914]). Esse trabalho de Freud, à parte de sua imensa relevância para as teorias psicanalíticas, servir-nos-á como a base teórica que sustentará o presente capítulo justamente por discorrer sobre a passagem de um estágio humano muito primitivo até a inauguração da civilização, demarcando as maneiras como a violência e a agressividade entremearam-se neste processo.

Nessa obra (IBID), Freud debruça-se sobre o estudo de populações consideradas selvagens por estudiosos da antropologia. Ele justifica seu interesse ao buscar na vida mental daqueles, um retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento. Em suas palavras:

Se essa suposição for correta, uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como é vista pela antropologia social, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela psicanálise, está destinada a mostrar numerosos pontos de concordância e lançará nova luz sobre fatos familiares às duas ciências. (FREUD, 1996 [1913-1914], p. 21)

Comparando diferentes estudos antropológicos sobre variados povos primitivos, Freud aponta-nos que suas organizações sociais costumavam ser articuladas em torno de seus totens, e a partir desses eram instituídas toda uma série de regras e proibições, às quais Freud denomina tabus. Os indivíduos que profanassem locais, pessoas ou objetos tabus, ou ainda que desobedecessem as regras, estariam sujeitos às mais diversas punições e rituais expiatórios. No entanto, cabe salientar que os tabus diferem-se das proibições morais, legais

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ou religiosas (tal como vemos em nossa sociedade) na medida em que aqueles parecem não ter fundamento ou origem conhecida, impondo-se como restrições por si só.

A análise freudiana preocupa-se não apenas em apontar as diferenças entre as práticas desses povos, mas sobretudo as semelhanças, entendendo que ali residiam fenômenos psíquicos cuja pertinência levou-o a elaborá-los dentro da teoria analítica. Focando sua lente em diferentes costumes, de povos muitas vezes isolados uns dos outros, Freud vai construindo um mosaico teórico e analítico minucioso, o que faz da obra em si um valioso estudo de interface entre a psicanálise e a antropologia. Mas para além da interface, Freud percebe ecos entre os tabus e os processos psíquicos investigados pela psicanálise nos sintomas neuróticos.

Buscando retomar o foco principal da presente pesquisa, cabe recortar dois tipos de tabus trabalhados por Freud em sua obra: o tabu relativo aos governantes e o tabu em relação aos mortos.

Em relação ao primeiro, Freud (IBID) observa que a figura do governante, do líder ou rei possuía tal força mágica e poderosa que qualquer contato direto ou indireto com este precisava ser evitado, sob pena do infrator atrair para si a ruína ou a morte. Esse tabu ao contato estendia-se não só à pessoa do líder, como também sua residência e seus objetos. Por outro lado, dada a imensa importância do governante para seus súditos, também destaca-se a necessidade de protegê-lo contra a ameaça de perigos, pois de sua figura dependia o bem-estar de seu povo. Mais ainda: a vida do governante, do rei, só tinha valor para seus súditos enquanto esse desempenhava os deveres de sua posição. Os rituais e proibições instituídos pelos tabus não visavam o conforto ou a deferência para com seu líder, mas antes garantir a inviolabilidade do seu poder e o cumprimento dos seus deveres monárquicos. E o peso dos tabus que recaíam sobre os líderes era tamanho, que muitos escolhidos tentavam fugir ou resistir à ocupação desse lugar, conforme esclarece-nos Freud (1996[1913-1914]):

Entre muitos povos selvagens a severidade dessas restrições de tabus sobre os reis-sacerdotes levou a consequências que foram historicamente importantes e são de particular interesse para o nosso ponto de vista. A dignidade de sua posição deixava de ser algo de invejável e aqueles a quem era oferecida com frequência faziam todo o possível para dela escapar. Dessa maneira, no Cambódia, onde há reinos do Fogo e da Água, frequentemente é necessário forçar os sucessores a aceitar essas distinções. Em Niue, ou Ilha Selvagem, uma ilha de coral ao Sul do Pacífico, a monarquia na realidade chegou a fim porque ninguém pôde ser induzido a assumir o responsável e perigoso ofício. (p. 63)

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Aqui cabe o questionamento: de que ordem eram essas proibições e rituais decorrentes dos tabus a ponto de provocar tamanha resistência entre os eleitos a ocupar tal lugar de liderança? Freud acaba elucidando-nos nesse ponto ao retomar a interpretação analítica desses costumes primitivos ao compará-los com as ocorrências na neurose, em especial na neurose obsessiva, de um acentuado traço de solicitude excessiva. Segundo o autor (IBID):

Ela [a solicitude excessiva] aparece onde quer que, além de um sentimento predominante de afeição, exista também uma corrente de hostilidade contrária, mas inconsciente - estado de coisas que representa um exemplo típico de uma atitude emocional ambivalente. A hostilidade é então feita calar no grito, por assim dizer, por uma intensificação excessiva da afeição, que se expressa em solicitude e se torna compulsiva, porque de outro modo seria inadequada para desempenhar a missão de manter sob repressão a corrente de sentimento contrária e inconsciente. Todo psicanalista sabe por experiência com que segurança esta explicação da superafeição solícita é aplicável mesmo nas circunstâncias mais improváveis - em casos, por exemplo, de ligações entre mãe e filho ou entre um casal devotado. Se agora aplicarmos ao caso das pessoas privilegiadas, compreenderemos que juntamente com a veneração e, na verdade, idolatrização sentidas por elas, existe no inconsciente uma corrente oposta de hostilidade intensa; que, na realidade, como esperávamos, defrontamo-nos com uma situação de ambivalência emocional. (p. 65)

A ambivalência afetiva, cujo mecanismo foi descrito no trecho acima por Freud, demanda uma estratégia de intensificação da afeição a fim de conter a hostilidade inconsciente. Nas neuroses, pode chegar ao ponto de tornar-se uma devoção compulsiva, enquanto que nas relações dos povos primitivos com seus líderes originaram diversos tabus que restringiam as relações, impondo obrigações, rituais e proibições para ambos os lados. Mas a ambivalência afetiva também se presentificava nos tabus em relação aos mortos, conforme conclui Freud (IBID) na análise dos diversos comportamentos, restrições e cerimoniais que recaíam, não apenas sobre a figura da pessoa morta, mas também aos seus objetos, seu nome, seus familiares, e até mesmo sobre o manejo do seu cadáver (e a pessoa que o executava). O autor percebe que todos os desdobramentos desses comportamentos culturais pareciam decorrer do medo da pessoa morta, ou seja, dos atos malignos que o espírito dela poderia infringir aos vivos, o que levanta a questão: por que os mortos, antes familiares ternamente amados, deveriam ser temidos? Por que os vivos não poderiam esperar desses nada além de hostilidade e desejos perversos, contra os quais os vivos deviam proteger-se com todos os meios possíveis?

Articulando esses comportamentos tabus com os estudos sobre as perturbações psiconeuróticas, Freud relembra o quão comum é o fenômeno da autocensura obsessiva no luto, ou seja, um quadro de dúvidas atrozes no qual imerge aquele que perdeu um ente muito

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próximo, dúvidas essas sobre se ele próprio não teria sido responsável pela morte desse ente querido através de algum ato de descuido ou negligência. Apesar dessas dúvidas muitas vezes não encontrarem respaldo na realidade, elas persistem durante certo tempo, o que denuncia que essas podem ter sua origem no inconsciente:

Descobrimos que, num certo sentido, essas autoacusações objetivas são justificadas, e é esta a razão de constituírem prova contra contradições e protestos. Não é que a pessoa enlutada seja realmente responsável pela morte ou na realidade culpada de negligência, como as autoacusações declaram ser o caso. Não obstante, havia algo nela - desejo que lhe era inconsciente - que não ficaria insatisfeito com a ocorrência da morte e que poderia realmente tê-la ocasionado, se tivesse poder para isso. E após a morte haver ocorrido, é contra esse desejo inconsciente que as censuras são uma reação. Em quase todos os casos em que existe uma intensa ligação emocional com uma pessoa em particular, descobrimos que por trás do terno amor há uma hostilidade oculta no inconsciente. Esse é o exemplo clássico, o protótipo, da ambivalência das emoções humanas. Essa ambivalência está presente em maior ou menor grau na disposição inata de cada um; normalmente não é tanta que dê para produzir as autocensuras obsessivas que estamos considerando. No entanto, quando existe em abundância na disposição, manifestar-se-á precisamente na relação da pessoa com aqueles de quem mais gosta, ou seja, exatamente ali onde, na realidade, menos esperaríamos encontrá-la. (FREUD, (1996 [1913-1914]), p. 75-76)

Observa-se que novamente Freud trabalha a ambivalência emocional como correntes contrárias de investimento afetivo, sendo que uma delas é inconsciente. Incapazes de anularem-se uma à outra, ocorrem mecanismos de defesa que tomam variadas formas. A culpa e a autocensura trabalhadas no trecho acima são comumente utilizadas nas neuroses (sobretudo a obsessiva). No caso dos tabus dos povos primitivos, o mecanismo de defesa assume uma face um tanto diferente, através do fenômeno da projeção, o que explica o fato desses "demonizarem" seus entes queridos que morreram. Conforme Freud (IBID):

Esse procedimento defensivo, comum tanto na vida mental normal quanto na patológica, é conhecido como ‘projeção‘. O sobrevivente nega assim que tenha algum dia alimentado quaisquer sentimentos hostis contra o morto querido; em vez disso, é a alma do defunto que os alimenta e procura pô-los em ação durante todo o período de luto. Apesar da defesa bem-sucedida que o sobrevivente consegue através da projeção, sua reação emocional apresenta as características de castigo e remorso, porque é o sujeito dos temores, e submete-se a renúncias e restrições, embora estas sejam em parte disfarçadas como medida de proteção contra o demônio hostil. Mais uma vez, então, descobrimos que o tabu desenvolveu-se com base numa atitude emocional ambivalente. O tabu sobre os mortos surge, como os outros, do contraste existente entre o sofrimento consciente e a satisfação inconsciente pela morte que ocorreu. Uma vez que essa é a origem do ressentimento da alma do morto, segue-se naturalmente que os sobreviventes que mais terão a temer serão aqueles que eram anteriormente os seus mais chegados e queridos. (p. 76)

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Nesse sentido, tanto a observância dos tabus quanto os sintomas neuróticos, tem um sentido duplo: por um lado são expressões de pesar e, por outro, traem claramente aquilo que procuram ocultar: uma hostilidade contra o morto disfarçada como autodefesa. Conforme Freud (IBID):

Na opinião do pensamento inconsciente, um homem que morreu de morte natural é um homem assassinado; desejos maus o mataram. Qualquer pessoa que investigue a origem e a significação dos sonhos de morte de parentes amados (pais, irmãos ou irmãs) poderá convencer-se de que as pessoas que sonham, as crianças e os selvagens estão de acordo em sua atitude para com os mortos - uma atitude baseada na ambivalência emocional. (p. 77)

Podemos perceber o peso que Freud atribui à ambivalência emocional, posto que a mesma está presente desde as formações de costumes, ritos e tabus dos povos primitivos, até a formação de sintomas neuróticos na civilização moderna. Cabe salientar que as correntes emocionais ambivalentes não se neutralizam umas à outras, pelo contrário, entram em conflito, o que desencadeia a necessidade de mecanismos de defesa para o manejo dos afetos hostis (já que estes são, em grande parte, inconscientes).

Um passo adiante nos estudos de Freud (IBID) coloca-nos perante um interessante fenômeno decorrente da violação de um tabu por um indivíduo sem que, no entanto, esse sofresse as consequências previstas pela crença tribal para tal ato (a saber: que recairia sobre ele a morte, a doença ou uma desgraça). Surgia então, entre os selvagens, um sentimento coletivo de que todos estavam ameaçados pelo ultraje cometido, apressando-se, eles mesmos, em aplicar a punição omitida. Desta forma:

Se uma só pessoa consegue gratificar o desejo reprimido, o mesmo desejo está fadado a ser despertado em todos os outros membros da comunidade. A fim de sofrear a tentação o transgressor invejado tem de ser despojado dos frutos de seu empreendimento e o castigo, não raramente, proporcionará àqueles que o executam uma oportunidade de cometer o mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga. Nisto, a psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos: todos nós não passamos de miseráveis pecadores. (FREUD, (1996[1913-1914]), p. 86)

Observa-se no trecho acima o quanto avançam as reflexões freudianas sobre os mecanismos de repressão dos desejos proibidos. Até então, cada sujeito contava com certos freios individuais na tentativa de fazê-los calar: o medo do castigo ao transgredir determinada

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lei ou tabu, a culpa excessiva, a autorrecriminação (não pelo que se fez, mas pelo que se desejou), e ainda a projeção no outro (ou nos outros) do próprio desejo. Mas se, a despeito destes mecanismos, o desejo é levado à sua concretização, surge uma resposta social na forma punição ou castigo ao transgressor invejado. Note-se que Freud faz referência ao manejo do infrator dentro de sociedades primitivas, mas este não destoa da severidade com que os crimes foram tratados ao longo de toda a História humana. Uma pesquisa nesse campo poderia produzir um imenso e elucidativo material, capaz de ressignificar nossos conceitos de justiça e vingança, mas por hora acompanhemos Freud em seus estudos antropológicos (e seus ecos sobre o estudo das neuroses), mantendo em mente a ideia de que tanto o criminoso quanto a sociedade que o pune compartilham do mesmo desejo proibido.

Sem deixar de lado a reflexão de que uma lei ou proibição só existem em função de um desejo ou tendência de que tal delito venha a ser cometido (pois, caso não fosse assim, essas seriam supérfluas), Freud (IBID) volta sua atenção para as festividades das refeições totêmicas. Os animais totêmicos eram considerados sagrados, pois deles emanava a proteção para todo o clã, bem como seus poderes, atributos e força. Assim, matar um animal totêmico era considerado um crime tabu. Mas a despeito da proibição que protegia a vida desses animais sagrados, surgiu a necessidade de matar um deles de tempos em tempos, e nesse ritual solene a carne e o sangue do animal eram divididos entre todos os membros do clã, estabelecendo um laço sagrado entre aqueles que os consumiam. É preciso notar que o mesmo ato considerado um crime quando executado por um único indivíduo passava a ser visto como um ritual sagrado ao ser realizado por todo o clã. De acordo com Freud (1996[1913-1914]):

Nos tempos mais remotos, o próprio animal sacrificatório fora sagrado e sua vida intocável; só podia ser morto se todos os membros do clã participassem da morte e partilhassem da culpa na presença do deus de maneira que a substância sagrada pudesse ser produzida e consumida pelos membros do clã, garantindo assim sua identidade uns com os outros e com a divindade. O sacrifício constituía um sacramento e o próprio animal sacrificado era membro do clã. Era de fato o antigo animal totêmico, o próprio deus primitivo, através de cuja morte e consumo os integrantes do clã renovavam e asseguravam sua semelhança com ele. (p. 146-147)

O autor ainda nos esclarece que o ato proibido ao indivíduo tornava-se justificável apenas pela participação de todo o clã, e ninguém poderia ausentar-se da matança e da refeição. Além disso, ao término dessa, o animal morto era pranteado e lamentado em um luto obrigatório, cujo objetivo era renegar a responsabilidade pela matança. Ao luto, seguiam-se demonstrações de regozijo que delineavam o caráter festivo da refeição totêmica, novamente

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trazendo as marcas da ambivalência afetiva. Este sentimento festivo pode ser explicado tanto pela ruptura solene de uma proibição, quanto pelo fato dos membros do clã terem incorporado a si próprios a vida sagrada de que a substância do totem constituía o veículo.

Diante de todo esse contexto das relações dos clãs com seus animais totêmicos, ainda pairam algumas questões que possam explicar tanto a sacralidade imputada a determinado animal quanto as motivações para o sacrifício coletivo e os festejos das refeições totêmicas. Nesse sentido, Freud (IBID) esclarece:

A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua matança, no entanto, é uma ocasião festiva - com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta frequência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai. (p. 149)

Percebe-se na refeição totêmica uma profunda marca de ambivalência emocional, tal como ocorriam nos outros tabus. Nesse caso, o rito do sacrifício e consumo desse animal, representante paterno para a tribo, era marcado por lamento e júbilo, compartilhados por todos os membros do clã. Mas o notório da refeição totêmica é a ambiguidade do sacrifício: se fosse realizado por um único indivíduo, seria considerado um crime sério, mas ao ser realizado coletivamente, o rito revestia-se de sacralidade. Poder-se-ia pensar que esse tabu, essa lei, poderia ser suspensa de tempos em tempos diante da anuência e participação de toda a coletividade, especialmente ao considerar-se o valor que tal rito assumia para a tribo: o alimento partilhado estabelecia um elo sagrado de união entre os membros da tribo, e esses com o seu deus.

A refeição totêmica possui ainda um simbolismo muito caro para a teoria psicanalítica, conforme verificar-se-á adiante. Mas por hora, deixemos esta elaboração em suspenso para acompanharmos a tentativa de Freud em elucidar a origem do tabu do incesto, cuja resposta ele elabora partindo da hipótese darwiniana sobre o estado social dos homens primitivos, anterior ainda à organização das tribos totêmicas.

Segundo Freud (IBID), Darwin elaborou sua hipótese a partir da observação dos hábitos dos símios superiores, e deduziu que o homem também vivia em pequenos grupos, dentro dos quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impedia a promiscuidade sexual. É possível que esse homem primevo expulsasse os machos mais novos, obrigando-os a buscar

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suas companheiras fora do bando. Cada um deles poderia, depois de ter sido expulso, estabelecer sua própria horda, na qual a mesma proibição sobre as relações sexuais imperaria, devido ao ciúme do líder. Assim, estaria estabelecida as leis da exogamia aos machos mais novos.

No entanto, tal organização social, em que um pai violento expulsa os filhos à medida que esses crescem e guarda as fêmeas para si, nunca foi objeto de observação. O tipo mais primitivo de organização social encontrada consiste em grupos compostos por membros com direitos iguais, e sujeitos às restrições do sistema totêmico. Para dar conta desta lacuna, Freud elabora o mito da horda primeva:

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de força superior.) Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião. A fim de que estas últimas consequências possam parecer plausíveis, deixando suas premissas de lado, precisamos apenas supor que a tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos-pai ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo - pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta frequência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. (FREUD, (1996[1913-1914]), p. 150-151)

Conforme prossegue o autor:

O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência adiada’. Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esse tabus tornava-se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava. (IBID, p. 151)

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A riqueza simbólica do mito elaborado por Freud é tamanha que há muito a ser elaborado, trabalhado e refletido a partir deste, posto que sua leitura elucida não apenas questões psicanalíticas pertinentes à vida dos povos primitivos, como também nos desdobramentos que recaem tanto nos laços sociais atuais, quanto nas questões subjetivas de cada sujeito. No entanto, um dos pontos que o mito enuncia interessa-nos profundamente, dada sua pertinência para o tema de nosso estudo: a instituição da Lei, que permitiu a estruturação civilizatória, foi derivada de um crime, de um ato de violência. E mais do que isso: foi a sombra da violência - pairando como uma ameaça caso a Lei fosse violada - o que permitiu que a Lei pudesse ser sustentada. Retomemos alguns aspectos para elucidar melhor essa questão.

O posto do pai da horda, tendo sido ocupado por uma figura de tamanho poder, força e autoritarismo, despertando simultaneamente admiração e ódio em cada um de seus filhos, não poderia ser requerido por qualquer um desses. Nenhum filho sozinho fora capaz de medir forças com esse pai, e foi apenas em um ato coletivo que ele pode ser eliminado. E mais do que isso: ao ser devorado pelos seus filhos, sua força foi compartilhada, assim como o júbilo e o remorso pelo ato, o que fortaleceu os laços de fratria e impediu que qualquer um dos irmãos ocupasse o lugar - agora vago - do pai. Este lugar, então, coube ao representante do pai - o animal totêmico, cuja vida passou a ser protegida por tabus, podendo apenas ser morto de tempos em tempos nos sacrifícios das refeições totêmicas, cuja sacralidade repetia e relembrava tal júbilo e remorso pelo parricídio. Além disso, o tabu do incesto instituiu a exogamia, pois se algum dos filhos reivindicasse a posse das mulheres do clã, ele seria derrotado pelos irmãos, tal qual fora o pai. O senso de coletividade, que os tornara fortes a ponto de conquistarem a vitória sobre o temível pai, precisou ser mantido para que uma estabilidade social perdurasse. Freud (IBID) esclarece-nos que esses sentimentos fraternais, que constituíram a base de toda a transformação social, continuaram a exercer um profundo impacto no desenvolvimento da sociedade. Através da santificação do laço de sangue e da garantia e proteção da vida uns dos outros dentro do clã, os irmãos criavam um pacto de que nenhum deles sofreria o destino do pai. Poder-se-ia dizer, então, que o pai morto tornou-se ainda mais forte do que fora em vida, pois da sua morte nascem as interdições na forma de Lei. Diz-nos Lacan (2008 [1959-1960]):

Para que algo da ordem da lei seja então veiculado, é preciso que passe pelo caminho traçado pelo drama primordial articulado em Totem e tabu, ou seja, o assassinato do pai e suas consequências, assassinato, na origem da cultura, dessa figura da qual não se pode deveras nada dizer, temível, temida assim como incerta, a do personagem onipotente, semi-animal da horda primordial, morto por seus filhos.

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Em seguida - articulação na qual não se detém suficientemente - se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição dessa lei, quanto à qual toda a arte de Freud será de vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato. Esse ato constituía todo o mistério. Ele é feito para nos velar isto, que não apenas o assassinato do pai não abre a via para o gozo que sua presença era suposta interditar, mas ele reforça sua interdição. (p. 211)

Essa citação de Lacan, além de corroborar o que vínhamos trabalhando na questão da Lei que se institui a partir do assassinato do pai, graças à ambivalência afetiva que se impõe diante de tal ato, também aponta o paradoxo da interdição: se a presença do pai vivo interditava o gozo dos filhos, com a sua morte essa interdição é reforçada pela Lei que se institui com o seu assassinato.

As consequências da passagem da horda patriarcal para a horda fraterna, em termos de leis, interdições e culpa compartilhada, são facilmente apreensíveis dentro do contexto das sociedades totêmicas. Restam, no entanto, algumas dúvidas sobre os mecanismos de transmissão dos efeitos desse assassinato mítico ao longo das gerações até os dias de hoje, tanto nos processos civilizatórios, quanto na subjetividade de cada sujeito. Nesse sentido, Freud (1996[1913-1914]) reflete que um acontecimento como o assassinato do pai primevo pelos seus filhos deve ter deixado traços inerradicáveis na história da humanidade, e quanto menos ele próprio possa ser relembrado, mais numerosos devem ter sido os substitutos a que deu origem. No desenvolvimento ulterior das religiões, por exemplo, o autor aponta um afastamento gradual entre a figura do pai primordial e o animal totêmico, elevando-se aquele à categoria de deus, ao mesmo tempo em que readquire a aparência humana. Embora não almeje traçar todos os caminhos percorridos pelas diferentes religiões que marcaram a história humana, Freud faz interessantes apontamentos sobre algumas, em especial ao cristianismo. Outro ponto trabalhado pelo autor, é a persistência do sentimento de culpa por milhares de anos, mantendo-se operativa em gerações que não poderiam ter conhecimento dela, e sustenta tal transmissão no fato de que os impulsos mentais não podem ser completamente reprimidos, e deles resta um vestígio que nenhuma geração pode ocultar à geração que a sucede. Assim, uma compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação original com o pai, possibilitou às gerações posteriores receberem como herança, a transmissão da culpa e dos efeitos do mítico assassinato.

Com a instauração da Lei e o fortalecimento da fratria, poder-se-ia pensar num estado de pacificação social, na medida em que cada indivíduo submete-se às interdições

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compactuadas mutuamente, em troca da proteção oferecida pela vida em comunidade. Mas o desenvolvimento ulterior da civilização deu-nos incontáveis exemplos de que a violência e a agressividade continuaram deixando suas marcas ao longo da História, o que evidencia a existência de mais forças em jogo, tanto ameaçando quanto promovendo a coesão social nos processos civilizatórios. Tais forças serão estudadas no capítulo seguinte, que orientar-se-á tomando como base o texto O Mal-Estar na Civilização (1996 [1927-1931]), de Freud.

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2. CIVILIZAÇÃO E MAL-ESTAR: OS LASTROS DA AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA

Ao iniciarmos esse capítulo, convém logo desfazer qualquer confusão sobre o sentido com que Freud (1996 [1927-1931]) toma a palavra civilização na obra O Mal-estar na Civilização. Para o autor, ele a utiliza para descrever a soma integral das realizações e regulamentos que nos distinguem de nossos antepassados animais, e que serve a dois intuitos: proteger os homens contra a natureza e ajustar os relacionamentos mútuos. Dito isto, podemos nos remeter às reflexões de Freud (IBID) sobre a condição humana, no qual cada sujeito busca a felicidade e tenta evitar o sofrimento (orientando-se, assim, pelo Princípio do Prazer). Ele destaca que esse sofrimento origina-se a partir de três fontes: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade, assinalando que nessa terceira fonte recaem os processos mais penosos. Se as duas primeiras fontes podem ser aceitas em certa medida, ou mesmo controladas até certo ponto graças ao esforço coletivo da civilização, na terceira fonte (a fonte social), percebe-se que não são colhidos os benefícios e a proteção que se espera, oriundos dos regulamentos estabelecidos por nós mesmos:

Contudo, quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável - dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica. (FREUD, 1996 [1927-1931], p. 94)

Freud (IBID) assinala um pouco adiante nesse texto, que na mesma medida em que a civilização desenvolve a ciência e a tecnologia para exercer controle sobre a natureza de maneira nunca antes imaginada, ao invés de mitigar nosso sofrimento, esse progresso cria novas fontes de pesar. O poder adquirido sobre o espaço e o tempo, bem como o controle da natureza, anseios que remontam à milhares de anos, não tornou a humanidade mais feliz, e disso conclui-se que o domínio da natureza não se constitui como única pré-condição da felicidade humana, e tampouco é o único objetivo do esforço cultural. Fazem parte dos ideais civilizatórios as manifestações de ordem, beleza, limpeza, além das mais elevadas atividades mentais dos homens (realizações intelectuais, científicas e artísticas, além das ideias desenvolvidas nas estruturas religiosas e também na filosofia). Mas é na relação entre

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indivíduos que a força regula a gênese e a perpetuação da civilização. Esta é uma ideia importante, que precisa ser mantida em mente para compreender-se a inscrição da agressividade e da violência nos fenômenos sociais, pois no fim o que mantém certa coesão social é a força de uma maioria que se contrapõe à força individual. Para isso, cobra de cada individuo sua cota de sacrifício da satisfação dos impulsos instintivos, em respeito às leis civilizatórias:

A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Isso não acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. O curso ulterior do desenvolvimento cultural parece tender no sentido de tornar a lei não mais expressão da vontade de uma pequena comunidade - uma casta ou camada de uma população ou grupo racial - que, por sua vez, se comporta como um indivíduo violento frente a outros agrupamentos de pessoas, talvez mais numerosos. O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos - exceto os incapazes de ingressar numa comunidade - contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém - novamente com a mesma exceção - à mercê da força bruta. (FREUD, 1996 [1927-1931], p. 103)

Se o sacrifício da plena satisfação dos instintos1 é pré-condição para a formação de

uma comunidade, então a liberdade não é um dom da civilização, já que a limita, impondo-lhe restrições (e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições). Por outro lado, sendo o usufruto da liberdade limitado pela civilização, fora dela a liberdade pouco valor teria, já que um indivíduo sozinho teria dificuldade em defender-lhe.

Conforme aponta Freud (IBID), dentro de uma comunidade, o desejo de liberdade pode ser decorrente de alguma injustiça existente, e desse modo seria compatível com a reivindicação de um maior desenvolvimento da civilização. Pode, por outro lado, ser

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manteve-se neste trabalho a utilização da palavra instinto e seus derivados - instintivo, instintual, etc. - tanto nas citações diretas como indiretas, tal como elas aparecem na tradução para o português da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, da editora Imago. No entanto, conforme Freud esclarece na obra Os Instintos e suas Vicissitudes (1996 [1914-1916]): “[...] um 'instinto' nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo.” (p. 127), o que claramente difere este conceito do sentido biológico do termo. Luciano Elia (2007) aponta que Lacan, assim como outros psicanalistas, defenderam o uso do termo pulsão para a tradução do Trieb de Freud, de forma que, embora utilizemos o termo

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remanescente da personalidade original, ou seja, daquilo que não foi domado pela civilização, refletindo-se na forma de hostilidade contra essa. De acordo com o autor, a privação de um instinto (pela opressão, repressão ou outro meio) não se faz impunemente. Se essa perda não for compensada economicamente, sérios distúrbios poderão decorrer dela. Mas, seja a motivação decorrente de injustiças, seja da hostilidade contra a civilização que regula a vida instintual, os indivíduos sempre defenderão sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo, e grande parte das lutas da humanidade ocorreram em torno da tarefa de encontrar uma acomodação conveniente - que traga a felicidade - entre as reivindicações do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo. Um dos grandes problemas que incide sobre o destino da humanidade, é saber se essa acomodação é possível, ou se o conflito é irreconciliável.

Retomando o mito da horda primeva trabalhado anteriormente, é possível identificar o pai da horda como um indivíduo que gozava da liberdade de satisfazer seus instintos, de forma irrestrita. Ele encarnaria, assim, um ideal de gozo, invejado e admirado pela sua prole. Mas esse pai primevo foi derrotado e deposto pelos filhos, quando esses descobriram que a união da fratria poderia ser mais forte que um indivíduo isolado. As marcas simbólicas de tal desenrolar do mito não podem ser menosprezadas, assim como a necessidade de restrições que os irmãos impuseram-se mutuamente para conservar a nova configuração da vida comunitária. Uma mensagem que o desfecho do mito evidencia, é que um indivíduo sozinho não pode sustentar sua liberdade de fruição instintual, pois a força de um grupo é capaz de subjugá-lo. Por outro lado, a coesão de um grupo exige um limite à liberdade individual, restringindo-a através das leis que regulam a vida instintiva de cada indivíduo. De qualquer forma, uma certa pacificação da tensão entre as leis sociais e os impulsos instintivos foi possível na construção de sociedades cada vez maiores devido à necessidade de vencer-se as dificuldades externas (proveniente das forças da natureza) pelo trabalho em comum, e também pela possibilidade de formar e manter os vínculos amorosos que estabelecem um núcleo familiar, embora essa pacificação não tenha, de todo, anulado as tensões mencionadas anteriormente.

Eros e Ananke (Amor e Necessidade) foram apontados por Freud (1996 [1927-1931], p. 107-108) como os pais da vida comunitária dos seres humanos: a necessidade externa que incide na compulsão pelo trabalho, e o amor que faz os indivíduos relutarem em privar-se de seus objetos sexuais. Esses dois grandes poderes colaboraram para o desenvolvimento ulterior da civilização, pois possibilitaram que grupos cada vez maiores de pessoas pudessem viver

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em comunidade, com um controle cada vez mais amplo sobre o mundo externo. Seria de se esperar, então, que a civilização promovesse a felicidade aos seus integrantes, mas tal expectativa não foi atendida. Na busca de respostas, a elaboração freudiana discorre longamente sobre o amor nas suas diversas expressões, mas para o presente estudo basta apontar que ele possui duas formas (o amor genital ou sensual, e o amor inibido em sua finalidade ou afeição), e que ambas foram submetidas à regulação pela civilização. Isso se deve a uma certa incompatibilidade entre amor e civilização, pois quanto mais forte os vínculos de um indivíduo com sua família (na qual o amor sensual e a afeição encontram sua manifestação mais forte), mais difícil é para este indivíduo integrar os círculos mais amplos da sociedade. Assim:

[A civilização] Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. (FREUD, 1996 [1927-1931], p. 114-115)

Embora a civilização regule e convoque a libido com o fim de manter a coesão de seus vínculos comunais, essa continua sendo ameaçada, pois há no ser humano, conforme aponta Freud (IBID), uma hostilidade primária que ameaça desintegrar a civilização. Disso decorre a necessidade de esforços supremos para limitar os instintos agressivos do homem mantendo suas manifestações sob controle, empregando métodos destinados a incitar as identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade (afeição), a restrição à vida sexual, e mesmo reforçando o ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. Espera-se, ainda, inibir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, validando o uso da violência contra criminosos, embora a lei não aplaque as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. O autor (IBID) aponta que há nos homens uma dificuldade em abrir mão da satisfação dessa inclinação para a agressão, pois, sem ela, eles não se sentem confortáveis. Evidencia-se, inclusive, a vantagem para um grupo cultural em conceder a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos. Uma vantagem nada desprezível, considerando que é sempre possível unir um expressivo número de pessoas por laços de amor, enquanto sobrarem outras pessoas a quem se destinam

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as manifestações de sua agressividade. As grandes guerras são os exemplos mais expressivos de como a hostilidade contra inimigos pode unir as nações.

A agressividade é, assim, descrita por Freud como uma disposição instintiva original e autossubsistente, que se configura como o maior impedimento à civilização. Segundo o autor:

[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo [...] Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. (FREUD, 1996 [1927-1931], p.117-118)

Para explicar a agressividade da qual os humanos são dotados, e que pode tomar dimensões tão cruéis e destrutivas, Freud (IBID) retoma as teorias trabalhadas na sua obra Além do Princípio do Prazer (1996 [1925-1926]), onde ele observa que, ao lado do instinto de preservação da vida (Eros), existe também o instinto de morte, que sendo desviado ao mundo externo, manifesta-se como um instinto de agressividade e destruição. Dessa maneira, o próprio instinto poderia ser compelido para o serviço de Eros ao objetivar destruir alguma outra coisa, animada ou inanimada, ao invés de destruir seu próprio eu. Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição. O instinto de morte é de difícil detecção, a menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros, e sua satisfação se faz acompanhar por um grau muito alto de fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de antigos desejos de onipotência. O instinto de destruição, quando moderado e domado, (ou, por assim dizer, inibido em sua finalidade) ao ser dirigido para objetos, proporciona ao ego a satisfação de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza. Mas sua forma mais agressiva, na qual a hostilidade de cada um se opõe contra todos (e de todos contra cada um), se contrapõe aos propósitos da civilização. Já em Eros, a civilização atende a seus propósitos ao combinar indivíduos isolados, famílias, raças, povos e nações em uma única grande unidade, a

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humanidade. E é no embate dessas duas grandes forças, Eros e Morte, que a evolução da civilização é escrita.

Existe mais uma forma importante pela qual os processos civilizatórios exercem controle sobre os impulsos agressivos de cada indivíduo. Embora essa forma situe-se no campo do desenvolvimento individual, convém abordá-la ainda nesse eixo do estudo da civilização, pois diz respeito ao modo como o desejo de agressão pode ser enfraquecido e desarmado, na medida em que a agressividade passa a atuar contra o próprio ego, em um processo favorecido pela ação civilizatória, e que remonta ao assassinato do pai primevo. De acordo com Freud (1996 [1927-1931]), desse ato produziu-se o remorso nos filhos, pois, se este pai foi odiado, ao mesmo tempo foi amado, graças ao mecanismo da ambivalência. Quando o ódio fora satisfeito por esse ato de agressão, o amor pode vir ao primeiro plano, propiciando a identificação com esse pai, então assassinado. Junto ao remorso, originaram-se mecanismos de repressão, destinados a impedir a repetição do ato. Mas tais mecanismos não subjugaram a inclinação à agressividade contra a figura paterna nas gerações seguintes, de forma que a culpa também persistiu, reforçada pelos impulsos hostis ao longo das gerações. Percebe-se, então, que os dois elementos fundamentais no que Freud denomina como

consciência2 são o amor e a culpa, sendo essa última inevitável, independentemente de matar

o pai ou abster-se de fazê-lo, posto que para a vida psíquica, o desejo equivale ao ato. Como tal afirmação contém tamanha gravidade, convém detalhar melhor essa equivalência entre ato e desejo, para Freud.

Uma pessoa sente-se culpada em decorrência da ação de um ato considerado “mau”, ou ainda quando identificou em si a intenção de fazê-lo. Mas de onde surge o julgamento do que é “bom” ou “mau”? Freud (1996 [1927-1931]) rejeita uma capacidade original no indivíduo em distinguir o bom do mau, pois o mau, frequentemente não é algo danoso ou perigoso ao ego, pelo contrário, pode ser algo desejável ou prazeroso. Uma vez que o próprio discernimento não conduz a esse entendimento, supõe-se que o indivíduo submeteu-se a uma influência externa, cujo motivo para tal submissão encontra-se no desamparo e na dependência dele em relação a outras pessoas, responsáveis pela sua sobrevivência, e tal dependência pode muito bem ser designada como o medo da perda do amor. Se ele perder o amor dessa pessoa da qual depende, deixa também de ser protegida de uma série de perigos. E acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa pessoa mais forte mostre sua superioridade

2 consciência difere-se de consciente. A consciência é descrita como uma função atribuída ao superego,

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na forma de punição. De início, portanto, mau é tudo aquilo que pode ameaçar a perda do amor e da proteção, devendo ser evitado. Essa é a razão porque faz tão pouca diferença entre já ter cometido um ato mau ou ter a intenção de fazê-lo, pois em qualquer um dos casos, o perigo só se instala, se e quando a autoridade puder descobri-lo, e em ambos os casos, a autoridade se comporta da mesma maneira. Esta pessoa que encarna o amparo para a criança corresponde ao pai (ou aos pais), e posteriormente esta autoridade recai sobre a comunidade humana mais ampla. Mas esse processo de internalização das regras extrapola a mera obediência, ainda que objetive a manutenção do amor e da proteção. Se fosse apenas uma questão de evitar os maus atos que acarretariam a perda do amor, nosso comportamento não passaria de modulações produzidas pelo ambiente, e os sentimentos de culpa e remorso não encontrariam justificativas. Assim sendo, há que se considerar os impulsos de agressividade contra essa figura que interdita a satisfação dos instintos, mas ao mesmo tempo é amada pela criança que dela depende. Consequentemente, é gerada uma tensão interna na criança, levando-a à formação de uma nova instância psíquica, conforme aponta Freud (1996 [1927-1931]):

É provável que, na criança, se tenha desenvolvido uma quantidade considerável de agressividade contra a autoridade, que a impede de ter suas primeiras - e, também, mais importantes - satisfações, não importando o tipo de privação instintiva que dela possa ser exigida. Ela, porém, é obrigada a renunciar à satisfação dessa agressividade vingativa e encontra saída para essa situação economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares. Através da identificação, incorpora a si a autoridade inatacável. Esta transforma-se então em seu superego, entrando na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer contra ele. O ego da criança tem de contentar-se com o papel infeliz da autoridade - o pai - que foi assim degradada. Aqui, como tão frequentemente acontece, a situação [real] é invertida: ‘Se eu fosse o pai e você fosse a criança, eu o trataria muito mal’. O relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno, deformado por um desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e um objeto externo. Isso também é típico. A diferença essencial, porém, é que a severidade original do superego não representa - ou não representa tanto - a severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa, antes, nossa própria agressividade para com ele. Se isso é correto, podemos verdadeiramente afirmar que, de início, a consciência surge através da repressão de um impulso agressivo, sendo subsequentemente reforçada por novas repressões do mesmo tipo. (p. 135)

É importante ressaltar que a agressividade que irá formar a instância superegóica do indivíduo, não é a agressividade recebida desta figura de autoridade e amor, e sim, a agressividade do indivíduo contra esta figura. Claro que a agressividade vingativa da criança será em parte determinada pela agressão punitiva que ela espera receber. Mas a severidade que o superego desenvolve não está ligada, necessariamente, à severidade que a criança

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experienciou, podendo o superego, inclusive, tornar-se extremamente rígido, mesmo com uma interação mais gentil por parte do pai, conforme aponta-nos Freud (IBID). Outra importante peculiaridade do superego que precisa ser pontuada, é que dele não é possível ocultar nada, sequer os pensamentos e desejos, o que torna essa instância psíquica mais onipresente do que qualquer figura externa. Com o superego, percebe-se a clareza da indistinção entre ato e intenção, pois não há esconderijo possível para os pensamentos, impulsos, afetos e desejos diante do superego. Dessa forma, embora o superego seja uma instância da estrutura psíquica que se articula no desenvolvimento de cada indivíduo, os efeitos que ele produz cooperam enormemente com os ideais civilizatórios, na medida em que colocam o sujeito sob uma vigilância totalitária e constante, configurando-se como um dos principais freios aos impulsos instintivos.

Recordando as teorias freudianas que foram trabalhadas até o momento nos estudos das obras Totem e Tabu (1996[1913-1914]) e O Mal-Estar na Civilização (1996 [1927-1931]), buscou-se a compreensão das forças em marchas que atuam tanto no estabelecimento e fortalecimento dos vínculos comunitários, quanto na ameaça de desintegração da unidade social. Ora, tal modelo de processo civilizatório proposto por Freud parece ter a pretensão de abarcar milênios de História humana, em seus mais diversos contextos sociais, culturais, políticos e econômicos. É evidente que uma visão universalista da humanidade seria tanto inviável quanto ingênua, dadas as diversidades específicas de cada época e de cada povo. Dito de outra forma, a civilização não pode ser concebida como um imenso grupo homogêneo de pessoas, com regras e sistemas perenes e comuns a todos, e suspeitamos que nem tenha sido essa a intenção de Freud. É possível perceber que os elementos trabalhados por ele ao discorrer sobre a origem do processo em que seres humanos agrupam-se em comunidades, bem como no surgimento de leis que regulam a vida instintiva, impondo restrições que cada indivíduo aceita em nome da proteção exercida pelo grupo, e ainda as tensões internas às quais cada um está sujeito ao buscar um equilíbrio entre as reivindicações pessoais e as culturais, todos estes elementos possuem um caráter atemporal e invariante, posto que existem profundas similaridades entre o processo de desenvolvimento individual, e o desenvolvimento civilizatório (FREUD, 1996 [1927-1931] p. 145-148). Esses elementos, por contemplarem em seu cerne o embate entre Eros e Morte, a ambivalência afetiva e a agressividade como uma constante (que pode voltar-se tanto externamente como contra o próprio ego do indivíduo), contribuem imensamente para o nosso estudo, já que eles lançam luz sobre o fato incontestável de que a agressividade e a violência emprestam suas tintas para a escrita da

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própria História humana, outorgando a paz e a felicidade ao campo da utopia - ou, em termos psicanalíticos, a um ideal.

Até aqui nos detivemos no estudo dos processos estruturantes da civilização, destacando o papel da agressividade e da violência, tanto na sustentação quanto na ameaça de desintegração da ordem social. Considerando que cada sujeito constitui-se a partir dessa ordem que o antecede, coloca-se a questão de como a agressividade e a violência perpassam esse processo de constituição. Assim, saindo da esfera social, debruçar-nos-emos nos processos do sujeito, para elaborar essa questão no próximo capítulo.

Referências

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