[Publicado inicialmente in RCEJ, 16. Substancialmente revisto e ampliado em Junho de 2012]
TÓPICOS SOBRE TÉCNICAS LEGISLATIVAS
Raul Guichard
A. PARTES GERAIS; DEFINIÇÕES; REMISSÕES; PRE-SUNÇÕES; E FICÇÕES
I. AS “PARTES GERAIS” (OU “DISPOSIÇÕES GERAIS”)
1. Nas chamadas “partes gerais”, muito vulgares no âmbito de
codificações
icom alguma vastidão, pretende o legislador reunir
matérias comuns às (subsequentes) “partes especiais”, estabelecer
um “compêndio de pré-decisões”, responder a “um catálogo de
questões preliminares” (nestes termos, por exemplo, B
APTISTAM
ACHADO). Para tomar emprestada uma expressão da álgebra,
“põem-se em evidência ou fora do parêntesis os factores comuns”.
Dentro do mesmo símile, fala-se de uma “Klammerfunktion”, ou do
princípio do “vor die Klammer-ziehens” (a metáfora é atribuída a G.
B
OEHMER). Associa-se ainda tal técnica ao chamaLdo “princípio da
prioridade”, onde o percurso seguido vai do mais geral para o mais
específico.
2. É intuitivo – e corroborado pela legística
iie pelo direito
comparado
iii– que, por razões de economia ou simplificação, de
“sistematicidade”, até de “transparência”, por imperativos de
racio-nalidade afinal (prevenção de contradições), qualquer corpo
legisla-tivo com alguma extensão dificilmente pode prescindir do recurso a
partes gerais (todavia, estas terão em concreto alcances bastante
diferentes). Desse modo, querer-se-á fugir ao casuísmo e às
inúme-ras lacunas que deste sempre advêm
iv. Para além disso, nenhum
outro meio se mostra apto a evidenciar com tanta propriedade os
princípios e as conexões (sistemáticas, construtivas, funcionais e
valorativas) dos institutos e das matérias reguladas. Pode assim
falar-se de uma “função principial” das partes gerais. O legislador
será chamado a reflectir sobre o plano sistemático subjacente, num
esforço para vertê-lo de forma coerente e em coordenação com as
partes especiais.
É porém igualmente certo que os anteriores desideratos não se
deixam alcançar por inteiro, havendo necessidade de introduzir
modificações e excepções ao regime contido na parte geral,
sobre-carregando-se afinal a exposição normativa (note-se que raramente
as partes gerais conterão referências ou remissões para as normas
das partes especiais). Basta pensar na coordenação, no nosso e
nou-tros códigos civis, entre o regime dos vícios redibitórios, previsto
para a compra e venda, e o do erro, contido na Parte geral.
3. As partes gerais, a “divisão geral e horizontal” da matéria
que nelas tem guarida, apresentam algumas desvantagens ou
peri-gos. Nomeadamente, podem denotar um vezo abstractizante,
forma-lista ou doutrinário, um pendor para o conceptualismo (ou ser deste
uma sequela), desligando-se da realidade (“revogando-a”) e das
solicitações pragmáticas, com prejuízo do próprio conteúdo
mate-rial. Conspícuas mostram-se também as aflições (de uma “via-sacra”
falou alguém) que causa, sobretudo a um leigo, a leitura, o
entendi-mento e a aplicação da lei justamente pela formulação abstracta
des-se modo introduzida, e dada a necessidade de des-se percorrer lugares
sistemáticos diversos e de se atender escrupulosamente à regra
spe-cialia generalibus derogant, ou seja, dar prevalência às “normas
especiais”.
Semelhantes inconvenientes ganham um peculiar significado,
especial acuidade quando se tem em vista a adopção de uma parte
geral de alcance muito vasto, que pretenda reunir (a anteceder as
demais matérias reguladas em outras divisões capitais) as normas e
os princípios comuns a toda uma área ou ramo do direito.
4. Entendidas com essa magnitude, as partes gerais
desenvol-veram-se pioneiramente nas codificações penais – tomem-se como
exemplos mais antigos o Codex Juris Bavarici Criminalis, de 1751,
e o Josephinische Strafgesetzbuch, de 1787 (e assim, aliás, também
o Allgemeine Landrecht für die preußischen Staaten, de 1794, no
espaço aí dedicado ao direito penal) –, onde de resto o seu uso tem
justificações particulares e está facilitado por uma relativa
homoge-neidade das matérias reguladas. Nas grandes codificações civis, isso
deu-se, precursoramente, no Sächsische Bürgerliche Gesetzbuch de
1863. E, destacadamente, no Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) de
1896 (aí no Livro I, centrado no negócio jurídico – a sua “pièce de
résistance”, na expressão de Zitelmann – e na declaração negocial,
revela-se toda uma superestrutura de conceitos e princípios
(deriva-dos primariamente do ensino do direito), diz-nos J. H. Merryman; de
um “tecto sobre a edifício das normas jurídicas” fala por sua vez E.
Rabel).
Em todo o caso, a generalidade das exposições ou manuais
sobre o direito comum continham já uma parte geral introdutória.
Nomeie-se, representativamente (sobre outros autores anteriores, ver
adiante), a obra de C
HRISTOPHC
HRISTIAN VOND
ABELOW, System
des gesamten heutigen Civil-rechts, cuja segunda edição é de 1796.
E isso, sob claro influxo jusnaturalista (e do seu método e tendência
abstractizante), embora aí a parte geral correspondesse à procura de
princípios gerais e “primordiais” comuns a todo o direito.
Em compensação, também logo não se deixaram de fazer
escutar censuras dirigidas a semelhantes partes gerais, quer quanto à
deficiente ordenação das matérias no seu interior, quer quanto à sua
extensão desproporcionada. Ou, doutro ângulo, denunciando, como
o fez E
DUARDG
ANS(ao explicar por que razão prescindira de um
parte geral, entendida nesses termos, no seu System des römische
Civilrechts im Grundisse, Berlin, 1827) que “[d]araus folgyt nun,
dass wir zu einer kahlen und nackten Allgememeinheit gelange, die
keiner versthet, weil ihr die Einbildung ins Besonderere abgeht, und
zu einer principienlosen Besonderheit, die ihren Kopf anderswo als
bei sich selber hat”. E foram mesmo apodadas de “geräumiges Asyl
für alle Vagabunden” ou de “doctrinales Missgeburt”.
Concretamente quanto ao Livro I do BGB, observa F.
W
IEACKERque ele só parcialmente satisfaz as exigências de uma
parte geral rigorosamente entendida – isto é, erigida segundo
crité-rios estritamente lógicos e coerentes e contendo regras de carácter
genérico (requisito que só a Secção referente ao negócio jurídico
preenche; mais: faltaria uma regulamentação geral dos direito de
personalidade – reparo a que codificações posteriores, como a nossa,
procurarão dar resposta –, muitas das cláusulas gerais espalhadas
por todo o BGB, §§ 138, 226, 242, 826, estariam melhor logo no
início da Parte geral, far-se-ia sentir a falta de uma previsão
expres-sa da figura do abuso do direito, como a do ZGB suíço e a do nosso
direito, e haveria talvez que ter incluído a disciplina geral dos factos
ilícitos, como sucede por exemplo no Código brasileiro). Consoante
mais amplamente assinala G.
B
OEHMER: “Der Allgemeine Teil
ent-hält nicht etwa, was durchaus sinnvoll gewesen wäre und für eine
große Kodifikation als ethischer Integrationsfaktor geradezu
unent-behrlich ist, ein Bekenntnis zu den die bürgerliche Rechtsordnung
beherrschenden politischen und sozialethischen Grundprinzipien,
die als leitende Maximen für die Rechtsausübung und
Rechtsan-wendung richtunggebend wirken sollen, wie sie z. B. die Einleitung
zum ALR und die Art. 1-9 des Schweiz. ZGB enthalten. […] Statt
dessen haben die Schöpfer des BGB, in Fortsetzung der
gemein-rechtlichen
Pandektensystematik
und
in
Nachbildung
der
Gajanischen Dreigliederung ‘personae, res, actiones’ es
unternom-men, die drei Grundelemente der hergebrachten
Zivilrechtsdogma-tik, Rechtsubjekte, Rechtsobjekte, Rechtsgeschäfte und
Rechtsausü-bung, in ihrem allgemeinen begrifflichen Sachgehalte vorweg zu
regeln, mathematisch gesprochen, sie ‘vor die Klammer zu setzen’,
um im Interesse der Kürze und logischen Geschlossenheit des
Ge-setzes beständige Wiederholungen zu vermeiden. Daraus ist nun
freilich weder ein richtiger Gajus noch ein wirklicher ‘allgemeiner‘
Teil geworden, sondern ein mixtum compositum heterogener
Ele-mente, das sich teils aus Bruchstücken des Vereins- und
Stiftungs-rechts und des SachenStiftungs-rechts, teils aus Allgemeinsätzen über die
Rechtsausübung, und nur zum dritten Teile aus wirklichen
vorweg-genommenen Normbestandteilen, wie besonders in dem Abschnitt
über ‘Rechtsgeschäfte’, zusammensetzt. […] Allgemeiner Teil im
gesetzestechnischen Sinne ist im wesentlichen nur der dritte
Ab-schnitt über ‘Rechtsgeschäfte’. Er erhebt den Anspruch, die allen
möglichen Rechtsgeschäften, nicht nur des Schuldrechts, sondern
auch des Sachen-, Familien- und Erbrechts, ja auch aller anderen
Privatgesetze, gemeinsamen Bestandteile vorweg zu regeln. Das ist
ein novum in der Geschichte der Gesetzgebung”. Prossegue ainda,
criticamente, o mesmo autor: “Der Allgemeinbegriff [scl.,
Rechts-geschäft] taucht erst in der Literatur des Pandektensrechts und
ge-setzlich zum erstmal im sächsischen BGB auf. Sein Wert ist
frag-würdig. Bei aller Abstraktheit des Gesetzesstils hat sich der
Gesetz-geber doch offensichtlich am Schuldvertrage, besonders am
Kauf-vertrage, als Anschauungsmaterial orientiert. Die Vorschriften über
Willenserklärungen und Verträge passen schon nicht mehr völlig
auf Arbeits- und Gesellschaftsverträge, noch weniger auf die
dingli-chen Rechtsakte und ‘Einigungen’, und auf die Rechtsgeschäfte des
Familien- und Erbrechts, Verlöbnis, Ehe, Adoption, Testament und
Erbvertrag so wenig, daß sie sich mehr oder weniger eine
gesetzli-che Sonderregelung erkämpft haben”.
Na Parte geral do BGB, a adopção “em ponto pequeno”
(ver-tida na repartição entre direito das pessoas, do património e dos
negócios jurídicos) da divisão das Institutas foi porém, como se
constata, realizada em “moldes modificados”. No que, mais uma
vez, a influência do jusnaturalismo é perceptível. Com efeito, no
seio deste havia-se acolhido a reinterpretação – feita por S
EBASTIÁND
ERRER, em Jurispridentiae liber primus instar disciplinae
institu-tus et axiomatibus magna ex parte concepinstitu-tus, 1540, mas sobretudo
pelo humanista francês F
RANÇOISC
ONNAN, em Commentarius iuris
civilis libri X, 1553, e posteriomente por B
ODIN, em Iuris universi
distributio, 1578 – do sentido da expressão actiones (mais tarde, terá
uma influência decisiva em tal processo, destacando ainda os
con-ceitos de negotiorum iuridicum e declaratio voluntatis ou mentis,
D
ANIELN
ETTELBLADT, na sua explanação sintética da doutrina do
direito natural, decantada de C
HRISTIANW
OLFF, em Systema
ele-mentare universae iurisprudentia naturali, 1749). Tais autores
man-tinham ter Justiniano, ao entender actiones como acções
proces-suais, deturpado o significado original da expressão em G
AIUS, que
lhe atribuíra antes a acepção de facta ou acta, chegando dessa sorte
à tripartição personae, res, actus, e alojando em moldes sistemáticos
dentro deste último termo a teoria geral do actus iuridicus.
Mais em detalhe, numa passagem que vale a pena transcrever
in extenso, explica A.
B.
S
CHWARZ: “Auf dem Einfluß
naturrechtli-cher Systematik beruht der allgemeine Teil vor allem in denjenigen
Lehren, die auch ihrem Bestande nach in weitgehendem Maße der
Naturrechtsjurisprudenz ihr Dasein verdanken: in der Lehre des
sub-jektiven Rechte und der Rechtsgeschäfte. Ihre systematische
Anord-nung ist nicht in allen angeführten Werken die gleiche. Heise geht
von den Rechten aus, und auch hierin folgt ihm die
Privatrechtsy-stematik bis auf den heutigen Tag. Die früheren Systeme hatten zum
Teil die Lehre von Personen, Sachen, Handlungen zunächst
behan-delt und die Lehre vom subjektiven Recht fast durchwegs mit der
allgemeinen Theorie der Obligation verknüpft […]. Doch ist auch
die bis auf den heutigen Tag herrschende Anordnung, die
Rechtsge-schäftslehre unter den bei Heise zurücktretenden Gesichtspunkt des
Erwerbs und Verlustes der Rechte zu stellen, in einigen früheren
Systemen schon da. Die einzelnen Teile der Rechtsgeschäftslehre
hatten in der römischen und neuzeitlichen Jurisprudenz ihre
Ausbil-dung vorwiegend an den obligatorischen Kontrakten erfahren. In
Anknüpfung an diese werden sie auch noch bei den älteren
Natur-rechtsjuristen behandelt: die von diesen dabei gehandhabte
Systema-tik ist für die spätere Naturrechts- und Pandektenlehre bestimmend
geworden. In sehr anschaulicher Weise zeigt sich der
systembilden-de Einfluß vorwiegend systembilden-der Nettelbladtschen Richtung bei jenen
Par-tien des allgemeinen Teils, die in diesen aus einer anderen
Einstel-lung der früheren romanistischen Lehre übernommen worden sind.
Dies gilt zunächst von den Vorschriften über Sachen. Dem Vorbild
der römischen Quellen gemäß wurde diese Lehre von der großen
Mehrzahl aller Systeme des 16.-18. Jahrhundert an der Spitze des
Sachenrechts behandelt; diesem Verfahren wurde nicht nur von
spä-teren Pandektisten des 19. Jahrhunderts und dem 1. Entw. des BGB.,
sondern wird auch heute noch der festliegenden Legalordnung
gegenüber von sehr angesehener Seite der Vorzug gegeben. Die
Anordnung von Hugo und Heise folgt hingegen allen
vorangehen-den Pandektensystemen ihrer Zeit und geht deutlich auf die späteren
Naturrechtler zurück: Darjes und Nettelbladt hatten schon […] die
Lehre in den allgemeinen Teil gezogen, und hierdurch würde auch
die diesbezügliche Systematik des preußischen Landrechts
beeinf-lußt (1. Teil, 2. Tit.). Hierbei war der allgemeine Gesichtspunkt des
Rechtsobjektes entscheidend. – Hier ist weiterhin die allgemeine
Lehre
des
Rechtsschutzes
zu
nennen,
die
nach
der
Institutionensystematik im ius quod ad actiones pertinet ihre Stelle
hatte. Als Heise dieselbe mit Einschluß der Verjährungslehre neben
die Lehre von den Rechten gestellt und dann auf Savignys
Anre-gung noch besonders ausgebaut hat (Vorrede zur III. Ausg. S. Vll),
folgte er nur der Methode, die von Nettelbladt und den meisten
Vorgängern in der Systematik, wenngleich in sehr verschieden
Um-fang, gehandelt worden war. – Ganz Ähnliches gilt betreffend der
Besitzlehre, deren systematische Einstellung stets besondere
Schwierigkeiten bereitete. Die älteren romanistischen Systeme
hat-ten sie mit mancherlei Schwankungen im Sachenrecht
unterge-bracht, bald vor, bald in, bald hinter der Eigentumslehre. Hugo und
Heise stellten sie – allerdings nicht unter gleichem Gesichtspunkt –
in den allgemeinen Teil und folgten auch hierin dem bei Nettelbladt
wie auch allen übrigen Systematikern ihrer Zeit vorgefundenen
Bei-spiel”.
Mencionados estes aspectos, refira-se que habitualmente a
paternidade do sistema geral das Pandectae (assim como a difusão
geral do terminus negócio jurídico) se atribui a G
EORGA
RNOLDH
EISE, no Grundriss eines Systems des gemeinen Civilrechts zum
Behuf von Pandecten-Vorlesungen, de 1807, concebido para as suas
prelecções em Göttingen (obra que terá ainda um papel muito
importante no próprio conteúdo da Parte geral do BGB, estando
dividido o seu Livro I, Allgemeine Lehren, em sete Capítulos,
Quel-len des Rechts, Von den Rechten, Von Verfolgung und Schützung
der Rechte, Von den Personen, Von den Sachen, Von den
Handlun-gen (I. Von den HandlunHandlun-gen im Algemeinen, II. Von den
Rechts-geschäften, III. Vom unerlaubten Handlungen), Raum- und
Zeit-Verhältnisse – partições que, não coincidindo em toda a linha com
as que viriam a ser adoptadas na codificação alemã, grosso modo
lhes correspondem; note-se todavia que na obra de H
EISEo direito
das coisas precedia o direito das obrigações e ainda se agregava um
sexto livro – Die Restitutio in integrum).
Mas não se devem marginalizar autores anteriores, nem as
prévias “sistematizações”, com uma parte geral e uma parte
espe-cial, do direito privado levadas a cabo por um dos maiores
represen-tantes da Escola jusnaturalista, professor de S
UAREZ, J
OACHIMG
EORGD
ARJES(Institutiones jurisprudentiae universalis, Ienae,
1740), por J
OHANNS
TEPHANP
ÜTTER(Neuer Versuch einer
juristis-chen Encyclopädie und Methodologie, Göttingen, 1767) e sobretudo
por G
USTAVH
UGO(Institutionen des heutigen römischen Rechts,
Berlin, 1789; o autor abandonaria em posteriores edições o plano
expositivo inicialmente seguido)
v. Nem depreciar a ulterior
influên-cia de C
HRISTIANF
RIEDRICHM
ÜHLENBRUCH(Doctrina
Pandecta-rum: scholarum in usum, editio nova, auctior et emendatior,
Bruxel-les, 1838, cujo plano de exposição contém uma Pars Generalis e
uma Pars Specialis, dividida esta última em três Livros, De jure
personarum, De rebus earumque dominio e De obligationibus). Ou
esquecer o papel de S
AVIGNY(System des heutigen Römischen
Rechts, I-VIII, 1840-1951), o qual, embora manifestando pouca
simpatia por uma parte geral, malgrado dela não ter prescindido no
seu System, adoptou e tornou decididamente popular a divisão de
H
EISE(em especial, deve-se ao grande romanista a estrita dicotomia
entre o direito das obrigações e o direito das coisas, não mais daí em
diante aquele será tratado como dependendo deste último; S
AVIGNYdestacou igualmente o direito da família do direito das obrigações,
invocando que o primeiro compreendia ainda um “elemento natural
e moral”). Nem ignorar a elaboração e a justificação próprias da
posterior pandectística alemã, nomeadamente de P
UTCHAe W
INDS-CHEID(uma sistematização diferente foi contudo seguida por A
LOIS VONB
RINZ, no seu Lehrbuch der Pandekten, I-IV, Erlangen,
1873-95 – a 1.ª edição é de 1857-71 –, dividido em quatro Livros: 1. Vom
Rechte, 2. Die Personen, 3. Die Rechte, 4. Die Handlungen).
Regis-te-se ainda, fora do espaço alemão, e um pouco mais tarde, E
NRICOC
IMBALI, La nuova fase del diritto civile nei rapporti economici e
sociali: con proposte di riforma della legislazione civile vigente,
Torino, 1895, propondo uma organização em três partes: pessoas,
coisas e relações jurídicas.
Na realidade, o processo de surgimento do sistema das
pan-dectas (o qual de resto, não obstante o seu êxito quase incontestado,
na traça geral, durante o séc. XIX, está longe de ser o único possível
ou até de evidenciar méritos inultrapassáveis – não assentando,
como sempre se indica, sequer num critério unitário ou
absoluta-mente coerente) estende-se por vários séculos, presente já
embriona-riamente nos humanistas e nos escolásticos espanhóis e
prosseguin-do com os jusnaturalistas. Isso, num continuaprosseguin-do esforço para
substi-tuir a ordenação do Digesto (tida por ilógica e insuficiente), que
remonta a H
UGOD
ONELLUSno seu Commentarii iuris civilis, 1589,
onde se recorre pioneiramente à tríade das Institutas (personae, res
actiones; mas tomado o conceito res em termos muito latos,
com-preendendo não só o direito das coisas, estritamente compreendido,
mas também muitas das matérias do direito das sucessões e do
direi-to das obrigações). Mais tarde, G
OTTFRIEDW
ILHELML
EIBNIZ, Nova
methodus discendae docendaeque jurisprudentiae, 1667, II, 10, 13
viintentou, também em oposição ao método justinianeu, uma
reorde-nação das matérias obedendo a distinção entre sujeito, objecto e
acto. L
EIBNIZpropõe, mais em geral, a seguinte ordenação: (1)
Generalia juris et actionum, (2) Personae, (3) Judicia, (4) Jura
rea-lia, (5) Contractus, (6) Successiones, (7) Crimina, (8) Jus publicum,
(9) Jus sacrum. E em S
AMUELP
UFENDORF, De jure naturae et
gen-tium libri octo, 1672, encontram-se já decantados os princípios
fun-damentais – e cria-se afinal o sistema do ius naturae (na esteira de
G
RÓCIO, o qual porém não chegou a tal acume de sistematização;
importante será ainda a influência de C
HRISTIANW
OLF, quer para o
abandono da ordenação das Institutas, quer para a utilização
poste-rior, em compêndios e manuais, de exposições rigorosamente
divi-didas e por vezes limitadas a um tal “esqueleto sistemático”; e de
J
OHANNG
OTTLIEBH
EINECCIUS, autor de duas obras com títulos
similares, Elementa juris civilis secundum ordinem Institutionum,
1725, e Elementa juris civilis secundum ordinem Pandectarum,
1728, quanto a um tratamento sistemático do direito
roma-no-justinianeu e à conciliação deste, na tradição do direito comum,
com o direito natural) – orientadores dos futuros desenvolvimentos
nesta matéria. Aí se explana o processo ascendente desde o
indiví-duo até aos entes colectivos e, em última instância, ao Estado (ente
moral); e a dupla natureza do homem, indivíduo e membro da
comunidade. Donde, na procura de um sistema jurídico racional (ou
matemático), a exposição em primeiro lugar do direito das pessoas,
no qual cabia o direito do património, em segundo lugar, do direito
da família, em seguida, do direito do Estado e, finalmente, do direito
internacional. Isso, como nota ainda B.
S
CHWARZ, levará, entre
outras consequências quanto à futura repartição do direito privado, a
apartar o direito da família do das pessoas e, subsequentemente, à
autonomização do direito das sucessões (para os jusnaturalistas este
ainda se integrava, quanto à sucessão legal, no direito da família e,
quanto à sucessão testamentária, no direito patrimonial – esquema
adoptado no código prussiano).
Se o ALR, na sua ordenação, se inspirou em via recta no
jus-naturalismo, o Code Civil (conquanto para este haja ainda que
des-tacar a influência da civilística gaulesa, nomeadamente de F
RANÇOISB
OURJON, sobretudo no concernente ao Livro III – “Des différentes
manières dont on acquiert la propriété”) e o ABGB seguiram no
essencial (transformada, é certo, pelos romanistas modernos e pelos
juristas franceses) a divisão tripartida das Institutas – personae, res,
actiones
vii–, o plano do BGB cruza as origens romanas, o sistema
das Pandectas e a tradição jusracionalista. A divisão entre direito
das obrigações e direitos reais provém afinal da distinção romana
entre actio in rem e actio in personam (embora tal diferenciação não
tenha permanecido imutável e as suas fronteira tenham sido muitas
vezes diluídas, como o comprova a civilística francesa; demais, o
BGB antepõe o direito das obrigações ao direito das coisas); e a
autonomização do direito da família e do direito das sucessões
resul-ta da influência jusnaturalisresul-ta, conforme explicado. No dizer de A.
B.
S
CHWARZ, interceptam-se aqui “zwei auch historisch völlig
ge-trennt Prinzipien der Systematisierung. Sachenrecht und
Schuld-recht, Familien- und Erbrecht sind nach zweierlei Grundsätzen
ge-schieden, welche in völlig heterogenen Schichten juristischer
Ge-dankenbildung wurzeln”. Já a Parte geral representa de algum modo
um “produto específico do direito alemão”, a “coroação ou o fecho
da abóboda do edifício pandectístico”, posto que prenunciada, como
visto, pela Escola do Direito natural.
Seja como for, o sistema externo
viiido BGB, na sua divisão
entre direito das obrigações, direitos reais, direito da família e
direi-to das sucessões, foi usado na generalidade dos códigos civis
poste-riores. E vários deles, entre os quais o japonês, o coreano, o
tailan-dês (mais exactamente, de Sião, onde, entre 1924 e 1935, foi
recebi-do o BGB, com excepção recebi-do direito da família e das sucessões), o
grego, o polaco, o checoslovaco, os de várias Repúblicas soviéticas,
adoptaram ainda Partes gerais. O mesmo se passou no nosso Código
de 1966. E na recente codificação brasileira (como já ocorria na de
1916). Entre as legislações civis mais recentes dos países de Leste,
haverá que juntar a tal rol, o Código Civil da República da Albânia
de 29/7/1994 (sucedendo ao Código de 1981, de inspiração
comu-nista, em cuja elaboração colaboraram juristas de outros países e que
em muitos domínios tomou o Codice Civile italiano como modelo,
estando dividido em 5 Livros: Parte Geral, centrada na figura do
negócio jurídico, Posse e Propriedade, Sucessões, Obrigações, e
bastan-te refinada, redigida entre 1992 e 1997 com a ajuda de estrangeiros,
sobretudo alemães); o da Lituânia de 2000 (o Civilinis Kodeksas foi
promulgado em de 18/7/2000, tendo entrado em vigor em 2003,
substituindo o anterior Código soviético-lituano de 1964, incorpora
muitas contribuições de outras codificações hodiernas, como os
códigos neerlandês e o do Québec, e compreende seis Livros: Parte
geral – incluindo o direito internacional privado, e estruturada à
volta da figura do negócio jurídico, a que dedica os Arts. 1.63 a 1.96
–, Direito das pessoas singulares e colectivas, Direito da família,
Direito reais, Direito das sucessões, e Direito das Obrigações); e o
Código Civil moldavo de 2002 (publicado em 06/06/2002, em vigor
desde 12/06/2003, não abrangendo o direito da família, e estando
dividido em 5 Livros: Parte geral – Disposições gerais, Pessoas,
Negócio jurídico e Representação, Prazos –, Direitos reais,
Obriga-ções, Direito das sucessões, Direito Internacional Privado).
Isso, a despeito de importantes vozes de contestação, algumas
até anteriores à aprovação do BGB, se terem feito ouvir na
Alema-nha. Mas há que logo distinguir entre, por um lado, as objecções
endereçadas à inclusão de uma Parte geral, as que têm por alvo o
conteúdo e a estruturação desta, o critério que lhe preside, o seu
grau de abstracção (e a possibilidade de generalização do conceito
e das regras do negócio jurídico que tem subjacente)
ixe a sua
con-catenação com os demais Livros, por outro, as críticas que incidem
sobre a divisão quadripartida “cruzada” (de “Kreuzeinteilung” fala
já E. Z
ITELMANN) empregue nos livros subsequentes
(nomeadamen-te, o seu carácter incompleto e a desigualdade de critérios que
presi-de à sepração entre direito das obrigações e direito das coisas e entre
direito da família e direito das sucessões; e, como referido, inédito
só aí será no essencial a ordem seguida), e, por último, os reparos
ao próprio esquema ou categoria ancilar da relação jurídica. Além
disso, o problema de uma parte geral pode de novo levantar-se
den-tro do direito das obrigações, onde a regulamentação prévia e geral
respeitante à relação obrigacional (no BGB, os primeiros 7 Títulos
da Livro II) pretende aglutinar, com maior ou menor sucesso, as
diversas fontes das obrigações, mormente, as de origem
convencio-nal e as de génese delitual.
O debate sobre a sistematização germânica e em especial
acerca da Parte geral
x, que de algum modo persiste até aos nossos
dias e se reacendeu recentemente no contexto de certos projectos ou
iniciativas de um “Código Civil europeu” (em regra, trata-se aí
somente da codificação do direito das obrigações e, portanto, de
uma parte geral de bem menor ambição; mas, quer os PECL quer o
DCFR contêm um capítulo inicial com “disposições gerais”), é
sufi-cientemente conhecido e está largamente documentado para nos
podermos limitar a alguns apontamentos muito sintéticos.
Registar-se-ão apenas as críticas de autores tão proeminentes
como E. Z
ITELMANN(evidenciando que a divisão orgânica acolhida
nos demais Livros do BGB pecaria por falta de unidade de critério
(com efeito, o direito das obrigações e das coisas atendem à
especi-ficidade estrutural das relações jurídicas, o direito da família e das
sucessões, à peculariedade das instituições reguladas),
correspon-dendo a uma “divisão cruzada”, e apontando também que a Parte
geral agruparia as várias matérias segundo perspectivas diversas,
quer segundo os factos ou pressupostos, quer segundo os efeitos,
para além de incluir assuntos e conceitos com insuficiente carácter
geral – mormente a regulamentação das coisas, §§ 90 e ss, a qual,
para mais, pertenceria, como também entre nós é sugerido, aos
direi-tos reais, e a regulamentação das associações e fundações, §§ 54 e
ss. – e outras matérias cuja inclusão aí se pode questionar –
mor-mente o direito das pessoas singulares, passível de ser autonomizado
num Livro à parte, o “direito da prescrição”, eventualmente
integrá-vel no direito das obrigações, e os preceitos respeitantes ao
“exercí-cio e tutela dos direitos”, §§ 226 e ss., aí arrumados residualmente),
J.
K
OHLER(em termos muito moderados),
A.
B.
S
CHWARZ,
F.
W
IEACKER,
e, na nossa doutrina, O
RLANDO DEC
ARVALHO(denun-ciando a “tranquilidade de alma” com que se aceitou, entre outras
possíveis, essa “embalagem da mercadoria jurídica” – mas também
uma “técnica de educação jurídica” e “um sistema de persuasão
sobre o interesse da lei” –, fruto de uma “maneira académica de
considerar a missão do legislador”, salientando também a
“desuma-nização do direito civil” e a “reificação do homem” envolvida na
parificação dos sujeitos aos demais elementos da relação jurídica –
de uma “descentração” fala-se também a este propósito –, e
contra-pondo-lhe ainda a “perspectiva antropocêntrica” e humanista do
Código de Seabra
xi, com uma “montagem de normas” relativamente
original em quatro Partes: I. Da capacidade civil, II. Da acquisição
dos direitos, III. Do direito de propriedade, IV. Da offensa dos
direitos e da sua reparação) e O
RLANDOG
OMES.
Conquanto se reconheça que a elaboração de uma parte geral
representa uma tarefa irrenunciável da ciência do direito,
pergun-tar-se-á, com F. W
IEACKER, se um código deve copiar tal sistemática
científica; e, nessa sequência, se a há que acolher no próprio ensino
do direito – para o professor e para os estudantes nos anos iniciais, o
ensino e o estudo da parte geral representarão um não pequeno
“cal-vário pedagógico”, uma “crux iuris”.
É apontado igualmente que a concepção da Parte geral
per-maneceu (inicialmente) uma “via própria” (um “Sonderweg”)
ale-mão, não secundado por várias importantes legislações de direito
privado posteriores ao BGB. Por exemplo, a suíça, a italiana e a da
ex-República Democrática Alemã (ZGB) abdicaram da inclusão de
uma parte geral na acepção com que a vimos tomando (acaso
disci-plinando antecipadamente as situações-chave ou casos mais
caracte-rísticos e frequentes e prevendo a extensão, por analogia, do
respec-tivo regime a situações semelhantes – usa-se falar aqui de “uma
Schaltbestimmung”, “preceito de ligação ou comutação”, ou, mais
figurativamente, “Schaukelbestimmung” “preceito-baloiço”;
possí-vel mas menos prático repossí-vela-se a inclusão nas regulamentações
específicas de uma remissão com “função integradora genérica”
para aquela sede) e preferiram, como objecto directo de
regulamen-tação, o contrato à figura mais abstracta do negócio jurídico.
Contudo, posteriormente, outros Códigos albergaram partes
gerais inspiradas na do BGB (conforme referido). E, desde o início,
uma plêiade de juristas entraram na liça saindo em defesa da
inclu-são da Parte geral e da sistematização abraçada no BGB.
Destaque-se a argumentação de A.
M
ANIGKe P. H
ECK. Em particular, este
último (cuja atitude, em oposição a N
IPPERDEYe L
ARENZ, em vistas
das circunstâncias de então, viria a ser qualificado por C
ANARISde
“couragierter Akt”) distingue, no contexto da ciência, da construção
jurídica e da sua exposição, três possibilidades de “arrumação
exter-na”: repetir os pontos comuns em cada um dos domínios – o que
facilitaria a aplicação, mas traria consigo uma grande prolixidade;
inserir tais aspectos num desses domínios especiais e, depois,
esten-dê-los aí aos demais ou incluir nestes uma remissão para aqueles –
simplifi-cação do sistema, sendo para o autor muito cómoda, mas impedindo
uma panorâmica geral e tornando a aplicação árdua e insegura,
constituindo no fundo uma espécie de “Versteckspiel”; ou destacar,
autonomizar num lugar próprio, numa parte geral, os traços
comuns – o que promoveria uma visão global e, por isso, uma rápida
e imediata orientação, assumindo pois a parte geral uma função de
ordenação, um “propósito de perspectivação”, sendo tanto mais útil
quanto maior fosse a sua extensão e o número de partes especiais.
Isto tornaria esta última possibilidade, utilizada noutras ciências,
preferível às anteriores, sem que os defeitos a ela assacados se lhe
possam dizer inerentes, resultando antes de um conceptualismo que
também aqui se poderia manifestar. Idênticos três caminhos ou vias
seriam viáveis no âmbito da técnica legislativa, onde à escolha
pre-sidem todavia sobretudo considerações de praticabilidade. Então, no
juízo de P. H
ECK, avultariam ainda mais as vantagens da parte geral
já postas em destaque.
Por fim, referir-se-á entre nós
a posição de A
NTUNESV
ARELA,
em polémica com O
RLANDO DEC
ARVALHO.
Nomeadamente,
evi-denciou este autor o préstimo científico e técnico e as virtualidades
da figura da relação jurídica, a qual não envolveria, em geral e como
esquema didáctico ou legislativo, uma depreciação do valor capital
que compete, entre os vários elementos, ao(s) sujeito(s), e salientou,
por outro lado, o valor pragmático da classificação germânica das
relações jurídicas
xii.
II. AS DEFINIÇÕES LEGAIS
1. Afirma-se que “le juriste est un professionnel de la
défini-tion”. Por outro lado, exprimia-o já a sabedoria romana, no direito
omnis definitio in iure civili periculosa est: parum [vel rarum] est
enim, ut non subverti posset] (I
AVOLENUS,
D.
50,17,202)
xiii. E
adver-te-se que o legislador não é um lexicógrafo ou dicionarista.
2. Notar-se-á preliminarmente que, de uma maneira geral, as
definições (por vezes sobre a forma de enumerações), sobretudo de
termos ou vocábulos não exclusivamente técnico-jurídicos,
mostra-se bem mais frequentes e detalhadas nas leis (nos statutes; mas
tam-bém em outros documentos oficiais e privados) da common law
xivdo
que nas da civil law. E aí elas surgem quase sempre
antecipadamen-te, no incipit do articulado, e porventura ordenadas alfabeticamente.
Tal técnica, que de algum modo é comparável ao uso de uma parte
geral, tem hoje bastante curso também nos normativos comunitários
(correspondendo ao objectivo de atalhar a interpretações
divergen-tes, suscitadas desde logo pela diversidade linguística, procurando
indicar as valorações subjacentes, visando impedir que as
expres-sões empregues sejam entendidas pelos tribunais à luz de categorias
próprias dos direitos de cada Estado, e, no fundo, pretendendo
diri-mir as relações entre as várias fontes legislativas e entre elas e o
direito jurisprudencial; advirta-se ainda que normalmente o
articula-do normativo vem precediarticula-do articula-dos chamaarticula-dos consideranarticula-dos, uma
espécie de paratexto).
Costuma apontar-se que, onde os demais europeus preferem
qualificar, sistematizar, de acordo com a tradição escolástica e
carte-siana, e especular (até no sentido extremo em que o praticou Hegel),
os ingleses, ciosos da certeza, descrevem e recenseiam, concretizam,
aludindo-se à predisposição para a minudência, o casuísmo e a
“concretude” dos statutory instruments. “Labirintos enumerativos”
já lhes chamou alguém (de resto, só viáveis por as leis tenderem aí a
restringir-se a certas áreas)
xv. Mais em geral, invoca-se que o
pen-samento ou temperamento anglo-saxónico, logo forjado pela
insula-ridade (esta, no plano do direito, logo terá levado a que nunca se
tenha em terras de Sua Majestade – não na Irlanda – deixado de lado
como critério de nacionalidade o ius soli, desprezadas aqui muitas
complexidades e múltiplas categorias de nacionais ou cidadãos
advenientes do passado imperial), tende a ser – além de fleumático e
reservado, diz-se ainda – “empírico” ou “experimental”, “capaz de
rever a todo o tempo qualquer premissa”, “concreto e vago”,
fun-cionando “por enumeração e inventário”, por contraposição ao
fran-cês e ao alemão, “teórico”, “abstracto e preciso” e “fortemente
ana-lítico”. A natureza pragmática e o pendor indutivo (“irracional” ou
“alógico”, e arraigado ao passado), por antítese ao “raciocínio por
conceitos” e de cariz abstracto e dedutivo (movido pela “tentação da
elegância” e vogando ao sabor das circunstâncias), é quase sempre
reconhecido como um traço do “national spirit” britânico, que logo
se terá reflectido na common law (por muitas reservas que levantem
semelhantes explicações “românticas”, a partir da “alma de uma
nação”, do “carácter ou génio nacional ou da “psicologia de um
povo”, entidades tão omnicompreensivas como desprovidas de
ver-dadeira força explicativa e geralmente tomadas sob forma vulgar ou
literária
xvi; haveria aliás que investigar quanto a common law
xvii xviiinão terá influenciado e impregnado o “espírito britânico”, e até o
humour inglês)
xix.
Neste contexto, importa sobretudo ter consciência de que o
redactor de textos legais (e contratuais) inglês observa de modo
estrito certos “princípios semânticos” (e, reciprocamente, o
aplica-dor lança mão de correspondentes “canônes interpretativos”
xx). Um
deles consiste na regra eiusdem generis, segundo a qual os termos
genéricos surgidos depois de termos ou sintagmas específicos, numa
enumeração não exaustiva, devem interpretar-se como referidos a
pessoas, coisas ou objectos da classe ou do grupo, do tipo ou género
(particulares), em que aqueles últimos se inserem (para excluir tal
inferência inserem-se expressões como without the generality of the
foregoing, without limiting the generality ou including without
limi-tation). Assim, na série “house, office, room or other place…”, o
último termo (genérico) ter-se-á como respeitante a lugares
fecha-dos, pois acompanha outros referidos ao mesmo género. Segundo
outra máxima, expressio (ou inclusio) unius [est exclusio alteris], ou
seja, quando no final de uma enumeração não aparece um termo
genérico, aquela há-de entender-se taxativamente, excluindo-se
implicitamente outras coisas, pessoas ou actividades. Por exemplo,
no direito britânico, a descrição do objecto social tem de especificar
absolutamente tudo o que a sociedade pode fazer. E, de acordo com
a regra noscitur sociis, ligada de perto ao eiusdem generis, as
expressões (de sentido duvidoso ou contestado) devem entender-se
de forma intimamente dependente do contexto, associadas portanto
aos demais termos contíguos (também para as palavras, valerá o dito
diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és). Desse modo, se um
statute prescreve que os explosivos sejam levados para uma mina
num “case or canister”, um saco de pano não se inclui aí, pois o case
ou container deverá ter a mesma resistência que uma “lata” –
canis-ter (Foscanis-ter v. Diphwys Casson Slate Co. [1887] 18 QBD 428). Para
além disso, nenhuma palavra ou expressão deve em princípio ser
considerada supérflua, antes se lhe tentará atribuir um sentido útil
(donde o emprego de sinónimos se ter por perigoso)
xxi. Vale ainda,
no domínio contratual, a regra contra preferentem
xxii.
3. Seja como for, já o Digesto recorria amiúde à técnica das
definições: o Título XVI do Livro L intitula-se justamente De
ver-borum significatione e contém 246 definições.
E, desde há muito, elas surgem amplamente nos instrumentos
normativos internacionais (em parte para evitar problemas de
tradu-ções díspares) e, nos nossos dias, como assinalado, nos
regulamen-tos comunitários (por influência do direito inglês? por necessidade
de homogeneizar as terminologias nacionais?). Também em certos
domínios da legislação especial (nacional) é possível constatar um
incremento do seu uso (especialmente de definições, claramente
estipulativas, de “termos factuais”); assiste-se a um crescente
suces-so de semelhante técnica legislativa (para demarcação do âmbito de
aplicação da própria lei?, ainda por emulação da common law?,
promovida pela introdução frequente de neologismos?).
4. A nós interessam-nos apenas as definições legais (ou
legis-lativas). Simplificadamente, estas podem contrapor-se às doutrinais,
apontando, com N. I
RTI, que as últimas possuem carácter indutivo e
analítico e as primeiras estipulativo (não lexical; aliás, normalmente
tratar-se-á de definições explicativas ou redefinições) e sintético.
Eventualmente, o legislador, arrogando-se competência
cien-tífica (ou didáctica), reservada em princípio à doutrina, não resiste a
uma incursão nos terrenos da “construção dogmática”, fornecendo
definições sem verdadeira eficácia normativa, inúteis reflexões
sobre a própria obra, meras súmulas do conteúdo de outras normas
(algo diferentes são os casos em que a lei se pretende servir do
resultado de uma construção teórica à qual desse modo adere; ou
aqueles outros em que a definição intencionalmente não quer
“cir-cunscrever mas “evidenciar”, nas palavras de M.
D
ELLACASA).
Ci-tem-se as conhecidas palavras de P
ORTALIS: “Les lois sont des
vo-lontés. Tout ce qui est définition, enseignement, doctrine est du
res-sort de la science. Tout ce qui est commandement, dispositions
pro-prement dit est du ressort des lois”. No entanto, ainda nas
codifica-ções do séc. XVIII – onde para mais o legislador se sentia imbuído
de um “fito persuasivo e pedagógico”, daí a designação “Lehrbücher
mit Gesetzkraft” (aos quais estava, frequentemente, associada uma
intenção demagógica; a “lei-pedagoga”, na expressão de J. C
AR-BONNIER